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O gosto do mundo

Exercícios de paisagem
Jean-Marc Besse

UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

Reitor
Ricardo Vieiralves de Castro

Vice-reitor
Paulo Roberto Volpato Dias
O gosto do Illundo
Exercícios de paisagem

Tradução
Annie Cambe

EDITORA DA UNIVERSIDADE DO
ESTADO DO RIO DE JANEIRO

Conselho Editorial
Antonio Augusto Passos Videira
Erick Felinto de Oliveira
Flora Süssekind
ltalo Moriconi (presidente)
Ivo Barbieri
Lúcia Maria Bastos Pereira das Neves
Rio de Janeiro
2014
Copyright © 2014. Jean-Marc Besse.
Títulu original: Le Gofit du Monde© 2009. Actes S ud/ENSP, Arles. Sumário
Todos os direitos desta edição reservados à Editora da Universidade do Estado do Rio de Janei-
ro. É proibida a duplicação ou reprodução deste volume, ou de parte do mesmo, em quaisquer
meios, sem autorização expressa da editora.

~ EdUERJ
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CEP 20550-013 - Rio de Janeiro - RJ
Tel./Fax: (21) 2334-0720 / 2334-0721
www.cduerj.uerj. br Prólogo ............................................................................................... .............. ...... ?
edue1j@ uerj.br

Editor Executivo Italo Moriconi T. As cinco portas da paisagem - ensaio de uma cartografia das
Assistente Editorial Eduardo Bianchi
Coordenadora de Produção
problemáticas paisagísticas contemporâneas ................................ .. ........... 11
Rosania Rolins
Assisteme de Produção Mauro Siqueira
Coordenador de Revisão Fábio Flora
Revisão
II. Geografias aéreas ................ ........ ............... .................................................. 67
Magda Frediani Martins
Maria Filomena Jardim Diniz
Capa Carlota Rios
Projeto e Diagramação
III. A paisagem, entre a política e o vernacular ............ ........ ...... ...... ...... 103
Emilio Biscardi

IV. Cartografar, construir, inventar - notas para uma


CATALOGAÇÃO \!A FONTE
UERJ/REDE SIRTUS/NPROTEC epistemologia do encaminhamento do projeto .. .................................... 141
B559 Besse, Jean-Marc.
O gosro do mundo: exercícios de paisagem/ por Jean- V. Paisagem, hodologia, psicogeografia .............................. ...................... 183
Marc Besse; tradução de Annie Cambe. - Rio de Janeiro:
EdUERJ, 2014.
234 p. - (Clássicos da Ciência) Nota sobre a origem dos textos .............. ............. ............................... ........ 223

ISBN 978-85-75 11-339-4

1. Planejamento urbano. 2. Espaço (Arquirerura) l. Tírulo.

CDU 711.4
Imagem da capa adaptada de The naked city, de Philippe Migeat (1957).
Prólogo

A paisagem constitui uma perspectiva nova para as ques- <-


tões ligadas ao projeto urbano e à concepção da cidade, de forma
geral. Num contexto que deixou de ser o da cidade hi stó rica e
passou a ser muito mais o da "cidade difusa'', da "cidade explo-
dida", ou da "cidade espraiada", a paisagem é hoje considerada
por muitos (inclusive pelos mestres. de obra) como um recurso
para o urbanismo, ou, de forma mais geral, para as estratégias de
ordenamento do espaço em diferentes escalas. O cuidado com a
paisagem ocupa, na atualidade, um lugar crucial nas preocupações
sociais e políticas pela qualidade dos quadros de vida o ferecidos
às populações, em relação aos questionamentos sobre a identida-
de dos lugares, sobre a governança dos territórios ou, ainda, sobre
a proteção dos meios naturais.
Paralelamente, observa-se que um verdadeiro campo de
pesquisa se constituiu no que se refere à questão da paisagem,
o nde se encontram várias disciplinas e várias profissões (ciências
sociais, história e teoria das artes e da literatura, filosofia, ecologia,
geografia, arquitetura e urbanismo, agronomia). O surgimento de
carreiras universitárias, a criação de novas escolas, o desenvol-
vimento quantitativo das publicações e, por fim, a formulação
de novos dispositivos jurídicos e institucionais - tanto em escala
nacio nal como europeia (Lei Paisagem, de 1993, na França, Con- Cff
vênio europeu sobre a paisagem, de 2000) - levam a formular a
hipótese de uma nova cultura da paisagem; uma nova cultura que
n O 11mtn do mundo: [ xcrclclos de paisagem Prólogo 9

l < llTt:sponde, sem dúvida, a novas formas de experiência do espa- !idade das paisagens, mas também sobre o próprio conteúdo do \!
~·o, da sociedade e da natureza e, no mínimo, a novas aspirações conceito de paisagem e sobre as práticas paisagísticas? 1·
cole1ivas relativas ao meio ambiente. Além disso, foram levantadas outras questões quanto às re-
Mas este tipo de coincidência que se observa entre o de- lações entre as paisagens e o poder, político ou econômico. As
senvolvimento da pesquisa e um contexto social e político, que paisagens não são, de certa forma, os instrumentos da dissimula-
também se tornou mais atento aos desafios paisagísticos, faz surgir ção de realidades sociais e econômicas bastante inglórias, como a
horizontes inéditos, tanto para as práticas profissionais dos urba- da exclusão socioespacial, por exemplo? Qual é o teor ideológico
nistas e dos paisagistas quanto para as teorias paisagísticas. Hoje, de uma paisagem? D e modo mais geral, quais significações e quais
já surgem novas perguntas a respeito da paisagem e, em particular, valores uma paisagem pode propor hoje? A paisagem tornou-se
novas exigências teóricas e práticas são feitas a seu respeito. um tecido ético, de certa forma.
Efetivamente, d urante muito tempo, foi considerada satis- No que diz respeito aos modos de acesso às paisagens, a
fató ria a definição que considerava a paisagem como um panora- questão surge, por exemplo, no que se refere a saber se a vista ain-
ma natural, geralmente descoberto a partir de um ponto elevado, da pode ser considerada a condição e a principal forma da relação
permitindo, assim, que o espectador obtivesse um tipo de domí- com as paisagens. Fala-se, atualmente, das paisagens sonoras, mas
nio visual so bre o território. Tal espetáculo devia, supostamente, também da paisagem dos sabores, ou até das paisagens tácteis, no
provocar nos indivíduos o surgimento de um prazer estético ou âmbito de uma reflexão geral que insiste na dimensão de polissen-
de uma edificação moral e, no mínimo, d e uma emoção sensível sorialidade própria das experiências paisagísticas.
inigualável no gênero. Na mesma ordem de ideias, o desenvolvimento de mídia
Esse conceito pitoresco ou ornamental da paisagem (que, - como a fotografia e o cinema - e o das técnicas digitais de gra-
aliás, continua bem vivo, especialmente nas suas expressões co- vação, de fabricação e de reprodução dos sons e das imagens leva-
merciais) está hoje em crise ou, pelo menos, é motivo de inúmeras ram a considerar outros tipos de paisagens, que se avizinham dos
críticas, tanto no plano das representações e das percepções quan- universos da imaterialidade e da virtualidade e que, de qualquer
co no das realidades e dos projetos. A relação com as paisagens forma, vão além das tradicionais referências à picturalidade. A in-
ficou mais complexa e menos "naturaJ" que antes. clusão dessas inovações técnicas tem, aliás, efeitos historiográficos:
"'- Assim, as paisagens são hoje tratadas no âmbito de uma assim, fala-se muito hoje da interação entre a história das formas
reflexão mais geral sobre as cidades e a extensão suburbana, so- da sensibilidade paisagística e a dos tipos de dispositivos técnicos
bre os locais industriais e sua ocupação territorial, sobre as áreas (da perspectiva ao auromó;el) que as sociedades modernas inter-
industriais devolutas, sobre o impacto das instalações técnicas de- puseram entre si e o mundo.
dicadas ao transporte dos homens e das m ercadorias ou, ainda, à Do inven tário, mesmo rápido, dessas pistas de pesquisa,
produção e à circulação da energia. evidencia-se, consequentemente, que um dos desafios do ques-
Daí a interrogação: quais serão as consequências dessa am- tionamento contemporâneo sobre as paisagens e sua compreensão
pliação do campo dos objetos paisagísticos não só sobre a legibi- reside na ampliação e na reformulação dos conceitos, das repre-
1O O gosto d o mundo: Exercícios de paisagem

sentações e das práticas. É nessa perspectiva que o presente livro 1. As cinco portas da paisagem - ensaio de
pretende situar-se.
Os ensaios que compõem esta obra são o desdobramento e
uma cartografia das problemáticas
a reformulação de alguns textos já publicados, bem como de con- paisagísticas contemporâneas
ferências e cursos que tive a oportunidade de propor a públicos
variados nos últimos anos. 1
Quero aproveitar o ensejo para agradecer aos colegas, ami-
gos e estudantes que, nessas diversas circunstâncias, acompanha-
ram o desenvolvimento das minhas análises, tanto na École Na-
tionale Supérieure du Paysage - ENSP, de Versalhes, no Instituto
de Arquitetura da Universidade d e Genebra, na École Nacionale
Supérieure en Architecture et Paysagc - ENSAP, de Lille, nos Car-
nets du Paysage, quanto na equipe EHG0 2 do Centre National de O que é a "paisagem" nas culturas espaciais modernas e
la Recherche Scientifique - CNRS. Este livro também é o teste- contemporâneas? Qual "realidade" é indicada com esse nome,
munho de uma parceria intelectual e profissional com Gilles A. quais são as práticas e os valores que correspondem a esse nome,
T iberghien, a quem dirijo meus agradecimentos especiais. e quais são os objetos que resultam dele? Na verdade, é muito
difícil responder a essas perguntas. 1 O historiador da cultura está
confrontado com uma conjuntura teórica e historiográfica com-
plexa, ambígua. Efetivamente, existem, atualmente, uma polis-
semia e uma mobilidade essenciais do conceito. de paisagem , e
essa situação teórica deve-se, em parte, à atomização profission al e
acadêmica das diferentes "disciplinas" que fazem dela seu campo
de estudos e d e intervenções. Sabemos que a paisagem é um obje-
to n ão apenas para o paisagista, o arquiteto ou o jardineiro, mas
também para a sociologia, a antropologia, a geografia, a ecologia,
a teoria literária, a filosofia etc. E n ada garante que essas d iversas
discipl inas, quando confrontadas à questão da pa isagem, pensem
na mesma coisa e mobilizem as mesmas referências intelectuais.

1
Enconrramos uma perplexidade análoga no início do ensaio de Cario Tosco, 11
1
paesaggi.o come storia (Bolonha: II Mulino, 2007), que propõe, entretanto, uma
Uma nota sobre a o rigem dos textos foi inserida no fi nal do volu me. rentativa de reconstrução histórica do conceito. Ver também: Wylie, J. Land-
Équipe Paris-EHGO, Inreraction Spatiale, Épistémologie er Histoire de la Géo- scape. London and New York: Routledge, 2007; bem como: Delue, R. e Elkins,
graphie (N. da R.). J. (ed .). Landscape The01y. London and New York: Roucledge, 2008.
12 O gosto do mundo: Exercícios de paisagem As cinco portas da paisagem ... 13

, . "Podemo~; entretanto, perc~ber hoje, de forma geral, cinco pos- . lll que os homens pensam dela, ao que percebem dela e ao que di-
s1ve1~ entradas nessa questão, cinco problemáticas paisagísticas que l l'lll dela. Ela é um tipo de grade (retícula) mental, um véu mental
coexistem no pensamento contemporâneo e que não se superpõem q11 l' o ser humano coloca entre ele mesmo e o mundo, produzindo,
exatamente, é verdade, embora possam ser, às vezes, articuladas umas , llm essa operação, a paisagem propriamente dita. ''.Antes mesmo de
às outras. Assim, a paisagem é considerada como uma representação ,n o descanso dos sentidos, a paisagem é a obra da mente", segundo
cultural (principalmente informada pela pintura), como um território \1111011 Schama. 2 A paisagem é uma _imerpret~Çã'!; uma "leitura"
pr~duzido pelas sociedades na sua história, como um complexo sistêmico (t\lain Corbin) ou, ainda, a expressão de certo tipo de linguagem3 •
articulando os elementos naturais e culturais numa totalidade objeti- Não existe em si, mas na relação com um sujeito individual ou co-
va, como um espaço de experiências sensíveis arredias às diversas formas 1\·t ivo que a faz existir como uma dimertsão da apropriação cultural
possíveis de objetivação, e como, enfim, um local ou um contexto de 1 lo ~undo. A paisagem fala-nos dos homens, dos seus olhares e dos

projeto. Cada uma dessas posições é sustentada de forma privilegiada, \ l'LIS valor~s, e não propriamente do mundo exterior. Na realidade,
embora não exclusiva, por uma "profissão" ou um grupo de profis- ~<'> haveria paisagens interiores, mesmo se essa interiori<la<le se tra-
sões, ou até por uma formação ou uma corporação acadêmicas. Por duz e se inscreve "no exterior", no mundo.
e~em~lo, os defensores da primeira concepção são, principalmente, Tal concepção da paisagem implica uma teoria inrelecru-
histonadores e filósofos da arte, enquamo a noção de "sistema pai- ;il ista da percepção, como confirma, em certo sentido, o próprio
sagístico" é mais utilizada por ecologistas ou alguns geógrafos, e a filósofo Alain, para quem é necessário distanciar-se da "ideia in-
d~ "projeto" é característica do vocabulário dos paisagistas. Essas [!;ên ua da percepção", que nos leva a crer que "[... ] a paisagem
diversas concepções ou posições convivem na "cultura paisagística" .1presenta-se a nós como um objeto ao qual não podemos mudar
contemporânea, conferindo, dessa forma, à análise dessa cultura uma nada, e so' temos que rece bera sua marca ,, .4
verdadeira riqueza e uma real complexidade. Na atualidade, trabalhar Segundo ele, é preciso olhar mais de perto e perceber a pre-
de u~ pomo .de vista teórico sobre a questão da paisagem supõe que sença de um ato de interpretação no cerne da própria percepção.
~e aceite. considerar, pelo menos provisoriamente e como hipótese, a É preciso observar o efeito de um julgamento naquilo que é visto
JUStapos1ção e a superposição desordenada desses diferentes discursos como horizonte longínquo, confusão dos detalhes, distâncias, re-
e pontos de vista sobre a paisagem. levos, cores, sombras. Assim, conclui Alain:

A paisagem é uma representaÇão cultural e social

A paisagem: uma realidade mental ,. Schama, S. Le Paysage et la mémoire. Paris: Le Seuil, 1999, p. 13. O cenário da
paisagem, prossegue, "consrrói-se canto a partir dos ·cstraros da memória quanto !\
daqueles dos rochedos".
Uma primeira abordagem da paisagem consiste em defini-la l Ver, por exemplo, Augustin Berque, que d istingue quatro ripas de represe ntação

c?mo um ponto ~e vista, um modo de pensar e de perceber, prin- como condições instauradoras da paisagem: represemações linguagciras, literá-
rias, picturais, jardineiras. Cf. Berque, A. Les raisons du paysage. Paris: Hazan,
cipalmente como uma dimensão da vida mental do ser humano. A
1995, p. 34.
paisagem não existe, obfetivamente, nem em si; então, ela é relativa ~ Alain. Eléments de philosophie. Paris: Gallimard, 1940, p. 21.
14 O gosto do mundo: Exercícios de paisagem As cinco portas da paisagem... 15

[... ] a distância do horizonte não é uma coisa entre as coisas, Entretamo, a própria noção de representação paisagística
mas sim uma relação das coisas comigo, uma relação pensada, 110de ser entendida de forma mais ou menos restritiva, levando
concluída [...]. O que faz aparecer a importante distinção que 1'1tláo a questionamentos bastante diferentes.
deve ser feita entre a forma e a matéria do nosso conhecimento.
Essa ordem e essas relações que sustentam a paisagem e qual- l~lisagem e modelos pictóricos
quer objeto, que a determinam, que fazem dela algo real, sólido,
verdadeiro, essas relações e essa ordem são relativas à forma e )
Assim, muitas vezes, a paisagem foi estudada e designada,
definem a função pensamento (1940, p. 21).5 .1nces de tudo, como representação artística, principalmente in-
f(nmada pelos modelos da pintura. A invenção histórica da pai-
-· ~ Nessa perspectiva, o estudo de uma paisagem, real ou ape- sagem foi relacionada com a invenção do quadro em pintura, no
nas representada, costuma ser identificado com o estudo de uma Renascimento, mas também, no próprio quadro, com a invenção
forma de pensamento ou de percepção "subjetiva" e, mais geral- da "janela": a paisagem seria, portanto, o mundo tal como é visto
mente, uma expressão humana informada por códigos culturais desde uma janela, seja essa janela apenas parte do quadro, ou con-
~eteri:iina~os (discursos, valores etc.). É preciso retornar, por as- fundida com o próprio quadro com um todo. A paisagem seria
sim dizer, ir aquém da própria paisagem, para enxergar nela as uma vista emoldurada e, em todo caso, uma invenção artística.
razões de ser, na cultura e na vida social, de que é, de alguma A janela, escreve Victor Stoichita, desempenha um "papel cata-
forma, a encarnação. A análise da paisagem consiste numa aná- 1isador" na invenção deste novo gênero pictural do Renascimen-
lise de categorias, de discursos, de sistemas filosóficos, estéticos, to, que é a paisagem. "É o retângulo da janela", acrescenta, "que
morais, que a paisagem deve pretensamente prolongar e refletir. transforma o lado de fora em paisagem"7, pois ativa uma dialética
Não cabe diferenciar, a este respeito, a paisagem real da paisagem do interior e do exterior, isto é, instaura uma condição indispen-
representada (em imagem ou em texto). ln situou in visu, a na- sável da paisagem na história da pintura: a distância.
tureza da paisagem não muda fundamentalmente. Ela é sempre, É nessa perspectiva que a história da arte passou a conside-
p~r essê~ci~, ~ma expressão humana, um discurso, uma imagem, rar o problema do "nascimento" da paisagem na E uropa Ociden-
sep ela md1v1dual ou coletiva, seja ela encarnada numa tela, em tal d o século XVI, na prolongação das famosas análises de Ernst
papel ou no solo. E, nesse sentido, metodologicamente falando, é Gombrich. 8 Gombrich destacou várias dimensões no aconteci-
perfeitamente legítimo imaginar uma "iconografia da paisagem",
ou seja, a aplicação à paisagem das categorias e dos processos acio-
7 Sroichira, V. L'lnstauration du tableau. Geneve: Droz, 1999, p. 58. Anne Cauqueli n
nados por Aby Warburg e Erwin Panofsky na interpretação das
desenvolve um ponto de vista análogo em L'lnvention du paysage. Paris: Plon,
obras de arte.6
1989, PP· 121 e seg. Ver também: Wajcman, G. Fmêtres. Paris: Verdier, 2004: ~ -­
"Pas de paysage sans fenêtre. [...]La fenêrre esr lc lieu du paysage" (pp. 240: 259) .
5
l bid., p. 23. Idêntico argumento em: Roger, Alain. Court traité du paysage. Pans: Galhmard ,
Cosgrove, D. and D~niels, S. (eds.). The !conography ofLandscape. Essa)'S on the
6
1997. A ideia já está presente na Philosophie du paysage, de Georg Simmel.
Symboltc Representat1on, Design. and Use o.fPast Environments. Cambridge: Cam- Gombrich, E. "La rhéorie artistique de la Renaissancc cr l'essor du paysage'',
bridge University Press, 1988 , pp. 1-10. evocado em l'Ecologie des images. Paris: Flammarion, 1983, PP· 15-43. O artigo
16 O gosto do mundo: Exercícios de paisagem
As cinco portas da paisagem... 17

mento desse nascimento. Primeiramente, insistiu sobre o papel


11 wco da vista e do código estético é próprio da exper'.ênci~ da
desempenhado pela demanda do público, isto é, pelo mercado,
11.usagem, prossegue Gombrich. A paisagem é, por asslffi ,di:zer,
no desenvolvimento dessa "instituição"9 que a pintura de paisa-
, l rnnsequência da extensão e da aplicação dos mo~elos ~m,sncos
gem. passou a ser no século XVI. Mas, sobretudo, mostrou que o
1 lo Renascimento italiano, mais precisamente os p1Cturais, a per-
surgimento da paisagem como gênero artístico e sua autonomi-
1 <'Jlção do mundo real. A pintura dá ao sentimento da paisage1:1
zação progressiva na esfera da arre deviam ser entendidos como
.1~ua forma (tanto quanto a sua expressão): "A descoberta da pa1-
o produto do encontro entre a atividade dos pintores do Norte ,,1gcm alpestre" - conclui Gombrich - "não precede, mas sim se
e as categorias estéticas do humanismo italiano. Foi o humanis-
,L·gue à difusão das gravuras e pinturas que retratam panoramas
mo filosófico italiano que conferiu o estatuto de "divertimento dl' montanha". 13
1 ' . "10 ' .
egmmo a paisagem, que antes só era considerada como um Afinal, só existiria vista paisagística se "enquadrada",
parergon da pintura. 11
.10 mesmo tempo, no sentido , técn ico. da pa lavra (( quad ro ", e
Afinal de contas, a paisagem é pensada, descrita, falada, an- porque a paisagem pressuporia a existência de um "es~a~,º de
tes de ser vista e representada, como fica patente no episódio de
1 ultura [... ] a partir do qual se contempla um exterior (V.
Norgate narrado por Gombrich 12 : o pintor reproduz o que Jhe
\LOichita) .
coma o viajante e não o que ele próprio poderia ter visto direta- Temos, hoje, inúmeros artigos e livros sobre a "invenção"
mente, mas, ao mesmo tempo, o viajante elabora a sua descrição l'Stética da montanha, da floresta, dos litorais marinhos, do cam-
em função do que julga ser pitoresco. Este envolvimento recí- po, vistos como paisagens, em que o papel de uma ou outra re-
ferência pictural é apresentado como determinante. A árvore, o
foi publicado pela primeira vez em 1953 em La Gazette des Beaux-Arts. Para
essa questão hisroriográfica, ver: Mitchell, W. ]. T "Gombrich and the Rise of prado, mas também o bulevar parisiense, entre outros, foram ane-
Landscape''. Tn Berm ingham, A. & Brewer, ]. (eds.). The Consumption ofCu!ture, xados pela história da arte.
1600-1800: lmage, Object, 7ext. London and New York: Routledge, l 995, pp.
103-18; e, ag~ra: Brunon, H. ''Cessor artisrique ec la fabrique culcurelle du pay-
Paisagem e representações sociais
sage à la Rcnatssance. Réílexions à propos de recherches récen ces". Studiofo, . 4,
2006, PP· 261-90. ~tese de um nascimento moderno da paisagem é comesrada,
11

entretanto, por M1chel Baridon em Naissance et renaissance d11 paysage (Arles: Entretanto, a noção de paisagem também pode ser vista,
Acces Sud, 2006).
9 de forma mais ab rangente, como representação cultural coletiva
Gombrich, E. "La Théorie arrisrique de la Renaissance". Op. cir., p. 17.
10
Ibid., p. 26. dou individual. Sem rejeitar o ponto de vista estético, ao qual
11
Esses parerga representam, escreve Paolo Giovio, "rochedos despedaçados, arvo- continuam dando um lugar importante, às vezes até constitutivo,
redos verde1antes, as margens firm es dos grandes rios que atravessam os países, os antropólogos, h istoriadores, geógrafos ou sociólogos contribu-
os florescenr_es trabalhos dos campos, o duro e alegre labor dos ca mponeses e íram, ao adotar um procedimento culturalisca, para recolocar_ (o
tamh:m as vistas longínquas de uma região ou do mar, as frotas de navios, a caça
aos pass.~ros, a ca?a a cavalo: e tudo o que pertence a esse gênero tão agradável de
que também quer dizer: deslocar) a paisagem dentro de uma tn-
se olhar (crtado 1n Gornbnch, E., ibid., p. 25). Reconhecemos aí aquilo que vai
se tornar o vocabulário básico da pinmra de paisagem.
•i Gombrich, E. Tbid., pp. 29-30.
11
Ibid., p. 33.
18 O gosto do mundo: Exercícios de paisagem As cinco portas da paisagem ... 19

terrogação geral sobre a sociedade. 14 Foi possível mostrar que as 1 própria estética é questionada do ponto de vista do seu valor ou
determinações da construção paisagística também são econômi- 1 l 1 ,ua função dentro da cultura. A própria história da arte se be-

cas, religiosas, filosóficas, cienríficas e técnicas, políticas, até psi- 1ufo.: ia dessa abordagem social e cultural, que a leva a enriquecer
canalíticas15 etc. Elas podem, é claro, ser estéticas, mas, nesse caso, .ilgu mas de suas problemáticas. Assim, foi possível, por exemplo,
1e l.1cionar o desenvolvimento da representação piccural da paisa-
14
Cf. entre outros: Barrell, J. The Dark Side of the Landscape: the Rural Poor in I'·' 111 nos Países Baixos dos séculos XVI e XVII com as transforma-
English Painting 1130-1840. Cambridge: Cambridge University Press, 1980; 1,ucs concomitantes, nessa parte da Europa, da vida científica, mas
Cosgrove, D. Social Formation and Symbolic Landscape. London: Croom Hclm, 1.1111bém da vida religiosa e política. 16 Da mesma forma, foram
1984; Lugin bühl, Y. Paysages. Textes et représentations du paysage du Siecle des
Lumieres à nos jours. Lyon: L1. Manufacture, 1989; Cosgrove, D. The Palladian n 111<ladas as relações entre a experiência estética da natureza e a
Landscape. Geographical Change and its Cu/tum/ Representations in Sixteenth- lorrnação de uma identidade burguesa metropolitana na França
Century ltaly. The Pennsylvania State Universiry Press, 1993; Voisenac, C. (dir.). do século XIX, 17 ou entre a pintura de paisagem e o acionamento
Paysage au pluriel. Pour une approche ethnologique des paysnges. Paris: Maison des
, k uma cultura geológica no romantismo alemão. 18
Sciences de l'Homme, 1995; Olwig, K. R. Landscape, Natttre and the Body Poli-
tic. From Britain's Renaissance to America's New World. Madison: The University Enfim, muitas obras estabeleceram de que forma a história
of Wisconsin Press, 2002; Bender, B. & Winer, M. Comested Landscapes: Move- 11.1 paisagem europeia devia integrar as dimensões ideológicas da
ment, Exile and Place. Oxford: Berg Publishers, 2001; Micchell, W. J. T. (ed.). '"ª construção como referente imaginário da identidade nacio-
Landscape and Power. 2. ed. Chicago: Universicy of Chicago Press, 1994, 2002;
Desporres, M. Paysages en mouvement. Transports et perception de !'espace, XVIII-
11.tl. Há uma codificação nacional e política do olhar paisagístico,
)()(< siecle. Paris: Gallimard, 2005. , omo mostrou François Walter, que lembra, depois de Benedict
15
A questão da paisagem é abordada por Freud dentro das suas reflexões sobre a /\nderson, t9 que a nação existe em grande parte nas construções
figuração simbólica na interpretação dos sonhos: "É fácil reconhece r que, no ao mesmo tempo imaginárias e materiais - que lhe dão uma
sonho, muitas paisagens, particularmente as que apresentam pontes ou montan-
has arborizadas, são descrições de órgãos genitais. Marcinowski reuniu uma série .1parência apreensível para os olhos dos membros da comunidade
de exemplos em que os sonhadores explicam os sonhos por desenhos que devem que reúne, como aos olhos daqueles que rejeita no exterior e que
representar as paisagens e os locais onde acontece o sonho. Esses desenhos mos-
tram bem claramente a diferença entre o sentido aparenrc e o sentido oculto do
sonho. À primeira vista, são plantas, mapas etc., mas um exame mais detalh ado "Pour une psychanalyse de l'horizon", e especialmente as páginas 141-144, nas
reconhece neles representações do corpo humano, dos órgãos genitais etc.; pode- quais é discutida a análise de Guillaumin.
se então entender o sonho[... ]." (L7nterprétation des rêves. Paris: PUF, 1967, p. " Alpers, S. l'Art de dépeind1·e. Paris: Gallimard, 1983. . .
306; ver também as páginas 314 e 342-343.) A perspectiva de uma "psicanálise Green, N. The Spectacle of Nature. Landscape and Bourgeois Culture m Nzne-
da paisagem" ainda é pouco comum. Citemos, entreranto, Guillaumin, J. "Le teenth-Century France, Manchester: Manchester Universicy Press, 1992.
paysage dans le regard d'un psychanalyste; rencontre avec les géographes". Bulle- Mitchell, T M. Art and Scimce in German Landscape Painting 1770- 1840. Ox-
tin du Centre de Recherche sur l'Envimnnement Géographique et Social (CREGS). ford: Clarendon Press, 1993. Convém mencionar também o livro de Claude
Universidade de Lyon-II, n. 3, 1975, pp. 12-33; e id., Le Moi sublimé. Psycha- Reichler, La découverte des Alpes et la question du paysage (Geneve: Georg, 2002),
nalyse de la créativité. Paris: Dunod, 1998, especialmente as páginas 123-125, que mostra em detalhes como se articulam narrações de viagem, análises cientí-
nas quais Jean Guillaumin parte da hipótese de que a paisagem desempenha um ficas, meditações religiosas e poéticas na formação de uma sensibilidade pais-
papel "substancialmente análogo à função de sustentação que Freud reconhece agística propriamente alpestre durance os séculos XVIIJ e XlX.
nas 'pu lsões do cu' em relação à libido de objeto" (p. 123). Ver também: Collot, i•J Anderson, B. L'lmaginaire national. Réflexions sur !'origine et l'essor du nationa-
M. La Poésie moderne et la structure d'horizon. Paris: PUF, 1989, segunda parte: lisme. Paris: La Découverre, 2002 [1983].
20 O gosto do mundo: Exercícios de paisagem
As cinco portas da paisagem... 21

designa como estrangeiros. Assim, por exemplo, na França, as fes- 1111pcrial" foi desenvolvida para dar conta das múltiplas maneiras
tas da Federação, no início da Revolução Francesa, foram precisa- , 111110 as representações paisagísticas foram integradas à constru-
mente, escreve Michelet, momentos extraordinários de descober- ~ .10 dos imaginários coloniais. 22 Poderíamos, assim, multiplicar
ta da paisagem e da natureza, que se tornaram, simbolicamente, lww os exemplos ligados a esse tipo de estudo.
as encarnações da ideia republicana: A bem da verdade, de um ponto de vista estritamente
111t·Lodológico, a ampliação do espectro das disciplinas inte-
Os locais abertos, os campos, os vales imensos onde, geralmente, 1l'ssadas pela paisagem não significa um questionamento da
aconteciam essas festas pareciam abrir ainda os corações. O ho- l'l<'>pria noção de paisagem como imagem, como construção fi-
mem não apenas tinha se reconquistado, estava tomando posse l'.mativa de origem humana, quer in visu, quer in situ. A abor-
da natureza. Várias dessas narrativas dão tes temunhos das emo- il.1gcm iconográfica vale tanto como uma concepção estética
ções que o seu país, visto pela primeira vez, deu a esses pobres .. . 1 l.1 representação quanto como uma concepção cultural mais

coisa estranha! Esses rios, essas montanhas, essas paisagens gran- .1lirangente. A ideia que se impõe, em todos os casos, é que a
diosas, que atravessavam todos os dias, foram descobertos na- p.1 isagern é como um texto humano a ser decifrado, como um
quele dia; nunca os haviam visto (Michelet, J., 1952, p. 411).20 ,1gno ou um conjunto de signos mais ou menos sistematica-
111cnte ordenado, como um pensamento oculto a ser achado
As paisagens, mais exatamente alguns smos escolhidos 1H>r trás dos objetos, das palavras e dos olhares. Como escreve
pelo valor histórico, memorial e/ou natural, vêm, então, concre- 1 )avid Lowenthal, a paisagem
tamente, concentrar neles, como num apanhado do território, a
consciência do pertencimemo nacional. A montanha suíça, mas [... ] é não apenas um lugar imediatamente presente, mas tam-
também a floresta alemã, a planície húngara, a landa escandinava bém um lugar de memória. [.. .]Tanto nos lugares como nas pes-
ou o campo romano, seja em forma de representações picturais
e literárias ou de instalações concretas, tais como jardins e par- 1885-1945. Cambridge, Mass., and London: H arvard Universiry Press, 2004;
ques, apresentam-se como os estereótipos vivos da comunidade Corbett, D. P.; Holt, Y. and Russell, F. (ed.). The Geographies o/Englishnm: Land-
21 •cape and the National Past J880-1340. London and New H_aven: Yale .U~iversiry
nacional. No mesmo tipo de perspectiva, a noção de "paisagem
l'ress, 2003; Ely, C. This Meager Nature. Landscape and National ldentity m impe-
20
rial Russia. DeKalb: Norrhern Illinois U niversiry Press, 2004. Ver o relatório de
Michelet, ]. Histoire de la Révolutionfrançaise. Paris: Gallimard, 1952, r. 1, p. Brice, Carherinc. "Building Nations, Transfo rming Landscapcs". Contemporary
41 1 (Bibliotheque de la Pléiade). Ver o comentário que faz Marc Richir em: Du European History, v. 16, n. 1, 2007, pp. 109-19. . . .
sublime en politique. Paris: Payor, 1991, pp. 13-83. · Cf., enrre outros: Ryan, J. R. Pictun'ng Empire: photography and the vrsualtzation
21
Walter, E Les Figures paysageres de la nation. Territoire et paysage en Europe (XV!'- of the B1·itish Empire. Chicago: Universiry of Chicago Press, 1998; Mitchell, W.
XX' siede). Paris: Edirions de l'EHESS, 2004. A literatura dedicada às relações J. T. "Imperial Landscape". ln Mitchell, W. ]. T. (ed.). Landscape and Power.
entre olhar paisagístico e fabricação das representações nacionais é hoje extre- Op. cit., pp. 5-34; Sluyrer, A. Cownialism and Landscape. Postcolonial Theory.and
mamente rica, especialmente no mundo anglófono. Entre as obras mais estimu- Applications. L1nham/Oxford: Rowman & Litclcfield Publisher~, 2002; Driver,
lantes: Thompson, R. (ed.). Framing France. lhe Representation of Landscape in E and Cilbert, O. Imperial Cities: Landscape, Display and Identzty. Manchester:
France, 1870-1314. Manchester: Manchester Univcrsiry Prcss, 1998; Lekan, T. Manchester Universiry Press, 2003; Casid, ]. H. Sowing Empire: Landscape and
M. lmagining the Nation in Nature: Landscape Preservation and German ldentit;\ Colonization. Minneapolls: University of Minnesota Press, 2005.
22 O gosto do mundo: Exercícios de paisagem
As cinco portas da paisagem... 23

soas, o olhar da mente percebe um palimpsesto construído na Multiplicam-se as pergunras a esse respeito. D~ que f~r.ma
base de todas as nossas experiências passadas, de nossas hipóteses odcmos falar da paisagem das grandes metrópoles mdusma1s e
11
passadas e atuais sobre a história da paisagem (Lowenthal, D ., 1m industriais que se desenvolveram com os séculos XIX e XX?
1
2008, p. 14).23
1levemos con tinuar falando em termos de "be1eza" e "harmoma . ,,,·
26
,\ vategoria do "pitoresco" ainda tem um significado, e qual? Em
Uma abordagem hermenêutica das representações paisagís- iJlll' "língua" essas paisagens devem ser faladas, des~rit~s, narradas?
ticas é, nesse caso, perfeiramenre legítima.
t 'orno pensar, por exemplo, e representar a emergenc1a dos n ~vos
11h jctos paisagísticos que são hoje os espaços urbanos, os .eq~1p~-
A invenção de novas paisagens
111t·ntos industriais, os sistemas de armazenamento e de d1stnbu1-
11,10 da energia, as autoestradas, os artefatos diversos lig~dos ~vida
Entre as muitas perspectivas de pesquisa abertas por essa , onremporânea, que põem em jogo os valores da func1onahd~de,
abordagem , a mais promissora é, sem dúvida, a que se preocupa il.1 intensidade, da velocidade, da mobilidade? Como, além disso,
em fazer diretamente a pergunta a respeito das relações, a diferen- lrvar em conta a renovação das formas e dos ritmos plásticos que
tes épocas da cultura, entre, por um lado, o surgimento de novos
111Tpassou a arte desde os primórdios d~ ~é~ulo XX?.Co~ .ªajuda
objetos paisagísticos e, por outro, a definição de novos valores e nor- dl' que instrumentos formais? Que sens1b1hdades pa1sag1st1cas no-
mas paisagísticos. "Cada paisagem tem sua própria linguagem", es-
~ .1s vemos aparecer? .
creve Alain Roger, de forma muito justa. 24 Se a linguagem do idí- Hoje, muitos são os artistas que, prolongando o impulso
lio e da Arcádia e a pintura de paisagem clássica (a de C laude, por d.i<lo por Michael Heizer, Robert Smithson, Richard Long, ou,
exemplo) dialogam, elas fracassam, entretanto, quando se trata l'lll outro registro, Christo e Jeanne-Claude, Andy Goldsworthy,
de expressar novas categorias estéticas e de incluir outros objetos l' lltre outros, procuram, de uma fo rma ou de outra, ultrapassar o
paisagísticos. Sabemos, por exemplo, que o discurso do sublime
1 , 1mpo tradicional do exercício da arte para interrogar, de forma
se desenvolveu correlativamente ao aparecimento de dois novos
111 ais ampla, as relações que a obra mantém com o real, o espa-
objetos, que assumiram, então, um valor paisagístico: o mar e a 1,o, 0 tempo, a matéria e, mais geralmente ainda, os q~adros ? er-
montanha. 25
1 qJtivos e simbólicos da experiência do .mundo. M.UitoS ams t~s

, ontemporâneos escolheram deixar o universo restnto da galena


(ou pelo menos relativizar o seu papel), para instalar suas obras

:: Lowcnrhal: D. Passage ~i~ temps sur !e paY_sage. Gollion, Infolio, 2008, p. J4.
Roger, Alam. Court traite du paysage. Paris: Gallimard, 1997, p. 10 J. '" Ver a forma como Roberr Smithson revisita as categorias do pitoresco e da ruína,
25
Cf.. Corbin, A. Le Territoire du vide. L'Occident et le désir du rivage, 1750-1840. na narrativa da sua visita dos "monumemos" de Passaic (Sm ithson, R. ' A_ Tour
Pans: Aub1er, 1988; Saint G irons, B. (dir.). Le Paysage et la Question du sublime.
0 f rhe Monuments of Passaic, New Jersey". ln Fiam, J. (ed.). Robert Smithson:
Catálogo da exposição do Museu de V.1.lence. Paris: RiVIN, 1997; Reichler, C. La rhe Collected Writings. Berkeley: University of California Pre_ss, L996, _PP: 68·
D~couverte des Alpes. Op. cir., 2002. Sobre a questão do sublime na pintura de 74); e 0 comentário feito po r S. M arot em 'Tare de la mémoHe, l~ te'.mou e et
p~1sagem, ver também: Nau, C. le Temps du sublime. longin et !e paysage poussi- l'architecture" (Le Visiteur, n . 4, 1999, pp. 114-76). Cf. também: Cnqu1, J.·P Un
men. Rennes: PUR, 2005.
irou dans la vie. Essaís sur l'art depuis 1960. Paris: D esclée de Brouwer, 2002.
24 O gosto do mundo: Exercícios de paisagem As cinco portas da paisagem... 25

nos territórios abertos da cidade e da natureza, a céu aberto. 27 A l111ugrafia, o cinema, as imagens de vídeo, mas também o trem,
arte tomou uma dimensão verdadeiramente geográfica nesse caso, 11 .1111omóvel, o avião deslocaram o problema da representação da
uma dimensão paisagística no sentido direto e literal do termo: 1· 11 ~.1gcm, e questionam, hoje, a herança da linguagem pictural
está preenchendo o espaço da paisagem, transformando, afinal de 1•111 meio da qual tal representação, vez por outra, ainda é pen-
contas, o próprio espaço num campo de experimentação artística. ' 1il.1. l~ preciso, portanto, levar em conta o papel desempenhado
l Finalmente, foram as próprias práticas artísticas que, ao transfor-
mar a noção de obra de arte para integrar não apenas as formas,
1•111 1.·sses diferentes dispositivos e suportes concrews nos quais são

11 ,1lizadas as percepções e produzidas as imagens: os sistemas téc-


mas também as atitudes e as situações e, mais geralmente, os da- 1111 ns contribuem para definir tanto objetos paisagísticos quanto
dos usuais da experiência do mundo revelaram que a noção de tl1·1 os de um tipo peculiar. ~o
uma artialização paisagística devia ser repensada do zero, 28 e, em É difícil, na verdade, identificar as paisagens que estão apa-
todo caso, fora dos quadros restritos da pintura. Uma atividade 1n rndo hoje. Talvez por ausência de distanciamento e pela falta

artística desse tipo pode ser considerada, afinal de contas, dentro ili .málise e, mais certamente, pela falta de palavras e de conceitos.
do quadro mais geral de uma interrogação sobre a fabricação con- ~ 1.1 ~ está claro que se faz necessária uma nova linguagem.
temporânea das territorialidades. 29 Alain Roger, em seu Court traité du paysage, retoma a ima-
Para seguir no mesmo sentido, o de uma reflexão sobre a 1•1 111 do "artista oculista" de Marcel Proust. O pintor original
necessária ampliação dos horizontes da sensibilidade paisagística, ( llrnoir) detém esse poder mágico não só de modificar nossos
é possível assinalar em que os valores e as normas paisagísticas são 11ll1.1res, mas de mudar o mundo em que vivemos: 31
estéticos, sim, mas não unicamente. Têm também uma d imensão
material e técnica. Cada um pode medir o quanto não apenas a Mulheres estão passando na rua, diferentes daquelas de outrora,
já que são Renoir, os mesmos Renoir .nos quais nos negávamos
27
Tomo emprestada a exp ressão de Domino, Christophe. A ciel 01.tvert. Paris: Scala, antigamente a ver mulheres. Os canos também são uns Renoir,
1999. A melhor introdução a esse conjunco de impulsos arrísticos é a de Tiber- e a água, e o céu (Roger, A., op. cit., pp. 14-5).
ghien, G. A. Landart. Paris: Carré, 1993. Ver também, do mesmo autor: Nature,
art, paysage. Arles/Versailles: Acres Sud /ENSP, 200 l , bem corno Penders, A. F. En
chemin, le land art. Bruxellcs: La Leme Volée, l 999.
O artista é instaurador de novos mundos, universos perecí-
28
Lembremos que, para Alain Roger, um país não é "naruralmente" uma paisagem. 1Ti'> e provisórios, acrescenta Proust, que durarão até "[... ] a pró-
1orna-se paisagem quando é tornado paisagem, isco é, "arrializado", integrado
a uma visão estética, que também pode evoluir no tempo como acabamos de
dizer: "Existem 'país' e paisagens, assim como existem nudez e n us. A natureza é " Ver as observações sobre a vista aérea e o fururismo no capírulo segui nte. A res-
indeterminada e s<Í recebe as suas determinações da arte. [...] O país é, de alguma 1wilo do cinema, ver: Morrer,]. (di r.). les Paysages du cinéma. Seyssel: Champ
forma, o grau zero da paisagem, o que antecede a sua arcialização, seja ela direta v,11lon, 1999; Costa, A. (dir.). "Le paysage au cinéma". Cinémas, V. 12, 11. ],
(in súu) ou indireta (in visu)". (Court traité du paysage. Op. cit., pp. 17-8.) '.OOJ; Narali, M . L1mage-Paysage. lconoÚJgie et cinéma. Sainc-Oenis: Presses Uni-
29
Pensamos, em particular, a esse rcspeiw, no rrabalho <lo casal Christo/Jean ne- vnsitaires de Vincen nes, 1996.
-Claude, ral como foi escudado por A. Volvey na sua tese, Art et spatialités: ceuvre " Rogcr, AJain. Court traité du paysage. Op. cit., pp. 14-5. Alain Roger cita Le Côté
d'art, objet d'art, et expérience esthétique d'apres l'a:uvre in si cu de Christo etJeanne- rlf' Guermantes. ln A la recherche du temps perdu. Paris: Gallimard, 195 3, v. 2, p.
-Claude (Universidade Paris-1, 2003). 127 (Bibliorheque de la Pléiade) .
24 O gosto do mundo: Exercícios de paisagem As cinco portas da paisagem... 25

nos territórios abertos da cidade e da natureza, a céu aberto. 27 A (orografia, 0 cinema, as imagens de vídeo, mas também o :rem,
arte to~ou uma dimensão verdadeiramente geográfica nesse caso, 0 automóvel, 0 avião deslocaram o problema da representa~ao da
uma dimensão paisagística no sentido direto e literal do termo· paisagem, e questionam, hoje, a herança da linguag~m p1,ctural
está preenchendo o espaço da paisagem, transformando, afinal d~ por meio da qual tal representação, vez por outra, amda e pen-
c~ntas, o próprio espaço num campo de experimentação artística. sada. t, preciso, portanto, levar em conta o papel desempen~a~o
Fmalmente, foram as próprias práticas artísticas que, ao transfor- por esses diferentes dispositivos e supone.s concretos n?s quais s~o
mar a noção de obra de arte para integrar não apenas as formas, n:alizadas as percepções e produzidas as 1magen~: o~ s~stemas tec-
mas tam~ém as atitudes e as situações e, mais geralmente, os da- 11 icos contribuem para definir tanto objetos pa1sag1sucos quanto

dos usu~1s. da experiência do mundo revelaram que a noção de ;1fet0s de um tipo peCLiliar. 30
uma amal1zação paisagística devia ser repensada do zero, 2H e, em É difícil, na verdade, identificar as paisagens que estão apa-
todo caso, fo ra dos quadros restritos da pintura. Uma atividade recendo hoje. Talvez por ausência de distanciamento e pela ~alta
artística desse tipo pode ser considerada, afinal ele contas, dentro de análise e, mais certamente, pela falta de palavras e de conce1t0s.
do quadro mais geral de uma interrogação sobre a fabricação con- Mas está claro que se faz necessária uma nova linguagem. .
temporânea das territorialidades. 29 Alain Roger, em seu Court traité du paysage, retomaª. 1i:ia-
Para seguir no mesmo sentido, o de uma reflexão sobre a gem do "artista oculista" de Marcel Proust. O pi~tor ongmal
~ecess~ria a~pliação dos horizontes da sensibilidade paisagística, (Renoir) detém esse poder mágico não só de modificar nossos
. 31
e po~sivel ~ssmalar em que os valores e as normas paisagísticas são olhares, mas de mudar o mundo em que vivemos:
estéucos, sim, mas não unicamente. T êm também uma dimensão
material e técnica. Cada um pode m edir o quanto não apenas a Mulheres estão passando na rua, diferentes daquelas de outrora,
já que são Renoir, os mesmos Renoir nos quais nos negávam~s
27 antigamente a ver mulheres. Os carros também são uns Renoir,
Tomo emprestad~ a expressão d e Domino, C hristo phe. A cie/ ouvert. P~ris: Scala,
19?9· A melhor 1nrrodução a esse conjunto d e impulsos artísticos é a de: 't'iber- e a água, e o céu (Roger, A., op. cit., PP· 14-5).
ghien, G . A land art. ~aris: Caué, 1993. Ver também, do mesmo allCo r: Nrrture,
art, P~ysage. Arles/Vcrsa1ll es: Actes Sud/ENSl~ 200 t, bem como Pcndcrs, A. f•'. En O artista é instaurador de novos mundos, universos perecí-
chemrn, !e lrmd art. Bruxelles: La Letrre Volée 1999 ~ , "[ ] ,
28
Lembremos .q ue ' Para AJ am · Roger, um pais' nao
: e• "naruralmenre
. ,, uma paisagem. veis e provisórios, acrescenta Proust, que durarao ate ... a pro-
Torna-se. ~a1sag~m quando é ramado paisagem, isto é, "artializado", integrado
a. uma" visao esr~nca, que também pode evolu ir no tempo como acab~ mos de
~1zer: E~1stem país' e paisagens, assim como exisrem nudez e nus. A natureza é .10 Ver as observações sobre a vista aérea e o futurismo no capítulo seguinte. A res-
1ndctermtnada
{; e só recebe. as suas determinações da •arre . [... J O pais' é, de .a 1gurna peico do cinema, ver: Mottet, J."(dir.). Les J>aysa~es du ~mé~ta. Seyssel: Champ
~rma, o gr~u ~ro da. pai~ag;m, o que anteced e a ~ua arrialização, seja ela direta Vallon, 1999; Costa, A. (dir.). Le paysage au cméma '. Cmém~s, v. 12, n. ~·
<:n sttu) ou mducca. (m vzsu) . ( Court tra1té du paysage. Op. cit., PP· 17-8.) 2001; Nacali, M. L'lmage-Paysage. !conologie et cinéma. Samr-Dents: Presses Um-
29
I ensamos, em parn~ular, a esse respeito, no trabalho do casal C b risto/Jea nn c- versiraires de Vincenncs, 1 996. . ~ ,
-~lau<le'. tal ~orno fo1escud ado p or A. Volvcy na sua tese, Art et spatialités: fntvre li Roger, Alain. Court traité du PªJ'Srige. Op. cit., PP· 14.-5 . Ala'. n Roger cm Le Cote
d art, ob;et d ~rt, ~t expérience esthétique d'r.tpres l'a!uvre in siru de Christo et j eanne- de Guermantes. ln A la recherche du temps perdu. Pans: Gall1mard , 1953, v. 2, P·
-Gaude (Un1vcrs1dade Paris-I, 2 003). 327 ('B ibliotheque de la Pléiade).
26 O gosto do mundo: Exercícios de paisagem As cinco porcas da paisagem... 27

xima catástrofe geológica desencadeada por novo pintor ou novo simplesmente outra dimensão, pois ela põe em contato a esfera da
escritor original". produção artística, propriamente dita, com outras determinações,
O que podemos concluir a não ser certa forma de confian- outros atores, outros desafios. E, sobretudo, a própria existência
ça? É do lado dos artistas e nas linguagens novas que eles propõem dessas realizações impede que se faça delas representações mentais
que, talvez, possamos aprender a ler e a apreciar as paisagens nas ou verbais puras e simples. Essa artialização in situ que é um jar-
quais a organização da vida contemporânea nos levou a viver. dim é, ao mesmo tempo, um lugar real, um espaço frequentado,
uma porção de território, mesmo reduzida. Em outras palavras, 1
A paisagem é um território fabricado e habitado (leitura de embora possa ser consid erado, com razão, ;.im veículo do imaginá-
John BrinckerhoffJackson) rio ou a expressão concentrada de um conjunto de afetos, embora
tr~duza de forma acordada um sistem; de ideias ou de desejos, o
No entanto, até onde podemos sustentar uma posição te- jardim também é um espaço desenhado, produzido, cuidado. A
órica que reduzisse a paisagem a ser apenas um discurso, uma sua apreensão exige, consequentemente, a adoção de uma pers-
imagem, um olhar, ou urna representação? Corno dar conta, por pectiva teórica suplementar, que leve em conta a dimensão das
exemplo, nessa perspectiva, dos objetos, das atividades, ou das re- práticas de fabricação e dos usos do espaço, isto é, colocando-se
alizações artísticas, como as que acabam de ser evocadas, que se na perspectiva de uma reflexão sobre as formas concretas da habi-
desenvolvem em escala territorial? tação do espaço. _
A escolha de uma escala sempre é, como se sabe, ao mes- Seguindo essa outra abordagem, a paisagem pode ser definida
mo tempo, a escolha de um tipo de problema; e, à medida que como um território produzido e pratiêado pelas sociedades huma-
cresce a escala do estudo (do quadro de pintura ao jardim e ao nas, por motivos que são, ao mesmo tempo, econômicos, políticos e
território), o conceito de paisagem modifica-se inevitavelmente, culrnrais] A d istinção entre país e paisagem, que fundamenta a pró- -
bem como o questionário ao qual é submetido. É possível, por pria existência da paisagem como tal, segundo Alain Roger, é então
conseguinte, introduzir algumas nuances a uma abordagem pura- consideravelmente atenuada e, no mínimo, redefinida. Efetivamente,
~
mente "representacional" da paisagem, o u até procurar enriquecê- nessa perspectiva, o valor paisagístico de um lugar não é considerado
' -la, mostrando que uma interrogação sobre a construção cu ltural unicamente do ponto de vista estético (embora também o seja), é
das paisagens também deve levar em conta a dimensão d e obje- considerado mais em relação com a soma das experimentações, dos
tividade prática da paisagem, isto é, a sua parte irredutivelmente costumes, das práticas desenvolvidos por um grupo humano nesse_
. material e, sobretudo, espacial. lugar. Muitos já. assinalaram o parentesco da paisagem, do pagus e
O exemplo da história dos jardins apresenta-se aqui como da pagina, no registro comum da inscrição, do marco plantado e da .
uma objeç~o a um intelectualismo restritivo nas concepções pai- fundação do sentido.32 A paisagem seria como um tipo de geografia
sagísticas. E bem verdade que é preciso ligar essas realizações con-
cretas que são os jardins a sistemas de ideias e de representações
~2 Ver, por exemplo, Michel Serres: "Não pergumem mais como se vê uma paisa-
dos quais são as expressões visíveis, mas a escala de espaço à qual gem, pergunta de criança mimada que nunca trabalhou, procurem saber como
vão se desdobrando leva a deslocar o problema, conferindo-lhe foi desenhada pelo jardineiro; como vem sendo composta lentamente pelo agri-
28 O gosto do mundo: Exercícios de paisagem As cinco porcas da paisagem... 29

objetiva, uma escrita na superfície da Terra, produto nem sempre ências sociais da sua época, articula-se a partir de dois enunciados
consciente nem intencional (mas também pode ser) das atividades mais importantes, principalmente: a paisagem é um espaço organi- l
humanas. Escrita, agricultura: os dois termos parecem dialogar numa zado, isto é, composto e desenhado pelos homens na superfície da
alusão comum ao ato de cavar, gravar, talhar, sulcar e traçar formas Terra; a paisagem é uma obra coletiva das sociedades que transfor-
de modo durável num suporte mais ou menos macio, mais ou menos mam o substrato natural.
resistente. A consideração dessa "escrita paisagística" implica, afinal Antes de voltar em detalhe a esses dois pontos, cabe uma
de contas, certo afrouxamento da distinção entre a esfera artística observação: essa abordagem teórica concebe a paisagem como
propriamente elita e as €sferas sociais e cul~urais) . uma p.!_odução cultural) mas considera a cultura nos níveis ma-
Para explorar essa outra perspectiva, podem servir de base terial e espacial, isto é, a cultura encarnada em _erática~ obras e
as reflexões de um dos principais representantes do pensamento produções de todo o tipo. Sobretudo, Jackson toma distância de
contemporâneo da paisagem nos Estados Unidos: o histor iador e uma concepção que fosse puramente "estética" da paisagem. Não
teórico John Brinckerhoff Jackson (1909-1996), fundador da re- vemos mais a paisagem, escreve,
vista Landscape (em 1951), que lecionou durante muiros anos nos
departamentos de arquitetura da paisagem em Harvard e Berke- [...) como separada da nossa vida cotidiana e, na realidade, acredita-
ley, e cuja obra continua sendo uma referência imprescindível mos hoje que fazer parte de uma paisagem, dela tirar a nossa iden-
no mundo anglo-saxônico. 33 A teoria jacksoniana da paisagem, tidade, é uma condição determinante do nosso estar no mundo,
34
cunhada num diálogo constante com a geografia humana e as ci- no sentido mais solene da palavra Qackson, J. B., 2003, p. 262) .

cultor, há milênios [...J. Ele a compôs pagus por pagus. Ora, essa mesma palavra Portanto, conclui, não é "apenas em função do seu perten-
latina, de velh.a língua agrária, assim como o verbo pango nos d itam ou dão cimento ou da sua conformidade com tal ou tal ideal esté_tico" que -
a página, página que, esta manhã, estou lavrando com sulcos regulares, com a
devemos considerar as paisagens , mas também pelo modo como
relha elo estilo, pequeno recorte onde se ftxa, se planta, se estabelece a ex istência
de quem escreve, onde é canrada." (les Cinq Sens. Paris: Grasset, 1985, p. 260.) satisfazem algumas necessidades "existenciais" do ser human.5?
Mesma analogia entre paisagem e escrita encontrada em Tilley, C. A Phenomeno- (necessidades existenciais, aliás, que são, sobretudo, necessidades
logy ofLandscape. Places, Paths, and Monuments. Oxford: 13erg Publishcrs, l 994 afetivas e sociais).
(especialmente no capítulo l).
33
Para uma introdução à vida e obra de J. B. Jackson, ver a compilação realizada por:
Horowitz, Helen Lefkowirz. landscape in Sighi. Looking at America. Ncw Haven A paisagem é um espaço organizado
and London: Yale University Press, 1997. Dois livros de Jackson foram traduzidos
em francês: A la découverte du paysage vernaculaire. Arles/Versailles: Actcs Sud/ A paisagem não é simplesmente uma representação men-
ENSP, 2003, e De la nécessité des ruines et autres sujets. Paris: Le Linteau, 2005. Para
medir o impacro do pensamento de Jackson nos Estados Unidos, em particular,
tal. É "um espaço na superfície da Terra", afirma Jackson, que
ver: Meining, D. W. (ed.). The fnterpretation ofOrdinary Landscapes. Geogrttphical acrescenta: "[...] sabemos instintivamente que se trata de um es-
Essays. Oxford University Press, 1979; Groth, P. & Bressi, T. W. (ed .). Undm1r111d-
ing Ordinary landscapes. New Haven and London: Yale Universiry Press, 1997;
Wilson, C. e Grorh, P. (ed.). Everyda)' America. Cultitral Landscape Studies after}. Ji Jackson, J. B. A ia découverte du paysage vernaculaire. Arles/Versailles: Actes Sud/
B. Jackson. Berkeley: University of California Press, 2003. ENSP, 2003, p. 262.
30 O gosto do mundo: Exercícios de paisagem As cinco portas da paisagem... 31

paço com certo grau de permanência, com seu caráter exclusivo, Podemos fazer o mesmo tipo de observações a respeito da palavra
topográfico ou cultural, e, sobretudo, de um espaço comum a um .demã Landschaft (de onde deriva na realidade landscape) e da
grupo humano". 35 palavra francesa paysage. Alguns historiadores notaram a ligação
É verdade que a paisagem também é uma maneira de entre -schaft e as noções de conformação, organização, comidas
ver e imaginar o mundo. Mas é primeiramente uma realidade 110 verbo schaffen, que se encontra, por exemplo, em Gemeinschaft

objetivai, material, produzida pelos homensLToda paisagem é (comunidade). Da mesma forma, em francês, 38 -age remete ao
cultural, não essencialmente por ser vista por uma cultura, mas mesmo tempo à ideia de uma ação (graças à qual algo é realizado
...
essencialinente por ter sido produzida dentro de um conjunto ou produzido,jardinage) e à ideia de uma coleção, de um conjunto
d e práticas (econômicas, políticas, sociais), e segundo valores (feui!lage). De qualquer forma, para Jackson, a consequência é
que, de certa forma, ela simboliza. Jackson adota aqui o mes- clara: a paisagem é "uma composição de espaços criados pelo
mo po nto de vista sustentado por Eric DardeJ, em L 'Homme et homem no solo". Há um milênio, acrescenta, a palavra "não tinha
la Terre: "[... ] a paisagem não é, na sua essência, feita para ser nada a ver com a encenaçao - ou a evocaçao- d o teatro"39
.
olhada, mas sim inserção do homem no mundo, lugar de luta Por conseguinte, o primeiro objeto que deve preocupar
pela vida, manifestação do seu ser com os outros, base do seu <lquele que estuda as paisagens é a forma como o espaço foi or-
ser social". 36 ganizado pela comunidade. Ler a paisagem é perceber modos ~e
A própria história da palavra landscape (mas também da o rganização do espaço. Estudar a organização do espaço quer d i-
palavra paisagem), tal como Jackson a reconstrói no primeiro ca- zer, por exemplo, responder às seguintes perguntas: como a co-
pítulo de A la découverte du paysage vernaculaire, defende a sua munidade traça uma fronteira, reparte as terras entre as famílias,
posição. Landscape é composto de land escape. 'A.té na etimolo- constrói estradas e u m local para as reuni6es públicas, e reserva
gia mais remota, land sempre designou um espaço definido, com terra para o uso rnunicipal? 40 ~ paisagem é um espaço sociall ~~n­
fronteiras, mas não necessariamente cercas ou muros."37 vém interessar-se, de fo rma mais geral, pelas fo rmas espac1a1s e
A palavra land designa, primeiramente, o que os camponeses sua diversidade, pelos elementos estruturantes e pelas d inâmicas,
chamam de "terra", isto é, um espaço que é, ao mesmo tempo, morfologias e fluxos que as atravessam e as transformam, pelas
fechado e faz pane de um espaço mais amplo, que é aberto. A descontinuidades do espaço e pelas circulações, pois todos esses
forma scape, assinala Jackson, remete a uma família de termos que traços permit em caracterizar uma paisagem: o ponto de vista me-
designam "aspectos coletivos do meio ambience": sheaf, shape. ship. todológico de Jackson , que ele procura pôr a serviço da arquitetu-
Nesse sentido, remete a noções de conjunto, de coleção, de sistema. ra da paisagem, é o de u~eógrafo. .
A organ ização espacial da paisagem traduz, amda, uma
35 lbid., p. 51. forma de organ ização da sociedade, bem como as representa-
16
Dardcl, E. L'Homme et la Terre. Paris: CTHS, 1990 [ l 952], p. 44. A rcspl'Í IO da
concepção dardeliana da paisagem, ver: Besse, J.-M. Voir la Terre. Six 1•.1.1r1i.1 wr /e
paysage et la géographie. Arles/Versailles: Actes Sud/EN SP, 2000, pp. 125-li li. JS Também é o caso em português: jard inagem, folhagem [N . do T.].
37
Jackso n,]. B. A la découverte du paysage vernaculrlire. Arles/Vc rs~i llcs: At:ll.'~ S11d/ 39 Ibid., p. 55.
ENSP, 2003, p. 53. 40
Ib id ., pp. 114-6.
32 O gosto do mundo: Exercícios de paisagem As cinco portas da paisagem ... 33

ções e os valores culturais que amam nessa sociedade. A paisa- que produzem o arquiteto ou o planiflcador, embora em maior
gem é uma forma de os homens darem uma medida e um senti- escala (Jackson, J. B., 1969, p. 33). 42
do à superfície da Terra. Toda paisagem, de um modo que lhe é
próprio, é relativa a um projeto social, mesmo que esse projeto Nesse sentido, as distinções que costumam ser feitas entre
não seja "consciente", mesmo se for a tradução inconsciente .1 paisagem comum, que seria produzida inconscientemente por
da organização de uma vida social. Consequentemente, aquele 11 ma coletividade humana, e a paisagem intencional, que seria

que pretende estudar as pa isagens tem com o tarefa primeira e' rnnscientemente projetada pelos profissionais, assim como as dis-
essencial ler e interpretar as formas e as dinâmicas paisagísticas tinções entre a construção civil e a arquitetura de paisagem, são
para aprender ne las algo do projeto da sociedade que produziu disrinções que deixam de ser tão rígidas: pois, em todos os casos,
essas pa isagens. 41 e em todos os níveis, o objetivo é a organização de um espaço que
Num artigo publicado em 1969 na revista Landscape, Jack- possa responder a necessidades humanas.
son destacou essa d imensão projetual de toda paisagem, em geral,
convocando uma analogia interessante com a cartografia: li paisagem é uma obra coletiva das sociedades

Uma fo rma útil de definir a geografia cult ural é d izer que é 0 es- O aspecto "morfológico" da paisagem é, na realidade, a ex-
tudo da organização do espaço, o estudo dos motivos aleatórios pressão de uma relação mais profunda, "vertical", entre o homem
(random patterns) que impomos na superfície da Terra pela nos- e a superfície da Terra, uma relação ativa e prática pela qual o
sa vida, nosso trabalho, e nossos deslocamentos. Segundo essa homem transforma o seu meio natural. As atividades humanas
d efinição, a paisagem pode ser vista como um mapa vivo, uma inscrevem-se no solo e o transformam. A paisagem não é, portan- ·
composição de linhas e d e espaços não muito diferente daquela to, um simples conjunto de espaços organizados coletivamente
pelos homens. É também uma sucessão de rastros, de pegadas que
se superpõem no solo e constituem, por assim dizer, sua espessura
11 tanto simbólica quanto material. A paisagem também é um lugar
Na ~o nclus~o do seu livro sobre a história dos arvoredos da França do Oeste,
de memória, no sentido que dá ao termo Mam ice Halbwachs: "O
Anme Amorne converge com as intuições de Jackson: "O aspecto dos campos
e o dos espaços mculros são man ifes tações da fo rma co mo o espaço é uti lizado local ocupado por um grupo não é como um quadro negro sobre
e.pensado pelos agricultores. [... )A paisagem aparece como o revelador do fun- o qual se podem escrever e apagar números e figuras. [... ] [Ele]
cwnamento de _uma sociedad~ em dado momento. [...] Interrogar a paisagem recebeu a marca do grupo, e reciprocamente".43
em termos de h1stonador consiste, po r exemplo, em observar como se rraduzem
no so~o a variedade das parcelas, a das propriedades e a das técn icas agdrias. Da
d uraçao das ro~ações culturais, dos métodos de construç.'ío e de man utenção das 4
' Jackson, J. B. "A New Kind of Space". Landscape, v. 18, n. 1, 1969, p. 33.

cercas, d_as técni cas de lavoura e de trabalho do solo depende obviamente 0 aspec- " Halbwachs, M. La Mémoire collective. Paris: Albin Michel, 1997 [1950], p.
ro da pa1sage:11, rural". (Le Paysage de L'historien. Archéologie des bocage> d<' l'Ouest 196. A paisagem não é como um quadro-negro, mas sim como um palimp-
de la France a l'époque moderne. Rennes: Presses Universitaircs de Ren1H:s. 2000, sesto: conserva nela as ma rcas das camadas de escrita que foram raspadas e
PP· 229-30.) Ann ie Antoine não despreza, por outro lado, o papel das represen- apagadas. Sobre essa questão da memóri a, ver Marot, S. "L'art Je la mémoire,
tações na construção histórica da paisagem de arvoredos. le rerrito ire et l'architecture". Op. cit. (Hoje reromado em Sub-urbanism and
34 O gosto do mundo: Exercícios de paisagem As cinco portas da paisagem... 35

A paisagem, nesse sentido, é como uma obra, e a terra, o Uma paisagem não é um elemenro natural do meio ambiente,
solo, os elementos naturais são como materiais aos quais os ho- mas um espaço sintético, um sistema artificial de espaços super-
mens dão forma segundo valores culturais que também evoluem postos na superfície da Terra, que fun ciona e evolui, não segundo
no tempo e no espaço. A paisagem é uma maneira de os homens leis naturais, mas para servir uma comunidade[ .. .). Assim, uma
inscreverem seu meio terrestre dentro de uma duração ou de uma paisagem é um espaço criado proposicalmence para acelerar ou
durabilidade que não se confundem com os ritmos naturais, para colher o processo natural. [... ] Representa o homem assu-
1 transformando assim esse meio em mundo histórico. 44 mindo o papel do tempo Qackson, J. B., 2003, p. 55).
46

Nesse ponto, Jackson passa a herdeiro de uma época do


pensamento geográfico francês ao qual, aliás, faz referência ex- Em outras palavras: a paisagem faz entrar a natureza no
p lícita . Podemos citar aqui Jean Brunhes, que foi um dos seus t t.:mpohistórico.
principais representantes no início do século XX. Para ele, a A "obra paisagística" não é, entretanto, uniforme na su-
atividade humana, "[...] traduz-se em obras 'visíveis e tangí- perfície do globo, indica Jackson. É necessário levar em conta as
veis', em estradas e em canais, em casas e em cidades, em des- diferenças de potências e de orient ações, que intervêm na relação
moitas e em cultivas. [... ] Há no solo uma marca contínua do que os homens mantêm com o "material" terrestre. Da China à
homem".45 Europa Ocidental, como em todas as outras partes do mundo,
O objetivo do geógrafo, nesse sentido, será, antes de tudo, a os homens tornam-se gravadores, escultores ou modeladores. Mal
análise e a decifração da "obra paisagística do homem'', na expres- tocam a terra ou, ao contrário, transformam-na radicalmente, em
são de Pierre Deffontaines. função das possibilidades de um material natural que é mais ou
Daí, chegaremos à seguinte consequência: convém lembrar menos favorável, mais ou menos "plástico", mas também em fun-
sempre que a paisagem não é a natureza, mas o mundo humano ção dos seus modos de produção e dos ideais espirituais e morais
tal como ficou inscrito na natureza ao transformá-la. Um mundo q ue acalentam. A aparência da paisagem traduz ~ssa atitud~ cul-
misto, híbrido, nesse sentido, nem totalmente natural, nem to- tural variável da humanidade em relação aos meios naturais nos
talmente humano, mas ao mesmo tempo natural e humano. Na- quais lhe coube viver. A • •

tureza humanizada, humanidade naturalizada: a paisagem é uma Mas podemos também deduzir outra consequenc1a, relattva
realidade ontológica de um gênero próprio, dotado de um espaço ao sentido da paisagem. Qualquer que seja o projeto que veicula,
e de um tempo que lhe são próprios. Jackson destaca esse ponto a paisagem é a expressão de uma indagação a respeito do bem-
em vários trechos: -estar o u da "boa convivência" das comunidades h umanas, encar-
na uma indagação sobre os valores que podem fundamentar essa
"boa convivência" , bem como sobre o quadro espacial e material
real dentro do qual essa "boa convivência" pode ser realizada.
the Art ofMemory, "Architecturc Landscape Urbanism", n. 8. Londres: A rchi-
tectural Association, 2003.
11
Cf. Arendt, H. la Condition de L'homme modenze. Paris: Calmann-Lévy, 1968.
45
Brunhes, J. La Géographie humaine. Paris: F. Alcan, 1912, p. 41. 4<> Jackson, J. B. A la découverte du paysage vernaculaire. Op. cit., p. 55.
36 O gosto do mundo: Exercícios de paisagem As cinco portas da paisagem... 37

Pois, como escreve Jackson, foi assim que as paisagens fo- 0 homem. O eixo central da reflexão está aí: a paisagem é a l(
ram formadas, sempre; não apenas por decisão topográfica ou po- expressão de um esforço humano, sempre frágil e a ser recome- •.
lítica, mas pela organização das pessoas no local e pelo desenvol- çado, para habitar o mundo. 48
vimento de espaços a serviço da comunidade: trabalho lucrativo,
lazer, contatos humanos, contatos com a natureza, com o mundo A paisagem é o meio ambiente material e vivo das sociedades
exterior. De uma forma ou de outra, esses são os objetivos a que humanas
tendem todas as paisagens .. .47
A noção de paisagem adquire aqui, portanto, como se vê, O ecúmeno
uma significação muito abrangente: a paisagem é um espaço
político, e talvez um espaço mais social e cultural que político. Das análises acima, podemos concluir que a paisagem não
Observação decisiva, pois permite relativizar, ao mesmo tem- é apenas uma vista, uma imagem ou um pensamento. Também é
po, a concepção estetizante (ou pitoresca) da paisagem e a con- um mundo vivido, fabricado e habitado por sociedades humanas
cepção determinista. A tese está claramente enunciada num ar- em constante mudança. Ou seja, a paisagem identifica-se com o
tigo publicado em Landscape, durante o inverno de 1963-1964 ecúmeno humano.
(volume 13, nº 2), a respeito da conservação das paisagens: Essa noção de ecúmeno nos leva a fazer novas perguntas.
nele, podemos ler que, entre todas as razões que se pode ter Lembremos efetivamente que, para os geógrafos, durante muito
para preservar um fragmento de paisagem, a razão estética é tempo, o ecúmeno só representou uma parte (cerca de um quar-
certamente a mais pobre. Temos que achar novos critérios para to) da superfície do globo terrestre. E, a bem da verdade, os dois
L avaliar as paisagens, existentes ou futuras. Para tanto, é preciso espaços, o do ecúmeno e o do globo, permaneceram muito tem-

.... o interesse que o ser huma~o teria de e


__ ;.. abandonar o ponto de vista do ~p~ctâêfõr e se questionar sobre
nessas paisagens. As
perguntas que devem ser feitas não são primeiramente estéticas,
po distintos nas representações dos pensadores europeus. Todo
um imaginário da descoberta, da aventura, do encontro das ter-
ras virgens infiltrou-se e ainda se infiltra nesse interstício. Só
mas sim as seguintes: quais possibilidades oferece a paisagem foi mesmo no Renascimento, quando da descoberta dos novos
para o ser humano viver, para ser livre, para estabelecer re- mundos e da remodelação da imagem da Terra, que deslanchou
lações sensatas com os outros homens e a própria paisagem? o processo de fusão dessas duas superfícies. 49 Hoje não temos
Qua l é a contribuição da paisagem para a realização pessoal e mais nenhuma dificuldade em pensar a Terra como um planeta
a mudança social? A resposta de]. B. Jackson a essas pergun- totalmente humanizado.
tas é inapelável: nunca se deve mexer na paisagem sem pensar
naqueles que vivem nela. Afinal de contas, se a paisagem tem
um sentido e, sobretudo, se o projeto de paisagem pode ter um
•~ Essa dimensão ética da paisagem encontra-se também em Perriolo, M. Venturi.
sentido, é porque o desafio é tornar o mundo habitável para
' - Etiche dei paesaggio. II progetto dei mondo umano. Roma: Edii:ori Riuniri, 2002.
·i9 Cf. Besse, J.-M. Les Grandeurs de la Terre. Aspects du savoir géographique à la
17
Ibid., p. 277. Renaissrmce. Lyon: ENS Édirions, 2003.
As cinco portas da paisagem ... 39
38 O gosto do mundo: Exercícios de paisagem

('xiste um "aval ontológico" às operações de artialização e de ter-


Entretanto, essa distinção intelectual enrre o ecúmeno e o
planeta traz consequência para a compreensão do tipo de realida- 1i1orialização.52
Foi nessa "distância" metafísica entre terra humana e terra
de ao qual corresponde a _paisagem. Na verdade, não se sabe ao
natural, entre o ecúmeno e o planeta, que uma ciência da paisa-
cerro s~ essa distinção desapareceu mesmo, embora seja provável
~cm procurou desenvolver-se. Mesmo se a paisagem contém, ob-

l que hoJe outra formulação teórica deva ser proposta.


Efetivamente, uma diferença subsiste, muito embora te-
nha se tornado tênue na realidade contemporânea, entre 0 ecú-
viamente, um valor relativo à percepção e à representação , mesmo
se pode ser considerada como o efeito de um conjunto de ações,
11ma terceira abordagem teórica (que chamaremos de "realista")
meno e uma base terrestre "natural" que não se limita ao mun-
nos convida a considerar que a realidade da paisagem excede es-
do humano, seja nos seus ritmos temporais ou nas suas formas
sas meras significações subjetivas ou sociais. A paisagem possui
espaciais. As catástrofes ditas "naturais" são como um lembrete
uma substancialidade e uma espessura intrínsecas: é um conjunto
disso. Ou seja, a noção de ecúmeno pressupõe o encontro entre
complexo e articulado de objetos ou, pelo menos, um campo da
um terri tó rio humanizado e um meio ambiente ou uma base
realidade material, mais amplo e mais profundo que as represen-
não ,h~manos, seja essa base chamada de natureza, planeta ou
tações que a acompanham. 53 A paisagem também é o vento, a
materza. A tomada ou apoderação do solo pelo humano, a "obra
chuva, a água, o calor, o clima, as rochas, o mundo vivo, tudo o
pa.isaAgís~ica" (i~to é, a criação de territorialidades) pressupõem a
que cerca os seres humanos: resumindo, rodo um meio ambiente
e:1stencia p1~év1a de um "substrato'', qualquer que seja a defini-
cujas evoluções, na verdade, são afetadas, mais ou menos direta-
çao que se da desse substrato. Julien Gracq encontra essa base ou
mente, pela ação, a emoção e o pensamento humanos; mas, afinal
esse substrato no norte da Europa:
de contas, esse meio ambiente - somos também forçados a reco-
nhecer - existe e se desenvolve sem o ser humano, estava aí antes
O mais impressionante na paisagem da Suécia e da Noruega: a
dele e sobreviverá a ele de uma forma ou de outra.
rocha, a couraça geológica da península, o escudo escandinavo
Essa concepção "realista" da paisagem atravessa todo o es-
[.:.] sempre presente. Não o rochedo: a rocha; rudo o que po-
pectro das ciências da natureza e das ciências do homem. Está
dia ser arrancado, extraído, arrasado, o gelo arrancou, extraiu,
presente em particular, e há muito tempo, nas ciências da Terra e
arrasou do esqueleto raspado, escovado, desbastado até 0 osso.
Só resta o núcleo profundo, trazido à tona, a rocha-mãe intacta,
~2 Uciliw a expressão "répondam omologique" [aval oncológico] de Jacques Dewit-
inalterada (Gracq, J., 1974, p. 23 1).50
te, que a usa na sua crítica da artialização de Alain Roger: " [... ] a teoria da aniali-
zação deve, evcncualmcme contra ela mesma, isto é, contra sua própria tendência
_t'J'ão podemos esquecer: os seres humanos que produzem 'arcificialistà, reconhecer a existência de um real cujas determinações não resul-
e praticam os seus mundos e paisagens são terráqueos, eles têm tam simplesmeme do seu próprio ato constituinte. Ou seja, se quiser permanecer
fiel à sua vocação transcendental, ela precisa reconhecer a existência do que eu
um solo, uma base, diz Lévinas, 51 são seres terrestres. Em resumo, gostaria de chamar um aval ontológico: ..~ (" I.:artialisation et son autre". Critique,
n. 613-614, juin-juillet 1998, p. 356.)
50 1.1 Cf. Olwig, K. R. "Recovering the Substantive Nacure of Landscape". Annals of
Gracq, J. Lettrines 2. Paris: José Corti, 1974, p. 231.
51 the Association ofA merican Geographers, n. 86, v. 4, 1996, PP· 630-53 .
Levinas, E. De l'existence à l'existant. Paris: Vrin, 2002 [l 947], p. 120.
40 O gosto do mundo: Exercícios de paisagem
As cinco portas da paisagem ... 41

nas ciências do meio ambiente, mas não unicamente. A geologia,


A enu meração e a análise em separado dos elememos constitu-
a geomorfologia, a pedologia, mas também a climatologia, a bo-
tivos e das diferentes características espaciais, psicológicas, eco-
tânica, ou a ecologia etc. apontam precisamente a paisagem como
nômicas, ecológicas etc., não permitem dominar a totalidade.
um dos seus temas fundamentais. Até certo pomo, este tema é es-
A complexidade da paisagem é ao mesmo tempo morfológica

l tudado por essas disciplinas como uma realidade independente do


homem, do seu pensamento e da sua ação, uma realidade que se
desenvolve segundo leis que lhe são próprias e que a ciência tenta
(forma), constitucional (estrutura) e funcional, e não devemos
tentar reduzi-la pela d ivisão. A paisagem é um sistema que cobre
tanto o natural quanto o social (Bertrand, G., 1978). 56
descrever, explicar, ou até reproduzir, simulando-as.
De forma mais geral, o naturalismo deve enfrentar atual-
Paisagem e natureza
mente sérias críticas, tanto no plano da filosofia quanto no da
antropologia. Na sequência dos estudos recentes de Philippe Des-
Quer dizer que a paisagem é "natural", ou então que exis-
cola e Bruno Latour, 57 a tendência hoje é de falar de uma su-
tem paisagens "naturais"? É a posição sustentada por alguns geó-
peração do dualismo homem/ natureza, típico do natu~alismo do
grafos físicos, que se valem de um tipo de "naturalismo". 54 A bem
pensamento moderno. No sentido oposto desse dualismo, para
da verdade, a distinção entre paisagem como dado natural e a pai-
pensar a paisagem, recorre-se hoje às noções de hibridação e de as-
sagem como produto social, vindo a segunda somar-se à primeira
sociação do humano e do não humano, associações que podem, é
(paisagem natural + paisagem cultural), é hoje considerada como
bem verdade, assumir aparências variáveis em função das culturas
artificial por outros geógrafos, que desenvolvem as perspectivas
e das épocas. A paisagem aparece cada vez mais como uma enti- o
de uma "geografia híbrida".55 Seria mera distinção intelectual. A
dade relacional, e o que devemos pensar é essa "relacionalidade".
paisagem seria, na realidade, uma articulação da natureza e da
Convém destacar, a esse respeito, a importância do conceiro de
sociedade, uma integração dos dados naturais e dos projetos hu-
meio ou, mais precisamente, de mediança proposto por Augus-
manos, uma realidade sintética, como vimos em Jackson. Nesse
tin Berque para dar conta da totalidade das relaç~es constit~tivas
sentido, deve ser entendida como uma totalidade específica que
das realidades paisagísticas: a paisagem é uma enndade medial. A
não se limita aos elementos naturais e humanos cujas combina-
paisagem é ao mesmo tempo, e essencialmente, totalmente natural
ções a constituem. Georges Bertrand diz isso de outra forma:
e totalmente cultural. É o elemento onde a humanidade se natu-

54 56 Bertrand, G. "Le paysage entre la narure et la société". &vue Céographique, Je_s


"Ances mesmo d e o homem modelar novas paisagens, e em regiões do mundo
onde a sua inrervençáo não modificou em nada as ações combinadas dos grandes Pyrénées et du Sud-Ouest, n. 49, 1978, evocado in Reger, A. (d1r.). La Theorze
atores do sistema Terra, as paisagens existem. Até nos meios fortemente antropi- du paysage en Franu (1974-1994). Seysscl: ~hamp V~Jlon', 19~5, p. 99. V~r, de
zados, as paisagens conservam suas dimensões físicas." (Mercier, Denis. Le Com- forma geral: Bertrand, C. e G. Une géographie travemere. lenv1rormement a tra-
mentaire de pa)1sages en géographie physique. Paris: Armand Colin, 2004, p. 6.) vers territoires et temporalités. Paris: Argumems, 2002.
7
55
Wharmore, S. Hybrid Geographies. Natures, Cultures, Spaces. Lonclon: SAGE, 1 Latour, B. Politiques de la nature. Paris: La Découverte, 2004 (1999]; Descola, ~
2002. Par-delà ia nature et ia culture. Paris: Gallimard, 2005. Ver também : Cosmopolt-
tiques, n. 1, jun. 2002: "La nature n'esr plus cc qu'clle érait".
42 O gosto do mundo: Exercícios de paisagem As cinco portas da paisagem... 43

~aliz~ e onde a natureza se humaniza (e se simboliza). E é o que O sistema da paisagem


mval1da, no fundo, por princípio, qualquer abordagem unilateral
da paisagem, seja ela "antropocentrada" ou "naturalista": a paisa- Mas, então, o que é a paisagem, concretamente, nessa pers-
gem deve ser definida, mais rigorosamente, como meio. ss pectiva? De que é composta a realidade paisagística? Encontramos
Afinal das contas, percebemos que é possível considerar teo- nela, é verdade, topografia, geologia, formações vegetais e gru-
ricame'n~e a pais~gem com.o uma realidade autônoma, sem que seja pamentos de animais, condições climáticas, hidrográficas, pedo-
necessano reduzir essa realidade a uma pura e simples realidade "na- lógicas etc. Entretanto, encontramos também prédios, reunidos
tural" no sentido clássico do termo. A posição "realista" não pode de forma mais ou menos densa e servindo a usos muito diversos
ser confundida com o "naturalismo", tratando-se da paisagem. (habitação, culto, comércio), vias de comunicação, estradas, fer-
~as, sobretudo, o ponto essencial é o seguinte: qualquer rovias, instalações agrícolas, mas também industriais, que afetam
que sep a valência ontológica particular que se atribui à paisa- de forma mais ou menos profunda o solo que os sustenta (extra-
gem (natural, cultural, híbrida), é possível concebê-la como uma ção, evacuação dos resíduos, simples posição sobre uma superfí-
realidade em parte (e numa medida que pode ser grande) inde- cie etc.). Esses diversos elementos interagem constantemente uns
?endente das representações e das ações humanas (o que nem por com os outros. O que significa que uma paisagem é, antes de
isso fa~ d~la uma pura e simples "realidade natural", vale repetir). tudo, uma totalidade dinâmica, evolutiva, atravessada por fluxos
Constitui uma ordem de realidade específica. É um ser próprio. de natureza, intensidade e direção bastante variáveis e, por isso,
O que quer dizer, também, que se desenvolve segundo uma racio- lhe é atribuída uma temporalidade própria.
nalidade própria. Mas, então, se a paisagem possui tal realidade Além disso, esses fluxos de matéria e de energia, essas tro-
substancial e se apresenta, pelo menos a título de presunção, como cas de informações, esses jogos de forças entre os diferentes ele-
uma totalidade sui generis, não é ilegítimo, nem talvez impossível, mentos que compõem a realidade paisagística se fazem dentro de
procurar analisar os diferentes componentes e determinar as rela- morfologias espaciais determinadas: as estradas, as unidades de
ções que são constitutivas dessa realidade. Em outros termos, não povoação, as estruturas parcelares e fundiárias, os limites frontei-
é ilegítimo procurar caracterizar as dinâmicas de racionalidade riços, a totalidade, enfim, dos recortes territoriais e das descon-
entre as próprias aparências paisagísticas. O conceito de sistema, tinuidades espaciais, todos constituem quadros dentro dos quais
utilizado por Georges Bertrand e pelos ecólogos da paisagem, for- e com os quais a temporalidade própria do sistema paisagístico
nece hoje um dos suportes lógicos dessa tentativa, e permite, no deve lidar. Mais ainda, por intermédio dessas distâncias, desses
fundo, propor explicações e modelizações quanto ao funcionamen- dimensionamentos e desses recorres, dão algo como uma "medi-
to específico das realidades paisagísticas. 59 da", mais exatamente uma escala e uma ordem de grandeza. As

58
"."er, para um desenvolvimento dessa perspecciva: Berque, A. Médiance. De mi-
/Jeux en paysages. Mompellier: GIP Redus, 1990; e, sobretudo: Ecoumene. fntro- tions. Paris: TEC & DOC, 1999. Ver também: Clergeau, P. Une écologie du pay-
duction à l'étude des milieux humains. Paris: Belin, 2000. sage urbain. Rcnnes: Apogée, 2007. O livro de V. Berdoulay e M. Phipps (dir.),
59
A melhor introdução geral, em língua francesa, à ecologia da paisagem continua Paysage et systeme. De l'organisation écologique à l'organisation visuelle, edi ca<lo pela
sendo: Burel, F. e Baudry, J. Ecologie du paysage. Concepts, méthodes et applica- Universidade de Ottawa, 1985, é sempre útil.
44 O gosto do mundo: Exercícios de paisagem As cinco portas da paisagem... 45

formas espaciais objetivas são partes interessadas da evolução dos Como vemos, a paisagem em questão não é vista aqui uni-
processos paisagísticos. 60 camente como a tradução de um valor ou de uma decisão hu-
A paisagem apresenta-se então, neste caso, como uma mor- manos: embora estes intervenham, até certo ponto, no processo
fologia dinâmica, mais precisamente como uma totalidade atra- paisagístico, devem ser mediados pela totalidade dos elementos
vessada por dialéticas internas e externas que se desdobram entre do sistema com os quais lidam inevitavelmente. Podemos até
dizer que a sua realidade (enquanto valor, pensamento ou ação)
1 texturas, formas espaciais e temporais, fluxos, matérias desloca-
das e transportadas, e funções mais, ou menos, perfeitamente dd-se nessas mediações. Tal como concebida aq ui, a paisagem ,
preenchidas. Essas dialéticas, na verdade, constituem a paisagem nas suas espacialidades como nas suas temporalidades, não de-
como tal na sua realidade concreta. Mais globalmente talvez, é pende apenas do humano, embora este ocupe uma posição às
essa dialética entre, por um lado, certa estabilidade das formas e, vezes determinante. Mas deve ser entendida como o ponto de
por outro, a renovação das funções, a reorientação dos fluxos e a encontro entre as decisões humanas e o conjunto das condições
modificação da sua intensidade, enfim a substituição das matérias, materiais (naturais, sociais, históricas, espaciais etc.) nas quais
que faz, pode-se dizer, a história da paisagem. T alvez possamos ir surge e tenta formular-se. Mais ainda, nessa perspectiva, a paisa-
mais longe nesse ponto, e considerar a ideia de uma história da gem pode ser definida como uma realidade material, espaçotem-
paisagem que fosse articulada em torno de uma dinâmica inerente poral, organizada em certo sentido, com a qual os seres humanos
às próprias formas paisagísticas, uma dinâmica que se desdobras- vão ter de se explicar.
se, aliás, segundo modalidades temporais não lineares. 61 Às vezes,
a forma paisagística é "morfógena", 62 ela dá eixos à história futura A paisagem é uma experiência fenomenológica
do espaço, e isso de forma autônoma.
Assim, vamos aprendendo, progressivamente, que a pai-
60
Ver: Pinchemel, P. e G. La Face de la Terre. Paris: Armand Colin, 1988, pp. 373-
sagem não é apenas uma representação mental ou uma obra da
90; e, em pamcular, a figura 88 (p. 381 ), que propõe uma "formatação sistêmica cultura. Possui uma realidade que pode ser objeto das inves-
do conceito de paisagem". tigações da ciência. Mais imediatamente ainda, essa realidade
61 A . , d
qu1, so po emos remeter aos trabalhos de Gérard Chouquer. Ver, em particu- paisagística apresenta-se ao ser humano num encontro con-
lar: L'Etude des paysages. Essais sur leurs formes et leur histoire. Paris: Errance, 2000.
J?estacaremos, principalmeme, a distinção feita por Chouquer enrre quatro moda-
creto, d iversamente modulado nos seus conteúdos e formas .
lidades espaç~-ternporais atuand o na história das formas paisagísticas: a sincronia, Ou seja, a paisagem é o atestado da existência de um "fora",
a h1sterecrorna, a diacronia, a ucronia (pp.125-27). Ver também: C houguer G. de um "outro".
"Laplace de l'analyse des systemes spatiaux dans l'~tude dcs paysages du passe:'. ln
Mas como referir-se a essa realidade, a essa exterioridade
C~ouquer, G. (ed.), Les Formes du paysage. Paris: Errance, 1997, t. III, pp. 14-24;
assim como, do mesmo auror: Quels scénarios pour l'histoire du paysage? Orientations da paisagem? Duas vias são possíveis: a ciência, como acabamos
de recherche pour L'archéogéographie. Coimbra-Porco: CEAUCP, 2007. de ver, e outra coisa, que vamos chamar aqui de experiência. A '
62
O termo (proposto por F. Favory) aplica-se à totalidade dos elememos paisagísti- ciência não é a única maneira de se referir à paisagem, nem mes-
cos que exercem uma influência sobre as formas "muito além d a época de criação
mo talvez a primeira: a paisagem é primeiramente sensível, uma
e de funcionamento" (Chouquer, G . "Laplace de l'analyse des systcmes spatiaux
[...]". Op. cit., p. 21). abertura às qualidades sensíveis do mundo.
46 O gosto do mundo: Exercícios de paisagem As cinco porcas da paisagem... 47

A noção de experiência As paisagens são ambientes, meios, atmosferas, ames de ser


objetos a serem contemplados.
65
• ~
A sociologia, a antropologia e a história das sensibilidades Segundo essa quarta perspectiva, a pais~gem pode, entao,
(Pierre Sansot, Alain Corbin), mas rambém a história da estética fi- ser compreendida e definida como o acontecimento do encontro
losófica (Ernst Cassirer, Joachim Ritter), bem como muitos estudos concreto entre o homem e o mundo que o cerca. A paisagem é,
sobre os meios urbanos demonstraram em que a paisagem assumia nesse caso antes de tudo, uma experiência. Mas, no sentido geral,
uma dimensão d a relação humana com o mundo e a natureza que essa expe;iência paisagística ou, melhor dizendo, essa paisagem
a ciência moderna, por princípio, havia descartado: a relação direta, que se apresenta como experiência só remete, para o ser humano,
imediata, física, com os elementos sensíveis do mundo terrestre. A a certa maneira de estar no mundo e ser atravessado por ele.
água, o ar, a luz, a terra: todos, aspectos do mundo que estão abertos Efetivamente, não se trata apenas de detectar e d estacar a
aos cinco sentidos, à emoção, a um tipo de geografia afetiva que existência de um "fora" em relação às representações mentais, psi-
repercute os poderes de ressonância que possuem os lugares sobre cológicas, isto é, de uma "realidade". Não é só isso. É a própri~ no-
63
a 1magmaçao.
. . - · C orno escreve Barbara Bender, " [...] as paisagens
· ção de experiência, quando se trata ~a paisagem, ~u: é ~eavaliada:
não são apenas 'vistas', mas sim encontros pessoais. Não são apenas a experiência deve ser entendida aqm como uma sa1da no. real e,
enxergadas, mas sim experimentadas com todos os sencidos".6 4 mais precisamente ainda, como uma exposição ao real. A paisagem
é 0 nome d ado a essa presença do corpo e ao fato de ele ser afetado,
tocado fisicamente pelo mundo ao redor, suas texturas, estruturas
63
Corbin, A. Le Miasme et la Jonqui!Le. L'odorat et l'imaginaire social. Paris: Flamma- e espacialidades : há nisso algo como um ac~ntecime~to. ,Trata-
rion, 1986; _ _ _ . Les Cloches de la terre. Paisagem sonore et culture senJibk au -se efetivamente de uma desobjetivação: a paisagem nao e tanto
XIX siecle. Paris: Flammarion, 1990; Sanso t, P. La France sensibíe. Seyssel: C hamp
Vallon, 1985 (reed. Payot, 1995); _ _ _ . Variations paysageres. Paris: Klindc- um objeto apreensível pelo pensamento quan.to um ~ert~ modo
sieck, 1983; Ri tter, J. Paysage. Fonction de l'esthétique dans la société modeme. de estar no mundo, um ambiente, certa mane1ra, m uno smgular,
Besançon: Limprimeur, 1997; Rodaway, P. Sensuous Geographies. Body, Senseand de participar do movimento do mundo em de~erminado lugar. A
Place. London: Rourledge, 1994; Zard ini, M. (d ir.), Sensations urbaines. Une ap-
paisagem é primeiramente vivenciada e depois'. talvez, falada, a
proche diflérente de L'ttrbanisme. Montreal: CCA/Lars Müller Publishers, 2005. A
questão da inclusão das culturas sensoriais é hoje bem estabelecida no campo dos palavra buscando, sobretudo aqui, prolongar a vida, ou melhor, o
estudos paisagísticos. Cf, por exemplo, os trabalhos de Jean-François Augoyard, vivo que faz d a paisagem uma experiência. Estamos pensando em
de Pascal Amphoux, da equipe do CRESSON (Grenoble), assim como os de Merleau-Ponty, comentando Husserl: a tarefa da p~lavra é tra.zer
David Howcs (Empires of the Senses: The Sensual Cu!ture Reader. Oxford: Berg, 66
2004) e de David Le Breton (La Saveur du monde. Une anthropologie des sem.
a experiência muda à expressão do seu próprio sent1.d.o. A paisa-
Paris: Métailié, 2006) . Para uma inrrodução geral à noção de "culcura sensível'', gem é 0 quad ro ou, melhor dizendo, o nome que sena dado a uma
ver: Anthropologie et Sociétés, v. 30, n. 3, 2006. Não abordarei, por enquanto, a
questão da sucessão das "conformações" hiscóricas e antropológicas da experiên-
cia fenomenológica. 65 Para a história dessas noções, ver, pri ncipalmente: Spitzer, L. "Milieu an_d Am-
64
Bender, B. "L1ndscapes and Politics". ln Buchli, V (d ir.). The Material Culture biance: An Essay in Hiscorical Semancic". Philosophy and Phenomenological Re-
Reader. Oxford: Berg, 2002, p. 136. Ver também: Tilley, C. A Phenomenology of search, v. 3, n. l, 1942, pp. 1-42; e também o n. 2, pp._1 69-2~8 .
Landscape. Places, Paths andMonuments. Op. cit. 66 Merleau-Ponry, M. Phénoménologie de la perception. Pans: Galhmard, 1945, P· X.
As cinco porcas da paisagem... 49
48 O gosto do mundo: Exercícios de paisagem

e os passinhos de homem, longinquamenLe amigáveis, ininteligí-


intensificação particular da vida psíquica em momento e luO'ar 69

d:rermina~os. E, na verdade, dizer nesse caso "a paisagem", j~ é veis, mexerem-se sobre ela, de leve, como formigas! (Id., ibid.).

dizer demais, é perder o próprio momento do "há paisagem" que


nos arrebata e nos transporta. , flém do objeto e do sujeito
A caminhada poderia constituir um exemplo fundamental
A experiência da caminhada nos indica que essa "vida" de
dessa experiência da paisagem: e, mais precisamente, esse momen-
to particular que é o cansaço na caminhada, cansaço que não é que falamos aqui, essa "experiência vivida" não se identifica com a
n~~ esgotamento, nem lassidão, mas que restitui a sua disponi-
vida interior ou a subjetividade pessoal. Na paisagem, a vida sub-
jcl iva se desenrola à beira das coisas. Na verdade, à desobjetivação
bilidade ao corpo e, como diz Nicolas Bouvier, a sua porosidade
responde uma dessubjetivação. Se há experiência, há exposição da
em relação ao mundo, 67 que lhe restitui a sua capacidade de ser
afetado pelos dados sensíveis do mundo. subjetividade a algo como um "fora" que a conduz e a empurra,
:is vezes violentamente, fora dos seus limites. Nesse sentido, a pai-
O cansaço [escreve Julien Gracq] age como o fixador da impres-
:-.agem é, literalmente, " isso" que põe o sujeito fora de si mesmo.
são fotográfica; a mente, que vai perdendo, uma a uma, suas de-
Mas não é para afundá-lo no objeto pois, justamente, também
fesas, suavemente estupefata, suavemente rompida pelo choque
não há objeto, no sentido da ciência e da consciência representa-
do passo monótono, a mente vagueia, apaixona-se por um ritmo liva, diante desse sujeito que perde qualquer estabilidade. A prova
que a obceca, uma iluminação que a seduziu, o sumo inestimável
sensual, escreve Henri Maldiney, "ultrapassa a qualidade sensí-
da hora presente (Gracq, J., 1995, p. 280).68 vel.7º A experiência radical da paisagem é um sujeito fora e um
fora sem objeto. É uma derrota comum do sujeito e do objeto.
Na caminhada, no âmago do meu cansaço, faço aparecer 0 Não se deve dizer, por conseguinte, que a paisagem é concebida
mundo tanto quanto faço aparecer a mim mesmo, num espaço como uma experiência. Ela é mais este acontecimento, singular e
poroso e comum que é o espaço da paisagem. sempre diferente, da exterioridade como ral, à qual a experiência
expõe aqueles que se arriscam, numa confusão e uma tensão entre
Como gostei [continua Gracq], ao longo de uma jornada can- si e o mundo que, propriamente, arrebatam. O estranhamento é a
1
sativa de marcha, guardar nos ouvidos somente a modulaç..1.o do condição da paisagem, escreve Jean-François Lyotard,7 e por isso
canto do mundo, ver somente o sol subir e descer sobre a Terra, a paisagem não é um lugar: ela é " indestinada", ela escapa, e esta
escapada é a sua "razão" de ser.
A palavra "horizonte" já foi muito utilizada para nomear o
67 tipo de experiência de que se trata aqui. A paisagem é o evento do
"O ~nsaço da ca1~11111a
· 1 da, escreve Nicolas Bouvier ao chegar ao monascério
Hac-111-sa, na Core.ia, torna poroso, aberro à Linguagem de um lugar: impossível
atravessar essa sole1ra sem se sentir aliviado, lavado de algo" ("Lcs chcmins du
f'.alla-san". lnfournaíd'Aranetd'autmíieux. Paris: Payoc, 2001, p. 126). G~ Ibid.
68
G1.acq, J. Lettrmes 2. ln CEuvres completes. Paris: Callimard, 1995, t. li., . 280. ;o Maldincy, H . Regard, parole, espace. Lausanne: I.:Age d'Hommc, 1994, P· 99.
(Biblioth~que de la Pléiade). P 71 Lyotard, J.-F. "Scapeland" . Revue des Sciences Humaines, n. 209, 1988-1, P· 40.
As cinco portas da paisagem ... 51
50 O gosto do mundo: Exercícios de paisagem

1 onstitui o n úcleo do evento-paisagem. É necessário, talvez, sair


horizonte. 72 Mas o horizonte exprime aqui muito além da exis-
dos códigos ocidentais do pensamento paisagístico para ter aces-
tência de mundos longínquos. Esse termo tem um alcance onto-
\O a esse núcleo? Deslocar-se primeiro geograficamente, para a
lógico tanto quanto epistemológico. Remete à parte de invisível
l ,hina, onde, como escreve, "em vez de a paisagem se constituir
que reside em qualquer visível, a essa dobra incessante do mundo
cm objeto de percepção, 'montanhas-águas' nos diz a imersão,
que faz do real, definitivamente, um espaço inacabável, um meio
~1uc se instaura imediatamente, naquilo que faz a animação por
aberto e que não pode ser totalmente rematizado. O horizonte
interação dos componentes do mundo" .74 Mas esse encontro com
é o nome dado. a essa potência de transbordamento do ser que se
.1 pulsação rítmica do mundo também diz respeito à arte, nos diz
apresen~a ~a pa1sage1~. Mas só se pode aceder ao horizonte na pai-
Maldiney, ao comentar a ob ra de Tal Coat:
sagem, insistem Erwrn Straus e, depois dele, Henri Maldiney, ao
preço da perda das referências, da recusa do mapa, e da assunção
Tal Coar percebe-se em troca permanente com o mundo. O
dessa perda e dessa recusa:
mundo não é u ma simples moldura. Não escá apenas em corno
dele como Umwelt, está nele como tensão polar. O homem no
O espaço da paisagem é pri meiramente o lugar sem lugares do
mundo não é um império dentro de um império. É um reino, se
ser perdido. Na paisagem [... ] o espaço me envo lve a parrir do
canto. E em que sentido? - Quando esrou na presença de uma
horizon te do meu Aqui, e só esto u Aqui ao largo do espaço sob
paisagem, não estou, na realidade, diante dela. Há, atrás de mim,
o h orizon te do q ual estou fora. Nenh umas coo rdenadas. Nenhu-
em volta de mim, a presença de todos os horizontes. Todos os
ma referência. "D a paisagem, não há desenvolvimento que leve
distantes estão integrados no meu próximo. Tudo o que perce-
à geografia; saímos do caminho; como h omens sentimo-nos per-
bo, percebo sobre fundo de mundo. E em vez de fundo, deveria
didos." [...] Certamente, podemos sair da paisagem para entrar
falar d e me io. Mesmo dando as costas à montanh a da Sainte-
na geografia. Mas nela perdemos o nosso Aqui. Deixamos de ter
-Victoire, seu signo está presente na minha visão. Sou a cabeça
lugar. Deixamos de acontecer (Maldiney, H ., 1994, p. 143).73
dessa recapitulação. Nesse sentido, sou um centro de universo.
Mas, por um movimento totalmente con trário, à m edida q ue o
~orém,
já que ela se situa além do dispositivo moderno
universo em volta de mim e dentro de mim realiza a sua presen-
do. objeto e do sujeito, sob que forma aparece a experiência da
ça, sinto necessidade de habitar meus distantes, arrancar-me à
paisagem ? Falaremos aqui de imanência, imersão, participação,
para nomear este encontro pré-reflexivo com o inobjetivável, que
'• Jullien, F. La Grande image n'a pas de forme. Paris: Le Seuil, 2003, p. 185. "Mon-
72
tanhas-águas" (shan-shui) é uma das palavras uálizadas pelos chineses, na sua
Ver a esse respeito o trabalho fundador de Michel Collot, em particular, La Poésie
tradição piccural e literária, para dizer "paisagem". Ver também: Cheng, F. Vide et
moderne et kl structure d'horizon, op. cit.
plein. Le langage pictural chinoü. Paris: Le Seuil, 1979; Petrucci, R. La Philosophie
73
Maldiney, H '. Regard, pa~ole, espace. Lausanne: L'Age d'Homme, 1994, p. 143. O de la nature dans l'art d'Extrême-Orient. Paris: Librairie Fou Yeng, 1998; Berque,
texto de Erwm Straus, citado por Mald iney, é eirado de Du sens dessens. Contri- A. Les Raisons du paysage. Paris: Hazan, 1995 (cap. III); Vandier-Nicolas, N.
butíon à l'étude des fondements de /,a psychologie. Grenoble: Jérôme Millon, 1989, Esthétique et peinture de paysage en Chine (des origines aux Song). Paris: Klinck-
P· 515. Já ~omente 1 esse texto em Voir /,a Terre. Six essais sur le paysage et la géogra- sicck, 1987; Escande, Y. La Culture du shanshui. Paris: Hermann, 2005.
phze, op. c1t., pp. 120 e seg.
52 O gosto do mundo: Exercícios de paisagem As cinco portas da paisagem... 53

j minha inércia de placa de sinalização, ser coexrensivo ao próprio 11 ,1, o trabalho sobre a língua que se faz em filosofia e em poesia
1111 dcsse fazer jus à experiência paisagística na s~a v~r~ade, como
mundo, enuar na sua ressonância universal, assumir o seu ritmo
(Maldiney, H., 1995, p. 31). 7' ~l somente na poesia e na filosofia o evento patsag1st1co pudesse
,cr restituído e levado ao auge da sua realidade.
Dizer o estranhamento De forma geral, somente a arte, como poema, e t~lvez a
11 iística podem d izer essa experiência da paisagem ou, ma1~, pr:-
Como então descrever, como dizer e representar esse espaço 1 isamen te, dar a ver e a ouvir essa paisagem como expenenc1a
da paisagem que nos en volve e nos transpassa, que nos desloca e lundamental, originária, da conivência com o mundo. A ~rte não
nos transborda? Como falar da paisagem, quando estamos além porque representaria a paisagem, mas porque 1!'1ostra a paisagem,
ou aquém da representação e do d iscurso no sentido usual desses porque a faz chegar como tal à presença e, mais ger~l~ente, P?r-
termos? E, mais exatamente, como fazê-la, ou melhor, deixá-la que faz aparecer o mundo enquanto mundo. O ~b!e,ttvo d~ P~~­
falar? Qual é a palavra que poderia restiruir, ou melhor, como já tura de paisagem , escreve Erwin Straus, é tornar vlSlvel .º mv1s1-
fo i dito, prolongar a experiência paisagística considerada num tal vd, mas como coisa oculta, distante". 77 A verdadeira pmtura, a
radicalismo? Mais ainda, em que a língua poderia acolher e fazer verdadeira palavra, a autêncica apresentação da paisagem. ta~vez
soar a paisagem no seu próprio evento?76 residissem, no fundo, nessa arte de manter o segredo, de mdicar
Os discursos que se encarregaram, principalmente, dessa a sua p resença, ou a sua passagem, sem procurar m.edir .essa. pre-
interrogação sobre a língua e seus poderes de apresentação da ex- M.:nça. A experiência radical da paisagem não estana. cnsta11:z-ada
periência, assim como sobre as relações que ela mantém com o 110 estranho sentimento da iminência daquilo que iaz aqui, ao
momento próprio da sensibilidade paisagística, situam-se mais do lado, numa reserva inextinguível, o silêncio?78 Por sua vez, Jean-
lado da poesia e da filosofia (e até, às vezes, no caso da fenome- -l~ rançois Lyotard solicita a poesia, como "escrita ~a impo~s~vel
nologia, na exata articulação, embora sempre problemática, do descrição, a descritura". O que está em jogo na descntura poenca,
registro filosófico e do registro poético). C omo se, no fundo, ape- acrescenta, "é a matéria como paisagem, e não as formas pel~s
quais ela pode se inscrever". O estranha~ento prod,~zido pela pai- ,
7
s Maldiney, H. Aux déserts que l'histoire accable. L'art de Tal Coat. Paris: Oeyrolle, sagem "é absoluto, a implosão das própnas formas .
1995, p. 31. "O espaço de Tal Coar," acrescenta Maldiney (p. 58), "é o espaço
da paisagem, não de uma paisagem-espetáculo, mas de uma paisagem-meio. A
paisagem não está na nossa frente como um conjunto de objecos, a não ser que •7 Suaus E. Dusem dessens. Op. cit., p. 519.
a tenhamos convertido em sítio, isto é, em geografia pitoresca. Ela nos envolve e 'R Esse s~ntimento do horizonte como presença "ao lado" parec~ corrcspo~der,
nos uanspassa. Estamos imersos nela: o nosso Aqui só se refere a ele próprio". embora num registro diferente, à preocupação do paisagista ~lchcl. CoraJoud
76
Augusrin Berquc parece d11vidar dessa possibilidade, quando estabelece uma dis- quando dedara: "O espaço sobre o qual estão me peclin~o para intervir é m~s-.
tinção entre "pensamento da paisagem" e "pensamento paisagístico". O "pensa- interessante para mim que a forma como mantém rclaçoes com os espaços a sua
mento da paisagem'', caracterizado por um dualismo fundador, o da modernida- volta. Chamo isso de horizonte: a forma como cada espaço va7..a no espa~o ao
de, não pode restituir a autemicidade da forma de ser e de fazer que caracterizava Lado , que, por sua vez, vaza no espaço ao lado e, aos p?ucos,. atinge o que ~01 cha:
o "pensamenro paisagístico", que é um pensamento silencioso. Ve r Berque, A. La rnado de horiwme. Este último é, para mim, o conceito unificador da paisagem
Pensée paysagere. Paris: Archibooks, 2008. (Entrevista com P Madec, in Techniques & Architecture, n. 403, 1992, P· 62).
54 O gosto do mundo: Exercícios de paisagem As cinco portas da paisagem... 55

A paisagem como projeto questionar 0 estado do mundo, é sop~sá-lo naquilo que_ pode o~­
i ncr aos homens que nele estão; cammhar é uma expenme~taçao
A caminhada: uma crítica do real do mundo e dos seus valores. A caminhada, de fato, requa~ifi.ca o
,.,paço, no sentido próprio do termo: dando-lhe novas qualidades,
Voltemos ao exemplo da(caminhada) Caminhar não é sim-
novas intensidades. .
plesmente uma forma de estar fora, passivamente, no mundo. O valor experimental e questionador da caminhada~' mais
1 Na caminhada, a sensibilidade é tão ativa quanto ativada, o es- i•,nalmente, dos deslocamentos dentro dos _espaços naturais e ur-
tar no mundo é orientado, articulado. Existem artistas (mas tam- li:inos, foi percebido e até teorizado ha muito tempo. ~s grandes
1

bém peregrinos) para quem cam inhar é fazer obra, para quem o tiictrópoles modernas tornaram-se ca~pos de exploraçoes ao mes-
deslocamento faz a forma: entre os mais famosos encontram-se mo tempo lúdicas e metódicas, sob d1vers~ fig~ras: .º fl~nar b~u-
hoje Richard Long e H amish Fulton, que concentram no exer- ··
l1t.: 1a1nano, a deambulação surrealista' a denva s1mac1onista, o ir a
cício concertado e prolongado da caminhada por um território / onzo do grupo Stalker.so Mas, a cada vez, trata-se de apreender,
o essencial da sua ação de artistas. 79 "No wa!k, no work", escreve dt.: revelar, ou até de construir idealmente _outro es~aç?, outras
Fulton . Para ele, trata-se de construir pela caminhada uma experi- representações e outras experiências possíveis, no propno espaço
ência, bastante próxima, afinal de comas, daquela dos andarilhos urbano ou a partir dele, tal como é dado, atribuído, recortado e
místicos. Não se fala da caminhada como de uma "meditação"?
organizado.
O desafio é mudar a percepção, diz ainda. Se Richard Long com-
partilha essa posição fundamental ("Minha arte se faz no pró- É preciso [escreve Guy Debord, em 1953] chega~.ª u '.11 estranh~­
prio ato de caminhar'', escreve), não se contenta em caminhar, mento pelo urbanismo, a um urbanismo não unluáno, ou, mais
vai também desenhando o caminho a partir das suas caminhadas, exatamente, pensado em função de outra utilização. A c~nstru­
às vezes literalmente, ou traçando-o diretamente com os pés, ou ção de novos quadros é a condição p rimordial de outras amudes,
depositando-o no chão pelo alinhamento de pedras colhidas no outras compreensões do mundo (Debord, G., 1953) .si
local. Embora efêmeras e tendo como único testemunho as foros
que traz, suas obras são como os vestígios, as marcas da sua passa-
gem pelo local. Elas contribuem, entretanto, para renovar a visão
que temos desses locais. hll Alé · cita
d 0 livro de T hierrv/ Davila · d o na nora anrenor,· ver·· Careri , F· Walksca-
Em ambos os casos, efetivamente, caminhar não é apenas m•v1 l',_ · as an Aesthetic Practice. Barcelona: Gustavo GT 1 1, 2002·' bem como··
pes. wa "mg h ., le d' t
vila T (dir ) Les Fioures de la marc e: un sicc arpen eurs.
estar no mundo, é estar nele de forma interrogativa: caminhar é Fr éch urer, M . e
ºª ' · · · ,,.. ,
Paris: RMN, 2000. Os livros de Augoyard, J.-F. Pas a pas. Essaz sur e e e
· l h mine
-
ment quotidien en milieu urbain. Paris: Le Seuil, 1979; e de Cerrcau, M. d.e.
79
l'lnvention dtt quotidien, l, A rts de faire. Pans: Galhmard, 1994 [1980)_(Folio
essais) continuam essenciais. Voltaremos a eles no último capítulo dest~ hvrleo.L
Mas temos também Gabriel Orozco, Francis Alys e muitos outros artistas que
atribuem à camin hada uma função plástica. Ver, sobre esse ponto: Davila, T. a1 D b d G "Manifeste pour une construcnon · des s1tuanons
· · " · 1n t ernatzona et-
Marcher, créer. Déplacements, jlâneries, dérives dans l'art de la fin du XX' siecle. ~ or '3 .
trtste, n. , ago. 1953 (citado in Debord, G. CEuvm. Paris: Gallimard, 2006, P·
Paris: Éd. du Regard, 2002.
108 (Collection Q uarto)) .
As cinco portas da paisagem ... 57
56 O gosto do mundo: Exercícios de paisagem

recalcados {a vista de uma encosta, o perfil de um meandro, a


Levantemos, então, a seguinte hipótese, ao término dessa
fertilidade de um solo, a flora de um rio, a massa de uma co-
longa observação pr:liminar: a _noção deprojet0 utilizada exclusi-
bertura vegetal... ), ao reinterpretar traçados ou obras antigas (a
vamente pelos arqmtetos e os paisagistas, talvez fosse a retomada
orientação de um plano parcelar, a curva de nível de uma parede
ac~rdad~ e deliberada d.essa abordagem experimental da realid~
ou de um terraço, a área de vias desativadas) , o projeto dedica-se
, pa1s~gfsttca. Abordamos, aqui, a quinta perspectiva teÓrica sob~
à restauração de uma base comum e compartilhada: a paisagem.
a paisagem. -\>

Em suma, o local, m isto de dados geográficos e históricos, não é


um contexto no qual deveria ser inserido um programa, mesmo
As implicações contemporâneas da ação do paisagista
sendo espaço público, mas constitui a própria matéria do proje-
to: é praticamente nele que deveria ser decifrado o programa da
O paisagista coloca-se numa lógica da obra e da acão sobre 83
intervenção sobre o espaço (Marot, S., 1995, pp. 68-9).
o ,m~ndo: ele atu~, en:i função de uma encomenda ge,ralmente
publica, sobre locais e situações considerados como problemáticos
Entretanto, além dessa "volta" para o local e as lições que dá
ou, en:i todo caso, modificáveis. Sabemos que, na arquitetura e no
:tqueles que querem ordená-lo ou transformá-lo, hoje, as intervenções
urbamsmo contemporâneos, a inclusão da paisaaem contribuiu
para de:locar o ~ue~tionamento sobre a habitação humana: apre-
0
dos paisagistas desenvolvem-se, principalmente, segundo três dire-
ções, que parecem, aliás, constituir o desafio próprio da sua expertise.
ocu.paçao do pa1sag1sta não é tanto a do prédio e das suas estrutu-
l·'.ssas três direções, que não são excludentes, são: o solo, o território, o
ras Internas quanto a das i;dações que o prédio mantém com o(s)
meio ambience natural (e mais exatamente o meio vivo).
seu(~) c~ntexto(s). 82 Entre os especialistas das artes da habitação,
o p~1sa~1sta é aquele que, por assim dizer, carrega o local e suas " Marot, S. 'Talrernative du paysage". Le Visitm1; n. 1, 1995 , pp. 68-9. Nas linhas
potencias programáticas. Sébastien Marot resume perfeitamente que antecedem esse trecho, Sébastien Marot propôs uma inversão das relações
os de~afios quando escreve, a respeito do acionamento do projeto entre programa e local: "A esses hábitos de ordenamento que reconduzem e au-
de paisagem: mentam a d isjunção do território porque o ignoram, ou, o que dá oo mesmo,
porque pretendem resolvê-lo a pri01·i, o discurso paisagista opõe uma disciplina
aberra que faz da exploração, do reconhecimento, em suma da leitura do local, o
Ao domesticar as forças indiferentes que saturam 0 espaço públi- pressuposto de uma estratégia de ordenamento visando a rorná-lo legível, isto é,
co, devolvendo, ao contrário, suas medidas a dados geográficos a manifesrar e articular os dados físicos e culrnrais, geográficos e históricos, que
partici pam ou participaram da sua conformação particular. l ... ] O que está em
jogo, nessa inversão das prioridades, é a reconquisra de uma paisagem: através dos
si Paola Gregor~ reco~stitui a história das relações arquitetura/paisagem no século
gestos de preparação, <le reparação, de enxerro ou de acl imaração, a maior parte
XX em la_ dtmenstone paesaggistica dellarchitettura nel progetto contemporâneo.
dos projeto~ paisagísticos nos tecidos emaranhados e descscrucurados, quaisquer
R~ma~Ban: Laterza, 1998. Para uma apresencação da história da profissão de
que sejam a escala e o programa, ma rcam a ambição nem tanco de se integrar
pa1~ag1s~a na França, ver: Dubost, F. "Les paysagistes et l'invention du paysage"
(como os projetos de arquitetura concextualista) quanto, mais radicalmente, de
Soczolo?1e du travai!, n. 4, 1983, pp. 432-45, bem como: Donadieu, P. Le~
manifestar o local." A argumentação apresencada por Maroc converge com a
Paysagzstes, ou les J\1étamorphoses du jardinier. Arlcs/Versailles: Actes Sud/ENSP,
desenvolvida por Michel Corajoud em Le Paysage, c'est là ot't te ciel et la terre se
20? 9· Cf. t~mbé1'.1: Swaffield, S. (ed.). Theory in Landscape Architecture, A Readt1:
toiichent (,'\.rles/Versailles: Acces Sud/ENSP, 20 10). Ver, além disso: Masboungi,
Ph'.}ª~elphrn: ~n1 verstty of Pennsylvania Press, 2002, e, sobretudo: Rosenberg,
A. (dir.) . Penser la vt!le par [e paysage. Paris: Éd. de La Villecte, 2001.
E. L 1mag111anon topographique". Les Carnets du Paysage, n. 8, 2002, pp. 6-24.
58 O gosto do mundo: Exercícios de paisagem As cinco portas da paisagem... 59

É, primeiramente, a consideração do solo. Já nos conscien- do universo urbano. A natureza está na cidade, e está presente,
tizamos do fato de que o solo possui uma espessura, espessura que por um lado na forma de preocupações quanto à qualidade das
não é apenas material, mas também simbólica. O que significa .iµuas e d o a;, por exemplo, por outro lado, na forma de pro!etos
que o solo é o efeito de uma construção histórica, que traz toda de parques e jardins públicos e, enfim, na f~rma de r.eflexoes e
uma superposição de passados e que é, ao mesmo tempo, urna
1 :-.periências relativas à diversidade das essências vegetais que po-
reserva para energias futuras. Em outros termos, o recurso à paisa- lcm ser instaladas nela de forma sustentável. Em outros termos,
gem reflete a conscientização do fato de que o espaço não é uma ( . 1
, 1 cidade é, hoje, um meio natural h íbrido, de um tipo ~amcu_ar .
página cm branco, assemelhando-se mais a um pal impsesto. O t, claro que cada uma dessas três direções s~sc1ta muitas
solo não é uma simples superfície plana que se oferece à ação, mas in Lerrogações, polêmicas, e exige pedidos de escl~r:c1me~to. ,~as
confronta a ação a um conjunto mais ou m enos denso de marcas, permanece 0 fato de que, a cada vez, a problemat~ca p~1sag1sttca
de p egadas, de dobras e de res istências que a ação deve levar em
84
rn ntribui para mudar os questionamentos sobre a 1dent1dade ~os
conta. Os locais têm m emória, por assim dizer. tt:rritórios e 0 seu porvir. É bastante significativo, a esse respe1~0 ,
Encomramos a m esma perspectiva com a reivindicação de que os paisagistas sejam chamados a intervir em ~sp~ços onde estao
uma relação renovada com o território. Com um elemento suple- cm jogo questões de limites e de extrapolação de hm1tes, em espaços
mentar, entretanto, que é o da ampliação da escala de intervenção que são bordas, limiares, passagens, intervalos e onde, a cada vez,
e, mais ainda, da articulação entre as diferentes escalas de inter- surge a questão de um ordenamento possível do e~contro entre o
venção. Falou-se, a esse respeito, de uma volta da geografia. Con- urbano e 0 não urbano, entre o edificado e o não ed1ficado, entre o
• siderar o ]territ?_:1Õ\ é, por exemplo, considerar o espaço urbano Íechado e 0 aberto, entre o mundo humano e o mundo natural e,
na complexidade das suas relações com a organização do espaço talvez mais radicalmente, entre o "dentro" e o ((Ítora"·
rural que o cerca, com a malha das estradas e dos caminhos, com 'É essa perspectiva que é acionada no movimento de câmera
' as circunscrições administrativas, em resumo, é recolocar o espaço de Jean-Luc Godard, em sua Lettre à Freddy B~ache (um film e .?,.,.. -
urbano dentro de alguns conjuntos morfológicos de escalas, de sobre Lausanne que é uma bel íssima lição de paisagem), que faz
temporalidades e lógicas de fun cionamento diversificadas, com os
0 olho deslizar entre o verde do campo, o cinza da cid ade e o azul
quais d eve, entretanto, se coordenar. da água, perm itindo que se juntem, n um mesmo pensamento,
Enfim, a p aisagem é convocada de forma privilegiada quan- corno diz 0 próprio Godard, "a p edra dos ~rquit~tos ,e~ pedra ~os
do se trata de imaginar soluções que permitam o "encontro", por rochedos". Em outros termos, a problemánca pa1sag1st1ca consiste
assim dizer, entre a cidade e a "natureza". As preocupações eco- em pensar a cidade a partir das suas relações e ~a sua i_ntegra?ão
lógicas e ambientais são hoje determinantes, como sabemos. A com 0 solo 0 território, o m eio vivo. Ela permite, mais precisa-
natureza já não significa mais apenas o "outro" da cidade, essa mente, rec~srurar ligações entre a cidade e a s~a localização, entre
coisa verde mais ou menos selvagem que é encontrada no exterior a cidade e 0 seu território, a cidade e o seu meio natural.
Essa problemática da "tecedura" parece, a bem da verdade,
decisiva para d eterminar de forma exata o tipo de aç~o qu: é própria
84
Ver, a esse respeito: Corboz, A. Le Territoire comme palirnpseste et autres essais.
Besançon: L'Imprimeur, 2001. do paisagista. Estamos aí no horizonte de uma racionalidade con-
As cinco porcas da paisagem... 61
60 O gosto do mundo: Exercícios de paisagem

textual. A palavra "contexto", frise-se, remete à ideia de "tecer com". 11·mpo, fazer o inventário (o geógrafo e o naturalista descrevem
( E podemos indagar se o projeto de paisagem não é, justamente, da o mundo) e construir desenhando (a geometria). Inventar é,
- \ orde~ dessa a~ivida~e de "tecedura com". É possível que o projeto ·'º mesmo tempo, encontrar o que já estava aí (o arqueólogo
de paisagem seJa o ac10namento dessa espécie de jurisprudência, que 11
1vcnta a peça que desenterra) e formular algo novo (urna ideia
se preocupa, para atuar no espaço urbano, com as particularidades o t1 um objeto).
da. localização, do território e do meio natural. O pensamento da O projeto de paisagem seria, então, o seguinte: criar algo r
pa1s~gem, para o paisagista, é um pensamento do possível. Mais
que já escava aí. A situação intelectual do paisagista é parado-
x ;1 I. Efetivamente, trata-se de fabricar, elaborar o que já está
precisamente, ele é a busca dos possíveis contidos no real.
presente e que não se vê. Devemos construir para ver o que
Projetar a paisagem está aí, para descobrir o que está aí, devemos traçar para saber
o que queremos e o que queremos desenhar. A lógica do pr~jeto
-. O ~ue pode ser, então, esse pensamento do projeto que se- l- a lógica da obra. O critério não é a verdade (não há projetos
~'ª própr,'º. do paisagista? O que é projetar quando o espaço não verdadeiros e outros falsos), mas há, sim, a pertinência, ou a
e uma pagma em branco ou uma tábula rasa? O que é um pen- conveniência.
samento do projeto que seria, ao mesmo tempo, um pensamento
da preocupação? Formulemos a pergunta, de forma mais brutal O paisagista [escreve Gilles A Tiberghien] percebe a localização
1
num modo dinâmico, como uma forma em porvir. [...) Des-
ainda: como o "princípio esperança" pode ser articulado com o
"princípio responsabilidade"? 85 de então a intenção projetual só tem realidade se ela se exercer
numa localização determinada e, da mesma fo rma, a localização
Poderíamos refazer a pergunta, com a seguinte fórmula:
só tem sentido como tal para a intenção projetual, na medida
proj.etar é im~ginar o real. A fórmula é deliberadamente ambígua.
em que suas próprias restrições tornam-se oportunidade e possi-
Projetar a paisagem seria, ao mesmo tempo, pô-la em imagem ou
bilidade de projetar. A intenção formativa transforma as próprias
representá-la (projeção) e imaginar o que poderia ser ou vir a ser
resistências da localização em possibilidades, oportunidades, in-
(projetação). Essa ambiguidade, ou essa circularidade, é constitu-
centivo e, assim, de certa maneira, só faz prolongar a sua nature-
tiva da própria noção de projeto no pensamento da paisagem. Ela
86
dá ênfase às duas dimensões comidas no ato do projeto: testemu- za (Tiberghien, G. A ., 2005, p. 99).
nhar, de um lado, e modificar, do outro.
Em outros termos, o projeto inventa um território ao re-
Mas essa ambiguid ade encontra-se em outros dois ter-
mos, que também são utilizados nas abordagens de projeto (e presentá-lo e ao descrevê-lo. 87 Entretanto, essa invenção é de na-
em pedagogia): descrever e inventar. Descrever é, ao mesmo
R6 Tibcrghien, G. A. "Fonne et projer''. Les Camets du Paysage, n. 12, 2005, P· 99.
R7 A comparar com 0 que escreve Giuseppe Demartets a respe1~0 da geografLa hu-
81 mana e sua implicação nos projetos de cransformação rermonal, em P1·ogetto tm-
Reconhecemos, aqui, uma alusão às obras simétricas de Bloch, Ernst. Le Principe
esperance. Pans: Gallimard , 1976-1991, 3 v.; e de Jonas, Hans. Le l'rincipe respon- plicito. fl contributo delta geografia umana alte scienze del território. M1lan : Franco
sabi!ité. Paris: Cerf, 1990. Angeli, 2007.
62 . O gosto do mundo: Exercícios de paisagem As cinco porcas da paisagem... 63

tureza singular: .P~i~ o que é inventado já está, ao m esmo tempo, ficiais, certa linha Bexuosa que é como o seu eixo gerador." Essa
presente
A· no terntono, mas como não visto e não sabido at'e encao.
- linha, aliás, pode não ser nenhuma das linhas visíveis da figu ra.
mvenção revela o que já estava aí, ela revela e desvenda um novo Não está mais aqui do que lá [mas] as linhas visíveis da figura
~lano d~ realidade. Mas não teríamos visto essa realidade se não remontam até um centro virtual [que é] o movimento que o olho
tivesse
. .sido .desenhada e pensada. Como se a inteligência h umana não vê, [e até] atrás do próprio movimento algo ainda mais secre-
viesse msenr-se no movimento do mundo para destacar nele cer- co. [... ] [É uma] arte que não destaca os contornos materiais do
~os e!e~1e~tos e reatar as ligações entre esses elementos, como se a modelo, nem os esmaece em prol de um ideal abstrato, mas os
mtel1gencia hu~ana participasse, no fundo, da criação do mun- concentra simplesmente em torno do pensamenco latente (Berg-
~~· Por~ue, se a mv~nção é descritiva, simetricamente, a descrição son, H ., apucl D idi-Huberman, G., 2004, pp. 282-3) .39
e mvem1va. A descnção é a atenção escrupulosa nos sinais daquilo
que está na nossa frente e, mais ainda, ela se esforça em tecer li- Um dos motivos essenciais do que se convencionou cha-
-
"baçoes entre esses sma1s
. . e a captar neles como que uma forma, ou mar de "projeto de paisagem" talvez esteja contido nessa noção de
pelo menos o esboço de uma espécie de acabamento das coisas. "pensamento latente", que ficaria atrás das formas visíveis, nessa
Ao analjsar a obra de Etienne Jules Marey e a questão da re- c-;pécie de onda que se desenvolve ao longo de toda a extensão,
presentação do movimento, Georges Didi-Huberman cita Henri conferindo-lhe, por assim dizer, um sentido. O projeto seria a
Ber~so~ que, por sua vez, remete a Ravaisson, Leonardo da Vinci cartografia dessa onda invisível, desse "centro virtual" dos movi-
e ~nsto.re~es .. Bergson c~nvoca Leonardo "precisamente para mar- mentos do espaço. É essa dança do espaço que é preciso captar,
car a ex1genc1a de uma lmha que não seria a curva do movimento ao desenhá-la.
ou o seu gráfico, mas sim uma curva em movimento, uma linha
dada no ato, no tracejar, na dança da sua própria flexão". ss Conclusão
Bergson:
Os diversos enfoques teóricos que acabam de ser apresen-
Há, no Tratado da pintura de Leonardo da Vinci, um a página tados podem, sem dúvida, estar mais ou menos ligados a certas
(... ]onde é dito que o ser vivo se caracteriza pela linha ondulante disciplinas ou profissões das quais constituiriam, de alguma for-
ou serpenteante, que cada ser tem seu próprio modo de serpen- ma, a palavra de ordem e o paradigma fundador, ou até o ponto
tear, e que o objeto da arre é tornar esse serpenteamento indivi- de honra. Assim, para usar um exemplo fácil, não podemos deixar
dual. "O seg~edo da arte de desenhar é descobrir em cada objeto de observar que os guardiões da primeira porta de entrada para a
a forma particular como se dirige através de toda a sua extensão, paisagem encontram-se mais entre os historiadores e os teóricos
tal como uma onda central [sic] que se desdobra em ondas super- da arte e da literatura, enquanto os ecólogos tendem mais a adorar

88
D'd· H b "
1 1- u errnan, G. La danse de toure chose". In Mannoni, L. e Didi-Huber- 19
Bergson, H. La Pensée et le Mouvant, tal corno citado por G. Didi-Huberrnan cm
rnan, G. Mouvements de !'air. E.-j. Mare11, photoora,,he desfiZ · J p .· . M J "La danse de toute chose", op. cir., pp. 282-3. A frase citada por Bergson é de
2004, PP· 281 -2. J' o·. r u1aes. aus. acu a,
Ravaisson.
64 O gosto do mundo: Exercícios de paisagem As cinco portas da paisagem... 65

a terceira entrada e, para os paisagistas e arquitetos, a direção é lugares onde atua? E como leva em conta, além d isso, a necessá-
obviamente projetual. 11.1 dimensão emancipadora da sua atividade, destinada a trazer
Mas, na realidade, essas diferentes abordagens podem se 11111 "melhor-viver" às populações e aos territórios alvos dos seus
encontrar, ou até se sobrepor, num mesmo amor, e a fortíori nes- projetos? Como, enfim, insere as suas intervenções num contexto
te operador da complexidade que é o paisagista. Efetivamente, ., ocial marcado pela pluralidade, ou até a contradição, das normas
este último está constantemente às voltas com expectativas esté- 1 lc crença e das formas de racionalidade?
11
ticas (inclusive as próprias) e horizontes morais ou políticos, mas As posições teóricas que foram consideradas nas páginas
também com as realidades materiais e estruturais específicas das .1mcriores estabelecem um quadro de reflexões e ações possíveis, <-
localizações em que intervém, e da mesma fo rma com os afetos 111ais do que trazem respostas definitivas para es te conjunto de "
particulares suscitados pela experiência sensível dos lugares em i 11terrogações. Efetivamente, não temos certeza de que seja possí-
que se encontra. vel fazer uma síntese dessas diferentes problemáticas paisagísticas
De modo geral, quem quer que se depare com a questão da 11um pensamento global da paisagem. Mas também não temos
paisagem está confrontado ao problema da coexistência de racio- u .:rreza de que seja necessário.
nalidades paisagísticas diferentes, e ao da rearticulação das funções Tentemos, então, propor outra coisa, isto é, uma unidade
da razão que a modernidade dissociou: racionalidade instrumen- sem síntese ou, mais precisamente, sem totalização. Em outros
tal, que se encarna em modelizações científicas, assim como em termos, vamos aceitar o deslocamento, a passagem de um discur-
dispositivos e saberes técnicos; racionalidade moral, que aponta :-.o a outro discurso, de um ponto de vista a outro ponto de vista.
os valores coletivos e os horizontes éticos e políticos dentro dos Passemos, sem fim, por todas as portas. Afinal, não seria isso a
quais a ação humana se dá um sentido; racionalidade estética, que <.:xperiência paisagística por excelência: a do pensamento aberto?
se encarrega da diversidade das formas possíveis do encontro dos Porque, se a paisagem é portadora de um potencial crítico
corpos e das sensibilidades com o mundo; racionalidade dialógica cm relação ao estado real do mundo, é sem dúvida porque, no
ou comunicacional, que fixa os quadros simbólicos onde se cons- fundo de toda paisagem, reside algo como uma geografia utópica
troem as o rientações e os princípios da vida em comum. e um princípio de esperança que vêm contrabalançar o princípio
O paisagista é o principal envolvido nesse conjunto com- . de responsabilidade, o princípio de cautela, o princípio de conser-
plexo e diversificado de preocupações às quais deve, entretanto, vação. Mas é, sobretudo, porque a própria ideia do fim do mun-
responder e nas quais se inscreve enquanto ator da transforma- do, assim como a do fim das paisagens, é uma ideia contraditória.
ção das realidades territoriais. Como consegue, na elaboração e Um mundo cujo começo e fim não possam mais me representar
na conduta do seu projeto, coordenar as diferentes razões que o passa a ser, para mim, um simples objeto, que posso percorrer
permeiam? Como consegue, por exemplo, coordenar, de um lado, com o olhar ou o pensamento, ou graças a companhias de aviação,
o alcance estratégico das soluções técnicas, que dá às situações de é verdade, mas que não habito mais. É um espetáculo que está na
disfunção espacial para as quais é chamado a intervir e, do ou- minha frente, mas diante do qual fico de fora. Entendemos hoje,
tro, a atenção compreensiva que deve ter com as representações escreve Jean-Luc Nancy,"[ ... ] que um mundo é, ao contrário, um
dos moradores, mas também com as significações e valores dos meio no qual estamos, e que só pode ser apreendido do interior
66 O gosto do mundo: Exercícios de paisagem

[... ].Por isso, podemos dizer que nunca se vê um mundo: estamos li. Geografias aéreas
nele, nele habitamos, o exploramos, estamos nele ou nos perde-
mos nele". 90
O mundo é uma totalidade inacabável, mas também um
meio no qual vivemos. Aprendemos que a paisagem faz parte da
nossa vida, que o horizonte é uma dimensão do nosso estar no É preciso andar para aprender e
mundo. Projetar é, portanto, primeiramente querer esse inacaba- voar para compreender.
mento, e a responsabilidade do projetista, quando se trata da pai- A ponta da pirâmide também é a
sagem, talvez resida nisto: é o portador do inacabamento, isto é, sua base.
das significações em reserva, dos horizontes espaciais e temporais É preciso estar separado para reunir.
dentro mesmo da localização, dos futuros. Um mundo sem hori- Paul Claudel
zontes, isto é, sem paisagem, sem cantos do mundo que chamem
o desejo, simplesmente deixou de ser um mundo. Se a paisagem
é uma obra, no sentido que Hannah Arendc dá a essa palavra, se
ela é a abertura de uma duração e, nesse sentido, de um mundo,
então ela é uma vontade e uma meditação da vida e não da morte, A fotografia de avião e, em primeiro lugar, o olhar aéreo não
uma meditação sobre o nascimento das coisas e não sobre o seu constituem apenas uma nova condição técnica da visão: trazem à
desaparecimento. tona, em toda a sua grandeza e potência, uma d imensão inespera-
da da realidade terrestre.
Esta nova dimensão do real, o ser novo que a fotografia
aérea contribui, literalmente, a revelar na sua existência, e até na
SLta ontologia, é a paisagem. O avião, o olhar que ele permite, e
a focografia que registra esta visão aérea apontam a paisagem -
enquanto tradução e testemunho da maneira como os homens
habitam coletivamente na superfície da Terra - como uma ordem
<le fatos sui generis que deve, então, ser estudada per se.
Convém insistir neste ponto: o olhar aéreo não se contenta
cm assinalar a existência das aparências passageiras do mundo, de-
monstra a consistência dessas aparências e - por assim dizer - sua
estrutura e substancialidade.
A superfície da Terra é uma realidade inteira, uma realidade
90 Nancy, J.-1. "The End of che World". Entrevisca com J.-C. Royoux . 1n Cosmo-
espacial e temporal animada por ritmos que lhe são próprios e,
grarns. New York: Lukas & Sternbecg, 2005, p. 77. Ver, para codo o trecho: "Bouc
du monde". Les Carnets du Paysage, n. 16, 2008. como tal, pode vir a ser objeto de um estudo especial. A aviação e
68 O gosto do mundo: Exercícios de paisagem Geografias aéreas 69

a fotografia aérea foram vivenciadas e imaginadas como condições presa, de fato, entre duas posições simétricas, cada uma tenden-
técnicas de possibilidade para um novo pensamenco, que pode- do a anulá-la ou, em todo caso, impedindo que seja apreendida
mos chamar de ontologia das superfícies. na sua originalidade. Uma, que poderia ser chamada de hipe-
A situação inédita que a aviação introduz já era percebida por robjetivista, para a qual a aparência paisagística nao passa de um
John Brinckerhoff, quando criou Landscape na primavera de 1951: véu mais ou menos transparente que, ao mesmo tempo, traduz
e camufla realidades espaciais, naturais e sociais, consideradas
É primeiramente a partir do céu que a verdadeira relação entre a como mais fundamentais, mais "verdadeiras" e, de qualquer
paisagem natural e a paisagem humana se revela com clareza. [ ... ] forma, verdadeiramente explicativas. A outra, hipersubjetivista,
Quem rem a experiência desse espetáculo [... ] não pode deixar que coloca como axioma que a paisagem não existe senão nas
de ficar fascinado, nem de deslumbrar-se com a variedade de representações e diversas construções mentais que contribuem
maneiras como os homens se conjugam com a natureza. Por que, a codificar culturalmence a relação perceptiva que as sociedades
de um lado, esses trechos de território densamente povoados, mantêm com seu meio ambiente. Em ambos os casos, seja ela
com vilarejos quase ao alcance da visão um do ourro e, de outro, considerada como uma máscara do real ou como uma projeção
esses grandes campos retangulares e algumas casas isoladas? Qual sobre o real, a paisagem não é apontada nem entendida como
a razão dessa rede tão intrincada de estradas, ferrovias e pontes? um ser inteiro, nao passa de uma ilusão da qual devemos escapar
Algumas fazendas são pequenas e primitivas, outras, rodeadas de para reencontrar as verdadeiras causas e significados, estejam es-
uma dúzia de dependências; e outras, tão próximas das vizi nhas tes no mundo ou na mence. Mas, nesses dois casos, o que fica
que formam juntas vilarejos e cidadezinhas. E como dar conta de fora é a própria paisagem, ou seja, a ontologia do visível, ou,
dessas variedades de cidades? [... ] Diante dessas perguntas sur- de forma mais ampla, do sensível, é, mais ainda, o reconheci-
gem respostas bem variadas [mas] o fato de fazer tais perguntas é mento do caráter específico e irredutível da visualidade como
mais importante que o de acharmos uma resposta. O que signi- modo de ser, como dimensão de ser do mundo. Os comentários
fica que, assim como aquele que viaja nos céus, nós adquirimos de François Dagognet poderiam ser aplicados aqui, a contrario,
uma nova perspectiva sobre o mundo humano[ ...). Aonde quer perfeitamente:
que vamos, qualquer que seja a natureza do nosso trabalho, en-
feitamos a aparência da Terra com um desenho vivo, que muda É na superfície, quando não nas próprias ninharias (ou quase),
e, às vezes, é trocado por aquele de uma geração futura Qackson, que o verdadeiro brilha e pode ser "flagrado". Em nenhum outro
J. B., 1951 , p. 4-5). 1
lugar. [ ... ] Convém desconfiar desse abissal q ue nos extravia no
"fundo". Não deixemos o solo, ou seja, a inscrição, o hábitat, a
É preciso insistir nisto: tal abordagem da paisagem nao paisagem, onde se implantam os vivos, os materiais, os dados,
é fácil de mancer, nem mesmo de definir. Está constantemente quando não as próprias sociedades (Dagognct, F, 1977, p. 124).2

1
Jackson, J. B. Landscape, n. 1, primavera l 951, p. 4-5. Jackson comentará o livro 2 Dagognet, E Une épistémologie de /'espace concret. Néogéographie. Paris: Vrin,
de E. A. Gutkind, Our World From the Air, em 1953, cm Landscape. 1977, p. 124.
70 O gosto do mundo: Exercícios de paisagem
Geografias aéreas 71

O avião é uma reabilitação do grande livro do mundo e da Deus colocou-nos na Terra e sob o céu, a fim de que, ora abaixan-
sua escrita: a terra é escrita, geo-grafia. do a face olhássemos a Terra, ora levantando os olhos contemplás-
semos o céu. Olhando para cima e considerando atentamente as
A história da geografia e a vista a voo de pássaro esferas celestes tornamo-nos astrônomos. Abaixando a vista para
a Terra, cuidando de medir a sua extensão, somos geógrafos. Por
A bem da verdade, o papel que Jackson atribui à fotografia meio dessas duas ciências, o homem torna-se digno habitante do
aérea vai inseri-la no quadro mais geral do pensamento geográfi- mundo (Hondius, H., 1639, prefácio ao leitor).4
co de seu tempo, ao qual se refere, aliás, de modo explícito. As-
sim, o artigo evocado acima sobre as paisagens do sudoeste dos De Denys le Périégete (século II d.C.) a Onésime Reclus (La
Estados Unidos inspira-se, claramente, na sua forma e intenção, ferre à voi d'oiseau, 1886) e depois dele, o geógrafo distingue-se pela
no enfoque analítico desenvolvido pelo geógrafo francês Pierre .sua viagem aérea. O atlas da geografia não é apenas o porta-mundo
Deffontaines, então envolvido na elaboração do que se tornaria, cuja fábula nos foi legada pela tradição iconográfica; ele é também
alguns anos mais tarde, um Atlas aérien de ia France. Além dessa aquele que, no fim do século XVI, o cartógrafo flamengo Gerardus
referência precisa, à qual voltaremos, a perspectiva visual adotada Mercator resolveu imitar no início da sua compilação cartográfica,
por Jackson prolonga um movimento mais antigo da geografia, seguindo assim a genealogia reconsuuída por Diodoro da Sicília:
que conheceu, desde o começo do século XX, as virtudes analíti- Atlas, irmão e sucessor de Héspero, rei da Mauritânia, é aquele que
cas e sintéticas da aviação. olha a Terra e os céus do topo de uma montanha.5
O afastamento aéreo do olhar em relação ao solo e seu "re-
A vista aérea como exercício filosófico cuo" em relação às participações concretas nas dobras das coisas
conduzem o olho do geógrafo a um tipo de abstração e lhe con-
Mas a vista aérea é assunto antigo para a geografia. E talvez ferem uma potência de inteligência das realidades terrestres, dos
seja até uma das suas molas imaginárias mais originais. Efetiva- seus tamanhos e formas, que não poderia conseguir se permane-
mente, já perdemos a conta das narrativas e textos teóricos que, cesse preso ao solo, ou seja, aos detalhes do mundo. E o que ele
desde os primeiros desenvolvimentos dessa disciplina, definem a vê dessa altura, o mundo em miniatura, já está organizado como
posição intelectual do geógrafo pelo olhar aéreo que ele reria sobre um mapa, esquematizado. O que significa também, inversamen-
a Terra.·' O cartógrafo Henry Hondius, no início do século XVII, te, que a inteligência cartográfica do mundo terrestre pressupõe
até faz desse olhar a atitude característica do geógrafo: a capacidade de se elevar acima do solo. É um desejo deste tipo
que expressa o viajante e escritor Jan Potocki, em 1784, ao pé das
pirâmides: "Queria muito poder subir ao topo da mais alta das

3
Ver, para uma aprcsenração dessa licerarnra mecageográfi ca: Jacob, C. "Déda- • Hondius, H . Nouveau théâtre du monde... Amsterdã, 1639, prefácio ao leitor.
le géographe. Regard et voyage aériens em Grece". LaLies III. Paris: Presses de 5 Mercator, G. Atlas sive cosmographicae meditationes de fabrica mundi. Duisbo urg,
l'Ecole Normale Supérieure, 1984, pp. 147-64. l 595, prefácio, fO alr.
72 O gosto do mundo: Exercícios de paisagem Geografias aéreas 73

pirâmides, de onde teria visto todo o Egito estendido aos meus A tradição das vistas a voo de pássaro inscreve-se nessa he-
pés como em um mapa geográfico". 6 rança filosófico-literária, como, por exemplo, indicam alguns dos
Essa lenda faz da geografia o prolongamento de uma tradição l'ensamentos de Marco Aurélio, algumas obras de Luciano (em
ao mesmo tempo literária e filosófica, que surgiu na época helênica, particular o Icaroménippe), ou ainda, mais perto de nós, a célebre
em um contexto principalmente estoico e neoplatônico. 7 Dentro Carta, na qual Petrarca descreve a sua ascensão ao monte Ventoux,
dessa tradição, o olhar aéreo que temos sobre o mundo é o elemento cm 1336. Vamos nos limitar aqui a citar Marco Aurélio: "Se, sen-
central de uma experiência espiritual específica, 8 cujo conteúdo já do bruscamente transportado pelos ares, contemplasses de cima as
foi definido dentro de uma reflexão sobre a atividade filosófica. Essa coisas humanas e sua variedade, desprezá-las-ias vend o, ao mesmo
experiência é a da contemplação, mais precisamente, a da Theoria tou Lcmpo, quão vasto é o damimo , . dos hab'trames do ar e do ecer
, ,,.11
Kosmou. Como sabemos, desde Platão e A riscóceles, 9 a contemplação A vista a voo de pássaro é então, primeiramente, uma visão
é o ato fundamental do filósofo na busca da verdade e da serenidade. "teó rica", contemplativa, e reúne em si os problemas prop riamen-
Experiência indissoluvelmente intelectual e sensível, cujo objeto é o Le filosóficos ligados à contemplação do mundo terrestre, ou seja,
Todo, ou seja, o mundo, a totalidade do que é, oferecendo-se, ao cm particular, esta alternância de admiração estético-religiosa e de
mesmo tempo, como espetáculo, ordem e verdade. Porém, não se desdém moral pelo mundo que permeia toda a história do pen-
atinge essa contemplação de imediato, pressupõe-se um conjunto samento ocidental. O olhar aéreo, ao mesmo tempo, glorifica e
de exercícios espirituais que tornem possível a elevação do espírito. denuncia o estado do mundo. E não podemos excluir, a esse res-
Entre esses exercícios está a meditação cosmográfica.10 peito, que o sucesso feito pelos panoramas junto ao público, no
século XIX, e, mais recentemente, pelas exposições de fotografias
6 Porncki, J. Voyage en Turquie et en Egypte fait en L'année 1784. Paris, 1788, carta aéreas mostrando "a Terra a voo de pássaro" se deva, de um lado,
XVIII, pp. 133-4. ao tipo de choque filosófico, ao mesmo tempo estético e moral,
7 Convém sublinhar a importância do Sonho de Cipião, ele Cícero (Da República,

VI), que, por intermédio do Comentdrio que é dado pelo neoplacônico M acró-
que representa a descoberta do estado de um mundo que, repen-
bio, no início do século V, vai impregnar de modo duradouro a cultura europeia. tinamente, virou espetáculo.12 Talvez seja o mesmo tipo de expe-
Cícero conca como Cip ião Emiliano viu aparecer em sonho Cipião, o Africano, riência e motivação que animo u alguns dos fotógrafos que se en-
seu avô adotivo. Ele é transportado para a Via Láctea, de onde pode ver a Terra. 13
gajaram na realização das vistas aéreas no decorrer o século XX.
Esta lhe aparece como um ponto, de maneira que o Império Romano parece ser
de pequena dimensão.
8 Ver, para essa questão, os trabalhos de Pierre H adot: "La Terre vue d'en haut et 11 Marco Aurélio. Pensées, XrI, xxiv, 3 . Tradução de Pierre Hador em La Citadelle
le voyage cosmique". ln Schneider, J. e Léger-Orine, M. Frontieres et conquête intérieitl'e. Paris: Fayard, 1992, p. 272.
spatiale. Dordrecht: Kluwer Academic Publishers, 1988, pp. 31-40 (lembrada 1! Cf. Besse, J.-M. Face au monde: atlas, fttes, géoramas. Paris: Desclée de Brouwcr,
agora cm: Hadot, P. N'oublie pas de vivre. Goethe et la tradirion des exercices spiri- 2003.
tuels. Paris: Alb in Michel, 2008, cap. II); e Hadoc, P. Qu'est-ce que La philosophie u Ver, por exemplo, os seguintes livros: Mittdholzcr, \'qalrer. Alpenjlug. Z~1 rich/
antique?. Paris: Gallimard, 1995, pp. 314 e seg. Lcipi.ig: Orell-Füssli, 1928; Gemer, Georg. La 7erre de L'homme. Vím 11érre11ne:.
9
Platão. Théétete, l 73c- l 76a; Aristóteles. Ethique à Nicomaque, X, 7-9. Zurich: Arlanris, 1975; Garnen, Wil liam. Aerial Photographs. Berkeley: Un1-
10 Tomo a liberdade de remeter a Bessc, J.-M. Les Grandeurs de la Terre. Aspects du versi L")' of Califo rnia Press, 1994; Gowin, Emmet. J. Reynolds (ed .). Chrmgi11g
savoir géographique à la Renaissance. Op. cic. (especialmente o capítulo IX : "La the Earth. Ael'ial photogmphs. New Haven: Yale University Art Gallcry, 2002; e
médirario n géographique"). MacLean, Alex. l'Arpenteu.r du dei. Paris: Texruel, 2003 .
74 O gosto do mundo: Exercícios de paisagem Geografias aéreas 75

Vista aérea e construção perspectiva olhar é grudado ao solo, a cidade está ao longe, mas só vemos dela
DS primeiros prédios, os outros permanecem ocultos. O geometral

Desde o Renascimento, no entanto, a vista a voo de pássaro .1presenta-se, por seu turno, como um plano: a cidade é oferecida
tornou-se mais que uma simples lenda e algo diferente de um numa olhada em sua totalidade, mas como pura superfície, figu-
exercício mental. Sob a forma da construção perspectiva, no caso ra geométrica. Essa representação geometral mostra a cidade em
específico da iconografia urbana e paisagística, ela constituiu uma uma visão vertical, mas não há olhar vivo que possa assumir essa
das técnicas de representação privilegiadas pelos geógrafos. E, nes- "visão". A ubiquidade total que oferece a representação expressa o
se sentido, a vista aérea adquiriu uma dimensão técnica, operató- fato de que esta "cidade" é puro espaço gráfico. Não se mora nesta
ria, tanto no plano da análise quanto no plano do projeto. 14 cidade, e não a vemos, pois o que olhamos é urna grade.
As "vistas" e "retratos" de cidades que vêm sendo realizados A figura utópica da cidade situa-se entre o geometral e o
na Europa desde o fim do século XVI apresentam, a bem da ver- panorama. Entre o plano e a elevação, apresenta-se como uma
dade, duas características. Produzem, de um lado, um "efeito de "cenografia" da cidade, uma visão perspectiva, "oblíqua e mer-
real" ou, mais precisamente, um efeito de evidência absolutamen- gulhante". A vista a voo de pássaro propõe uma imagem total da
te impressionante. Essas imagens, na sua eficácia mimética, colo- cidade, mas a partir de um ponto de vista. É uma vista situada, a
cam literalmente, para retomar a fórmula retórica utilizada pelos partir da qual a cidade parece se entregar em sua aparência, sem
cartógrafos do Renascimento, "sob os olhos" os lugares que retra- nada ocultar. Vista possível em um sentido e, entretanto, vista
tam, como podemos observar de modo exemplar nas compilações impossível. Pois esse ponto de vista total ninguém conseguiu ocu-
reunidas por Georg Braun e Franz Hogenberg (Civitates orbis ter- par, durante muito tempo, entre os homens. Assim, o olho des-
rarum) ou por Matthieu Mérian. Mas, por outro lado, essas vis- te olhar está num lugar que é o outro do ponto de vista, já que
tas tão "vívidas", tão "animadas'', são, no contexto das condições ele é realmente inocupável. É o ponto de um espaço a partir do
técnicas (aeronáuticas) anteriores ao fim do século XVIII, impos- qual homem nenhum pode ver: ponto do não lugar, não fora do
síveis de serem fei tas. Até o século XIX, essas vistas mostram-nos espaço como será o caso com a carta geometral, mas em lugar
as cidades tais como nenhum ser humano pode vê-las realmente. nenhum - utópico. 15
Louis Ma.rio, para nomear essas vistas perspectivas, fala de Mas, se esse "lugar utópico" só se abre para uma visão im-
"figura utópica da cidade". Distingue essa figura utópica de dois possível, é preciso reconhecer, entretanto, que é uma impossibili-
outros tipos de representações: o panorama e o geometral. A vista dade de fato e não de direito, como os futuros aeronautas compro-
panorâmica apresenta-se como uma elevação, uma visão frontal: o varão. E, mais ainda, é preciso observar que, por mais impossível
que seja efetivamente, essa vist a não deixa de ser realizada, já que
14
Besse, J.-M. "Vues de villes et géographie au XVT• siecle: concepts, démarches está figurada em uma imagem. Não vemos realmente Amsterdã,
cognitives, fonctions". ln Pousin F. (dir.). Figures de la ville et construction des Frankfurt ou Veneza como as imagens nos mostram durante mui-
sa~oirs. Paris: CNRS Éditions, 2005, pp. 19-30; Soderstrõm, O. Des images pour to tempo, é verdade, mas as imagens mostram-nas, justamente,
agir. Le visuel en urbanisme. Lausanne: Payot, 2000; Stroffolino, D. La città mi-
surata: tecniche e strumenti di rilevamento nei trattati a stampa dei Cinquecento.
Roma: Salerno Editrice, 1999; Nuti, L. Ritratti di città. Veneza: Marsilio, 1996. 15 Martin, L. Utopiques:jeuxd'espaces. Paris: Minuit, 1973, pp. 264-67.
Geografias aér eas 77
76 O gosto do mundo: Exercícios de paisagem

l lareza e distinção as situações espaciais complexas, como no caso


f~zendo, assi~, dessas cidades experiências visuais possíveis, que
d.ts vistas urbanas, onde permite captar a articulação da trama
circulam nos livros de geografia e em compilações de mapas. Para
vdria, a disposição e o tamanho dos prédios, as hierarquias fun-
ser mais preciso, as imagens são os locais de inscrição e figuração
l ionais do tecido urbano. A vista aérea permite, afinal de contas,
de experiências virtuais. As vistas a voo de pássaro, tanto quanto
dar uma organização espacial coerente a uma diversidade visual
vistas utópicas, são, portanto, vistas virtuais. E é a relação entre a
utopia e a virtualidade que deveria, então, ser elucidada. A ima- quase infinita.
ge_m perspectiva da cidade seria como a inscrição da utopia, ou
sep, do não lugar, em espaços reais, os dos mapas impressos e das I )os balões aos aviões
suas circulações entre os homens; mas essa inscrição seria feita
Mas o olhar lançado do alto sobre as paisagens naturais e
na forma de virtualidade ou, melhor, de um lugar virtual que os
urbanas logo deixa de ser simples tema literário. Ele se transfor-
homens logo poderão ocupar. Em oucras palavras, para usar aqui
ma, graças ao progresso da aerostação, no horizonte de uma ex-
a expressão já famosa de Michel Foucault, as representações paisa-
periência possível. 18 O surgimento quase simultâneo dos primei-
gísticas e urbanas ditas "a voo de pássaro" são hererotopias. 16
ros voos de balão (Montgolfier, 1783) e dos primeiros panoramas
Sublinhemos, entretanto, desde já, essa separação das fun-
picmrais (Barker, 1787) vai constituir um elemento determinante
ções e dos impactos cognitivos assim estabelecida, desde o Re-
no desenvolvimento das vistas de cidades "a voo de pássaro" du-
n~scimento, entre os diferentes tipos de imagens e de pontos de
rante o século XIX. Nas grandes metrópoles ocidentais, como
vista sobre o mundo: é entre a vista frontal, a vista vertical e a
Londres, Paris ou Berlim, nos edifícios especialmente construídos
vista oblíqua que o olhar sobre a paisagem vai se distribuir, desde
para acolhê-las, nas exposições universais, ou simplesmente nas
então. Mais precisamente ainda, é sobre a verticalidade e a pers-
páginas dos jornais de grande tiragem, as vistas panorâmicas vão
pectiva que o conhecimento aéreo do mundo poderá se basear, de
se multiplicar, apresentando, na maioria das vezes, as cidades e as
forma diferencial.
paisagens como poderíamos descobri-las da nacela de um balão.
De qualquer forma, a vista a voo de pássaro está inserida,
Assim, na Exposição Universal de 1855, Victor Navlet apresen-
desde aquela época, no universo das fórmulas gráficas disponíveis
para as representações geográficas e paisagísticas. Situada precisa-
acima, o que é uma produção da parte da perspectiva chamada de catóptrica, que
me~t~ no encontro das exigências da topografia e as da cenografia,
representa as coisas baixas vistas de cima." (Mercuregéogmphique ou le Cuide du
é utilizada, sob o nome de vista catóptrica, 17 para representar com
curieux descartes géographiq11es, 1678, p. 8).
is Para uma introdução a essa história, citaremos os trabalhos de Marie Thébaud-
-Sorger, " La conquête de J'air, les dimcnsions d'une découvcrte" , Di.x-huitiemc
16
Foucaul t, M. "Des espaces autres". Ditr etécrits. Paris: Gallimard, 1994, v. 4 PP· siecle, n. 31, 1999: "Science et eschétique", pp. 159-77; e, sobretudo: L'Air du
752-62. ' temps. L'aérostation: savoirs et pratiques à la fin du XVII!' siecle (1783-1785) (tese
17 A. Lubin: "O o_utro modo da Topografia se faz por elevação, ou vista perspectiva,
do EHESS, 2004). Ver também: Parrochia, D. L'Homme volant. Philosophie dr:
a qL'.al ~ de dois tipos e que os entalhadores chamam de vista de um ral lugar, l'aémnautique et des techniques de navigation. Seyssel: Champ Vallon, 2003; 'Jºis-
em 1ta!tano v~duta, em espanhol vista, em alemão Angesicht, em inglês the sight. sandier, G. Histoire des ballons et des atronai;tes célàbl"es. Paris: Launctte, 1900;
Ou o desenhista coloca-se em uma planície ou, ainda, em um lugar muito alto,
Figuier, L. Les Aérostats. Paris: Jouvet, 1882.
o que chamamos de vista de pássaro, como os pássaros veem as praças ao voar
78 O gosto do mundo: Exercícios de paisagem
Geografias aéreas 79

ta, em formato gigantesco, uma Vue généraLe de Paris depuis un grade que desenha em seguida, após um longo trabalho de levan-
baLLon, que foi uma das atrações mais visitadas. Da mesma forma, t.1mentos e esboços de campo, as elevações dos blocos de casas,
o editor-litógrafo parisiense Jules Arnom e o arquiteto-desenhista dos jardins, das praças e dos principais prédios da cidade, preten-
Alfred Guesdon lançam no mercado, a partir de 1845 e até mea- dendo estar em um balão ou, então, em um lugar bem alto. Ape-
dos dos anos 1850, um grande número de litografias apresentando ~ar do hiper-realismo das vistas aéreas de Guesdon que "se supõe"
"vistas" ou "excursões" aéreas, em coletâneas dedicadas à França estar num balão, as imagens não conseguem fazer-nos esquecer de
(Voyage aérien à travers la France), à Espanha, à Suíça e à Itália. 19 que ainda são construções do desenho (Fig. 1).
Entretanto, apesar da conjunção dos meios aeronáuticos e Entretanto, a fotografia aérea já apareceu e produziu seus
das técnicas da fotografia que começam a tornar viável a apresen- <.Jeitos no imaginário urbano e paisagístico. 21 Em outubro de
tação de "vistas diretas" sobre a cidade, é necessário constatar que 18 5 8, Nadar registra uma patente para um novo sistema de fo-
as vistas a voo de pássaro permanecem, durante muito tempo, tografia aeroestática, aplicável ao levantamento dos planos topo-
construções ao mesmo tempo geométricas e picturais. T ai como gráficos, hidrográficos e cadastrais. A nacela do balão é coberta
descrito na necrologia de Guesdon, publicada por Charles Ma- por uma tenda que forma uma câmara escura. O aparelho foto-
rionneau, em 1876, na Revue de Bretagne et de Vendée, o método gráfico fica preso no giroscópio para permanecer vertical. Uma
gráfico ucilizado pelo desenhista para elaborar as vistas aéreas das fotografia, hoje em dia desaparecida, do vale da Bievre é feita no
cidades que ele representa é mais ou menos idêntico àquele que inverno de 1858, logo seguida de uma vista de Boston, por James
ucilizavam, dois ou três séculos antes, os criadores do gênero. 2º Wallace Black, em 1860. Em junho de 1868, Nadar, que tomou
Da mesma forma como faziam no século XVI, Alfred Gues- lugar no balão preso de Henri G iffard, registra vistas do Arco do
don baseia-se num plano "geometral", que ele transforma em uma T riunfo e das avenidas vizinhas. São as primeiras vistas de cidades
vista perspectiva colocando bem alto a linha do horizonte. É nessa efetivamente obtidas a partir do céu. Em junho de 1879, Pierre
T riboulet consegue tirar as primeiras fotos aéreas de Paris a partir
19
As pranchas são, às vezes, ligadas e acompanhadas de um texco descritivo. Como de um balão livre. Utilizam-se também outros suportes além dos
n? caso de L'Italie à vol d'oiseau ou Histoire et description sommaire des principales balões, soltos ou presos, para levar câmeras: dirigíveis, pombos,
v:ttes de c~tte contrée... (Hauser, A. Paris, 1852), em que as quarenta "grandes e também pipas, graças ao dispositivo inventado em 1888 por
vmas gerais desenhadas da natureza por A. Guesdon" seguem-se a um texco his-
v?
tóri.c~-descriti sobre o país e suas principais cidades de umas quarema páginas, Arthur Bamt. 22
redigido por Hippolyte Eriennez. Contudo, é com o surgimento da aviação que a fotografia
20 "[ ) . d
··· com a aiu a de um plano geometral de uma exatidão rigorosa, e que co- aérea vai verdadeiramente entrar nos hábitos visuais do grande
locava em perspectiva estabelecendo bem alto sua linha de horizonte, o artista público. Em 1908, Louis Paul Bonvillain faz a primeira fotografia
conseguia desenhar, nesse tabuleiro de xadrez tão bem preparado, a elevação das
casas e dos monumencos da cidade, supondo-se estar ou em um balão, uu em um
ponto m~ito alto; o que lhe permitia mergulhar com o olhar nas ruas, nos jardins
e nos pátios, e representar não somente a vista geral e topográfica de uma cidade, 21 Ver, principalmente: Gervais, T. "Un basculement du regard. Les déburs de la
mas ainda todos os prédios e bairros. Daí suas vistas a cavaleiro, ou melhor, a photographie aérienne, 1855-1914". Études photographiques, n. 9, mai 200 1, PP·
voo de pássaro." (Marionneau, C. ''.Alfred Guesdon. Architecte, dessinateur et 89-108.
lithographe". Revue de Bretagne et de Vendée, juin 1876, p. 3.) i2 Barut, A. La Photographie aérienne par mfvolant. Paris: Gauthier-Yillars, 1890.
80 O gosto do mundo: Exercícios de paisagem Geografia s aéreas 81

a partir de um avião, o de Wilbur Wright, que sobrevoa Le Mans. Por sua vez, os geógrafos logo vão perceber o interesse que
Os usos militares, antes e sobretudo durante a Primeira Guer- pode representar para sua disciplina este novo objeto de explora-
ra Mundial, tanto da fotografia quanto do aeroplano, permitirão \·'º' interpretação e comunicação que é a fotografia aérea. Antes
melhoramentos significativos da qualidade descritiva dos docu- 111csmo de subir em um avião, já tinham desenvolvido por sua
mentos obtidos. Por ser dirigido, o avião permite que o fotógrafo 1 onta a utilização da fotografia. Nos laboratórios de geografia,

se coloque na altura desejada, com uma estabilidade impossível desde os anos 1900, encontramos, ao lado dos mapas e outros
~uporres da informação geográfica, coleções de fotografias. Por
24
com o balão livre ou a pipa. Os melhoramentos próprios da téc-
nica fotográfica em si, por exemplo, na aplicação da fotografia iniciativa do geógrafo alemão Albrecht Pende, o Congresso lnter-
estereoscópica à fotografia aérea consagrarão logo sua van tagem 11acional de Geografia de Washington, em 1904, prevê a realiza-
definitiva sobre todas as outras formas de vistas aéreas. 1;ão de um Atlas photographique des formes du relief terrestre, que
teve um espécime divulgado em 1911. O projeto, que não foi
Os geógrafos e a vista de avião ,1diante por causa do conflito de 1914, reuniu de qualquer forma
umas vinte contribuições, sob a direção de Emanuel de Martonne
As aplicações cartográficas da fotografia aérea não passaram e de Jean Brunhes. Este último, convencido do que ele chama
despercebidas para Nadar: de "potência demonscrariva da fotografia", pode ser considerado
como o verdadeiro promotor do uso dessa ferramenta dentro da
25
Esta obra gigantesca do registro fu ndiário, [... ] com seu exército geografia, tanto para a pesquisa como para a educação. A partir
de engenheiros, topógrafos, agrimensores, medidores, desenhis- de 1912, Jean Brunhes será o organizador do projeto dos Archives
tas, calculistas, exigiu mais de um bilhão e mais de meio século de la planete, idealizado por Albert Kahn, com o objetivo de, gra-
de traba lho - para ser malfeita. Este ano, hoje, posso, sozinho, ças à fotografia e ao cinema, "fixar de uma vez por todas aspectos,
acabá-la em trinta dias, e perfeitamente. Um bom aeróstato pre- práticas e modos da atividade humana cujo desaparecimento fa-
so, um bom aparelho fotográfico, eis minhas únicas armas. [.. .] tal é apenas questão de tempo" .26 As primeiras fotografias aéreas
Eu que toda a vida nutri um ódio pela geometria [... ], produzo são utilizadas nos manuais de ensino geográfico, na França, nos
com a rapidez do pensamento planos mais fiéis que os de Cas- anos 1920. Emmanuel de Martonne sublinha o interesse dessas
sini, mais perfeitos que os mapas do Exército! (Nadar, F., 1998,
pp. 25-6). 23 " Para urna análise detalhada dos procedimentos de visualização utilizados pelos
geógrafos frente à paisagem, ver o artigo de Robic, M.-C. "Imerroger le paysage?
Cenquête de terrain, sa signification dans la géographie urbaine modemc (1900-
1950)". ln Blanckaen, C. Le Terrain des sciences humaines. lnstructions et enquêtes
23
Nadar, F. Quandj'étais photographe. Arles: Actes Sud, 1998 (1900], pp. 25-6. (XVIIJ:-XX' siecle). Paris: LHannartan, 1996, pp. 357-88.
Nadar eira um pouco adiante (pp. 40-43) a "fa ncasia científica" de M. An- •s Ver os testemunhos e análises reunidos no catálogo Autour du monde: Jean
draud que, na sua obra Une derniere annexe au palais de !'Industrie, publicada Brunhes, regards d'un géographe, regards de la géographie. Bolonha: Museu Alben-
por ocasião da Exposição Universal de 1855, elabora uma hipótese do mesmo Kahn, 1993.
tipo ("Topografia no daguerreótipo") . Ver: Gervais, T. "Un basculemenr du zG Carta de Emmanuel de M argerie para Jean Brunhes, 26 de janeiro de 1912,
regard". Op. cit., pp. 89-90. eirada em Autour du monde, op. cit., p. 181 .
82 O gosto do mundo: Exercícios de paisagem Geografias aéreas 83

fotografias, em 1924, em uma série de álbuns fotográficos consa- Quanto mais as pessoas tiverem a oportunidade de olhar a Terra
grados às regiões da França, editados por Payot: de tão alto, mais este novo jeito de ver irá se somar, de modo
intenso e universal, aos meios de ver habituais. Da mesma forma
Recorremos a uma fonte totalmente nova, impresumível há al- que, para o homem, a velocidade crescente dos transportes trans-
guns anos: as vistas de avião, que foram tiradas, em sua maio- formou o mundo, apagou a fronteira entre os objetos e reforçou
ria, especialmente com nossas indicações pela Companhia Aérea a unidade cósmica, não está excluído que a visão aérea modifique
Francesa ou pelos Serviços de Aviação Militar. Há nelas, ao que o olhar coletivo (Breuer, R., 1926).29
parece, documentos de um valor extraordinário para os geógrafos.
Em seu livro dedicado ao "estilo documentário" na foto-
Vistas aéreas oblíquas, mais pitorescas, ou ainda vistas ver- 1-'.rafia alemã e americana no período entre guerras, Olivier Lu-
ticais, inseridas por Jean Brunhes desde a terceira edição de sua gon sublinhou as relações de influências recíprocas que tiveram
Géographie humaine, em 1925: a fotografia já entrou nas práticas .1 fotografia e a geografia no fim dos anos 1920 na Alemanha.

de pesquisa dos geógrafos.27 Mas os geógrafos não são os únicos l•:Ie lembra o sucesso popular alcançado pelas coleções intituladas
a subir em aviões a fim de observar a paisagem. Desde meados Orbis terrarum, Das Gesichtder Landschaftetc., que se apresentam
dos anos 1920, os arqueólogos entenderam os ganhos que repre- como atlas fotográficos, "verdadeiras obras de geografia didática,
sentam em sua disciplina. Entre os pioneiros desta, destaca-se a redigidas por especialistas, mas nas quais as fotografias substituem
figura do jesuíta Antoine Poidebard, tanto pelos resultados possi- os mapas e os esquemas " .30 "Apren demos " , acrescenta e1" e, a ana-
bilitados pelas várias horas de voo (uma primeira campanha, entre lisar, à luz de belas e grandes fotos classificadas em categorias de-
1925 e 1932, lhe permite estabelecer o traçado do limes imperial talhadas, a forma dos rios, o traçado dos caminhos, o recorte dos
na Síria, de Bosra a Palmira e ao Tigre), quanto pelas melhorias campos e o desenho das aglomerações",31
que ele introduz nos materiais e técnicas de fotografia. 28 E, de fato, é a fotografia aérea que será mais frequentemente
Essa situação não é exclusiva da França. A geografia e a ar- solicitada nessas obras, constituindo, assim, "o verdadeiro traço de
queologia solicitam da mesma forma os recursos aeronáuticos na união entre a nova geografia e a fotografia de arte documentária".
Inglaterra, na Itália e na Alemanha. A aviação possibilita a for-
mação de uma sensibilidade coletiva nova, sublinha, em 1926, o .. , Breuer, R. "Welt von oben. Zu den Aero-Luftbild-Flugaufnahmcn". Das Kunstblatt,
escritor e jornalista alemão Robert Breuer: Berlin, 1926, v. 10, craduzido em: Lugon, O. la Photographie en Allemagn.e.
Anthologie de textes (1919-1339). Nlmes: Jacqueline C hambon, 1997, p. 129.
"' Lugon, O. Le Style tÚJcumentaire. D'Auguste Sander à Walker Evans. 1920-1945.
Paris: Macula, 2001, pp.2 14-40. Não seria excessivo sublinhar o papel exercido
27
"A fotografia aérea oferece u ma ajuda nova e poderosa no <::litudo da geografia pela grande imprensa ilustrada na difusão dos novos códigos visuais induzidos
física", sublinha Willis T. Lee em "Airplanes and Gcography", The Geographical pela fotografia aérea. O jornal L'llfustratíon, que acolhe, por exemplo, as imagens
Revíew, v. 19, 1920, p. 310. O artigo apresenta-se principalmente como uma de Léon Gimpel, ocupa lugar importante. Ver o catá logo da exposição no Museu
avaliação das contribuições da fotografia aérea à cartografia. d'Orsay: Léon Cimpel (1873-1348), les audaces d'im photographe. Paris: Musée
28
Ver: Chevallier, R. l'Avion à la découverte du passé. Paris: Fayard, 1964, cap. V, d'Orsay, 2008.
para uma evocação da figura de Poidebard. 11
Lugon, O. Le Sty!e documentaire. Op. cit., p. 236.
84 O gosto do mundo: Exercícios de paisagem Geografias aéreas BS

Mais precisamente, a fotografia aérea, na Alemanha e nos Escadas primeiras análises de fotografias aéreas que servirão de profLU1da
Unidos, é apresentada como a principal condição de possibilidade 111spiração para Jackson quando da criação de Landscape.
de uma "nova geografia" entendida como ciência das paisagens.
Marvin Mikesell lembrará isso: "A paisagem do geógrafo é bem Os objetos do olhar aéreo
diferente daquelas do pintor, do poeta ou do escritor. [... ] Na ver-
dade, chegaram a dizer que era possível relacionar o modo como a ( /m mundo geográfico novo
geografia definiu a paisagem com a fotografia aérea, tanto oblíqua
quanto vertical". 32 Foi com o vocabulário do êxtase filosófico tradicional que
Esse movimento global, e conjunto, dos aviadores, geógra- Nadar relatou as impressões que se apossavam dele quando da sua
fos e fotógrafos levou à realização, no fim do ano de 1938, em wbida em balão:
Paris, por iniciativa da União Sindical das Indústrias Aeronáu-
ticas, de um "I Congresso de Geografia Aérea", cujos trabalhos, Livre, calmo, como que aspirado pelas imensidades silenciosas
entretanto, só estarão acessíveis após a Segunda Guerra M undial. do espaço hospitaleiro, benfazejo, onde nenhuma força h umana,
O papel da vista aérea na produção de conhecimentos sobre a nenhuma potência do mal pode aringi-lo, parece que o homem
paisagem fica aí definitivamente estabelecido. O avião já é consi- se sente vivendo realmente pela primeira vez, gozando em uma
derado pelos principais geógrafos da época como o "observatório plenitude até então desconhecida de todo o bem-estar da sua
elevado" que o geógrafo pode movimentar ao seu gosto em lar- saúde mental e física. Enfim, respira, livre de codas as ligações
gura e almra. 33 Emmanuel de Martonne será encarregado pelo com essa humanidade que acaba de desaparecer do seu olhar, tão
Congresso de redigir um manual de geografia aérea, que será edi- pequena nas suas maiores obras .. . (Nadar, F., op. cit., p. 22). 36
tado em 1948. 34 Nesse mesmo ano, foi publicada a obra intitu-
lada Découverte aérienne du monde, sob a direção de Paul-Henry Ao contrário, é com a vontade de restituir a transformação
Chombart de Lauwe, 35 etnólogo, piloto de caça durante a guerra, radical das formas da experiência visual provocada pelo voo de
e a Revue de Géographie Humaine et d'Ethnologie, fundada por avião que os futuristas italianos irão representar a paisagem, inje-
Pierre Oeffoncaines e André Leroi-Gourhan, apresenta as suas tando nela, por assim dizer, objetos e conteúdos inéditos. O avião
torna necessário o surgimento de novo vocabulário, suscetível de
32
Mikesell, M. W "Landscape". International Encyclopedia ofrhe Social Sciences. v. expressar a dissociação, a aceleração, a supermultiplicação, a de-
8. New York: Crowell Collier M acmillan, 1968, eirado em: English, P. Ward e formação das perspectivas visuais provocadas pelos movimentos
Mayfield, R. C. (cds.). Man, Space, andEnvironment. Oxford: Oxford Univcrsiry
Prcss, 1972, p. 13. do aparelho: a ascensão, a descida, a espiral, a velocidade e a lenti-
33
Demangeon, A. "Conrribution de l'aviarion à l'élude <les rerroirs cr des paysages dão que se sucedem brutalmente. É essa mutação da sensibilidade
ruraux". ln /" Congrés de Géographie Aérienne - comptes rendus des séances. Paris, visual que os futuristas italianos tentarão representar:
1938, p. 267.
34
Marconne, E. de. Géographie aérienne. Paris: Albin Michel, 1948.
3
~ Lauwe, P.-H. Chombart de (dir.). Découverte aérienne du monde. Paris: Horizons
de Prance, 1948 (p refácio de E. de Marronne). -~(, Nadar, F. Quandj'étais photographe. Op . cit., p. 22 .
86 O gosto do mundo: Exercícios de paisagem Geografias aéreas 87

O aeroplano, que desliza, empina, o u embica em espiral, cri:i Os geógrafos do pós-guerra se~ão_ ta_mbém sensíveis à rup-
um observatório ideal hipersensível, suspenso em todo no in- 1m a que introduz a aviação na sua d1sc1plma. Se é ver_dade: con-
finito e dinamizado pela consciência do movimento que muda loirne indicamos acima, que a vista aérea pode ser mscnta ~o
o va lor e o ritmo dos minutos e segundos de visão-sensação. O prnlongamento das preocupações de longo praz?~ d~ geografia,
tempo e o espaço são pulverizados pela construção deslumbran- inta destacar que 0 avião produz, para a consc1encia dos anos
te da Terra que foge a toda velocidade sob o aeroplano imóvel 1'>'>0 e 1960, transformações consideráveis na relação que os g~­
(sic) (Balia et ai., 1929).37 i'i r rafos vão ter com a superfície da Terra. Testemunhos, mais
11 ,,'riados concordam neste ponto: o avião é. um choqu~ , . e uma

1 çvolução da sensibilidade espacial e dos obJetos geo~~af1~os. O


Com u ma intenção equivalente, Gerrrude Stein relaciona a
geometria das linhas que descobre na superfície da Terra a partir .ivião modifica profundamente a natureza das expene~c1as ge-
do avião com as linhas e formas inventadas por Picasso, Braque ou oµ,ráficas. Já conhecemos as famosas obser vações de Samt-Exu-
Masson. Picasso sentiu instintivamente, escreve ela, que "a Terra
péry antes da guerra:
do século XX não era mais aquela do século XIX". O avião e a
pintura, cada um em seu gênero, mas de maneira concom itante, O avião é uma máquina, sem dúvida, mas que instrumento de
provocam no começo do século XX uma perturbação dos hábitos aná lise! Este insuumenro nos fez descobrir a verdadeira face
visuais e das medidas espaciais.38 da Terra. De fato, as estradas nos enganaram durante séculos.
Éramos parecidos com essa soberana que desejava visitar s~us
37
Balia, Benedetta, Dottori, Fillia, Marinetti, Prampolini, Somenzi, Tato. Mani- súditos e saber se eles gostavam do reinado. Seus cortesãos, a fim
feste de l'aéropeinture, 1929. A versão definitiva do Manifeste encontra-se em: de ludibriá-la, colocaram no caminho alguns cenários alegres e
Lista, G. F1tt11risme, manifestes, proclamations, documents. Lausanne: CAge
pagaram fi gura ntes para d ançar. Fora do tênue fio condutor,
<l'Homme, 1973, pp. 224-7. Ver, igualm ente: Lista, G . "Vue aàienne et aé-
ropeinru re fu ru riste: une mécaphysique de l'espace". ln Mousseigne, A. (d ir.). ela não viu nada de seu reino, e nem soube que nos campos
La Conquête de l'air. Une aventure dans l'art du XX' siecle. Tou louse: Les Abat- ao longe aqueles que morriam de fome a amaldiço~vam. Ass,im
coirs, 2002, pp. 89-115 . caminhávamos ao longo das estradas sinuosas (Saint-Exupery,
.JH Scein, G. Picasso. Paris: Christian Bourgois, 1978 (1938), p. 91: "Quando es-

tava na América, eu fazia pela p rimeira vez frequentes viagens de avião. Vi ali, A. de, 1939). 39
sobre a Terra, as linhas misturadas de Picasso indo, voltando, desenvolvendo-se
e destruindo-se; vi as soluções simplificadas de Braque, a linha errante de Mas-
son. Sim, eu vi tudo isso e, mais uma vez, entendi que um criador é sempre um · / 191 ")e Moholy-Nagy Ver, sobre o assunto: Lodder, C. "Male-
Avzon en voi, em .J " • 1
concemporâneo. Ames de todos, ele conhece o que os oucros ainda não sabem. vitch , Supremarism and Aerial Phowgraphy". Hístory ofPhotograph)\ v. 28, n. '
Ele escá no século XX, num século que vê a Terra como nunca a vimos [...]".
2004, PP· 25-40. . . d 939 54 G crude
Pa_ra uma abo rdagem geral dessas mutações cultu rais das experiências perceptí- J9 S · Ex é A de Terre des hommes. Pans: G allnnar , 1 ' P· · er
ame- up ry, · · I d ·- N - é uesrna
veis na virada do século, ver: Kern, S. The Culture ofTime and Space, 1880-1918. Stein também distingue a paisagem do aucomóve e a o avlaO. ao a 1 . ,
Cambridge, Mass./Londres: Harvard Universiry Press, 2003 (especialmence as Terra que é visca a partir desses dois veículos: "O aucomóvel é o fim do progi css~
PP· 131 e scg.). Sabemos, por oucro lado, que exisce uma relação profunda enue na Terra. Obviamente, é mais rápido, mas as paisagens vistas de um auro~óv~
a visão geométrica que torna possível a aviação e os universos gráficos inéditos ~ as mesmas v1·sras de um carro ' de um trem, de uma charrete
sao . ou andan
) o.
desenvolvidos por artistas como Malevicch (que intitulou uma obra supremacista Terra vista de um avião é totalmente diferente" (Picasso . Op. clt., P· 90 ·
Geografias aér eas 89
88 O gosto do mundo: Exercícios de paisagem

ima do solo a uma altitude média de m il a dois mil e quinhen-


.1t
Come~t~n.do essa página, e remetendo, ao mesmo tempo,
ao volume dmg1do por Paul-Henry Chombarc de Lauwe, Eric tos mecros, o aviador, o fotógrafo, o geógrafo (que são, às vezes,
Dardel, trabalhando então na elaboração de uma filosofia da o-e- uma mesma pessoa) descobrem um mundo verdadeiramente
ografiia, escreve: "E, [... ] toda a nossa imagem do mundo terrestre
t:i novo. Não é apenas o mesmo mundo visto de outra forma, é ou-
1ro mundo. O avião revela ao geógrafo a existência de um objeto
que é questionada, o nosso repertório de formas e de aspectos, 0
nosso sentido dos limites humanos" .4o 11ovo, que somente ele permite observar.
A consciência da novidade, tanto no objeto quanto na vi-
A altitude [.. .] torna in teligíveis e belas, ao reduzi-las, formas
são, se expressa de forma ainda mais viva nestas linhas de Pierre
inatin gíveis ou medíocres em sua dimensão real. [...] Somente a
Deffomaines:
visão aérea vertical permite ver as coisas "de frente", logo, em sua
fo rma verdadeira, porque estamos então totalmente separados da
A transfo rmação mais surpreendente provocada pela viagem de
sua superfície. E é por isso que temos essa impressão de um qua-
avião não é apenas uma revolução da velocid ade, m as tam bém
dro que vai se formando à medida que vamos su bindo. A har-
uma revolução d e visão. O avião realizou uma m udança total
monia que, no chão, só percebíamos nos relevos, na escultura em
na forma de ver a Terra, uma mudança maior gue aquela que
três dim ensões, está agora emanando até das linhas e superfícies,
os primeiros navegadores registraram quando viram a Terra do
cujo desenho plano escapava à nossa vista curta de Terráqueos
mar pela primeira vez. O avião substituiu a visão linear e rente 42
(Marthelot, P, in Lauwe, P.-H. Chombart de, op. cit., p. 149).
ao chão por uma visão em superfície ou até em volume; trouxe,
assim, um novo ponto de vista sobre a Terra e representa, na
Como escreve, aliás , Pierre Deffo ntaines , o aviador-fotógra-
verdade, o modo de conhecimento mais maravilhoso, ao ponto
fo-geógrafo passa para "outro planeta". Como os navegadores dos
de a Terra aparecer, vista de avião, como um novo planeta. Para
tempos amigos, e melhor que eles, ele vê a T erra pela primeira
todos aqueles gue estão assombrados pelo "apenas a Terra" e já
vez. É uma nova época que se inaugura. Uma nova medida do
estão como [que] desiludidos pela quantidade de "déjà vu", exis-
te ali um campo novo capaz de reavivar as nossas curiosidades mundo, no tempo e no espaço.
embotadas, um renovamento da curiosidade (Deffonraines, P. e
Delamarre, M. Jean -Brunhes, 1955, p. 7) .41 Espaços e tempos nas paisagens

Se o avião e as fotografias aéreas voltam a fazer o mundo


Existe uma potência de encantamento na vista de avião, um
deslumbramento da sensibilidade, um encantamento que as fo- cantar, também contribuem para definir melhor a paisagem e
tografias aéreas vão cristalizar e repercutir. Voando lentamente para revelar o que ela traz para os geógrafos. Estes, rapidamente,
puseram a aviação a serviço da descrição e da interpretação das

40
Dardcl , E. L'Homme et la Terre. Op. cit., p. 35.
42 Martbelot, P "La Terre et la vie" . ln L'luwe, P-H. Chombart de (di r.). Décou11a1e
~ 1 Deffontaines, P. e Delamarre, M. Jean-Brunhes. " Nouvelles visions de la Terre
par avion''. ln Atlas aérien de la France. Paris: Gallimard, l955, t. I, p. 7. aérienne du monde. Op. cit., p. 149.
90 O gosto do mundo: Exerclcios de paisagem Geografias aéreas 9 1

formas do relevo. É toda a geomorfologia e também a hidrogra- A visão linear rente ao chão é uma causa de deformações cons-
fia _que ela contribuiu a redesenhar. Da mesma forma, as missões tantes da observação e, não raro, até causa de contrassenso. A
aéreas permitiram redesenhar os mapas do mundo vivo e, em par- imagem verdadeira da "região", muitas vezes, fica obliterada de-
ticular, do tapete vegetal. mais pela comparcimentagem do itinerário. De Lyon a Marselha,
A geografia humana, enfim, encontrou nessas missões aé- a via férrea, assim como a estrada, não dão nenhuma ideia da
reas instrumentos de observação e de compreensão da paisagem realidade do corredor do Ródano. A viagem terra a terra confi-
que logo se mostraram essenciais, em dois aspectos. O primeiro na o viajante em um dos elementos da paisagem: vales, flores-
é o da compreensão das estruturas elementares do espaço. O tas ou colos; a compartimentagem é até particularmente grave
segundo, o da sua profundidade temporal e, por assim dizer, nas reo-iões montanhosas. O avião, ao contrário, dá a visão total.
o
arqueológica. Ele permite entender a composição de um país, ou seja, de uma
A vista de avião possui, efetivamente, uma virtude quase car- paisagem, revelando os diferentes elementos que a constituem,
tográfica, ou até geométrica.43 Puxa o olhar fora da linearidade das ~ combin ação d esses elementos, sua disciplina. O corredor do
observações de terreno, elevando-o a uma espécie de tratamento R ódano mostra-se com seus alargamencos e suas portas sucessi-
sintético e estrutural dos conjuntos territoriais que ele está conside- vas. Graças à síntese que realiza, o avião permite reconhecer as
rando. A fotografia aérea fixa as formas dos parcelamentos rurais, causalidades, pe rceber a dominante da paisagem: aqui o ven to
o entrelaçamento das vias de circulação, a geometria das cidades, ou o rio; acolá, a floresta, a irrigação, a represa (D effomaines, P.
45
os traçados que resultam dos usos e divisões sociais do espaço. Mas e Delamarre, M. Jean-Brunhes, op. cit., p. 8) .
faz aparecer, também, sob o olhar, formas outras além das usuais.
A fotografia, neste sentido, é uma ferramenta de aprendizagem do O avião é uma espécie de atlas em ação. 46 Seu movimento
espaço e de suas morfologias mais eficaz que a caminhada terres- :teima da paisagem permite medir com o olhar as formas terri-
tre, por mais esclarecida que seja. Pierre Deffontaines assinala, com LOriais e os limites dessas formas, as descontinuidades espaciais,
muita ênfase, ao evocar o corredor do Ródano: 44 os usos diferenciados do espaço que se justapõem no mundo. O
avião e a fotografia aérea são os motores de uma inteligência com-
parativa, que reúne e opõe. Inteligência propriamente espacial,
43
Cf. já em Nadar: "Sob nós, [...] a Terra desenrola-se em um imenso tapete sem
que possibilita uma verdadeira "geografia geral'', em que se expri-
bordas, sem começo nem fim, de cores variadas onde a dominan te é o verde em
rodas as suas nuances como em rodas as suas combinações. Os campos cm tabu-
leiros irregulares parecem com essas "cobertas" de peças multicoloridas, porém
harmônicas, colocadas juntas pela agulha paciente da costureira" (Quandj'étais 1' Deffontaines, P. e Delamarre, M. Jcan-Brunhes. "Nouvelles visions de la Terre
photographe. Op. cit., p. 22). Robert Breuer destaca também o teor geométrico par avion''. Op. cit., p. 8.
da vista aérea: "Vemos retângulos e quadrados, círculos e ovais colocados uns ao 11' Pierre Mendes Prancc, sobrevoando o sul de Paris, em outubro de 1943, para
lado dos outros e separados por longas linhas retas ou cun·as" ("Wclr von oben". uma missão de bombardeio, usa o mesmo vocabulário do conde Potocki no Egi-
Op. cit., p. 128-9). Breuer tenta estabelecer uma comparação entre esse "ritmo to: "O panorama destaca-se como um imenso mapa estendido aos nossos pés.
fa ntástico das linhas e superfícies, das manchas escuras e claras" e "a pintura ab- Aqui, a estrada de Paris a Arpajon; ali a via férrea periférica''. ( CEuvres completes.
soluta desses últimos tempos", de Paul Klee. Paris: Gallimard, 1984, t. l, p. 762; citado cm: Desportes, M. Paysages en moewe-
44 Em francês, rhodanien: relativo ao vale do rio europeu Ródano (N. da R.).
ment. Op. cit., p. 383) .
92 O gosto do mundo: Exercícios de paisagem Geografias aéreas 93

me, como frisa Lucien Febvre, "a preocupação dos grandes enca- levando a investigação um pouco mais adiante, reconhecemos os
deamentos, a de apresentar todos os aspectos simultaneamente, 1L·stos das civilizações históricas que a precederam. 49
das tão variadas regiões que temos de entender".47 A fotografia aérea é o instrumento que restitui rranspar-ência às
Mas as virtudes cognitivas da aviação também são relativas camadas de história humana que marcaram a paisagem e foram se su-
ao tempo da paisagem. A fotografia aérea dá suas letras de nobreza perpondo, e assim permite ao geógrafo, ao arqueólogo, ao historiador,
à metáfora muitíssimo batida do palimpsesto, à qual ela atribui reencontrar e captar, em um mesmo olhar e um mesmo pensamento,
seu verdadeiro locus epistemológico: o de uma reflexão sobre a a verdadeira profundidade temporal da paisagem (Fig. 2).
imagem. Como foi dito acima, a fotografia aérea tornou-se, nos A arqueologia aérea ensina-nos também algo mais acerca da
anos 1920, uma ferramenta da arqueologia e da geografia históri- história das relações do ser humano e do solo, tais como expressas
ca. Graças a ela, foi possível revelar as pegadas invisíveis de civili- na paisagem: essa história é assunto de caráter geológico. 50 A pai-
zações hoje desaparecidas que foram definidas po r "seus métodos sagem é como uma superposição de camadas de atividades huma-
de implantação sobre o solo, o modo de agrupamento do seu há- nas que se acumularam como em um folheado, segundo ritmos e
bitat, às vezes pelo seu modo de dispor os locais de cultos.48 Existe direções bem variáveis. E a fotografia aérea restit ui, como acaba-
toda uma geografia das ruínas, que é, ames de tudo, uma maneira mos de dizer, um tipo de transparência a essas camadas de história
de considerar a paisagem como uma "escrita monumental" onde superpostas na paisagem, permitindo ao olho do observador apre-
se fixou, de forma mais ou menos durável, a história dos grupos endê-las ao mesmo tempo, na atualidade de um olhar único, o que
humanos que lá viveram. é dirigido para a fotografia. Tudo se passa como se os momentos
A superfície da Terra não é apenas o suporte das constru- sucessivos da história estivessem expostos, colocados uns ao lado
ções dos homens de hoje. Examinando-a atentamente vemos rea- dos outros, uma awalidade comum, não tirados da história, mas
parecer, como que recobertas por um papel transparente, as mar- como que cristalizados na própria historicidade, e todos tão atuais
cas de homens das primeiras idades da História. T oman10s mais uns quanto os ourros, dentro e com as suas proveniências temporais
consciência, no exame de documentos aéreos, das camadas suces- diferentes, porque apreendidos todos juntos no tempo do instan-
sivas das civilizações que se sucederam, sendo umas tributárias das tâneo fotográfico. Finalmente, aprendemos que o território não
outras. Sob as estruturas agrícolas recentes distinguimos os limites é tábula rasa. Ao contrário, ele nos coloca em relação, no mesmo
de antigas divisões correspondentes a outro sistema social. Abaixo tempo, isto é, o nosso, porque ele contém todas essas camadas sob a
do lugar de destaque, ainda hoje visitado como centro de peregri- aparência de vestígios, com épocas históricas e formas de existên-
nação, encontramos os indícios de uma civilização galo-romana e, cia muito diferentes em significações e potências.

19 Ibid., p. 277. Ver, igualmente: Gerster, G. Le Passé au présent. Les sites archéolo-
giques de /'humanité en images aériennes. Arles: Actes Sud, 2007 (incrodução de
47
Febvre, L. Resenha do livro de Dcffontaincs, P. e Delamarre, M. Jean-Brunhes. Ch. Trumpler).
Atlas aérien de la France, op. cit., em Annales ESC, ano 11 , n. 2, 1956, p. 261. 'º "Os restos do homem são tão misturados à Terra que fazem um com ela e sua
48
Lauwe, P.-H. Chombart de. "La photographi e aérienne er les civilisarions dispa- história se roma a deles" (Lauwe, P.-H. C hombarc de. "La photographie aéricnne
rues". ln Découverte aétienne du monde. Op. cit., p. 249. ec les civilisations disparues". ln Découverte aérienne du monde. Op. cit., p. 245).
94 O gosto do mundo: Exercícios de paisagem Geografias aéreas 95

Vt'sta de avião, a condição humana ruínas, aqui e acolá, arrisca-se a florescer (Sainc-Exupéry, A. de.,
op. cit., pp. 54-5)Y
Entretanto, existe mais que um simples interesse de conhe-
cimento nessa geografia humana que a aviação proporciona e ou- A retidão das estradas aéreas traz consigo uma transforma-
tra coisa, cuja potência deve ser medida. Ver o mundo a partir das ~·:10 filosófica do olhar. A outra medida do mundo está aí: o avião
"estradas sinuosas'', escreve Sainr-Exupéry, é ter acesso a um mun- .1 travessa, pega a diagonal, atrapalha os hábitos terrestres do olhar,
do humanizado e, sobretudo, é ter acesso a uma terra acolhedora corta e, porranto, pega a paisagem, por assim dizer, ao avesso, re-
verdejante. Mas esse olhar - e a familiaridade que veicula - é u~ vda a sua parte de contingência e de acaso, ou seja, a historicidade
erro de perspectiva. É preciso toda a potência de "desrealização" ou até a irrecusável fragilidade da existência humana. Le Corbu-
do avião, é preciso o olhar aéreo e sua "crueldade" para revelar a .~ier observa, em 1955, durante um voo para Tóq uio : "Poderíamos
anormalidade ou, mais precisamente, a contingência das paisagens escrever uma Condition humaine com base no voo de avião". 52
que, literalmente falando, o avião descobre. Porque, na verdade, a É, de fato, o que os geógrafos do pós-guerra, principalmente,
Terra não é acolhedora por natureza ou por qualquer dom divino, vão concluir da aviação, a propósito da paisagem: ela é uma
a Terra não é humana, e a paisagem, meio do homem, é o que l ondição humana, ou seja, ao mesmo tempo uma condição de

vem se colocar acima dessa indiferença. A paisagem vista do avião possibilidade e uma expressão da humanidade numa base não
é uma camada de humanidade colocada, para o melhor ou para o humana. A fotografia aérea repercute este conjunto disperso de
pior, sobre uma base anônima. restos e manchas de humanidade na superfície do planeta, suas es-
pessuras, ou seja, tudo o que define, em certo sentido, a habitação
[As estradas) evitam as terras estéreis, as pedras, as areias, elas humana como dimensão da superfície da Terra. Ela demonstra,
acompanham as necessidades do homem e vão de fonte em fon- além disso, que a paisagem é o produto sempre contingente do
te. [... ] Assim, enganados por suas inflexões como por mentiras encontro entre os homens e a natureza, e ela traduz este encon-
indulgentes; tendo beirado, durante nossas viagens, ramas terras Lro . O avião justifica as definições "fisionômicas" da paisagem,
bem irrigadas, ramos pomares, ramas pradarias, por muito tem- como sistema de pegadas e marcas colocadas pelos homens sobre
po ficamos embelezando a imagem de nossa prisão. Acreditamos Ltm solo mais ou m enos relutante, que acompanharam constan-

que este planeta fosse úmido e carinhoso. Mas a nossa visão agu- Lemente, nos geógrafos dos anos 1950 e 1960, seu interesse pela
çou-se e fizemos um progresso cruel. Com o avião, aprendemos fotografia. Em outros termos, a fotografia de avião permitiu dar
a linha reta. Mal decolamos, largamos os caminhos que descem um fundamento demonstrativo, uma prova visual, à sua afirma-
para as manjedouras e os estábulos ou serpenteiam de cidade em ção segundo a qual a paisagem é essencialmente "cultural". P ierre
cidade. Libertos para sempre das servidões bem-amadas, livres da
necessidade das fontes, zarpamos para os nossos objetivos lon-
gínquos. Somente então, do alto de nossas trajetórias retilíneas,
"
1
Sainr-Exupéry, A. de. Terre des hommes. Op. cit., pp. 54-5.
descobrimos o fundamento essencial, a base de pedras, areia e "2 Le Corbusier. Caderno J 37. ln Carnets, t. III (1954-1957) . Paris: Dessain et
sal, onde a vida, às vezes, como um pouco de musgo no meio das l olra, 1981.
96 O gosto do mundo: Exercicios de paisagem Geografias aér eas 97

Deffontaines expressa isso em linhas reveladoras, que poderiam mantêm entre si. Em outras palavras, se há consenso hoje em dia
ter sido, até certo ponto, escritas por John Brinckerhoff Jackson: l'm torno da ideia de que o estado de uma paisagem informa bas-

1ante sobre o estado da sociedade que contribuiu para produzi-la,

A descoberra de todo o quadro físico da natureza é surpreendente o "estado" em questão comporta tanto elementos sociais e políti-
de avião; entretanto, é mais o papel do homem que a visão aérea cos quanto técnicos e culturais.
torna particularmente sensível. Uma paisagem vista de avião é Essa nova complexidade conquistada pela paisagem não
essencialmente um quadro da labuta dos homens, do penar dos questiona, entretanto, a afirmação inicial, que não foi modificada
homens num pedaço de terra. Um país aparece como um quadro no princípio: a paisagem é um grande documento humano coloca-
de esforço humano, o testemunho de uma verdadeira epopeia hu- do numa base que a ignora, e é preciso aprender a ler este arquivo.
mana, onde podemos medir em que ponto da sua batalha contra A fotografia de avião deve, por conseguinte, ser rrazida ao quadro
a narureza estão os homens. Uma paisagem é essencial mente uma mais geral da reflexão dos geógrafos sobre a natureza, as formas e a
fabricação do homem e entendemos porque ela se personifica em dinâmica dos objeros paisagísticos, assim como sobre a forma como
um nome de região, Beauce, Bric, Puisaye, Morvan. Descobri- o olhar e a imagem permitem acessá-las e entendê-las.
mos a surpreendente variedade dos dispositivos dos homens, de-
pendendo dos países. Cada país é vestido com uma roupagem Retificar o olhar
humana particular, habitado e trabalhado pelo homem de uma
paisagem, aquele chamado justamente de paysan (Deffontaines, Contudo, não é fácil dar um sentido ao que olhamos do
P. e D elam arre, M. Jean-Brunhes, op. cit., p. 7).53 céu. Todos se lembram deste trecho de A Esperança, de André
Malraux, em que o camponês embarcado em um avião pelas
É verdade q ue o pensamento contemporâneo da paisagem, tropas republicanas não reconhece mais o país que vê, entretan-
e o próprio Jackson, talvez não pudessem se comentar em con- to, todos os dias, mas a partir do solo. 54 U ma das preocupações
siderar a paisagem sob o ângulo exclusivo das relações homem/ cons tantes das administrações militares, desde a Primeira Guerra
natureza e, m enos ainda, da "batalha" que confrontaria homem Mundial, fo i fornecer aos aviadores códigos de leitura das formas,
e natureza. Jackson, em particular, mas também muitos protago- para que pudessem identificar no terreno a localização e a disposi-
nistas da reflexão paisagística de hoje, acrescentaram e articularam ção das tropas inimigas, mas também para facilitar a interpretação
a esta concepção "fabricadora" e "culruralista" da paisagem outra das forngrafias tiradas durante os voos.55
concepção, de ordem sociopolítica. Uma paisagem não conta so- Da mesma maneira, o problema da educação do olhar fo-
mente a história das relações entre o homem e a natureza, deve- tográfico foi observado muito cedo pelos geógrafos. Jean Brunhes
mos concluir, mas também a história das relações que os homens

14 Malraux, A. L'Espoir. Paris: Gallimard, 1996 (1937], pp. 549-50.


53 11
Dcffonraines, P. e Delam arre, M. Jean-Brunhes. "Nouvelles visions de la 1erre Ver, por exem plo, os diagramas e comentários reunidos no número 36 de Gun-
par avion". Op. cit., p. 7. (Em francês, paysan (camponês) e paJ•sage [êrn a mesma fire. A Journal o/First World War History: "Illust racions to Accompany Notes on
etimologia. [N. do T.]) the l nterpretation of Aeroplane Photographs" (sem dara) .
98 O gosto do mundo: Exercícios de paisagem Geografias aér eas 99

foi o primeiro que teve de obrigar os operadores que o acom- l111ais uma observação, e além dela, uma compreensão da paisagem
panhavam a desviar o olhar, e a lente, das cenas pitorescas e ex- podem ser, segundo ele, acionadas. Interpretam principalmente o
cepcionais para as quais costumavam apontar, para se virar para papel, como acabamos de dizer, de uma codificação epistemoló-
os fatos geograficamente mais significativos - mas menos espeta- gica do olhar geográfico, inclusive do olhar aéreo. Mas podemos
culares de se fotografar -, como a "vida comum dos habitantes, nos perguntar se, em um contexto particular (e tão exemplar, ao
sua atividade, sua habitação, os animais que eles criavam, seja em mesmo tempo) da paisagem americana contemporânea, e certa-
casa, seja no campo, os trabalhos efetuados ao lo ngo das diversas 111ente com o utros meios técnicos e outros temas de inventário, a
estações ... ". 56 A vista aérea, quando direcionada pela intenção de L'Xploração apaixonada à qual se entrega hoje Alex MacLean não
conhecimento próprio do geógrafo, pressupõe então o que pode- l'srá na herança do program a intelectual que acaba de ser evocado,
mos chamar de classificação ou codificação dos fatos de superfície, ,1ssim como, aliás, Georg Gester, em outro registro. 58
cujas principais direções foram, aliás, dadas por Jean Brunhes, na É nesta perspectiva, sem dúvida, que é preciso ler este sur-
sua Géographie humaine. preendente elogio da planfcie tecido por Pierre Deffontaines em
"cu Atlas aérien, que parece ter sido escrito na margem de certas
Elevemos-nos [escreve ele, em 1906 (antes, portanto, de poder focos de MacLean:
recorrer à vista de avião)] [... ] em balão a algumas cen tenas de
metros acima do solo; e, com a men te livre de tudo que sabemos A descoberta mais sensacional da nova visão aérea, a mais ines-
dos homens, tentemos ver e notar os fatos essenciais da geografia perada, é a revelação das planícies. Na montanha [... ], o avião só
humana com os mesmos olhos e o mesmo olhar que nos permi- faz reforçar o q ue já podemos entrever de mu icos mirantes [...];é
tem descob rir e distinguir os traços morfológicos, topográficos, apenas uma melhoria dos pontos de vista; nas planícies, o avião
hidrográficos da superfície terrestre. Desse observatório supos to, revolucio na a nossa visão. Nessas áreas, a paisagem é feita essen-
o que percebemos? Ou, melhor ainda, q uais são os fatos huma- óalmente de terra e de campos; rente ao chão, só percebemos o
nos que uma placa fotográfica poderia gravar? (Brunhes,]., jun. horizonte circu nvizinho que se perde rapidamente no céu imen-
1906, p p. 5 59-60).57 so e onipotente. Com o avião, por assi m dizer, retornamos a Ter-
ra; a planície toma o lugar do céu, o tapete dos campos impõe-se
São seis os fatos de superfície propriamente humanos consi- mostrando rodas as suas fo rmas, todas as suas geometrias, todas
derados por Brunhes: as casas, as estradas, os campos e jardins, os as suas bordas em um cubismo natural extraordinário; o campo
animais domésticos, as minas e as carreiras, as devastações vegetais vira o grande personagem e, de cena forma, toma o lugar do rele-
e animais. São "fatos típicos", ou seja, comuns, em função dos vo: cores diversas dos solos, do preto ao branco, do vermelho ao

8
' Gerster, G. Le Pain et !e sel. Vues aériennes. Paris: Archaud, 1980. Ver, igualmenre:
56
Delamarre, Marie Jean-Brunhes, eirada em Autour du monde: jean Brunhes, re- Corner, J. e MacLean, A. Táking Measures. Across the Americrm Landscape. New
gards d'un géogrn.phe, regards de la géographie. Op. cit., p. 207. H aven and London: Yale Universicy Press, 1996; ___. L'Arpenteur du ciel
57
Brunhes, J. "Une géograph ie nouvelle. La géographie h u1naine". Revue des deux Op. cic.; _ _ _. Over. Visions aériennes de l'American Wày o/Life: une absurdité
mondes, juin 1906, pp. 559-60. éco!ogique. Paris: Dominique Carré/ La Découverte, 2008.
100 O gosto do mundo: Exercícios de paisagem
Geografias aéreas 1O1

amarelo, passando por todos os acetinados e todos os furta-cores, Denuncia a cidade! Denuncia aqueles que dirigem a cidade. Te-
cores mais múltiplas ainda do tapete vegetal que compõem o mos agora, com o avião, a prova gravada pela placa fotográfica
amarelo do trigo maduro, o verde das beterrabas, o vermelho dos de que estamos certos em querer mudar as coisas da arquitetura
trevos, o azul-violeta das couves. O avião nos traz uma espécie de e do urbanismo.
reabilitação das planícies (Deffontaines, P. , 1962, p. 7). 59
O avião explora o mundo real e dá testemunho dele. Mas
De qualquer forma, se toda paisagem, segundo a sentença também o denuncia e, às vezes, permite imaginar outra figura
de Vittorio Gregotti, é o encontro de uma geografia e de uma para ele.
geometria, 60 se, em outros termos, a paisagem é simultaneamente
a inscrição das morfologias e das dinâmicas da cultura naquelas,
primordiais, da base terrestre e, inversamente, a presença dos mo-
vimentos da Terra no espaço-tempo dos homens, então podemos
entender o tipo de desafio intelectual, e talvez prático, que se de-
dica à descrição desses grafismos, dessas escrituras que se dese-
nham na superfície da Terra, nos campos e nas cidades, quando
sobrevoados de avião. Esses grandes desenhos, q ue se estendem no
solo e que a fotografia capta, revelam com bastante clareza, digam
o que disserem, certo estado do mundo e do seu porvir. Sabemos,
é bem verdade, que uma paisagem pode mentir e esconder. Mas
o avião possui também o poder revelador daquele que detecta os
segredos mais bem guardados. Já em 1935, Le Corbusier escrevia:
11

Desejamos mudar alguma coisa no mundo presente. Pois a vista


de pássaro nos deu o espetáculo das nossas cidades e do país
que as cerca e esse espetáculo é indigno. [...] O avião denuncia!

59 Deffonraines, P. Atlas aérien. Paris: Galümard , 1962, e. IV, p. 7.


60 Gregotti, V. Le Territoire de l'architecture. Paris: L'Equerre, 1982, p. 62. É signi-
fi cante que Gregotti aborde este tema na ocasião de uma evocação da Yisra aérea:
"Se nos colocarmos a uma distância muito grande (por exemplo, em vista aérea),
as coisas perdem seus caracteres disrintiYos enquanto aumentam nossas possibili-
dades de conhecer suas estruturas; as coisas ficam reduzidas a pontos, fragmentos;
o conjunto dos pontos e fragmcnros constitui a trama da disrribu ição no solo, os
modos e direções segundo os quais foi insriru ída, as linh as de margem [... ]".
Ili. A paisagem, entre a política e o vernacular

Se a vista aérea vem, às vezes, acompanhada de um senso


da relatividade das coisas humanas, ou até de humildade frente
à pequenez das coisas humanas diante da escala do universo, ela
pode, inversamente, engendrar um sentimento de potência e uma
vontade de dominação. Esta Terra agora pequena, miniaturizada
de certa forma, torna-se uma espécie de brinquedo que podemos
manipular ao nosso bel-prazer.

Parece [escreveu Nadar] que uma inesgotável caixa de brinque-


dos acaba de ser espalhada em profusão sobre a Terra, a cerra que
Swift nos desvendou em Lilliput, como se todas as fábricas de
Karlsruhe tivessem esvaziado seus estoques. Brinquedinhos es-
sas casinhas de telhado vermelho, brinquedinhos essa igreja, essa
cadeia, essa cidadela [...]. Brinquedinho muito mais divertido
ainda essa nesga de estrada de ferro que nos manda lá de baixo o
gricinho agudo do apito (Nadar, F., op. cir., p. 23). 1

Vista do céu, a superfície da Terra torna-se como um play-


ground para a imaginação e a vontade humanas.
Pelo menos é este tipo de lição que deveremos tirar da vista
de pássaro que o avião nos propiciou, escreve Le Corbusier:

1 Nadar, F. Quand j'étais photographe. Op. cit., p. 23.


104 O gosto do mundo: Exercícios de paisagem A paisagem, entre a política e o vernacular 105

Logo, felizmente, deveremos levar em coma o que a vista de pás- São o sentido e o alcance dessa cultura visual da altura que
saro implica de nobreza, grandeza e estilo a adotar no traçado <levemos então questionar, tanto do ponto de vista das questões
das cidades. [... ] A imagem clara das cidades - o plano - será políticas envo lvidas quanto dos seus efeitos para o pensamento
expressa no solo em uma ordem inteiramente nova. [... ] Uma sobre a paisagem. O que significa o fato de ver do alto, e de longe,
nova escala de grandeza estimulará a arquitetura da cidade e o a paisagem?
porte dos empreendimentos. A era das grandes obras de bem
público será coroada por um sucesso luminoso (Le Corbusier, Uma história política da paisagem?
op. cit., pp. 135-54).2
A paisagem moderna e suas dimensões políticas
Ass im, o olhar aéreo não é apenas aquele do filósofo, do
poeta ou do geógrafo, que buscam ler as linhas do mundo e daí Por muito tempo, a paisagem foi identificada, no Oci-
tirar lições: é, além disso, portador de uma racionalidade própria, dente, como "a parte do te rr itório que se oferece à vista" ou,
sinóptica e sintética, que leva, insensível ou conscientemente, à ainda, com a imagem visual que temos de um território quan-
intervenção, à transformação. No século XX, uma cultura visu- do estamos diante dele, de preferência em lugar alto. Essa de-
al da altura instala-se e desenvolve-se; também é uma cultura da finição, que talvez tenha sido originalmente uma invenção de
ação sobre o espaço, uma culmra da organização que enxerga os pintor,s é atualmente considerada em relação com um universo
territórios em grande escala, os pensa, e os representa também, na de práticas perceptivas e mentais que n ão podem mais ser limi-
forma do plano. 3 A aviação, a vista a voo de pássaro são elementos tadas à esfera da arte.
constitutivos da implantação de certo pensamento do espaço e da De fato, ficou estabelecido, hoje em dia, de modo geral,
paisagem urbana. 4 que essa compreensão da paisagem como "vista obtida a partir
de um lugar alto" corresponde a uma produção ideológica da
2
Le Corbusier. Sur les quatre routes. Op. cit., pp. 135-54. modernidade. 6 A paisagem, mais exatamente a paisagem clássi-
J As relações entre a vista aérea e o ordenamento territorial são antigas, na França
ca, foi instituída, construída, como um a relação imaginária com
especialmente, lembra Vincent Guigueno, que descreve Olivier Gu icha rd, então
d iretor da Datar, sobrevoando o cerritório nacional de helicóptero. Ver: Guigueno, a natureza por meio da qual e graças à q ual, como indicou Ray-
V. "La Fra nce vue du sol. Une histoire de la Mission photographique de la D atar mond W illiams, e, depois dele, Denis Cosgrove, algumas classes
(1983-1989)". Etttdes photogrnphiques, n. 18, 2006, p. 99. Sobre as relações entre sociais (a aristocracia e a burguesia) puderam representar o seu
a visão aérea e o ordenamento da paisagem, ver: Cornet, J. e MacLean, A. Taking
Measures. Op. cir., cap. II: "Aerial Reprcsentation and the Making of Landscape".
James Comer evoca Le Corbusier, mas também Ian McHarg (Design UJith Nature. ' O ponto está em discussão. Ver neste livro, no capítulo L
Garden City, NY: Nacional History Press, 1969). "Podemos dizer que um dos papéis principais interpretados pela paisagem no
4
Sobre o assunto, ver: Strates. Matériaux pour la recherche en sciences sociales, n. 13, processo social é de ordem ideológica, servindo de suporte a um conjunto de
2007: "Paysage urbain. Genese, représemarions, enjeux contemporains" (F. Pou- ideias e valores, a h ipóteses incontestes sobre a maneira como uma sociedade é ou
sin e H. Janniere, dir.), assim como os trabalhos reunidos no programa de pes- deveria ser organizada": Duncan, J. S. e Duncan , N. G. "(Re)lire le paysage". In
quisa "La vue aéricnne, enjeux pour les savoirs et pratiques de l'espace" (CNRS/ Staszak, J.-F. (di r.) . Géographies anglo-saxonnes. Tendances contemporaines. Paris:
British Academy, F. Pousin e M . Dorrian, dir.), a ser publicado. Belin, 2001, p. 22 1.
106 O gosto do mundo: Exercícios de paisagem A paisagem, entre a política e o vernacular 107

mundo e a si mesmas, assim como o seu papel na sociedade.7 rt:sume essas análises é a de "paisagem imperial", forjada por Tho-
Essa relação paisagística com o mundo, na verdade, acompa- mas Mitchell, e frequentemente citada hoje em dia. 9
nhou o surgimento e o desenvolvimento do capitalismo, ou seja, De fato, poderíamos convocar vários exemplos para apoiar
a transformação do territ6rio ao mesmo tempo em mercadoria e t:ssas teses. Poderíamos, ainda, acrescentar duas outras caracterís-
espetáculo a ser contemplado visualme~te do exterior, do alto de ticas: a paisagem moderna foi integrada, de um lado, à imagística
um mirante, por exemplo. A paisagem, mais precisamente, ser- militar e, de outro, à imagística política de tipo nacionalista, par-
viu ideologicamente para "naturalizar" a dimensão desigual das ticularmente no século XIX. Acerca do primeiro ponto, podemos
relações sociais, ocultando a realidade dos processos hist6ricos e lembrar o comentário de Yves Lacoste: a observação das paisagens
conflitantes que a produziram. serve, em primeiro lugar, para fazer a guerra. Lacostc destaca a
A sociologia dos sentidos e a antropologia cultural contem- proximidade entre o visível e o mirdvel. Acrescenta que"[ ... ] den-
porâneas acrescentaram três características suplementares a esta tre os lugares de onde podemos ver uma paisagem, aquele de onde
instituição capitalista que seria a cultura paisagística: 8 é uma cul- a vista é a mais bela é quase sempre o mais interessante em um
tura que coloca o olho e a visão no centro do processo de percep- raciocínio tático militar [... ]: são os lugares de onde os espaços
ção da paisagem, em detrimento dos outros sentidos; é uma cul- ocultos são os mais reduzidos" . 10
tura principalmente europeia, ocidental, branca, em detrimento A paisagem é, antes de tudo, um espaço submetido a uma
de outros modelos culturais de relação com a paisagem; enfim, é vontade de controle, visual e estratégico. Desde o século XVII
uma cultura essencialmente masculina. A expressão que melhor pelo menos, a paisagem aparece, nos retratos dos chefes de guerra
(generais ou monarcas), como um campo de ação que é obser-
vado do alto, em recuo. O general mantém-se a certa distância
da batalha, que pode assim analisar com segurança, para intervir
7
Williams, R. The Country and the City. London: Charro & Windus, 1973; Cos-
taticamente dando ordens apropriadas aos mensageiros que o cer-
grove, D. Social Formation and Symbolic Landscape. Op. cir; _ _ _. The Palla- cam. A paisagem abre-se ao olhar do militar como um gigantesco
dian Landscape. Geographical Change and lts Cultural Representations in Sixteenth- mapa, um teatro da ação que ele busca dominar. Do ponto de
Century !taly. Op. cit.; Cosgrove. D. e Daniels, S. The lconography ofLandscape.
vista do combatente que está no terreno, a paisagem deve ter uma
Essays on the Symbolic Representation, Design and Use ofPast Environments. Op.
cir.; Duncan, J. S. e Ley, D. Place/Culture/Representation. Londres: Roucledge, aparência bem difereme. 11
1993.
8
Não podemos subestimar o impacto dos trabalhos de Edward W. Said nesta
história. Além da sua obra clássica (L'Orientalisme. Paris: Le Seuil, 2005 [ 1978]),
ver: Culture et lmpérialisme. Paris: Fayard, 2000 (especialmente o capírulo II). q Ver, em p articular, as nove reses apresentadas no início do arrigo "Imperial
Ver, também, em B. Bender e M. Winer (eds.), Contested Landscapes. Movement, Landscape". ln Mirchell, W J. T (ed.). Landscape and Power. Op. cit., pp. 5-34.
10
Exile and Place, op. cir., a incrodução de Barbara Bendcr, pp. 1-18, assim como Lacos[e, Y. Pa)1sages politiques. Paris: Livre de Poche, 1990, p. 63. (Biblio cssais).
11
M. Dorrian e G. Rose (eds.), Deterritorializations... Revisioning Landscapes and Warnke, M. Politische Landschaft. Zur Kunstgeschichte der Natur. Mun icb : Carl
Pofitics (Londres: Black Dog, 2003). Sobre a questão dos sen ridos, ver, por exem- Hanscr Ycrlag, 1992 (o capítulo III foi traduzido em Les Carnets du Pnysnge,
plo, os textos reunidos em: Drobn ick, J. (ed.). The Smeil Culture Reader. Oxford n. 5, 2000, pp. 45-61) . Para a percepção da paisagem pelo combatente das
and New York: Berg, 2006. uíncheiras durante a Primeira Guerra Mundial, ver o artigo sem inal de Kurt
108 O gosto do mundo: Exercícios de paisagem
A paisagem. entre a polltica e o vernacular 109

Com o desenvolvimento dos Estados-nações, durante o sé- Entretanto, de um ponto de vista estritamente historio-
culo XIX, a paisagem foi progressivamente integrada no universo gráfico, a operação paisagística é, sem dúvida, um pouco mais
das reivindicações nacionais. A paisagem foi muito mobilizada, na complexa. Sem questionar a perspectiva de pesquisa que acaba-
época moderna, na França, na Alemanha, e em quase toda a Euro- mos de evocar em grandes linhas, podemos tentar con siderá-la
pa, mas também nos Estados Unidos, para encarnar a identidade de modo mais detalhado e, sobretudo, de forma um pouco mais
histórica e geográfica da nação. Quase sempre representada sob a dialética. Os trabalhos recentes dos historiadores da paisagem
aparência de uma paisagem natural, esperava-se dela que expres- que recorrem a outros arquivos além dos da história da arte, em
sasse de forma exemplar os valores culturais, morais e políticos da particula r aqueles de Kenneth Olwig sobre a história da noção
nação em dado momento da sua história. Chegou até a ser pen- de paisagem na Europa do noroeste, são excremamente úteis a
sada, às vezes, como a manifestação mais exemplar de um projeto esse respeito. 13 Trabalhando sobre um corpus de textos jurídicos
político. Assim, no seu relato do Salão de 1864, Jules Castagnary, e políticos oriundos da Dinamarca e do norte da Alemanha,
aludindo à escola de Barbizon, desenvolve longamente a questão Kenneth Olwig estabeleceu que as palavras landskab (Dinamar-
da pintura de paisagem, colocando-a na perspectiva do que ele ca), Landschaft (Alemanha), landschap (Holanda) e landskip (In-
mesmo chama de "renascimento". Um renascimento que é, ao glaterra), que pertencem à mesma família, têm uma significação
mesmo tempo, no espírito, artístico, nacional e político: pincar a primeira, bem específica e que absolutamente não corresponde
paisagem é pintar a realidade, a da natureza, mas, sobretudo, a dos à noção de "vista sobre um território". Podemos cirar das suas
homens trabalhando e no seu convívio social, no campo e na cida- pesquisas duas primeiras lições:
de. A paisagem permite, assim, que a arte lute contra o idealismo, 1) A palavra Landschaft não parece ter em primeiro lugar
mas, sobretudo, permite que a nação, no caso a nação francesa, uma significação territorial, embora a adquira num segundo mo-
possa se reencontrar. Castagnary conclui desta forma: "Não é de mento: não significa tanto um espaço quanto um tipo de governo
se estranhar a importância que damos à paisagem. A paisagem não político, um regime político, um tipo de Estado, se quisermos. O
é a derradeira paixão de um povo entrado em anos, é a primeira que quer dizer, consequentemente, que o território, sua organiza-
tomada de posse de uma sociedade que se renova" .12 ção, seu aspecco visível constituem a cradução da Landschaft, ou
Em definitivo, para resumir as observações acima, não há seja, do direito político. O território é o espelho do direito e seu
dúvida, a paisagem moderna, pelo menos, segundo a definição prolongamento, e não o inverso.
usual que acabamos de lembrar ("vista do alto sobre um territó-
rio"), é uma montagem ideológico-política. " Olwig, K. " Representacion and Al ienacion in che Policical L1.ndscape". Cultural
Geographies, n. 12, 2005, pp. 19-40; _ __ . landscape, Nnture and the Body
Palitic. From Britain's Renaissance to America's New Worltl. Op. cir.; _ _ _ .
"Landscape as a Concesced Topos of Place, Communicy, and Self". In Adams,
Lewin, "Krieglandschaft", publicado em Zeitschriftfür angewandte Psychologie, n. P. C.; Hoelscher, S. e Till, K. E. (eds.). Textures of Pince. Exploring Humanist
12, 1917, pp. 440-47. Geogmphies. Minneapolis and London: Universicy ofMinnesoca Press, 200 1, pp.
12
Cascagnary, J. Salom. Paris: G. Charpencier e E. Fasquelle, 1892, r. I (1857- 93- 117; Olwig, K. "Recovering the Substantive Nacure of Landscape". Annals
1870), p. 205. MG, v. 86, n. 4, 1996, pp. 630-53.
1l O O gosto do mundo: Exercícios de paisagem A paisagem. entre a política e o vernacular 111

2) A Landschafté uma entidade político-jurídica de um tipo frl'. nte as relações que mantém com os sistemas decisórios exóge-
particular: a) é baseada num conjunto de direitos costumeiros nos em outras esferas". L4
(que foram quase todos recolhidos e transcritos no século XVJ); Haveria, então, também na paisagem, os elementos de uma
b) a população da Landschaft soube conservar uma independên- .tlternativa, ao mesmo tempo historiográfica, teórica e política,
cia política, um relativo poder de autodeterminação em relação m m problemática ideológica moderna.
a divisões políticas e administrativas mais amplas, tanto de tipo Kenneth Olwig fornece mais um argumento bastante forre
feudal quanto monárquico. Não é raro ler que uma Landschaft foi para apoiar essa alternativa. Ao estudar de modo específico a situ-
ao tribunal da região para fazer valer seus direitos, defender seus ação política inglesa no começo do século XVII, este autor mostra
costumes: o que quer dizer, no caso, que a Landschaft não é, no que assistimos, naquela época, a um conjunto de tentativas mo-
espírito dos que transcrevem o acontecimento, nada diferente de nárquicas para redefinir ao mesmo tempo a noção de autoridade
um conjunto de cidadãos organizados em corpo político. política e a noção de paisagem. 15 Para resumir essa história com-
Daí, poderíamos concluir que o que mostra a pintura de plexa: a partir do início do século XVII, a monarquia inglesa, sob
paisagem flamenga e neerlandesa, por exemplo, é menos um rer- a dinastia dos Stuart, começa a reunir, numa base neoplatônica,
~itório visível que um conjunto de atividades humanas. O que os fundamentos simbólicos para uma nova autoridade política na
mteressa. a esses pintores é menos a mera disposição dos campos, Grã-Bretanha. Essa autoridade deverá ser a do monarca e do Es-
dos caminhos, das cidades e dos rios do que a forma como são tado, ou, mais especificamente, do monarca de direito divino que
i~westidos ~ela ação humana e organizados pela comunidade polí- encarna a potência do Estado. A autoridade política do monarca
tica. Essa pmtura da paisagem é uma pintura dos usos e costumes (e do Estado) estende-se sobre todo o território do reino, relativi-
que regram a vida local, é uma pintura política, e não pitoresca, zando os particularismos e os costumes locais, em prol da unidade
apesar das aparências. geral de um território definido como uma entidade "nacional"
(por exemplo, acima da Inglaterra, da Escócia~. da Irlanda e do
A paisagem vista a partir da história do direito político País de Gales, existe a Grã-Bretanha, como verdadeira entidade
territorial e política). Acima das leis costumeiras particulares, es-
Poderíamos tirar dessas últimas observações o argumento, tão afirmadas a existência e a supremacia de um Commonwealth e
polêmico, de que a paisagem (ou, pelo menos, a Landschaft) está, de uma lei natural cuja validade é universal.
antes de tudo, do lado do "local" e do que poderíamos chamar, Reconhecemos aí os elementos do direito político moder-
na linguagem polírica contemporânea, de "país" ou "território". no, tais como apresentados, por exemplo, no Leviathan, de Tho-
Mais ainda, poderíamos relacionar a reconstrução histórica efetu- mas Hobbes, publicado em 1651 (Fig. 3).
ada por Kennerh Olwig e a noção de "projeto local", que teve na
Itália como arauto Alberto Magnaghi, com suas análises sobre a
"sustentabilidade política": "Por sustentabilidade política, enten-
14 Magnaghi, A. Le Projet local. Sprimont: Mardaga, 2003, p. 39.
do a capacidade real de autogoverno de uma comunidade local 15 O lwig, K. Landscape, Nature and the Body Politic. Op. cit. (especialmente:: os
capítulos IIl e IV) .
1 12 O gosto do mundo: Exercícios de paisagem A paisagem, entre a política e o vernacular 1 13

A composição do frontispício da obra de Hobbes é nes- Kenneth Olwig mostra que, de modo paralelo e coordenado
se pomo totalmente reveladora do tipo de relação que se iniciou a essas diversas tentativas de reformulação da autoridade política, a
naquela época entre o poder político e o território: a soberania rnrte dos Stuart começa a redefinir profundamente a imagem do
não provém do território, mas ela o institui e o nomeia como o Lerritório, importando explicitamente os modelos pictóricos vindos
espaço de desdobramento do seu poder, de certa forma. O colos- da Itália, notadamente as técnicas da perspectiva. Utilizando os ser-
so que encara o leitor domina um território que, segundo Horst viços do poeta Ben Jonson e do arquiteto Irrigo Jones, a monarquia
Bredekamp, possui as características de uma "paisagem do britânica busca estabelecer e divulgar uma imagem teatral do terri-
mun do " . os dois . braços abertos do gigante,
.
16
armados com a es- tório.'ª Ela reúne os elementos de uma cenografia paisagística orde-
pada e com o cetro, delimitam o território sobre o qual espalha o nada visualmente pelas regras da perspectiva. Cada máscara, indica
seu poder. No primeiro plano da imagem, esse território contém Roy Strong, tem por objetivo celebrar o poder da monarquia "capaz
uma cidade protegida por fortificações e cujas ruas estão clara- de restaurar a harmonia, e dobrar à sua vontade o mundo natural e
mente distribuídas ao redor de sua catedral. A cidade é como que suas incontáveis riquezas". 19 Assim, na máscara de Thomas Carew,
pousada no alto, de forma que domina um campo que estende Coelum Britannicum, representada em 18 de fevereiro de 1634, os
suas colinas até o busto do colosso, novo corpo político compos- espectadores assistem à criação do império da Grã-Bretanha, reno-
to do agrupamento de uma multidão de indivíduos anônimos, vatio da Bretanha primitiva, sob a forma de uma alta montanha que
surgindo diante do espectador. Esse campo, com seus vilarejos, é cobre todo o palco e cujo centro é ocupado pelas personificações dos
precisamente a paisagem tal como será a partir de então cercada três reinos da Inglaterra, Escócia e Irlanda, trajando as roupas reais e
e controlada, de fora e de cima, por assim dizer, pelos poderes portando os brasões das nações que representavam, e uma coroa na
cívicos, religiosos e militares. É realmente uma nova forma de ra- cabeça. No tapo da montanha está sentado o Gênio da Grã-Bretanha
20
cionalidade política que é exposta no frontispício do Leviathan. 17 segurando uma cornucópia, símbolo de paz e de prosperidade.
É essa rep resentação teatral do território que vai, então, ser
16
Bredekamp, H. Stratégies visuelfes de Thomas Hobbes. Le Léviathan, archétype de designada pelo termo landscape, que passa a fusionar com a pa-
í'Etat rnoderne. Illustrations des a:uvres et portraits. Paris: Maison des Sciences de lavra prospect (perspectiva), quando tinha antes o significado de
l'Homme, 2003. Ver também: O lwig, K. Landscape, Natttre and the Body Po/itic.
Op. cir., pp. 86 e seg. "costumeiro", comum na Europa do norte. A operação de tea-
17
A represenração da paisagem como metáfora do corpo polícico, mais exatamente
rerricório dominado pelo olhar do soberano, já escava presenre em Maquiavel: "E phore, géographie et invencion chez Maquiavel''. ln Laboratoire italien, 08-2008:
não quero que se impute à presunção o fato de que um homem de baixa e ínfima Géographie er politique au début de l'âge moderne, PP· 63-98. ..
condição ouse tratar d os comportamentos dos príncipes e forjar regras para eles, is Sabemos que é também o vocabulário do teatro (persona) que Hobbes unhza para
porque, da mesma forma que os que desenham os países colocam-se embaixo, na definir a nova forma de potência polícica que ele busca.
planície, para considerar a natmeza das montanhas e dos lugares altos, e que, para 19 Srrong, R. Les Fêtes de /.a Renaissance. Art et pouvoir. Arles: Solin, 199 1, p. 289.

considerar a dos lugares baixos colocam-se no alto , nas montanhas; da mesma 20 Cf. ibid., pp. 304-13, e Ravefüofer, B. The Early Stuart Masque. Dance, Costume,

forma, para conhecer bem a natureza dos povos, é preciso ser príncipe, e para and Music. Oxford Universicy Press, 2006, pp. 227-29. Barbara Ravclhofer
conhecer bem a natureza dos príncipes é preciso ser do povo" (Maquiavel, N . O lembra em que a apresentação pacificada, por Thomas Ca rew, das relaçõe~ entre
Príncipe. Dedicatória a Lourenço de Mediei, duque de Urbino. Paris: Les Belles os três reinos deve ser contrastada com as devastações da guerra no contmente
Lemes, 2008, p. 2). Ver também: Descendre, R. "L'arpenreur er le peintre. Méta- europeu (p. 227) .
114 O gosto do mundo: Exercícios de paisagem A paisagem. entre a política e o vernacular 115

tralização (e de naturalização) da paisagem será realizada, como racio nal e suporte de ação geral que se eleva acima das preocupações
sabemos, com sucesso durante os séculos XVll e XVlII. locais. Nesta perspectiva, a paisagem é o território tal como é visto
Entretanto, essa operação ao mesmo tempo política e ico- do pomo de vista do Estado, é o espaço do Estado. Por outro lado:
nográfica de redefinição da paisagem acontece em um contexro uma concepção "local" da paisagem, em que esta última está con-
de conflitos políticos muito acirrados, simultaneamente no plano l ida como local de vida de uma comunidade regida e regulada por

da designação da autoridade política legítima e no da definição um conjunto de costumes, e que busca preservá-los.
da paisagem (mas já emendemos que é a · mesma coisa). Frente Este contraste é bastante consistente com a distinção esta-
à autoridade monárquica encontram-se, efetivamente, os repre- belecida por John Brinckerhoff Jackson entre o que ele p~óprio
21
sentantes dos "campos", mais precisamente das countries, ou seja, chama de "paisagem política" e a "paisagem vernacular". E para
das comunidades políticas locais que não querem perder sua ca- essa distinção que vamos agora nos dirigir. Uma observação, en-
pacidade política e que vão, então, defender os direitos do Parla- tretanto, antes de analisá-las: o "político" e o "vernacular" devem
mento frente à autoridade da corte. A palavra country (ou county) ser entendidos mais como formas ou modalidades paisagísticas
cobre aproximadamente o mesmo universo de significados que a que coexistem e se superpõem, às vezes, em um mesmo local. Não
Landschaft continental: é a comunidade política de base, por as- se deve, então, marcar essa distinção de maneira muito forte, de-
sim dizer, que é organizada pela regra costumeira. E, dentro dessa finitiva, fazendo dela uma alternativa de caráter absoluto. São, na
configuração política "local", a região, ou melhor, a country, não verdade, dois aspectos da mesma paisagem e do mesmo território,
é absolutamente representada segundo uma modalidade cenográ- dois aspectos contemporâneos, mas que não utilizam os mesmos
fica ou teatral. Tudo isso corresponde à história da Câmara dos ritmos espaciais e temporais, por exemplo. O verdadeiro desafio
Comuns e dos seus conflitos com a monarquia absolutista, que historiográfico e epistemológico consistiria, dessa forma, mais que
acabam levando à guerra civil (1642-1646) e à tomada de poder em opô-los, em aprender a reconhecê-los e a lê-los em sua coexis-
por Cromwell em 1649 (lembraremos, em particular, a Petição tência, ou seja, em sua unidade e sua diferença.
de Direito de 1628, pela qual o Parlamento, conduzido por John
Pym, procurou lutar contras as medidas absolutistas de Carlos I). A política e o vernacular na paisagem
No final das contas, com a ressalva de uma história da pala-
vra e do conceito de paisagem - que deveria, sem dúvida, ser reescri- A paisagem política segundo John BrinckerhojfJackson
ta levando-se em conta, particularmente, os dados fornecidos pela
história do d ireito e, mais especificamente, do direito político - , po- O que é uma paisagem política, segundo Jackson? Come-
demos já perceber que a história propriamente política da paisagem cemos com um exemplo, o da famosa grade territorial americana.
pode ser caracterizada, de forma esquemática, por uma tensão entre Esse termo designa a trama ortogonal (levantamento geométrico)
duas concepções e duas práticas concorrentes, ao mesmo tempo da concebida por Thomas Jefferson, utilizada para dividir e separar o
comunidade política e da paisagem. De um lado: uma concepção território dos quatorze novos estados cuja criação foi decidida em
cenográfica da paisagem, que acompanha e expressa, talvez, o es-
tabelecimento da concepção "moderna" do Estado como entidade ii Jackson, J. B. A la découverte du paysage vernaculaire. Op. cir.
116 O gosto do mundo: Exercícios de paisagem A paisagem, entre a política e o vernacular 117

1784 (originalmente, treze estados): diz respeito a um território N o caso americano, o projeto político é explícito: trata-se
situado entre os Grandes Lagos e o Texas, a oeste das Apalaches, t'Íetivamente de fundar territorialmente um objetivo e uma con-
ou seja, 7 8% do território americano. Instituída em 1785, modi- duta políticos, de criar as condições de uma identidade política
ficada em 1787, esta trama foi aplicada sem modificações impor- por meio de um gesto territorial. A grade é, mais precisamente, a
tantes. Lembremos os princípios. 22 A unidade de b ase da trama é concretização paisagística e espacial d o princípio da igualdade que
um quadrado de uma milha de lado (1,6 quilômetro). O Estado deve reger, de modo geral, a sociedade americana, segundo Jeffer-
federal vende-as, na época, ou em blocos de 36; ou em lotes de son (acrescenta-se a isso a sua ideologia antiurbana). Por organizar
1 milha quadrada. Um township (can tão) é constituído por 3 6 a população em função de uma distribuição estatística e isótropa,
quadrados de 1 milha de lado: é um quadrado de 36 milhas qua- .1 grade é pensada como expressão de uma utopia d emocrática.

dradas. O centro (um quadrado de 4 milhas quadradas) é proprie-


dade estatal, um quinto quadrado é reservado para a escola. A rede Não é a consolidação ou a centralização dos poderes [escreve
é orientada astronomicamente e baseada nas linhas meridianas e Jefiêrson em suas Memórias], mas a sua distribuição bem orde-
paralelas, com os problemas que isto imp lica de correção dos tra- nada que constitui um bom governo. [... ] Cada Estado é, por
çados, ligados à convergência dos m eridianos no polo. sua vez, dividido em condados, cada um cuidando dos interesses
O processo de constituição da rede faz dela uma rede con- contidos em seus limites parciculares; cada condado divide-se em
tinuamente extensível. É também uma rede normativa: antecede distritos ou cantões, para a gestão de interesses ainda mais espe-
o território (que, aliás, era pouquíssimo conhecido pelos políticos ciais e, enfim, cada distri to [townshíp] compõe-se de fazendas,
tomadores de decisão americanos 23) . Neste contexto, o mapa é cada uma dirigida pelo indivíduo que é proprietário. [...] É com
um instrumento de concepção e de organização territoriais tan- essa repartição gradual dos cuidados de todos, passando dos ime-
to quanto de representação. Podemos dizer também: o território resses gerais aos interesses individuais, que a massa dos negócios
confunde-se com um mapa progressivamente traçado no solo. humanos pode ser administrada da maneira mais conforme ao
Enfim, é uma rede indiferente à topografia, à hidrografia, à natu- bem e prosperidade de todos (Jefferson, T., in Cansei!, L. P.,
reza dos solos e dos subsolos. É sobre esta rede ortogonal q ue os 1833, p. 235). 2~
ordenamentos futuros seriam definidos.
Trata-se efetivamente, neste caso, de uma "paisagem políti-
22
Corboz, A. "La dimcnsion utopique de la grille rerritoriale américaine". JSSAC/ ca", para citar a expressão de J. B. Jackson. Convém escudar esse
JSEAC, r. XXVIII, n. 3-4, 2003, p. 63-8; _ _ _. 'Les dimensions culrurelles de conceito.
la grille rerriroriale américaine". ln Le Territoire com me palimpseste et autres essais. A paisagem política - tal como caracterizada por Jackson
Op. cir., p. 173-84; Mau mi, C. Thomas Jefferson et le projet du Nouveau Mo17de.
Paris: Éditions de la Villette, 2007 (especialm.ente as páginas 7 1-123); Kauf-
- resulta da decisão de um poder central. Corresponde frequ en-
mann, S. Sozio!ogie der Landscha.ft. Stadt, Raum und Gesellscha.ft. Wiesbaden:
Yerlag für Sozialwissenschaften, 2005 (parte 2). C itaremos também o trabalho
de Alex MacLean, L'Arpenteur du ciel, op. cit. 2~ Jefferson, T. Mémoires. ln Conseil, L. P. Méianges politiques et phifosophiq111's
23
Catherine Maumi indica a necessidade da criação do título de "geógrafo dos extraits des Mémoires et de la correspondance de Thomas Jefferson. Paris: Paulin,
Estados Unidos" (Thomas Jefferson et le projet du Nouveau Monde, op. cit., p. 94). 1833, p. 235.
1 18 O gosto do mundo: Exercícios de paisagem A paisagem, entre a política e o vernacular 119

temente à realização de um arquétipo, de um ideal social, religio- to com a noção de paisagem "vernacular", tomemos o exemplo
so e moral, e sua manifestação será tão visível quanto esse ideal da estrada.
for centralizado. É o caso da França, aplica-se também ao Peru
pré-colombiano e à antiga Pérsia e, em graus diferences, a todos fstrada política e estrada vernacular
os países. Esta paisagem torna visível o poder que ela encarna,
instituindo certo número de lugares capazes de manifestá-lo: fó- Existem dois tipos de estradas, segundo Jackson, a "estra-
runs, jardins, praças públicas, dispositivos monumentais (já vimos da política" e a "estrada vernacular", que encarnam, no fundo,
também que o poder se manifesta por uma iconografia, inclusive esses dois tipos de paisagens. 26 E sses dois
. tipos
. d e estra
. d as tem A

paisagística, apropriada). quase 0 mesmo objetivo: reforçar e manter uma ordem política e
A paisagem política é, em primeiro lugar, a paisagem de social (é preciso também levar em conta a dimensão econômica
grande escala, que manifesta as grandes visões do poder e estende- e técnica: organização dos fluxos de materiais, de informações
-se através de um espaço percebido corno homogêneo e em conta- e de mercadorias), reunir em um local central (seja este centro
to direto com as regiões que controla. Daí o caráter retilíneo dos concreto ou não) todos os espaços que compõem o território de
grandes eixos que serão desenhados a partir desse centro de deci- uma comunidade. Entretanto, além desse objetivo comum, esses
são, e a geometrização do território que poderá resultar disto, até dois tipos de estradas distinguem-se em vários pontos: existem
produzir esta forma extrema que representa a grade jeffersoniana diferenças de escala quanto ao tamanho dos espaços que são or-
nos Estados Unidos. ganizados pelo sistema das estradas (a estrada política é regional,
A paisagem política é marcada pelas grandes obras que per- nacional ou internacional, enquanto que a vernacular é local),
mitem organizar o território, estruturá-lo e delimitá-lo por meio diferenças igualmente em relação às direções seguidas por essas
de fronteiras visíveis e teoricamente invioláveis. Os grandes dis- estradas (a estrada política é mais centrífuga, enquanto que a es-
positivos técnicos, as obras artísticas, as pontes, os viadutos, as trada vernacular, que é essencialmente local, é centrípeta), assim
represas, os aeroportos, as estações rodoviárias, as linhas de alta como no plano do tipo de relação que essas estradas mantêm
tensão etc. manifestam também as escolhas e as decisões de um com o ambiente natural, o solo. De tal forma que percebemos
governo central. Assim resume Jackson, em seu último capítulo no território mais uma coexistência, uma justaposição, e, às ve-
de A la découverte du paysage vernaculaire: "Por política, entendo zes, uma superposição desses dois sistemas, sem que haja sempre
estes espaços e estruturas concebidos para impor ou preservar uma uma articulação entre eles.
unidade e uma ordem sobre a Terra, ou em relação com um plano Uma estrada política possui váúas características específi-
de longo prazo, em grande escala''. 25 cas: é uma estrada de grande escala, tendo em vista que ela liga
Para entender melhor a natureza dessa paisagem política,
ou desse aspecto político da paisagem, e para confrontar tal aspec-
16 Lembremos 0 que já foi dito acima: são "tipos-ideais", essas expressões designam
paisagens determinadas, concreras, é verdade, mas também e, sobretudo, c:rro
cipo de atividade paisagística, ou seja, certo tipo de ação do homem em rclaçao a
25
Jackson, J. B. A la découverte du paysage vernacu/4ire. Op. cit., p. 266. seu ambiente no mundo.
120 O gosto do mundo: Exercícios de paisagem A paisagem, entre a pollt ica e o vernacular 12 1

lugares separados por grandes distâncias e estrutura espaços de rn habitantes, constituindo, graças ao sistema das estradas, o terri-
grandes proporções: torna possível, de certo ponto de vista, a or- 1úrio como uma entidade homogênea.27
ganização de uma vida geral; essa estrada valoríza as funções mili- Mas esse sistema de grande escala sobrepõe-se aos comex-
tares e comerciais, e, neste sentido, é animada, por assim dizer, por 1os locais, que são tradicionalmente rurais (mas não de maneira
uma preocupação de eficácia, de fluidez, de comodidade. Daí, o geral), e ele nem sempre leva em consideração esses contextos. A
traço seguinte: em relação ao nível de escala em que se desenvolve, linha reta do cartógrafo e do engenheiro fura e nivela, mas não
a estrada política se caracteriza por um desinteresse relativo para rntra, ou pouco o faz, em acordo ou em conversa com a organi-
com as características e particularidades do território local (sejam 't.ação dos espaços, nem com as peculiaridades dos locais. Assim,
essas características topográficas ou humanas), é uma estrada que por exemplo, a estrada política não busca necessariamente atra-
cria seu próprio ambiente técnico, m odificando profundamente os vessar as cidades e vilarejos (como, hoje em dia, as autoestradas e
28
locais e os solos sobre os quais se assenta (p. ex., autoestradas). Po- ,1s linhas do TGV), que, por sua vez, são servidas por sistemas
deríamos citar muitos exemplos para ilustrar essa caracterização: a locais centrípetos de estradas e caminhos. Para os usos locais, as
França dos séculos XVII e XVIII, o Império Romano, a Pérsia, o f!.randes estradas não convêm. Para ir ao vilarejo ou à pequena
Império Inca, os Estados U nidos etc. L idade, para os diversos trabalhos e trajetos cotidianos e rotineiros

O caráter geral desse sistema da estrada política é o seu as- (mas também, agora, para o turismo rural de verão), utilizam-
pecto centrífago. Não se deve dizer apenas, portamo, que todas as se as sendas, as trilhas, as estradas antigas que são estreitamente
estradas levam a Roma, mas sim perceber, também, que todas as .1jusradas às características do solo e da topografia, assim como
estrad as partem de Roma. As estradas políticas são as expressões aos usos, e troca-se de estrada (ou de caminho) conforme as es-
de um poder político central (ou, então, que quer afirmar sua 1ações e a praticabilidade. Est e sistema de estradas de pequena
centralidade dessa forma) que busca controlar territórios cada vez .:scala29 corresponde ao que Jackson chama de "sistema de estradas
mais extensos e cada vez mais afastados pel a extensão e o desenvol-
vimento de tal trama. A estrada política cria e organiza um espaço '' Poderíamos relacionar essas considerações de Jackson com as análises de Michel
procurando controlá-lo. Daí a importância de uma definição ri- Foucaul t relativas à polícia dos séculos XVII e XVIII: "São as instituições pré-
vias à polícia. A cidade e a estrada, o mercado e a rede rodoviária que alimenta
gorosa desse sistema de controle e, em particular, de sua "metro-
o mercado. Daí, o faro de a polícia nos séculos XVII e XVIII ter sido, acho eu,
logia": não existe estrada política sem a definição de um centro csscncialrnence pensada em termos do que poderíamos chamar da urbanização
(o ponto zero das estradas, que é a sede simbólica do poder) e de do território. Tratava-se, no fundo, de fazer do reino, de fazer do território inteiro
um sistema de marcação das distâncias (marcos de estrada), gra- um tipo de grande cidade, de garantir que o território fosse ordenado como uma
cidade, seguindo o modelo de cidade e tão perfeiro q uanto uma cidade" (Fou-
ças aos quais todas as distâncias e todos os locais são expressos de caulr, M. Sécurité, tem'toire, population. Cours au College de France, 1977-1978.
forma homogênea em função do ponto zero, remetendo ao ponto Paris: Gallimard/Le Seuil, 2004, p. 344).
zero. É preciso ler a rede das grandes estradas no t erritório, na '' TGV: do francês, Train à Grande Vitesse; em português, "trem de alta velocidade"
(N. do T.).
paisagem, como a expressão de uma vontade de controle político,
"' Lembremos que comamos aqui a palavra "escala" não em seu sentido car-
que é, ao mesmo tempo, um processo de identificação. Trata-se rográfico, mas paisagíst ico: a pequena escala correspo nde aos' territór ios de
claramente, de fato, de criar uma identidade política comum para pequeno porte.
122 O gosto do mundo: Exercícios de paisagem A paisagem, entre a política e o vernacular 123

vernaculares": é flexível, sem um verdadeiro plano geral, às vezes <- o espaço próprio dos transportes, que é o mundo dos veículos,
isolado, nem sempre cuidado, e complica a vida dos viajantes de c que desempenha um papel determinante na produção de certos
grandes distâncias e dos governos que querem fluidificar, acelerar . 1 ~ pectos da paisagem. Marc Desportes resume perfeitamente as
o trânsito militar e comercial. v:írias dimensões do problema:
Vale insistir na importância política da questão da lentidão,
isto é, mais precisamente, da velocidade das circulações. Podemos A estrada facilita o comércio, permitindo assim o crescimento
observar, por exemplo, na França dos séculos XVII e XVIII, que das cidades, chave do desenvolvimenro econômico segundo os
o processo político e administrativo de centralização, ou seja, de mercantilistas; contribui a construir um mercado interno, logo,
controle e homogeneização do território implicou, no caso das a regular os preços, o que preconizam os fisiocratas; ajuda a di-
vias de circulação, na implantação de um sistema ao mesmo tem- vulgar a informação e, portanto, o progresso das Luzes; enfim,
po jurídico e técnico complexo, mas cujo objetivo principal era, é um poderoso fator para fortalecer o Estado e garantir sua se-
essencialmente, ficar fora do suporte, ou seja, do solo e das suas gurança nas fronteiras. [... ] O traçado retilíneo das calçadas obe-
viscosidades, a fim de facilitar os fluxos gerais, tornar mais fluidas dece a razões técnicas, mas também a motivos estéticos, e até
as circulações de grande escala. 30 A instalação desse sistema exigiu filosóficos: a linha reta ilustra a razão do caminho mais curto e,
a implementação de um conjunto de disposições: a) regulamenta- ao mesmo tempo, demonstra a potência da arte, diante de uma
ção da circulação (que passa por um policiamento de rodagem e, natureza "caídà', a ser ordenada, retificada (Despertes, M., op.
em particular, por uma limitação das cargas); b) proteção e estabi- cic.,pp.15-6). 32
lização dos suportes, dos revestimentos (criação do corpo de Panes
et Chaussées); 31 c) normalização das estradas (traçados, gabaritos, Este espaço específico da estrada política é, ames de tudo,
larguras); d) em particular, alinhamento dos traçados (decisão o de um sistema técnico que uma sociedade colocou entre ela e o
de 26 de maio de 1705: cortar no relevo e alinhar "o mais reto seu solo. A estrada política é, por assim dizer, a camada de espaço
possível"); e) nivelamentos dos relevos; f) aperfeiçoamento dos lécnico e jurídico que os homens intercalam entre eles .e o solo
veículos. No fim das contas, esse dispositivo, ao mesmo tempo "natural" quando querem se movimentar rapidamente, vencer
jurídico e técnico, instalou na França um espaço específico, que rapidamente grandes distâncias. Um lembrete: a palavra france-
sa "lenteur" (lentidão) vem do latim lentor, que designa um solo
grudemo, viscoso, lamacento, um solo que gruda no calçado. O
:lO Ver: Desportes, M. Paysages en mouvement. Op. cit. (especialmente o capítulo I); exercício do poder político centralizado supõe, ao inverso, a ra-
Livet, G. Histoire des routes et des transports en Europe. Strasbourg: Presses Uni-
versitaires de Strasbourg, 2003; Lepecit, B. Chemins de fer et voies d'eau. Réseaux
pidez, a velocidade, tanto na aquisição da informação quanto na
de transport et organisation de !'espace en France, 1740-1840. Paris: Édirions de execução da decisão: é necessário, então, ficar fora do solo e de
l'EHESS, 1984; Cavailles, H. La Route française, son histoire, sa fimction. Paris: suas lentidões.
Armand Colin, J 946; Picon, A. L1nvention de l'ingénieur modenze. Paris: Presses
de l'ENPC, 1992.
11
Serviço público encarregado de construção e manutenção das vias públicas (N.
doT). '' Desportes, M. Paysages en mouvement. Op. cit., pp. 15-6.
124 O gosto do mundo: Exercícios de paisagem
A paisagem, entre a política e o vernacular 125

A rede de grandes estradas vem se sobrepor aos caminhos 111·homens, de tal modo que essas relações sejam, ao mesmo tem-
locais, porque é preciso romper com os lugares e seu fechamento em 110, estruturadas e duradouras. Seu desafio consiste em ordenar
si, com os s!stemas locais. É preciso desencravar, como se diz hoje. e regular as relações, as circulações, as distâncias, os lugares res-
pc.:crivos dos homens, mas também das mercadorias. Em outros
A paisagem vernacular 1crmos, a significação contida na paisagem política é, antes de
1udo, "horizontal" e interna à própria sociedade, sem que seja ne-
Jackson constata que os sistemas locais tendem a desapare- lCssário considerar a relação com as condições materiais ou natu-
cer, porque são progressivamente integrados às redes nacionais, rais concretas dessa paisagem. É, se quisermos , por definição, uma
aos sistemas nacionais e internacionais que se ramificam cada vez paisagem "fora do solo". No outro extremo do cursor, a noção
mais. Deveríamos concluir que logo deixará de haver estradas e de paisagem vernacular expressa o fato de o ser humano não ser
paisagens vernaculares, e que a uniformização ligada ao desenvol- -.omente um ser dotado da linguagem, do pensamento e da possi-
vimento da paisagem política vai progressiva e irreversivelmente bilidade de agir livremente (o que define sua capacidade política),
levar ao desaparecimento das paisagens locais? mas de ser também, e ao mesmo tempo, um habitante do mundo,
Não podemos afirmar. Mas, então, onde está o vernacular um habitante da Terra e da natureza. Em outras palavras, ele tem
na paisagem? um solo e faz parte de um meio, com o qual mantém constan-
A este primeiro tipo de paisagem, Jackson opõe o utro, que lcs relações materiais, sensíveis, práticas. O vernacular é, de cerra
ele chama ora de "paisagem habitada", ora de "paisagem vivida'', maneira, o sinal da presença desse meio, em particular do meio
ora de "paisagem vernacular". Esse tipo de paisagem encarna, de natural, e desse solo.
certa maneira, nosso estar no mundo, escreve ele, ao mesmo tem- Onde se encontra, então, esta paisagem vernacular e como
po que depende, de certa forma, de remeter ao que chamamos se caracteriza? Jackson fornece, quanto a isso, três elementos de
de natureza pela "preocupação" que temos e o cuidado que to- resposta.
mamos. Esse aspecto da paisagem traduz o fato de que somos Em primeiro lugar, o que caracteriza uma paisagem verna-
habitantes do mundo. cular, e consequentemente a torna difícil de perceber, é que ela
Assim, o "político" e o "vernacular" parecem corresponder não apresenta marcação política forte: não percebemos fronteiras,
a duas modalidades paisagísticas ao mesm o tempo contemporâ- estradas nem, de maneira geral, espaços nítida e claramente dese-
neas e concorrentes. São os dois polos simétricos entre os quais se nhados. Não há castelos, igrej as, nem aeroportos ou represas q ue
desenvolve toda a atividade paisagística. Poderíamos dizer que a viriam orientar o território. A paisagem vernacular é flutuante,
paisagem política responde ao fato de que o ser humano, segundo incerta, como um terreno baldio . Evolui à distância ou à margem
a expressão de Aristóteles lembrada por Jackson, é um "animal dos grandes eixos visíveis do poder, mas, ao mesmo tempo, faz
político", ou seja, que se preocupa em organizar comunidades po- acordos com ele. Jackson lembra que verna, na origem, designa o
líticas e espaços que encarnam os valo res morais e políticos aos escravo nascido na casa do senhor. Tanto quanto o lado "ancilar",
quais aderem essas comunidades. A paisagem política é, neste é o lado "ligado a um lugar" que importa aqui e que dá à "paisa-
sentido, principalm ente uma forma de organizar as relações entre gem vernacular" sua significação verdadeira de "paisagem local".
126 O gosto do mundo: Exercícios de paisagem A paisagem, entre a polttica e o vernacular 127

A língua vernacular é a língua que é localmente entendida, e a 1 bramente apropriado por um indivíduo ou um grupo, não tem
paisagem vernacular designará, em primeiro lugar, uma paisagem , aráter de permanência, não é um lugar de enraizamento. Mais
que poderíamos chamar "de proximidade". Jackson está bastante uma vez, é a incerteza que domina, incerteza quanto ao tamanho
próximo do modo como os fenomenólogos descrevem o que eles ,. aos limites desses lugares, incerteza quanto ao estatuto exato no
chamam de "mundo da vida": a paisagem vernacular é aquela que plano jur(dico e econômico e incerteza quanto ao seu futuro.
habitamos. Voltaremos a isso mais adiante. Mas, paradoxalmente, essa incerteza do espaço vernacu-
Jackson apresenta a segunda característica da paisagem ver- lar talvez seja a condição de seu dinamismo e de sua renovação.
nacular da seguinte forma: l·:nquanto espaço intermediário (é anterior ao estabelecimento
humano, ou então é posterior, quando este desapareceu, ou ainda
[... ] seus espaços são geralmente modestos, sujei tos à mudança l'Stá ao redor), a paisagem vernacular pode ser co nsiderada como a
rápida no uso, nas propriedades, nas dimensões; [... ] as casas, 1.ona de contatos e trocas entre, por uma parte, o estabelecimento
até os vilarejos, estendem-se, redu·Lem-se, mudam de forma e humano e, por outra, o meio natural. Talvez não seja sem razão
de localização; [...J existe sempre uma quanti dade importante que, hoje em dia, os paisagistas intervêm principalmente nesses
de " terra comum" - deserto, pasto, Aaresta, áreas em que os re- l'Spaços intermediários.
cursos naturais são explorados de forma fragmentada; [... ] as es- A terceira característica da paisagem vernacular é o que po-
tradas não passam muito de caminhos e aleias, nunca cuidadas, deríamos chamar de característica temporal, ou, mais exatamente,
raramente permanentes; enfim, [... ] a paisagem vernacular é um um modo de temporalização, específico. Enquanto a paisagem
arquipélago de aglomerações e campos agrupados, ilhotas em política se caracteriza pelas noções de ruptura e de fundação (a
um mar de natureza deserta ou selvagem que muda geração após marcação do território), ou seja, por um tipo de imposição às ve-
geração, não deixando nenhum monumento, apenas abandono zes brutal da ordem simbólica humana sobre a extensão natural
ou sinais de renovação (Jackson, J. B., op. cit., p. 268).33 (com suas formas privilegiadas, o círculo, o quadrado, a grade), a
paisagem vernacular é mais caracterizada pela noção de adaptação
Apesar das aparências, Jackson não está pensando apenas :\s circunstâncias. É mais uma paisagem de continuidade tempo-
na paisagem medieval quando faz essa descrição. Também está ral. Estamos aí no universo do costume, mais do que d o plano.
aludindo a certas paisagens contemporâneas, em particular, nos Na fábrica ordinária da paisagem, mais que no projeto destinado
Estados Unidos (mas poderíamos evocar da mesma forma o que a marcar a história futura. Depende mais de uma tática, e não da
está acontecendo com os campos na França, ou então os baldios aplicação de um modelo estratégico, no sentido dado a esses ter-
industriais). Os principais traços são os seguintes: o espaço ver- mos por Michel de Certeau.
nacular é da ordem do residual, situa-se nas margens, nas franjas, A estratégia que está na fundação da racionalidade política,
nos limites espaciais e temporais dos estabelecimentos humanos econômica ou científica, escreve Cerceau,
destinados à habitação ou ao trabalho; ele não é (ou não é mais)
[... ) postula um local suscetível de ser circunscrito como pró-
33
Jackson,]. B. A la découvate du paysage vernaculaire. Op. cic., p. 268. prio e, portanto, de servir de base a uma gestão de suas relações
l 28 O gosto do mundo: Exercícios de paisagem A paisagem, entre a polítíca e o vernacular 129

com uma exterioridade distinta. [... ] Chamo, ao contrário, de D iferentemente da paisagem política, que quer ser a reali-
"tático" um cálculo que não pode contar com um próprio, nem, 1.1ção de uma ideia ou de um arquétipo, a paisagem vernacular é
portanto, com uma fronteira que disringue o outro como uma º\:xistencial", diz Jackson, o que quer dizer que a sua identidade
totalidade visível. O único lugar da tática é o do outro. Ela se 11ão é dada de uma vez por todas, de início. Ela "[... ] só vai cum-
insinua nele, de fo rma fragmentária, sem dominá-lo por inteiro, prindo a sua identidade ao longo da sua existência. Só podemos
sem poder mantê-lo à distância. Ela não dispõe de uma base dizer o que ela e, quando e1a cessa de evol uir
. " .35
onde capitalizar suas vantagens, preparar suas expansões e ga-
ran ti r uma independência em relação às circunstâncias. O "pró- Paisagem vernacular e mundo vivido: hábitos e sentidos dos
prio" é uma vitória do local sobre o tempo. Ao contrário, por lugares
conta de seu não lugar, a tática depende do tempo, preparada
para "apanhar em voo" as possibilidades de lucro. O que ela ga- A questão é, então, saber como ela evolui. Jackson fornece
nha, ela não guarda. Ela tem que estar sempre jogando com os um elemento de resposta em um texto dedicado ao surgimento do
acontecimentos para fazer deles "oportunidades". O fraco deve hábirat móvel nos Estados Unidos, 36 em que encontramos uma
incessantemente tirar vantagem de forças que lhe são estranhas anáJise importante do p róprio ato de habitar. Porque habitar é
(Certeau, M. de, op. cit., pp. XLVl-XLVll).34 claramente uma ação, ou urna atividade, segundo Jackson. Essa
atividade excede o simples fato de ter uma casa e morar nela: pos-
Se aplicarmos essa distinção ao estudo das paisagens, po- sui uma dimensão criativa.
demos então reconhecer que a paisagem vernacular não é uma Jackson insiste cada vez mais, à medida que vai se interes-
paisagem estática e morta, fechada na tradição. O costume não é sando pela paisagem con temporânea (americana, mas não só), no
necessariamente, convém lembrar, o confinamento na repetição fato de que o hábitat contempo râneo distendeu de forma conside-
da tradição. Também corresponde a outro modo de definição da rável suas relações com o local, e até com a ideia de morar em al-
ação e a o utro tipo de relação com a ação . A paisagem vernacular gum lugar. Uma parte inteira das suas análises e de suas descrições
evolui, segundo Jackson, em função de nossas tentativas de viver é consagrada ao que poderíamos chamar d e "o habitar móvel",
em harmonia com o mund o natu ral à nossa volta. Podemos d izer característico, aos seus olhos, da cultura espacial contemporânea.
q ue ela é o fruto de uma adap tação mútua, e ativa, entre o homem Mas se habitar já não significa exatamente, hoje em dia, morar em
e o m undo.
algum lugar, se habitar não é mais exatamente sinônimo de ficar
em um lugar sem sair de lá, Jackson não lamenta: não se trata,
segundo ele, do que outros chamariam de "perda das raízes", ou
3
~ Cerreau, M. de. L1nvention du quotidien, I, Arts defaire. Op. cir, pp. XLVI-XLVII. de desvanecimento da identidade humana nos "não lugares" da
Ct:rteau remt:re, cm parricular, para precisar a noção de tática, aos trabalhos de
Pierre Bourdieu sobre o senrido prático e aos de Marcel Dérienne e Jean-Pierre Ver-
nanr sobre a metis grega. Uma hipótese: a jardinagem, como atividade, como arre '
1
Jackson, J. B. A la découverte du paysage vernaculaire. Op. cic., p. 117.
do tempo, como artifício, seria da ordem da rácica. Cf. Besse, J.-M. "Du jàrdin au .1G Jackson, J. B. "I.:habirat mobile, et commenr il parvinc en Amérique". lbid., PP·
jardinage, la ruse du paisagisre". Les Carnets du Paysage, n. 9-1O, 2003, pp. 17-24. 183 e seg.
130 O gosto do mundo: Exercidos de paisagem A paisagem, entre a política e o vernacular 131

vida contemporânea. Esse deslocamento é uma forma nova que .tlguns hábitos, que determinam um modo de vida, usos, práticas.
tomam as paisagens e os lugares, uma forma que talvez só tenha- Mas nós não estamos ligados, definitivamente, ao lugar, e nem
mos dificuldade em visualizar e pensar porque nos faltam as cate- ~omos determinados por ele. A análise e as fórmulas utilizadas
gorias intelectuais e estéticas para tal. por Jackson são surpreendentemente próximas das que foram de-
De qualquer forma, à pergunta - talvez fútil, diz ele - -;cnvolvidas por Ivan Illich, mais ou menos no mesmo momemo,
"quanto tempo é preciso permanecer em um lugar para que se quando este último diferencia a arte de habitar do fato de estar
torne um lugar de habitação?" Jackson responde: apenas alojado em algum lugar. Habitar é uma arte d e viver: toda
uma economia moral é expressa nessa fórmula.
Eu diria que permanecemos o tempo suficiente para que nossa
presença se torne um hábito. Um lugar se torna "de habitação" A arte de habitar é uma atividade que ultrapassa o alcance do ar-
quando faz parte do nosso comportamento habitual. Ficar no lu- quiteto. Não somente porque é uma arte popular; não somente
gar uma noite, ou até duas ou crês noires, não basca. Mas, quan- porque progride por ondas que escapam ao controle do arquite-
d o permanecemos porque temos um trabalho fixo ou porque to; não somente porque sua delicada complexidade a situa fora
somos estudantes, isso se inscreve num modo de vida habitual, dos horizontes dos simples biologistas e analistas de sistemas;
regular Qackson, J. B., op. cit., p. 181). 37 mas, mais do que tudo, porque não existem duas comunidades
que façam seu hábitat da mesma forma. Hábito e hábitat dizem
Habitar um lugar, e poderíamos dizer, transformar um lugar quase a mesma coisa. Cada arquitetura vernacular (para usar o
qualquer em lugar habitado, é principalmente, então, formar hábitos termo dos antropólogos) é tão única quanto o falar vernacular.
nele, viver nele de modo regular, cotidiano. O que Jackson chama [...] Os habitantes vernaculares engendram os axiomas dos espa-
de paisagem vernacular corresponde, na verdade, a este modo ços nos quais fazem sua morada. O consumidor contemporâneo
de habitar progressivamente o mundo inscrevendo nele hábitos de um espaço de habitação vive topologicamente em outro mun-
(cf a "Nota conjunta" no fim deste capítulo). Permanecemos, do (Ulich, I., 1994, pp. 65-6).38
entretanto, em uma perspectiva da mobilidade. Se habitar "significa
simplesmente parar, permanecer algum tempo imóvel", também De maneira concomitante, Jackson orienta-se para uma re-
implica "que vamos acabar nos mexendo de novo". Chega uma hora avaliação da questão do lugar, que se expressa, por exemplo, na
em que mudamos de hábito, escreve Jackson, porque mudamos de redefinição que propõe da noção de "gênio do lugar". O que faz o
trabalho ou porque as crianças crescem, e mudamos de domicílio. valor excepcional de um lugar, a seus olhos, não é uma qualidade
O que importa na habitação, portanto, é menos a relação natural ou histórica intrínseca, objetiva, que este lugar poderia
com o lugar, no final das contas, que uma maneira de ser. Habitar
não é tanto morar em um lugar quanto adotar, sempre provisoria-
'8 Illich, I. 'Tare d'habirer". Dans !e miroir du passé. Conftrences et discours, 1978-
mente, uma maneira de ser. Não é criar raízes, mas sim contrair
1990. Paris: Descarres & Cie, 1994, pp. 65-6 (este texto foi apresentado no
Royal lnscitute of British Architects, em julho de 1984). Ver, em particular, os
37
Ibid., p. 181. comentários de lllich sobre a destruição dos terrenos comunais.
132 O gosto do mundo: Exercícios de paisagem A paisagem, entre a política e o vernacular 133

possuir, mas sim, e mais simplesmente, cerco número de aconte- <.[Ue, de cerra maneira, nesse ponto específico, o político é ultra-
cimentos que vivemos nele e, por assim dizer, o "bom tempo" que passado por práticas comuns e, no fundo, pela criatividade dessas
lá passamos. O gênio do lugar é práticas. A identidade política que a paisagem buscaria só tem
sentido em relação ao que foi elaborado no plano dos usos, ou
[... ] um sotaque particular, um modo particular de se vestir, de seja, dos hábitos e modos de vida.
se cumprimentar; danças e festas particulares - todas essas idios- O "bairro" é um lugar deste tipo:
sincrasias pitorescas que constituem o folclore para os turistas,
algumas outras ainda: senhas e gestual, tabus e segredos - lugares A cidade é, em sentido pleno, "poetizada" pelo sujeito: ele vol-
e acontecimentos mantidos secretos que excluem o estrangeiro tou a fabricá-la para seu uso próprio desviando as restrições do
de forma mais segura que qualquer fronteira. aparelho urbano. Ele impõe à ordem externa da cidade sua lei de
consumidor de espaço. O bairro é então, no sentido pleno do
E é estranho, acrescenta Jackson, ver termo, um objeLo de consumo de que o usuário se apropria na
forma de privatização do espaço público. [... ] O que o usuário
[... ] quantos desses costumes, desses meios de identificar uma ganha em "possuir" bem o seu bairro não se conta nem se bar-
paisagem habitada e seus homens revelam sentidos: o gosto, re- ganha em um relacionamemo que necessite de uma relação de
conhecível por todos, de uma especialidade culinária ou de vi- forças: o ganho trazido pelo hábito só é a melhoria do "modo de
nhos locais, o odor de certas estações, o som de uma canção do fazer", de passear, de fazer compras, com o qu e o usuário pode
país Qackson, J. B., op. cit., p. 135).39 verificar, o tempo todo, a intensidade da sua inserção no meio
social (Mayol, P., op. cit., p. 24). 4º
Observamos que a visão é ausente desse inventário. É que a
vista nos coloca fora do lugar, como quando dizemos que estamos Podemos extrair, então, a partir desses comentários sobre
"por fora". A vista nos coloca à distância do lugar, enquanto é as dimensões políticas e vernaculares presentes nas paisagens, al-
com o corpo todo, por todos nossos gestos e todos nossos sentidos gumas indicações gerais que permitam descrever o lugar do pai-
que o lugar nos assombra, e que nos sentimos envolvidos nele sagista e sua atividade e, em particular, podemos descobrir aí o~
e por ele. Assim, o sentido de um lugar, sua identidade, é uma elementos para um novo pensamento do projeto de paisagem? E
soma de acontecimentos, de usos e de sensações comuns que o difícil, obviamente, responder a essa pergunta, que é considerável.
constituem principalmente (mas pode haver também sensações Podemos, entretanto, nos perguntar se não seria possível prolon-
excepcionais), e não por uma qualidade que seria misteriosamente gar e explorar as análises e descrições de Jackson referentes à paisa-
escondida em um dado topográfico qualquer. gem vernacular no contexto de uma interrogação sobre o projeto
Finalmente, a dimensão vernacular da paisagem mostra que
a política não tem a última palavra sobre a identidade do lugar e
40 Mayol, P. L'lnvention du quotidien, II, Habitn; cuisine1: Op. cir., p. 24. Ver, tam-
bém: Radkowski, G.-H. de. Anthropologie de l'habiter. Vers ie nomadisme. Paris:
19
· Jackson, ]. B. A la découverte du paysage vernaculaire. Op. cir., p. 135. PUF, 2002.
134 O gosto do mundo: Exercícios de paisagem A paisagem, entre a pollcica e o vernacular 135

de paisagem, conferindo-lhes, pelo menos até certo ponto, um enquanto obra vernacular. Vamos nos contentar com algumas in-
alcance prescritivo. dicações rápidas e programáticas nesta direção.
O que caracteriza, efetivamente, o vernacular na paisagem? A noção de hábito (Merleau-Pomy) ou de habitualidade
Jackson fala da sua mobilidade essencial, e da sua atualidade per- (Husserl) foi convocada pelos fenomenólogos no contexto de
manente. O que significa três coisas, que se encadeiam: a elabora- uma reflexão sobre o "mundo da vida" e sobre a constituição da
ção vernacular da paisagem baseia-se no costume, ou seja, não em subjetividade dentro do mundo da vida. Husserl, o primeiro, na
um conjunto de princípios absolutos que aplicaríamos, de manei- terceira parte de La Crise des sciences européennes (1935-1 936),
ra dedutiva, sobre o lugar, mas em um conjunto de hábitos, de ateve-se longamente em mostrar em que os produtos da ciência, e
práticas, de usos continuamente elaborados e ajustados em con- mais geralmente os atos teóricos da consciência, eram na verdade
tato com o local, em uma relação de entendimento, no decurso sustentados e suportados por uma base de evidências originais não
do que poderíamos chamar de conversa com o local. "Costumes", temáticas e constituindo o próprio solo de rodas as construções
"práticas", "conversas": estamos aqui no universo de uma racio- da cultura: os fenomenólogos chamam esta base ou este solo de
nalidade contextual (a tática, não a estratégia). Como vimos no "mundo da vida" (Lebemwelt), que é o mundo do uso comum
capítulo I, podemos nos perguntar se o projeto da paisagem não das coisas, e em relação ao qual o mundo da ciência é, diz Hus-
seria justamente, ao menos em parte, da ordem dessa atividade de serl, apenas um mundo de substituição. Esse mundo da vida foi
tecelagem que está operando no vernacular. É possível que o pro- apontado pelos fenomenólogos, especificamente, mas em várias
jeto seja a implementação desse tipo de jurisprudência, desde que oportunidades, ao mesmo tempo como meio e como paisagem.
haja preocupação, para agir no espaço, com as particularidades tO- O mundo vivido, o m undo da vida comum, o mundo cotidiano,
pográftcas, históricas e simbólicas etc. do local no qual intervimos. é a paisagem (e não o mapa). 41
Ao interrogar-se sobre a estrutura desse mundo da vida,
Nota conjunta sobre o hábito e a paisagem Merleau-Ponty insiste nessa dimensão pré-teórica, pré-reflexiva,
que a caracteriza: o mundo da vida é o mundo de antes das sepa-
John Brinckerhoff Jackson volta ao antigo parentesco se- rações do sujeito e do objeto, é um meio de cumplicidades táticas
mântico entre habitar e hábito. Nisso, está bastante próximo das e de relações familiares entre o sujeito e o mundo, mais velho
perspectivas filosóficas que lhe são contemporâneas, como a feno- que o conhecimento, escreve ele. E esse meio é o do corpo, não
menologia francesa, e talvez, igualmen te, o pragmatismo america- do corpo-objeto da ciência, mas do corpo enquanto vivido e en-
no. Da mesma forma, podemos perceber um tipo de convergência quanto motor, enquanto me carrega dentro e para o mundo, do
intelectual com as análises dedicadas por Pierre Bourdieu à noção corpo "com seus habitus que desenham ao seu redor um entourage
vizinha de habitus. Também enfatizamos, nas pági nas acima, a
espécie de proximidade de Jackson com o trabalho dirigido por
Michel de Certeau acerca das artes de fazer e habitar. Gostaríamos 11 Husserl, H. La Crise des sciences européennes et de la phénoménologie transcendan-
aqui, a título exploratório, de destacar algumas iluminações inte- tale. Paris: Gall imard, 1976; Bégouc, B. La Découverte du quotidien. Paris: Allia,
ressantes dessas aproximações para a compreensão da paisagem 2005 (especialmence a segunda parte).
136 O gosto do mundo: Exercícios de paisagem A paisagem, entre a política e o vernacular 137

humano". 42 É ao nível do corpo, se podemos dizer, que se efetua umta uma capacidade humana específica, a que consiste em agir,
a unidade viva do homem e do mundo, na medida em que esse ,em que para isso seja necessário fazer a hipótese de uma opera-
corpo é animado pelo que Merleau-Ponty chama, após Husserl, 1,ão reflexiva subjacente, de um cálculo estratégico, ou da posição
de "intencionalidade operante". E acrescenta: essa intencionalida- consciente de um fim a atingir. É essa capacidade do sujeito de
de operante "aparece em nossos desejos, nossas avaliações, nossa .1gir de maneira regular sem que por isso seja necessário recorrer à
paisagem, mais claramente que no conhecimento objecivo". 43 É c.:onscientização de uma determinada regra pela qual ele age, cha-
justamente esse "corpo", motor e portador das operações do ho- mada por Bourdieu de "habitus''. O habitus (que traduz o greg.o
mem, mas que também dispõe de uma paisagem, que se torna o hexis, e que é próximo de ethos) corresponde à disposição para agtr
verdadeiro "sujeito" dentro do mundo da vida. de modo durável em certo sentido, sem que seja necessário, vamos
Mas como caracterizar, então, as operações desse corpo- repetir, recorrer à operação de uma racionalidade reflexiva sobre o
-sujeito? Como designá-las e nomeá-las? É toda a história do Fundamento da ação. Com esse conceito, Bourdieu consegue fazer
movimento fenomenológico e suas consequências na sociologia aparecer a presença, no mundo social, de uma esfera de racionali-
que deveríamos considerar aqui, o que não faremos. Poderíamos dade prática, que corresponde à operação do que ele chama, numa
lembrar que, por exemplo, Merleau-Ponty apontou muito preci- outra dimensão, de "senso prático".
samente o hdbito como o "centro" das sínteses motoras e ativas Por várias vezes, Bourdieu volra a sublinhar duas das carac-
pelas quais "temos" um mundo, um centro pelo qual, ao mesmo terísticas desse habitus ou sentido prático: de um lado, sua pro-
tempo, ordenamos um mundo ao nosso redor e estamos implica- funda inscrição corporal e, de outro, sua relação específica com a
dos nele. 44 temporalidade. Quanto ao primeiro ponto: Bourdieu mostra, de
Gostaríamos, sobretudo, de evocar aqui a maneira como forma bem precisa, em que os esquemas de percepção, de apre-
Pierre Bourdieu rearticula as descrições fenomenológicas do mun- ciação e de ação que constituem o senso prático são o produto
do da vida nos termos de uma pragmdtica (ou de uma teoria da de uma incorporação profunda "das estruturas e tendências do
ação), graças à noção de habitus. mundo" .4s O senso prático ou o habitus é, primeiramente, uma
É verdade que o uso desta palavra não nos afasta do campo montagem do corpo, e de um corpo a respeito do qual Bourdieu
semântico implicado na noção de hábito. Mas Bourdieu justifi- insiste no fato de ele ser exposto ao mundo, e até de ele "estar em
ca a sua escolha pela razão seguinte: a palavra "hábito" é muito perigo no mundo". 46 Mas é justamente essa exposição ao mundo
"marcada" pelos valores de repetição e de rotina, enquanto a no- que dá ao corpo a capacidade "de adquirir disposições que são
ção de habitus deixa espaço para uma parte de criatividade, para abertura para o mundo". 47 Essa dialética do ativo e do passivo é a
a aparição não prevista da novidade. De qualquer forma, o que característica, por assim dizer, da encarnação, mas, sobretudo, ela
está em jogo com o conceito de habitus, para Bourdieu, é levar em aponta que é, antes de mais nada, ao nível do corpo e graças a essa

42
Merleau-Poncy, M. Phénoménologie de la perception. Op. cit., p. 377. '15 Bourdieu, P. Méditations pascaliennes. Paris: Le Seuil, 2003, PP· 201 e seg.
·13 Ibid., p. XlII. 46 Ibid., p. 203.
44
Ibid., p. 162-72. 47
Ibid.
138 O gosto do mundo: Exercícios de paisagem A paisagem, entre a política e o vernacular 139

imanência não refletida do corpo no mundo que são reguladas as hábito não está sempre perfeitamente ajustado). É nesse intervalo,
relações, as trocas e os equilíbrios entre o homem e o mundo. É ao e nessa margem de incerteza, que se instalam as noções de habi-
nível do corpo que se efetuam as transações afetivas com o meio lidade, destreza, know-how, e, mais geralmente, esse intervalo é o
social, insiste Bourdieu, que são necessárias a toda aprendizagem espaço em que uma inteligência prática pode ser acionada.
da ordem social. Bourdieu insistiu várias vezes sobre a dimensão propria-
A esse respeito, Bourdieu sublinha o fato de o habitus, "ha- mente criativa do habitus. É justamente por essa razão que ele quis
bitado pelo mundo que habita", ser ao mesmo tempo "preocupa- distingui-lo do hábito. Aproximando-se bastante de Wittgenstein
do pelo mundo onde intervém ativamente, numa relação imedia- neste ponto, vai buscar exemplos na prática de jogo, e observa:
ta de envolvimento, de tensão e de atenção, que constrói o mundo "Basta pensar na decisão instantânea do jogador de tênis que corre
e Ihe da' semi'do " . Exposto ao mun do, envolvido
. nele, o corpo é,
48
até a rede a contratempo para entender que nada tem em comum
entretanto, capaz de agir sobre ele, de dominá-lo dando respostas com a construção erudita que o treinador, após análise, elabora
apropriadas, de utilizá-lo como instrumento. Como caracterizar, para relatá-la e tirar lições comunicáveis". 50
entretanto, esse domínio, essa faculdade do corpo de agir sobre o A decisão instantânea do jogador não é determinada meca-
mundo? Como caracterizar, afinal de contas, esse sentido práti- nicamente por uma causa física, também não é o produto de um
co? Não é impossível, finalmente, encontrarmos nessa análise os cálculo racional objetivo; finalmente, não é a reprodução de um
elementos que nos permitam aprofundar a nossa compreensão do aprendizado; é ao mesmo tempo tudo isso e mais que isso: uma
vernacular. improvisação, uma iniciativa que reconfigura a situação em um
Bourdieu enfatiza o fato de o habitus não estar numa sentido que estava presente, mas somente a título virtual, e que
relação de exterioridade com o mundo, com as coisas que o ro- poderia muito bem jamais ter aparecido se o jogador não tivesse
deiam, ele está profundamente envolvido com este e é a natureza agido. O habitus, nesse ponto, produz novidade, é produtor de
específica desse conhecimento envolvido, comprometido, que é história, mas segundo um mundo que lhe é próprio.
preciso descrever. O habitus, escreve Bourdieu, entende o mundo E é nisso, principalmente, que o habitus está próximo das
"bem demais, em cerro sentido, sem distância objetivante, como noções de vernacular e de costume, tais como utilizadas por Jack-
se fosse óbvio, precisamente porque está incluído nele, porque é son em suas reflexões sobre a paisagem vernacular e suas renova-
inseparável dele, porque o habita como um hábito ou um hábitat ções na história. O habitus é como um costume, de certa forma:
49
familiar". Para o habitus, o mundo é familiar, é sua casa, é sua uma ação regular, mas sem regra formalizada. É o que faz, diz
paisagem ou seu espaço cotidiano, e o habitus (é justamente o que Bourdieu, que as condições engendradas pelo habitus não tenham
o define) é ajustado a essa frequentação familiar. Coincide com a bela regularidade das condutas deduzidas de um princípio
o mundo. Mas, justamente, coincide com mais ou menos apro- legislativo: o habitus estd ligado à imprecisão e ao vago. Esponta-
ximações, ajusta-se mais ou menos perfeitamente (quer dizer: 0 neidade geradora que se afirma na confrontação improvisada com
situações sempre renovadas, obedece a uma lógica prática, a da
48
Ibid., p. 206.
49 Ibid. 50 Bourdieu, P. Choses dites. Paris: Minuit, 1987, p. 21.
140 O gosto do mundo: Exercícios de paisagem

imprecisão, do aproximativo, que define a relação comum com 0 IV. Cartografar, construir, inventar -
mundo. 51
notas para uma epistemologia do
Mas este modo de agir na imprecisão, no vago, no incerto,
para finalmente se ajustar de forma criativa, é 0 que caracteriza encaminhamento do projeto
também a construção vernacular da paisagem, ao menos tal como
a descreve Jackson: é a paisagem comum, é a fábrica comum dos
lugares que são aqui caracterizados.52

A criação é a elaboração das ideias


pelo gesto de jàzer.
V. Flusser

Um dos aspectos mais provocantes do trabalho de alguns


artistas da land art dos anos 1960 foi a maneira como eles se
interessaram ativamente pela cartografia e, sobretudo, permitiram
redefinir as relações do mapa e do território. Como para ilustrar o
dito de Jean Baudrillard segundo o qual é o mapa que precede e gera
o território, artistas como Denis Oppenheim, Robert Smithson ou
Richard Long instalaram entre estes dois polos de seus trabalhos
um espaço de circulações e remissões permanemes.1 É verdade
que esses artistas não foram cartógrafos no sentido profissional
do termo. Chegaram à cartografia a partir de um questionamento
próprio da arte, relativo às relações que a obra mantém com o real,
com o espaço, o tempo, a matéria e, mais geralmente, relativo aos
quadros perceptivos e simbólicos da experiência do mundo. O mapa,
nesta perceptiva, foi considerado como uma ferramenta plástica e

51
lbid., p. 96.
52
Para uma :bordagem da questão do comum na filosofia e nas ciências sociais
comemporaneas, ver · e San d ra Laug1er,
· 1 Para uma apresentação geral da land art, ver: T1berghien, G. A. Land art. Op.
''O . . . .o vo lume dirigi do por Claude Ga uner
L rdmazre et !e Poltt1que (Paris: PUF, 2006). cit.; e, cm particular, o capítulo V, "Cartes et inscrip cions".
142 O gosto do mundo: Exercícios de paisagem Cartografar, construir, inventar... 143

teórica que permite dar à pintura e à escultura uma abrangência próprios mapas com fins lúdicos, poéticos ou políticos, ou, en-
verdadeiramente geográfica. tão, utilizarem a forma mapa para instalar narrativas de vida
ou, ainda, utilizarem o mapa para levar a uma interrogação so-
A land art ou a arte conceicual [escreve Marie-Ange Brayer], bre os limites ou as opacidades da representação ... A geogra-
saindo do espaço do ateliê para trabalhar na natureza ou na cida- fia dos artistas contemporâneos, escreve Nicolas Bourriaud,
de, verão no mapa um instrumento de extensão da espacialidade "[... ] explora hoje os modos de habitação, as múltiplas redes nas
da obra no espaço real enquanto o próprio corpo em movimento quais evoluímos, os circuitos pelos quais nos movemos e, sobretu-
toma agora a medida do espaço (Brayer, M. A., l 995, p. 8). 2 do, as formações econômicas, sociais e políticas que delimitam os
territórios humanos" .5
Mas, com isso, esses artistas foram levados a questionar o Para responder a esses novos objetivos, esses artistas inven-
mapa como instrumento de representação. Revelando, por e em tam novas ferramentas topográficas:
suas obras, as dimensões reflexivas e criativas do mapa, também
expuseram corno este, mais que uma simples intenção de repre- O traçado do mundo contemporâneo não passa necessariamen-
sentação, carregava também em si um projeto de interpretação e te pela sua figuração realista, mas por construções formais que
transformação do território. misturam diagramas, vídeos ou modeüzaçóes. O que não é mais
De maneira mais geral, o mapa é hoje um dado do tra- figurável pode, em compensação, continuar sendo percorrido
balho artfsrico. 3 Ele é considerado e, sobretudo "trabalhado'', [...]. (Bourriaud, N., op. cit., p. 21). 6
"manipulado", como objeto que oferece materiais plásticos e
conceituais originais podendo ser postos a serviço da arte, mas Não é um paradoxo pensar que esta liberdade da relação
também, simetricamente, podendo servir a uma interroga- que os artistas mantêm com o mapa aproxima-se do tipo de li-
ção sobre a arte e seus meios. 4 Vemos artistas produzirem seus beração ou flexibilização da relação com o mapa que observamos
hoje na epistemologia e na história da cartografia.
1
De fato, paralelamente a esses processos artísticos, mas,
Rrayer, M. A. "Mesures d'une fiction picturale: la carce de géographie". Exposé,
n. 2, 1995, p. 8. curiosamente, sem relações explicitadas com esses processos (pelo
3
N umerosas exposições foram consagradas a esta questão nos últimos anos. Ver, menos até recentemen te), os teóricos e historiadores da cartogra-
encre outros: Domino, C. Géographiques. Corte: FRAC Corse, 1997; Küng, M . fia também foram se desligando, aos poucos, de uma concepção
e Brayer, M.-A (dir.). Orbis Terrarum. Wáys of Worldmaking. Cartography and
puramente "naturalista" e "positivista" do mapa. Af também foi
Contemporary Art. Anvers: Musée Plantin-Morecus, 2000; Bourriaud, N. (dir.).
GNS - Global Navigation System. Paris: Palais de Tokyo/Cercle d'Arr, 2003; Le se espalhando, progressivamente, a ideia segundo a qual o mapa
Dessus descartes. Art contemporain et cartographie. Bruxelas: Iselp, 2004; Mapping veicula um projeto relacionado ao território que representa, e
the imagination. london: Victoria and Albert Museum, 2007; Being Here.
Mapping the Contemporary. Bucarest: Pavilion, 2008.
4
Harmon, K. You Are Here. Personal Geographies and Other Maps ofthe Jmagina- 5 Bo-urriaud, N. (dir.), "Topocritique: l'art contemporain et l'invescigation géogra-
tion. New York: Princeton Archicectural Press, 2004; Tibergh ien, G. Finis terrae. phique". GNS- Global Navigation System. Op. cit., p. 9.
Imaginaires et imaginations cartographiques. Paris: Bayard, 2007. 6 lbid., p. 21.
144 O gosto do mundo: Exercicios de paisagem Cartografar. construir, inventar... 145

este projeto não é somente de conhecimento, como podemos ver No que diz respeito à relação ativa que o paisagista ou o ar-
exemplarmente já nos mapas utópicos, ou religiosos, antigos, por quiteto de paisagem mantêm com o território, podemos dizer que
exemplo . Muitos consideram o mapa menos como o produto e ;t operação cartográfica já é um acionamento projetual: as diversas

o suporte de uma operação cognitiva que como um instrumento operações de coleta de informações, de seleção, de esquematiza-
estratégico utilizado em uma situação de comunicação que seca- <,:ão, de síntese, mas também de transcrição dessas informações, e,
racteriza pelo conflito das representações e dos interesses. llnalmente, de desenho, que definem intelectual e praticamente a
O mapa veicula certo número de intenções, políticas espe- atividade cartográfica, já fazem do mapa algo como "um operador
cialmente, e é destinado a produzir efeitos de poder na sociedade de construção da paisagem", para retomar aqui uma expressão fe-
e na cultura. De forma mais geral, a cartografia (e muito antes de 1iz de Gilles A. T iberghien. 9 Desde o momento da elaboração e,
ela ter tomado a aparência "científica" que lhe atribuem) é hoje por assim dizer, do "pensamento" do mapa, este contribuiu para
considerada como parte interessada nesses processos sociais que a uma ação. É o sentido mesmo da famosa distinção deleuziana en-
geografia culmral chama de processos de tcrritorialização, para no- tre o mapa e o decalque: "Se o mapa se opõe ao decalque é por ser
mear justamente esses conjuntos de operações técnicas e simbólicas inteiramente voltado para uma experimentação em contato direto
pelo intermédio das quais as sociedades humanas marcam seu es- com o real... Um mapa tem de ser eficaz ...". 10
paço de vida, apropriam-se dele, dando-lhe sentido e identidade. As notas que seguem visam a relacionar três coisas: o proje-
Devemos considerar o mapa como uma expressão iconográfica da to de paisagem, a cartografia e a lógica do pensamento inventivo.
vida mental da humanidade ou, corno diz John Brian Halley, como Gostaríamos de indicar em que uma reflexão sobre o projeto de
uma ferramema fundamental que "ajuda a mente humana a dar paisagem pode ser enriquecida por uma reflexão sobre o mapa,
sentido ao seu universo em diferentes escalas''.7 No plano da ima- ela mesma considerada do ponto de vista de uma análise da lógica
gem, de fato, o mapa fornece ao território uma medida, ou seja, ao intelectual que subentende os processos de invenção.
mesmo tempo uma grandeza, uma escala e um dimensionamento. O objetivo é, portanto, necessariamente circunscrito: não se
Ele define orientações, distribuições, ordenamentos e hierarquias, trata aqui de considerar, de forma geral e completa, o projeto de
nos espaços e, mais geralmente, nos objetos geográficos. Mas esses paisagem (não abordaremos, em particular, as questões relativas
diversos elementos, que oferecem, todos eles, um eixo de leitura e
de transformação do território, têm uma origem e uma destinação Cartographic Reason. Chicago and London: T hc Universiry of Chicago Press,
sociais e culturais. Fazem parte desse grande diálogo que a cultura 2007; Harley, J. B. The New Nature of Maps. Essa;•s in the History of Cartogm-
phy. Baltimore and London: The John Hopkins Universiry Press, 2001; Jacob,
mantém consigo a respeito do seu mundo. 8
C. L'Empire des cartes. .Approche théorique de la cartographie à travers l'histoire.
Paris: Albin M ichel, 1992; Monmonier, M. How to Lie with Maps. Chicago anel
7
Harley, J. B. "The Map and thc Developmenr of che History of Cartography". ln LonJon: Universiry ofChicago Press, 1991; Wood, D. The Power ofMaps. New
Harley, J. B. and Woodward, D. í'he History ofCartography. Chicago: University York: Guilford Press, 1992.
of Chicago Press, 1987, v. 1, p. !. ~ Tiberghien, G. A. Land art. Op. cit., p. 165.
8
Besse, J.-M. "Carrographie et pensée visuelle. Réflexions sur la schématisation 10 Deleuze, G. e Guattari, E Mille plateaux. Paris: Minuit, 1980, p. 20. Ver tam-
graphique". In Laboulais, I. (dir.). Les Usages de la carte. Strasbourg: Presses Uni- bém: Comer, J. ''The Agency of Mapping". l n Cosgrove, D. (cd.). Mrrppi11gs.
versitaires de Strasbourg, 2009, pp. 19-32; Olsson, G. Abysmal. A Critique of London: Reaktion Books, 1999, PP· 213-52.
146 O gosto do mundo: Exercícios de paisagem Cartografar, construir, inventar... 147

aos desafios sociais e políticos do projeto, nem ao contexto parti- geografia segundo Ptolomeu: a representação gráfica. Esta "repre-
cular definido pela encomenda, seja esta pública ou privada, nem sentação pelo desenho" é o mapa propriamente dito, ou seja, de
o papel eventual da mediação social que desempenham a figura- fato, um conjunto constituído por traços geométricos e uma lista
ção e a cartografia etc.), 11 mas apenas de interrogar um aspecto de nomes. Este mapa é chamado de imagem (eikôn), e mantém
desse processo. Aquele referente ao surgimento e ao desenvolvi- com seu referente, seu objeto, a superfície da Terra, uma relação
mento da "ideia" ou da "forma interior" que estrutura, organiza, de mimese. No século XVI, passou-se a designar essa atividade car-
de modo subjacente, o processo do projeto e, correlativamente, tográfica como uma atividade descritiva: descreve-se pelo desenho
aquele que diz respeito ao lugar ocupado neste desenvolvimento e pela linguagem, no intuito de imitar. 12 Mas a questão é saber por
pelo mapa e, mais geralmente, pela atividade de figuração (carto) que o mapa é necessário . Por que o recurso à imagem cartográfica?
gráfica. A ideia geral que gostaríamos de sustentar é a seguinte: Ptolomeu justifica o recurso - ao qual ele chama também
o projeto de paisagem é uma cartografia do território, e é por de "representação pictural" - por uma constatação cujo alcance é
isso reconfiguração do território. Mais exatamente, ele é, em si, fundamental do ponto de vista psicológico e epistemológico: di-
um ato de reconfiguração cartográfica. E é a "racionalidade" dessa ferentemente do céu, efetivamente, que os seres humanos podem
operação que gostaríamos de tornar patente. ver na sua quase totalidade já que "podemos vê-lo girando em
volta de nós", para a Terra, em compensação, somos obrigados
Cartografar a recorrer à representação gráfica já que "[ ... ] a Terra verdadei-
ra, cujas dimensões são muito grandes e que não nos rodeia, não
Qual mimese? pode ser percorrida inteiramente por um mesmo indivíduo, nem
por fragmentos sucessivos". 13
Comecemos por fazer a pergunta sobre o gênero de entida- No caso da geografia, no sentido estrito, entende-se: a ge-
de intelectual que constitui o mapa. É uma ferramenta que pro- ografia, que é definida como o conhecimento da Terra habitada
duz conhecimento, sem dúvida, mas de que natureza específica é (o ecúmeno) em sua totalidade, que é, portanto, perpassada por
esta ferramenta? Para abordar esta q uestão, será preciso voltarmos um objetivo geral, não corresponde a uma experiência do espa-
ao passado mais antigo, no momento em que foram definidos os ço que poderia ser feita por um ser humano. O espaço terrestre,
princípios da atividade cartográfica, ou seja, entre os geógrafos de considerado como um conjunto, não é uma realidade diretamen-
Alexandria. te apreensível pelo olho humano. O que é verdadeiro para Pto-
Ptolomeu: "A geografia é a representação pelo desenho da lomeu continua sendo para um cartógrafo contemporâneo. E é
parte conhecida da Terra em sua totalidade." Deixemos de lado as justamente esta realidade geral, cuja escala excede as capacidades
questões de conteúdo (a parte conhecida da Terra) e de escala (em
sua totalidade) e consideremos apenas a operação fundamental da
12
Para uma reconstiruição desta história, ver: Besse, J.-M. Les Grandeurs de la Terre.
Aspects du savoir géographique à la Renaissance. Op. cit. (primeira parte).
11
Sobre este último ponto, ver: Debarbieux, B. e Lardon, S. (dir.). Les Figures du u Ptolomeu. Géographie. I, 1, 7 (trad. G. Aujac em: Claude Ptolémée astronome,
projet territorial. La Tour-d'Aigues: [Aube, 2003. astrologue, géographe. Paris: CTHS, 1993, p. 308).
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perceptivas naturais do indivíduo, que o geógrafo busca represen- mapa, como nos limitamos a d izer durante muito cempo, já que
tar, mais especificamente apresentar ao olhar do espectador, com sabemos agora que nenhum mapa pode ser totalmence exaco e que
todos os recursos da mimese. 14 O geógrafo é um fabricador de está sendo questionado esse fantasma da exatidão e do mapa per-
imagens, que também são ferramentas sem as quais é impossível reico.1 5 o problema, no caso da cartografia, seria mais o do tipo
acessar visualmente o mundo em que estamos mergulhados sem de relação com o real que ela instala. Qual sentido de realidade o
poder dominá-lo com o olhar. mapa institui no olho e na mente de quem o contempla?
É verdade que o mapa-múndi, o globo miniatura e, hoje em É preciso destacar duas coisas acerca deste ponto que parece
dia, as imagens de satélite, são os únicos meios visuais que permi- um paradoxo: de um lado, o mapa é um objeto intermediário,
tem ao geógrafo obter uma visão da Terra inteira, ou seja, uma um sinal por meio do qual podemos ter acesso a uma realidade
percepção total, sintética, do globo cerrestre como tal. Mas, ainda exterior, mas, por outro lado, entretanto, este objeto, este símbo-
mais, é preciso reconh ecer que a relação mantida com a Terra lo, são os próprios lugares onde esta realidade pode ser percebida
como totalidade visual não é preexistente a esses mediadores. Em como cal. O que quer dizer que a realidade à qual o mapa remete
outros termos, a Terra percebida como um todo é instituída por e é uma realidade totalmente singular, que só existe na relação de
nessas imagens, p rincipalmente cartográficas, que a representam. dependência que tem com o mapa do qual é a remissão ou o alvo.
Consequentemente, o acesso que podemos ter à visão da realidade Esta realidade é, por assim dizer a ' realidade-do-mapa', seu re-
terrestre é concomitante, e dependente, do acesso ao mapa, bem presentado (e não seu reference) . E esse representado do mapa é
como aos outros tipos de imagens que representam essa realidade. dependente do próprio ato cartográfico, mesmo se, aos olhos da-
É na representação, na imagem, e em nenhum outro lugar, q ue queles que olham o mapa, ele vale como o referente, a realidade à
a Terra como totalidade visível se revela, se mostra aos homens, qual se faz referência. Em outras palavras, o mapa institui por si
ao seu olhar. A representação cartográfica, tratando-se do mapa- só uma entidade intencional que é aquela à qual nos reportamos
-múndi em particular (mas seria possível generalizar o propósito como sendo a realidade. É n isso, ou seja, porque ela institui essa
aplicando-o em outras escalas), justifica-se p lenamente, então, entidade q ue vale pelo real em si, que o mapa pode ser considera-
porque se trata de mostrar, figurando-a, uma realidade à qual só do como criador e como a expressão de um projeto em relação à
podemos ter acesso através e dentro da própria rep resentação. realidade. O mapa é a represen tação desse projeto.
Daí uma pergunta que poderia ser feita sobre a natureza e Christian Jacob, ao comentar essa situação paradoxal, fala a
o estatuto das realidades geográficas. Qual é o estatuto ontológico esse respeito de m imese impossível:
exato dessas realidades às quais só podemos ter acesso na imagem?
Aqui está um dos problem as históricos e epistemológicos mais fas- A mimese pictural dispõe de um modelo, que lhe basta imirar.
cinantes relativos à cartografia (pelo menos a que precede o século Ela produz uma imagem à semelhança desre objeto real. Mas
XX). Este problema não é somente o da exatidão referencial do
1' Sobre esta questão, ver: Besse, J .-M. "Cartographie et pensée visuelle". ln Labou-
14
Jacob, C. "La mimésis géographique en Grece antique" . Sémiotique de l'architec- lais, 1. (dir.). Les Usages de la carte, op. cit., assim como Tiberghien, G. A. Finis
ture. Espace et représentation. Paris: Éditions de La Villette, 1982, pp. 53-80. terrae, op. cic., p. 29 e seg.
150 O gosto do mundo: Exercícios de paisagem Cartografar, construir, inventar... 151

a mimese geográfica não é propriamente a reprodução de uma Descrever graficamente a ideia


forma existente: ela não imita o ecúmeno, mas se refere mais
a uma "ideia" deste espaço, e esta ideia só pode resultar das Voltemos a essa questão das "mediações", ou seja, mais ge-
representações anteriores. Por não poder, a partir de algum ralmente à questão do processo intelectual que subentende, como
observatório celeste, pintar a Terra na veracidade de todas as disse Christian Jacob, a "construção" da imagem cartográfica.
suas formas, qual Ícaro ou Dédalo, o cartógrafo deve dispor A restrição intelectual e perceptiva evocada aqui é bem co-
de um conjunto de mediações, que lhe permitirão restituir, ou nhecida dos geógrafos, desde Srrabon, que a colocaram na pers-
melhor, construir essa realidade inapreensível (Jacob, C., op. pectiva de um problema geral relevante da psicologia do conhe-
cir., p. 61). 16 cimento:

O problema é, então, saber como o mapa pode elaborar É mais frequentemente a partir da tradição oral que todos
- se é que pode - um sentido da realidade. Se o mapa vale para nós recompomos forma e dimensões, e todas as características
o território, no sentido em que o institu i para um olhar que naturais, em qualidade e quantidade, da mesma maneira
sem ele estaria sem objeto, resta determinar o que o diferencia que a inteligência, a partir dos dados dos sentidos, recompõe
efetivamente de outras imagens (pinturas narrativas, cenas de os conceitos. Por exemplo, a forma, a cor, as dimensões de
devoção etc.) que também instalam realidades inacessíveis sem uma maçã, seu cheiro, a qualidade do seu contato, seu sabor
a sua operação. A imaginação não é, geograficamente falando, são apreendidos pelos sentidos: a partir daí, a inteligência
regulada pela fantasia. Trata-se efetivamente, mesmo se a fór- recompõe o conceito de maçã. Da mesma forma, quando se
mula pode parecer paradoxal, de imaginar o real, no caso de trata de figuras de certo tamanho, os sentidos só nos permi-
dar sua imagem à superfície da Terra, espaço das viagens e das tem ver fragmentos; é a inteligência que compõe o conjunto a
experiências. E a questão é, portamo, de saber como é possível, partir do que o olho viu. É desta forma que procedem os estu-
pela imaginação, instalar dentro do saber geográfico uma cons- diosos: confiando nesses tipos de órgãos sensoriais que são os
ciência de realidade. Toda uma parte da reflexão dos geógra- diversos indivíduos que, viajando, viram diversos países, eles
fos e pedagogos da geografia na idade clássica interessou-se por recompõem (suntitheasin) em um esquema único (diagramma)
essa questão. Os múltiplos projetos de jardins geográficos que se 0 aspecto (hopsin) do mundo habitado em sua totalidade (Stra-
desenvolveram a partir do século XVI devem ser considerados bon, 1969). 18
como tentativas de resposta a esta questão. 17
Vale observar a analogia instituída por Strabon. Segundo
ele, os informantes, os viajantes, testemunhas diversas dos lugares
estudados pela geografia, são, para esta última, o que os órgãos
16
Jacob, C. "La mimésis géographique en Grece antique". ln Sémiotique de l'archi-
tecture. Espace et représentation. Op. cit., pp. 53-80 (p. 61).
17
Cf. Besse, J.-M. Face au monde: atlas, jardins, géoramas. Op. cit. (especialmente a 1s Strabon.Géographie. U, 5, 11. Paris: Les Belles Lemes, 1969. A analogia terá
segunda parte) . longa posteridade, de Nicolas de Cuse até Conrad Malte-Brun.
Cartografar, construir, inventar... 153
152 O gosto do mundo: Exercícios de paisagem

sensoriais são para a inteligência. A geografia parece exemplar do Os termos empregados por Strabon (suntitheasin, hopsin)
trajeto cognitivo do ser humano em geral. O conhecimento hu- :..ío explícitos: trata-se efetivamente, para o geógrafo, de recom-
mano, escreve Strabon, é uma atividade de síntese intelectual que por um conjunto que é da ordem da visão. A síntese intelectual
consiste em reunir os aspectos fragmentais das coisas, que foram cm geografia é orientada para a composição de uma imagem
transmitidos pelos sentidos, para formar um conceito de conjunto ou de um esquema unificador. Em outras palavras - o modo
dessas coisas. operatório é claro neste ponto - o movimento da mente vai dos
Entretanto, Strabon não se contenta em evocar o proces- sentidos até a imaginação, passando pelo intelecto. O intelecto
so de abstração, que leva a inteligência humana desde as qua- ocupa uma posição central: ele recolhe os dados dos sentidos e os
lidades sensíveis das coisas até o conceito que une, de maneira sintetiza, e compõe, a partir desta síntese, uma imagem ou uma
subjacente, essas qualidades. A inteligência atua, além disso, representação unificada do que os sentidos forneciam de forma
de modo específico no nível do conhecimento do espaço. Mais parcial. Não sabemos se esta representação é puramente mental,
exatamente, ela restitui em espírito a verdadeira grandeza dos ou então se ela se inscreve visualmente num suporte, dando des-
objetos "de certo tamanho", que o olho não poçl.e abarcar em sa forma, por assim dizer, ao conceito do território representado
sua totalidade. A síntese intelectual vem substituir a impos- sua aparência concreta. Talvez não seja necessário buscar desfa-
sível sinopse visual. O conhecimento geográfico, confrontado zer a ambiguidade. A palavra utilizada por Strabon, diagramma,
por vocação com a experiência dos territórios que ultrapassam veicula essa ambiguidade semântica.
pelo tamanho as capacidades perceptivas do indivíduo, é um Mas reparamos que o geógrafo constrói mais um dia-
campo de aplicação privilegiado desse processo, q ue substitui a gramma que um eikôn no sentido simples do termo. O diagram-
dispersão das observações visuais pela unidade do conceito. A ma - ou seja, o mapa - é um eikôn de um tipo particular, efeti-
inteligência do cartógrafo é uma inteligência de montagem, de vamente. A noção de diagramma remete-nos, de um lado, a um
composição e de combinação. Voltamos ao problema ptolomai- ato de escritura (gramma, relação com graphein) e, de outro, a
co evocado anteriormente. um ato de articulação lógica (dia-, ao mesmo tempo distinguir
Mas, a bem da verdade, a analogia straboniana diz tam- e juntar, encadear o que é distinto). Da mesma maneira que um
bém outra coisa, acerca das relações entre as atividades do geó- desenho anatômico é um diagrama do corpo humano, a repre-
grafo e a abordagem canônica da inteligência cognitiva. De fato, sentação geográfica não é um simples retrato, mas a expressão
se lermos atentamente esse trecho de Strabon, percebemos que de um ato de síntese intelectual encarnada na composição grá-
se, efetivamente, de um lado, o conhecimento em geral vai dos fica de uma imagem. Ao lidar com a noção de diagrama, esta-
sentidos até o conceito, no caso específico da geografia o movi- mos lidando, portanto, com uma enc idade intelectual que é, ao
mento da síntese é que leva, desde esses tipos de órgãos sensoriais mesmo tempo, ideia e imagem, processo de construção e figura
que são os viajantes, não só para um conceito, mas, além disso, resultante da construção, processo mental e ato gráfico, o que
para o estabelecimento de um esquema, ou de um diagramma, nos leva a um problema epistemológico fundamental, que é o
o que não é exatamente a mesma coisa. E esse esquema, ou esse da construção dos objetos geográficos e, mais geralmente, dos
diagrama, é o mapa. objetos de conhecimento.
154 O gosto do mundo: Exercícios de paisagem Cartografar, construir, inventar... 155

Construir Mas ver, nas ciências do espaço, não é dissociável de operar.


Ver geometricamente uma linha é traçá-la mentalmente. Da mes-
Tentemos, então, definir com maior prec1sao a natureza ma forma, ao exemplo de Euclides (1, 4), nós "vemos" a igualdade
desta atividade intelectual de síntese que consiste em elaborar es- das figuras geométricas em geral transportando-as e sobrepondo-
quemas ou diagramas a partir de ideias ou conceitos, que também as mentalmente uma sobre a outra, por um ato de imaginação
são sínteses intelectuais. Essa atividade intelectual será caracteriza- que possui a vantagem, segundo D'Alembert em seu Essai sur les
da como atividade de construção. éléments de philosophie (1759), "de satisfazer a mente falando aos
olhos".21 Enfim, a operação mental subjacente ao ver e ao operar
Kant e a construção é constituída, exatamente, pelo ato de construir.

Ainda resta determinar o que significa aqui "construir". Po- Quando a intuição correspondente a um conceito pode ser con-
demos recorrer a Kant e dar à palavra "construção" um significado jugada a priori, diz-se que este conceito é construído; se for ape-
kantiano: o conhecimento dos territórios e, mais especificamente, nas uma construção empírica, diz-se que é um simples exemplo
o conhecimento cartográfico, tanto quanto a geometria, progri- do conceito; a ação de juntar a intuição ao conceito é chamada,
dem por construção dos conceitos. 19 em ambos os casos, de apresentação (exhibitio, Darsteilung) do
Para Kant, a geometria é uma atividade demonstrativa. Mas objeto, sem a qual [ ... ] não pode haver conhecim ento algum
o que significa demonstrar em geografia, segundo Kant? T rês atos (Kant, E., 1986, p. 1.272).22
essencialmente, que se encadeiam e se aprofundam mutuamente:
mostrar, operar e construir. Em um primeiro momento, demons- Construir é relacionar um conceito e um olhar, mas de for-
trar quer dizer "apresentar na intuição ". O vocabulário utilizado ma a priori, sem que esta relação seja derivada da experiência.
por Kant é, ao mesmo tempo, visual e retórico. Demonstrar é Como se efetua esse relacionamento que não é outra coisa, vale
instalar na mente uma "evidência", é "colocar sob os olhos", é dar lembrar, que o acionamento de uma operação de demonstração,
ao conceito geométrico uma aparência material sob a forma de e qual a sua natureza? Kant dá um exemplo em Théorie transcen-
uma "hipotipose", de tal maneira que a mente o apreenda na "cla- dentale de la méthode, quando indica como o agrimensor, ao mes-
reza de um conhecimento certo". 20 O procedimento geométrico mo tempo "guiado pela intuição" e passando por uma "cadeia de
é, portanto, sintético, não é identificável numa simples análise inferências", 23 demonstra que a soma dos ângulos internos de um
lógica de conceitos. triângulo é igual a 180 graus. Essa demonstração não é uma sim-

21 O'Alcmbert. Essai sur /es éléments de philosophie ou sur les príncipes des cormais-
19
Kant, E. Critique de la raison pure. Théorie transcendantale de la méthode. Cap. I: sances humaines (I 759). "Corpus". Paris: Fayard, 1986, cap. XV, p. 113.
"Discipline de la raison pure''. ln CEuvres philosophiques. Paris: Gallimard, 1980, 22 Kant, E. Progres de la métaphysique.. ., primeiro suplcmenro, in CEuvres
e. I, p. l.298. (Bibliotheque de la Pléiadc). philosophiques, op. cic., v. 3 (l 986), p. 1.272.
2
° Kant, E. Dissertation de 1770, seção III,§ 15. ln CEuvres philosophiques, op. cic. , 23 Kant, E. Critique de la raison pure. Théorie transcendantale de la méthode. Op. cir. ,

V. l , P· 653. p. 1.300.
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ples análise lógica do conceito de triângulo, já que, procedendo O conceito de esquema talvez se possa entender melhor a partir
desta última forma, conseguimos certamente destacar os conceitos do que, quando devemos fazer uabalhar um compu tador, nos é
subordinados que compõem o conceito de triângulo (linha reta, proposto como diagrama de fluxo (jlow chart) ou enquanto assis-
ângulo, número 3), mas não fazemos, no fundo, nada além de tente. [ .. .] O diagrama de fluxo nos representa, de forma clara,
aprofundar o significado de um conceito que já dominamos, sem a série de etapas que a máquina deve atravessar e que nós deve-
verdadeiramente progredir no conhecimento das propriedades do mos lhe dar a ordem de atravessar [... ]. Essa ideia de diagrama
objeto. Ao inverso deste procedimento simplesmente analítico, de fluxo parece explicar relativamente bem o modo como Kant
próprio do filósofo, o agrimensor kantiano faz três coisas: traça entende a regra esquemática que permite a construção de figuras
linhas e divide ângulos, considera atentamente a figura obtida, geométricas (Eco, U., 1997, pp. 86-7). 21
utiliza as proposições 27 a 32 do livro Idos Elementos de Euclides.
Em outras palavras, instaura uma série de questionamentos que Tentemos, entretanto, aprofundar esta proposta de um pen-
solicitam, ao mesmo tempo, a intuição (ou seja, vale lembrar, o samento construtivo especificando a noção de diagrama. O mapa,
olho), o saber prévio de certo número de propriedades geométri- dizem, é um diagrama do cerritório. 25 O que devemos entender
cas gerajs e, enfim, operações de exploração gráfica (desenhos), aqui por diagrama? Talvez devêssemos partir do que diz Marcel
dando assim à prática do agrimensor a aparência de um verdadei- Duchamp acerca do quadro, que define como "diagrama de uma
ro procedimento experimental. ideia" . Duchamp utiliza esse termo de diagrama a respeito do Nu
Tomemos como hipótese que esta dialética do saber, do descendo uma escada e das relações que este quadro mantém com
olhar e do gesto do desenho (o traçado), que corresponde ao que as experiências cronofotográficas de Marey sobre o movimento.
Kant chama, por outro lado, de "esquematismo transcendental", O quadro que ele pinta é como o diagrama de um movimento:
constitui a dinâmica do pensamento projetual. "Poderão responder-me que não dá de forma alguma a ilusão do
movimento; de fato, não dá, mas descreve-o. Afinal de contas, um
O pensamento do diagrama quadro é o diagrama de uma ideia" .26
O quadro-diagrama de Duchamp descreve o movimento,
Construir um conceito não é, portanto, simplesmente ilus- ou seja, ao mesmo tempo, dá a ver e dá a pensar esse movimento,
trá-lo ou mesmo desenhá-lo, mesmo se esses atos ocupam um lu- desenvolve-o e decompõem-no, capta a marca dele e; ao mesmo
gar fundamental. É, ames de tudo, deter o método de construção, tempo, o reconstrói. O que ele mostra é a ideia do movimento,
o esquema mental que conduz e estrutura de modo subjacente as especificamente a forma interior do movimento, ou seja, não um
diversas operações lógicas, perceptivas ou gráficas que, junto com
outras, entram na constituição dos objetos do conhecimento É 21 Eco, U. Kant et í'ornithorynque. Paris: Grassct, 1997, pp. 86-7.
possuir, especificamente, seu diagrama. Seria preciso retomar aqui 25 É significat ivo que M .-A. Brayer utilize a expressão "mapa-diagrama" para
a comparação feliz que permite a Umberto Eco analisar a teoria designar o trabalho de Richard Long. Cf. "Mesures d 'unc fiction pic turale",
op. cit., p. 21.
do esquema em Kant: 26 Charbonnier, G . Entretiens avec Marcel Duchamp. Marseille: André Dimanche,

1994, p. 59.
158 O gosto do mundo: Exercfcios de paisagem Cartografar, construir. inventar... 159

conceito abstrato e estranho do movimento, mas a dinâmica in- gura constituída, revela e faz resplandecer ao olhar o advento do
terna, a energia desse movimento tal como se desdobra sua vida. mundo, a operação geradora do mundo, mais primitivamente
A descrição é esse diagrama, o traçado da ideia. Não há hiato entre ainda: a condição de possibilidade do que é em geral [... ] O traço
descrever e (re)construir. do pintor em posição de criação [...] é um acontecimento es-
Voltemos à geometria: sencial ao pensamento como tal, ele é uma aventura do espíriro
(Loreau, M., 1998, pp. 188-9).29
Pouco importa ao geômetra que a figura sobre a qual está racioci-
nando renha sido desenhada a lápis, com pena ou com pincel, ou Indicamos há pouco que construir não é somente traçar
até com giz. Como também é indiferente para ele que esteja na linhas, mas tocar simultaneamente nos registros do saber adqui-
areia, cm cima de um muro ou numa folha de papel. Entretanto, rido, do desenho e da observação visual. Trata-se aqui de pensar
o próprio faro traçado não deixa de ser importante, pelo que desenhando e desenhar pensando, e o fundo disso tudo, e o que
revela da atividade, se não do movimento, que pode ser o faro da procuramos enxergar.
geometria: o traçado de uma ou várias linhas suplementares so- Vamos nos deter nessa ideia e na relação que mantém com
bre a figura, ou em volta, corresponde à progressão da demons- o desenho. Os trabalhos do filósofo e lógico americano Charles
tração e pode aj udar visualmente {Damisch, H., 1995, p. 114). 27 Sanders Peirce (1839-1914), e em particular sua teoria semiótica,
permitirão esclarecer essa relação.
Hubert Damisch fala, na mesma página, da "potência de Peirce distingue vários tipos de signos: os ícones (que re-
traçado que está na base da geometria". Esta potência do traço, presentam o objeto por semelhança), os índices (que mantêm
poderíamos acrescentar, também é uma potência de inteligência com o objeto que representam uma relação material) e os sím-
e de visão, já que se trata, ao mesmo tempo, de dar a ver e dar a bolos (que são signos abstratos cujo sentido é convencional). En-
pensar, em uma ação (um ataque, escreve Huberr Damisch, pode- tre os ícones, Peirce especifica os diagramas, que são os ícones
ríamos dizer também uma invocação) que consiste em ir à frente, que reproduzem a estrutura do seu objeto. O diagrama é um
a literalmente se atirar à freme do que não conhecemos ainda (tra- recurso essencial para o pensamento criativo, seja no campo da
ço= tractus) . E a questão é, então, de saber como, por que meios arte ou ainda no da matemática. Peirce está na esteira de Kant
e ao preço de que apostas o espaço pode se abrir ao conceito e o neste ponto. A matemática (ou, melhor dizendo, o pensamen-
conceito se dar uma marca espacial.28 to criativo) é uma arte do traçado: o matemático parte de um
O pintor é como o agrimensor em relação ao traçamento: diagrama, ao qual aplica mental e graficamente certo número
de variações, que ele deforma e transforma metodicamente até
Assim, o traçamento em curso, ao designar-se a si mesmo e so- o momento em que chega ao diagrama final, que é a conclusão
mente a si mesmo, antes do surgimento de qualquer forma ou fi- do raciocínio. O diagrama final impõe-se como tal por exibir
propriedades ou verdades matemáticas inesperadas, insuspeitas.
27
Damisch, H. Traitédu trait. Paris: RMN, 1995, p. 114.
28
Tbid., p. 174. "J!oJ Loreau, M. De la création. Bruxelles: Labor, 1998, pp. 188-9.
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O traçado dos diagramas (que se efetua tanto no espaço mental [nventar


quanto no papel), mais uma vez, não é uma simples ilustração
externa do pensamento. Ele é consubstancial à própria atividade Para caracterizar a "lógica do projeto" que acaba de ser evo-
criadora. Peirce acrescenta: cada, Gilles A. Tiberghien recorre ao filósofo italiano Luigi Parey-
son, adotando a noção de formatividade: a operação do projeto é
O trabalho do poeta ou do romancista [poderiam.os acrescen- "formativa".
tar: do pintor] não é tão diferente ass im daquele do homem
de ciência. O artista introduz uma ficção, mas não é uma Trata-se de fazer não como se a maneira de fazer fosse predeter-
ficção arbitrária, ela exibe afinidades que a mente aprova de- minada e imposta e como se bastasse aplicá-la para fazer bem
clarando que são belas, o que, sem ser exatamente a mesma feito: é preciso, ao contrário, achá-la ao faze r, e só pode ser desco-
coisa, quer dize r q ue a síntese é verdadeira, pertence à mesma berta fazendo, de fo rma que se trata, simplesmente, de inventá-
espécie geral. O agr imensor traça um diag rama q ue é, se não -la, sem o que a obra fracassa e se dispersa em tentativas esparsas
exata mente uma ficção, pelo menos uma criação, e a obser- e abortadas (Pareyson, L., 2007, p. 73).32
vação deste diagrama o torna capaz de sintetizar e mostrar
relações entre elementos que pareciam não ter a ntes nenhu- O que descrevem Luigi Pareyson, a respeita da formação da
ma ligação necessária entre si (Peirce, C. S., trad. Chauviré, obra, e Gilles A. Tiberghien, acerca do movimento do projeto, en-
e., 1990, p. 18). 30 contra um eco na epistemologia da invenção, que se situa, por sua
vez, na perspectiva de uma análise das operações mentais aciona-
Seria preciso, portanto, explorar as molas desse pensamento das na aparição e formação das ideias novas nas ciências. t. possí-
"diagramático", que é, ao mesmo tempo, um gesto (o de traçar), vel, efetivamente, que o processo inventivo nas ciências mantenha
um olhar e um pensamento (que é, na verdade, uma arte da varia- profundas relaçóes com a implantação e o desenvolvimento de
ção mental). Por enquanto, vamos nos contentar com uma única um esquema co nstrutivo do tipo do que acabamos de encontrar.
observação: este pensamento é um pensamento das relações, u ma Voltemos às paginas em que Umberto Eco comenta as no-
apreensão das relações, para ser mais exato. t, um pensamento çóes kantianas de esquematismo e d e julgamento de percepção e,
morfológico, que consiste em revelar a existência de formas, cons- sobretudo, faz convergir Kant e Peirce na análise da formação dos
tru indo-as. Isto não seria "descrever": revela r as formas que estão conceitos empíricos (o conceito do cachorro, da pedra, do cavalo,
aí, fabricando-as, traçando-as? 31 do ornitorrinco ...). 33 Desenvolvendo uma leitura que poderíamos
chamar de "peirceana" de Kant, Umberto Eco busca, na verdade,

32 Pareyson, L. fithétique. Théorie de la formativité. Paris: Rue d'Ulm, 2007, p. 73 .


.io Pcirce, C. S. Col!ected Papers, 1.383. Trad. C. Chauviré em "Le dess in de la Ver o comentário feito por: T iberghien, Gilles A. " Forme et projet". Les Carnets
preuve. Peirce, Wircgens tei n et les mathématiques". La Part de l'mil, n . 6, du Paysage, n. 12, 2005, pp. 96 e seg.
1990, p. 18. 33 Eco, U. Kant et l'ornithorynque. Op. cir. Cap. 11: "Kant, Peirce cr l'ornitho-
·11 Cf. aqui mesmo, no capítulo 1. rynquc". Paris: Grasset, 1997, pp. 61-124.
162 O gosto do mundo: Exercícios de paisagem Cartografar, construir, inventar... 163

estabelecer em que o processo de conceitualização (mas também 11m ornitorrinco. Como se este algo fosse um exemplo do conceito
de reconhecimento perceptivo), que se inicia com as impressões que possuo, ou um caso da regra que conheço. Esse processo inte-
sensíveis, se desenvolve antes de tudo por "inferências hipotéti lectual tem nome: é a abdução. O que é a abdução?
cas". Mas, sobretudo, quer mostrar que cal abordagem hipotética
redefine as relações entre o entendimento e seus objetos de modo A epistemologia e o momento da invenção
característico, especifica ele, solicitando o último Kant, o do Opus
posthumum. Efetivamente, na inferência hipotética, isto é, nessa Para responder a esta pergunta, é preciso, em primeiro lu-
esquematização particular que consiste em projetar à frente a es- gar, re-situá-la no seu contexto epistemológico e semiótica geral.
trutura dentro da qual a observação (a percepção) será possível, Ourante muito tempo, efetivamente, a epistemologia apresentou
podemos dizer que o entendimento faz o objeto, mais do que o a identidade entre ciência e dedução (ou demonstração) como um
determina a posteriori, que "o constrói, e, nesta atividade (proble- verdadeiro postulado. Como se só pudesse haver discurso real-
mática em si) procede por tentativas" .34 Eco acrescenta: mente científico no registro do raciocínio hipotético-dedutivo,
que constituiria, por assim dizer, a sua norma lógica. Dessa for-
A noção de tentativa torna-se crucial aqui. Se o esquema dos ma, depois de Hans Reichenbach, 37 a epistemologia quis separar
conceitos empíricos é um constructo que busca tornar os obje- o "contexto do descobrimento" e o "contexto da justificação". O
tos naturais pensáveis e se a síntese dos conceitos empíricos não campo da epistemologia estaria restrito à construção, ou recons-
pode nunca ser feita, já que será sempre possível descobrir, du- trução, racional do contexto da justificação. Quanto ao contexto
rante experiências posteriores, novos caracteres (nota) do concei- da descoberta, fica confinado entre os objetos de que trata o psicó-
to, então os próprios esquemas só podem ser revisáveis, falhas, e logo. O princípio dessa separação é o seguinte: existe uma grande
destinados a evoluir no tempo (Eco, U., 1997, p. 100). 3; diferença entre as operações psicológicas que o sujeito percorre
e em que distribui seus pensamentos e o sistema das relações ló-
Mas o que é preciso perceber é que colocar, como faz aicas que ordena o conteúdo desses mesmos pensamentos, entre
Peirce, "o processo cognitivo inteiro sob o signo da inferência ~ fato psicológico d e ter ideias e o conteúdo de conhecimento
hipotética"36 nos leva à perspectiva de uma síntese inacabada e, dessas mesmas ideias. O psicólogo pode, sem dúvida, descrever,
além disso, à de uma racionalidade aberta, deliberadamente, para reconstruir a ordem empírica dos encadeamentos de pensamento
o futuro e o possível. Toda percepção, toda denominação, toda que levaram o pesquisador até uma ideia nova, mas a tarefa do
descrição, nesse sentido, deve ser considerada uma hipótese ou epistemólogo é, antes de tudo, construir uma ordem lógica das
uma interpretação, isto é, no modo do como se. Tudo acontece ideias, por meio da qual estas se disponham em um sistema co-
como se este algo que se mexe na minha frente fosse um cavalo, ou erente. Assim, a epistemologia coloca-se como objetivo chegar a
uma metodologia que corresponda à ordem ideal de um conjunto
14
· Ibid., p. 100.
35
lbid. 37 Reichenbach, H. Experience and Prediction. Chicago: The University of Chicago
ci<> lbid., p. 1Ol. Press, 1938, pp. 6-7.
164 O gosto do mundo: Exercícios de paisagem Cartografar. construir, inventar... 165

de operações (ordem dentro da qual uma atividade mental pode a afirmação do seu valor científico. Este valor é constituído meto-
ser reconhecida e nomeada como científica) e se desvie da atuali- dologicamente, no decorrer de um exame lógico e ao término de
dade da experiência do pensamento. um programa de testes.
Karl Popper, mais ou menos ao mesmo tempo que Consequentemente, o que a epistemologia analisa são hi-
Reichenbach, foi quem formulou mais claramente os efeitos póteses já existentes. O objetivo da epistemologia é chegar a uma
dessa decisão em favor da metodologia. Em sua Logique de la metodologia formal que é acionada na teoria estudada, e daí con-
découverte scientifique, 38 distingue, de um lado, o fato de conceber cluir certo número de consequências normativas quanto ao al-
uma teoria e, de outro, o conjunto dos métodos por meio dos cance científico dessa teoria. Se, como Popper, pensamos que o
quais a teoria é submetida a testes. A epistemologia, enquanto método científico é antes de tudo dedutivo, poderemos classificar
análise da lógica do conhecimento, coloca não perguntas de fato, as teorias contrárias segundo seu grau de falseabilidade e seu grau
mas perguntas de direito. Mais especificamente, ela não está de resistência aos esforços envidados para refutá-las. Uma ideia só
interessada pelo momento inicial de emergência da hipótese, mas se torna científica por meio da intetvenção de toda uma série de
examina o arcabouço lógico dos programas de justificação e dos instâncias críticas, que é destinada a garantir a sua objetividade
procedimentos de validação aos quais a hipótese é submetida. e racionalidade, porque mostra as condições da sua legitimação.
Sem dúvida, podemos tentar reconstituir as diferentes etapas do Mas o momento mesmo da emergência da ideia nova, a hipótese
~rocesso que leva à ideia nova. Mas não é o objeto da epistemologia. inventiva, não deve preocupar a epistemologia.
E o campo daquilo que Popper chama de "psicologia empírica". Constatamos assim, sem surpresas, que a epistemologia
Ele duvida, aliás, da capacidade de essa psicologia dar conta do seu mais escrupulosa quanto ao rigor dos procedimentos no estabele-
objeto. Toda invenção contém um elemento irracional, segundo cimento das verdades da ciência satisfaz-se plenamente com uma
ele, e uma investigação factual se limitaria a inventariar a série das concepção irracionalista do nascimento das ideias. Uma metodo-
causas que a acompanharam. logia formal concede de bom grado o direito de existir a uma
Entretanto, Popper acolhe positivamente o movimento da psicologia empírica, ao menos enquanto, na formulação das ver-
conjectura, reabilitando assim o movimento "metafísico" na for- dades, a desigualdade das pretensões é estabelecida, e sustentada.
mação da hipótese (é o que o separa dos positivistas lógicos). Mas Assim, segundo Claude Bernard,
uma demarcação subsiste entre o que é relevante para a episte-
mologia e o que não é. Essa demarcação é de ordem metodoló- [... ] não existem regras a dar para fazer nascer no cérebro, a res-
gica. O nascimento de uma ideia nova não é um acontecimento peito de determinada observação, urna ideia justa e fecw1da que
que diga respeito especificamente à ciência, assinala Popper. O seja para o experimentador um tipo de antecipação intuitiva da
mesmo problema de compreensão surgiria na análise da atividade mente em direção a uma pesquisa bem sucedida [... ]; sua apa-
artística. O que quer dizer que o ineditismo de uma ideia nova e rição foi espontânea, e sua natureza é totalmente individual. É
a sua intensidade expressiva não são absolutamente garantias para

18
Popper, K. La Logique de la découverte scientifique. Paris: Payot, 1978, pp. 27-8.
Cartografar, construir, inventar... 167
166 O gosto do mundo: Exercícios de paisagem

um sentimento particular [... ] que constitui a originalidade ou 0 espírito podem lhe propor de maneira abusiva. A metodologia
gênio de cada um (Bernard, C., 1865, p. 59). 39 acompanha-se, portanto, de uma regra prática da dúvida provisó-
ria e da liberdade de espírito, destinada a tornar o espírito disponí-
A ideia nova é relativa à singularidade de um talento, seu vel às coisas e atento a si próprio. "A primeira condição que deve
surgimento é o elemento de uma experiência criativa de caráter preencher um cientista que se dedica à investigação dos fenôme-
excepcional e, sobretudo, de uma experiência não transitiva. Nis- nos naturais é conservar uma total liberdade de espírito baseada
so, parece, efetivamente, que o surgimento da ideia nova escapa na dúvida filosófica" .40
às exigências da discursividade científica, da qual uma das carac- A ideia nova aparece no contexto dessa disposição prática,
terísticas principais é, justamente, a transitividade de indivíduo a mas é somente depois que o conteúdo científico da ideia é desen-
indivíduo. ~ada um pode fazer e refazer para si próprio, e para volvido em um discurso. A consequência é clara: entre a metodo-
outros, o rra;eto da teoria: nisso reside um dos recursos mais se- logia, que cuida do estabelecimento das verdades, de um lado, e,
guros da objetividade científica, ou seja, da independência da de outro, as prescrições axiológicas, que se preocupam em definir
ciência, na realidade, em relação a qualquer espécie de implica- as posturas espirituais favoráveis ao surgimento da ciência, o mo-
çã~ subjeti:a: ~arece que inversamente, no seu movimento pro- mento da invenção não recebe significação científica positiva. Di-
priamente m1c1al, o ato da descoberta implica a convocação e a vidido entre uma ética do pensamento, que tenta esvaziar este de
promoção de uma individualidade que, longe de compartilhar ou todo conteúdo prévio, e uma metodologia objetiva, que se esforça
percorrer um discurso junto com outros, afasta-se dele, ao contrá- para esvaziar qualquer ideia da subjetividade do seu nascimento,
rio, às ~ezes deliberadamente, para fazer valer a sua originalidade o contexto da descoberta não é reconhecido como momento ra-
numa lmguagem que costuma ser difícil de traduzir, pelo menos cional completo na vida do espírito, que possa ser recebido como
espontaneamente, ou seja, de inscrever na circulação comum das tal pela epistemologia. Entretanto, parece possível, hoje em dia,
significações disponíveis no seio de uma cultura. considerar uma flexibilização dessa concepção.
Existe, portanto, uma espécie de divisão das tarefas do es-
pírito científico, que distingue precisamente o campo das suas A ideia nova e a apreensão das formas
exigências metódicas e o das atitudes estéticas que deve adotar
no exercício do conhecimento. Ela constitui no fundo, segundo Em uma narrativa famosa, Henri Poincaré registrou os di-
~laude Bernard, a máxima de uma conduta do espírito nas ciên- versos episódios biográficos que cercaram a formulação de seus
cias e a mola fundamental de uma educação científica. O cientista primeiros trabalhos. 4 t Essa narrativa logo assumiu valor de pa-
deve, de fato, preparar-se praticamente, moralmente, para receber radigma na literatura relativa à psicologia da invenção. O que é
uma ideia nova, adotando uma atitude que suspende qualquer
preconceito constituído em relação ao que as coisas e seu próprio •0 Ibid., p. 63.
4' Poincaré, H . "Conférence à la Société de Psychologie de Paris". ln Bulletin de
t'lnstitut Général de Psycholügie, n. 3, 1908, eirado em Science et Méthode, Paris:
Flamrnarion, 1908, cap. Ill: 'Tinvcntion machémacique" . Poincaré evoca as cir-
'
9
~ernard, C. Tntroductíon à l'étude de la médecine expérimentale. Paris: J.-B. Bail-
cunstâncias da redação de uma monografia sobre as funções fuschsia nas.
here, 1865, primeira parte, cap. ll, p. 59 .
168 O gosto do mundo: Exercícios de paisagem
Cartografar, construir, inventa r... 169

lembrado, de modo quase exclusivo, é a sucessão dos diferentes


segunda fase, a da incubação, da maturação inconsciente d a ideia.
episódios, tais como descritos por Poincaré. Assim, identificamos
A ideia surge de modo repentino, por assim dizer, quando não se
a alternância das fases de trabalho consciente e metódico, longe
espera, em uma espécie de distração do espírito. Ela surge do exte-
de serem sempre fecundas, e do evento totalmente imprevisto que
rior, sem que possamos ligar de modo claro seu surgimento às cir-
constituía, a cada vez, a irrupção da ideia feliz. Reparamos como a
cunstâncias que a cercam. Poincaré conclui daí que grande parte
ideia aparecia em um contexto aparentemente sem relação com a
da atividade do pesquisador é de ordem inconsciente. A invenção
pesquisa. É durante uma viagem de lazer, ou em férias, ou durante
eleva-se numa história íntima caracterizada pela descontinuidade,
o período de serviço militar, que os eventos acontecem:
por todo um trabalho sinuoso de ligações e desligações que escapa
à consciência lógica do pesquisador. Esse movimento interior de
Chegando em Courances, subimos numa diligência para não sei
uma expressão que se busca permanece oculto para quem é o pró-
qual passeio; no momento em que eu colocava o pé no estribo,
prio sujeito. Este só tem acesso às manifestações finais do trabalho
ocorreu-me a ideia, sem que nada em meus pensamentos ante-
secreto da mente.43
riores parecesse ter me preparado para ela [...] . Passei então a es-
Entretamo, a conferência contém algo mais que a simples
tudar as questões de aritmética sem grandes resultados aparentes
narrativa de um acontecimento excepcional na vida de um cien-
[... ]. Desgostoso do meu fracasso, fui passar alguns dias à beira-
tista. Quando Poincaré procura identificar a natureza e a signifi-
-mar, pensando em coisas totalmente diferentes. Um dia, pas-
cação da experiência mental que acaba de descrever, sua análise
seando pela falésia, ocorreu-me a ideia, sempre com as mesmas
insere-se em um projeto mais amplo, que visa a elucidar a inteli-
características de brevidade, espontaneidade e certeza imediara
gência matemática. Poincaré questiona-se, efetivamente, em sua
[... ]. Um dia, atravessando a avenida, a solução da dificuldade
conferência, antes de tudo, sobre os "hábitos" de espírito e de tra-
que me imobilizara apareceu-me de repente. Eu não busquei
balho que caracterizam especificamente os matemáticos. Começa
aprofundá-la imediatamente, e só depois de meu serviço retomei
por um espanto e uma pergunta carregados de sentido: como é
a q uestão (Poincaré, H., 1908, pp. 51-3) .42
43 Jean Hadamard prolongou o esquema de Poincaré desenvolvendo-o em Essn.i
Essa questão motivou a constituição de um esquema, ou até sur ia psychologie de l'invention dans ie cblmaine mathématique (Paris: Blanchard,
de uma metodologia da invenção, por alguns psicólogos da cria- 1959). A questão é lembrada mais recentemente em: Changeux, J.-P. e Cannes,
ção (para uma aplicação nos campos da educação, da indústria... ). A. Matiere à pensle. Paris: O. Jacob, 1989 (cap. lV). Sobre esta questão das "fa-
ses" psicológicas que se sucedem no processo da invenção, poderemos consul-
Nesse esquema, percebem-se geralmente três fases: 1) uma fase tar Moles, A. La Crlation scientiflque (Geneve: R. Kister, 1957), assim como
lógica (formulação do problema, coleta dos dados, busca das solu- Anzieu, D. ''Approche psychanalycique du processus créaceur". ln Sens et piace
ções); 2) uma fase intuitiva (maturação, incubação, iluminação); des connaissances dans la société. Paris: CNRS, ls.d.J. Seria cercamente instrutivo
ligar a narrativa de Poin caré às categorias de análise utilizadas pelos psicólogos de
3) uma fase crítica (exame da descoberta, verificação, ajuste) . Mas,
sua época (Riboc, Boucroux, Paulhan, Taine), que"ele P,?de co.n hcc~~ (pc~o me-
após o próprio Poincaré, centramos a experiência da invenção na nos, para Boucroux). Ver, por exemplo, acerca das fases , Essat sur l tmagmatwn
créatrice, de Théodule Riboc (Paris: Félix Alcan, 1900). A narrativa ele Poincaré
42
lbid., pp.51 -3. é objeto de uma análise em: Schlanger, J. e Stengers, I. Les Concepts scientiflques.
lnvention etpouvoir. Paris: La Découvertc, 1989, pp. 58-87.
Cartografar. construir, inventar... 171
170 O gosto do mundo: Exerclcios de paisagem

possível que existam pessoas que nada entendem da matemáti- ridão especial de uma sensibilidade que é, ao mesmo tempo, teó-
ca? Que aptidão devemos possuir para entender um raciocínio rica e estética. Essa sensibilidade possui um poder discriminante,
matemático? A resposra de Poincaré é a seguinte: não é a memó- funciona, diz Poincaré, como um "crivo delicado", um princípio
ria, nem a simples aptidão para inferir uma proposição a partir de discernimento e de eleição da relação pertinente entre todas as
de outra, mas, sim, certo sentido da ordem, uma capacidade de combinações possíveis que se apresentam. Mas acontece que essa
"perceber com uma olhada o conjunto do raciocínio" .44 O que faz operação permanece tácita, desenvolvendo-se segundo uma inten-
o matemático é a intuição da ordem matemática, uma intuição cionalidade que se mantém oculta para a consciência do inventor.
especial que permite "adivinhar harmonias e relações ocultas". Sua aparente espontaneidade, a instantaneidade de suas manifes-
A inteligência matemática mede-se, então, menos por cerca tações, que se apresentam como felizes achados, conferem-lhe a
capacidade operatória que por uma intuição específica das rela- aparência de uma disposição natural.
ções; melhor ainda: por uma intuição morfológica, ou estrutu- Dessa forma, a análise "intuicionista" do momento da in-
ral. É essa mesma intuição do todo, essa visão do conjunto, que venção proposta por Poincaré nos permite encontrar, no âmago da
constitui propriamente o fenômeno da invenção, com o termo vivência psíquica, um plano de racionalidade que se desprende dela
psicológico da iluminação. Sublinhemos esta afirmação, à qual sem se limitar a ela. Podemos agora, graças à noção de uma intuição
voltaremos quando formos abordar a questão do projeto: a ideia morfológica ou estrutural, distinguir entre, por um lado, o campo
nova apresenta-se como a intuição e a revelação de uma estrutura. de consciência de um espírito e, por outro, o que, no âmago dessa
Podemos tentar conferir um conteúdo suplementar à noção vivência psíquica, impõe-se como um princípio de ligação. Podemos
de iluminação. A descoberta é a intuição da relação útil, isto é, distinguir uma unidade de significação (uma ideia?) na dispersão
da relação que permite reorganizar um material díspar de forma das vivências de consciência. O campo psicológico deixa de apa-
que apareça uma boa combinação. Trata-se de captar uma "boa recer totalmente fechado ao movimento da racionalidade, fechado
forma". 45 Poincaré' remete, aliás, essa captura da boa forma à ap- sobre o arbítrio de uma experiência incomunicável.
A posição de Poincaré pode ser relacionada com algumas
44 Poincaré, H . "Confércncc à la Société de Psychologie de Paris". Op. cit., p. 47. pesquisas contemporâneas sobre os mecanismos da cognição, que
Changeux e Connes (Matiere à pemée. Op. cit., p. 117) vão no mesmo sentido, levam a distinguir diferentes momentos no ato de edificação do
parece: "Os matemáticos sabem bem q ue entender um teorema não significa
saber e a evidenciar a existência de atos autenticamente lógicos
entender o passo a passo de uma demonstração cuja leitura pode durar várias
horas. É, ao contrário, ver a totalidade desta demonstração em um tempo extre- que, entretam o, não se confundem com o raciocínio dedutivo. É
mamente curto". o caso, por exemplo, do raciocínio abdutivo (ou retrodutivo) que
45 Este problema da apreensão das relações é explicitamente relatado por Poincaré, é acionado nos processos de formulação das hipóteses.
na fo rma de uma penosa noite de insôn ia, no início da sua narrativa: "Uma
noite, tomei café preto, contrário ao meu hábito, e não consegui adormecer;
ideias surgiam em profusão; sentia-as como que se chocando, até que duas delas
se ligassem, por assim dizer, para formar uma combinação estável". Deixemos de em primeiro lugar como heterogêneas. O que significa que o problema central,
lado a im agem quírnica/atomística utilizada po r Poincaré. Notemos, sobretudo, comum a qualquer inventor assim como ao macemático, é o da apreensão de um
que o que é procurado pelo matemático é uma relação. Um pensamento é uma sentido, sendo esce sentido conhecido antes como o sentim ento de uma ligação e
relação estável que conseguimos estabelecer entre os dados ou as idei as percebidas sob as aparências de uma forma.
172 O gosto do mundo: Exerclcios de paisagem Cartografar, construir, inventar... 173

Podemos, de forma esquemática, definir a abdução com- surpreendentes. Seriam dedutíveis normalmente da hipó tese ou
parando-a com a dedução: a dedução busca chegar a um fato por passíveis de ser ligados ao conceito e explicados graças a eles.
meio de uma regra, enquanto a abdução é a procura de uma regra 3) Temos, então, uma boa razão para elaborar uma hipótese
para explicar um fato. A abdução é, escreve Peirce, desse tipo e examiná-la, para ver se não permitiria explicar as ano-
malias que observamos.
[...] o que fazemos quando temos que lidar com alguma circuns-
tância muito curiosa, que seria explicada se supuséssemos que ela É preciso confessar que a conclusão da inferência abdutiva
é um caso particular de cena regra geral, e que por isso adotamos só pode ser afirmada de maneira problemática ou conjetural. Mas
essa suposição. O u ainda quando achamos que, cm cercos aspec- não estamos aqui no contexto de uma lógica da prova. A proposta
tos, dois objetos têm uma grande semelhança, e inferimos que é mais a de considerar o conjunto dos procedimentos pelos quais
eles se assem elham fortemente em outros pontos de vista (Pei rce, o espírito se orienta para as hipó teses que parecem plausíveis, eli-
C. S., 1931 , 2.624)." 6 minando aquelas que não podem ser consideradas como pertinen-
tes. Pedem-nos que distingamos, na atividade de conhecimento, a
O raciocínio abdutivo desenvolve-se em três etapas: existência de um nível de racionalidade deliberativa ou processual,
em que o problema reflexivo consiste, essencialmente, em reunir
1) No começo, observamos alguns fenômenos espantosos. as condições de acreditar numa hipótese mais que em outra, ou
Este espanto pode ser devido à distância que esses fenômenos seja, determinar os elemen tos que conferem à hipótese seu cará-
apresentam em relação às teorias em vigor. A observação é impor- ter verossímil. Mas, insistamos neste ponto, esta deliberação não
tante. Significa que o momento da invenção não é independente acontece fora de todo o contexto. É no meio de uma situação
de um contexto teórico geral ou, mais especificamente, de um problemática que se instaura a deliberação e que as hipóteses são,
contexto problemático dentro do qual o pesquisador, como diz ao mesmo tempo, produzidas e julgadas. Nessa etapa de desenvol-
Peirce, "é motivado pelo sentimento de que uma teoria é necessá- vimento, o processo de elaboração do conhecimento nos aparece
ria para explicar os fatos surpreendentes", 47 ou seja, para resolver sob a forma de uma "ação inteligente", organizada teleologica-
essa situação de disjunção entre os recursos interpretativos de que mente a fim de encontrar respostas a situações intelectuais e expe-
dispõe e os fatos que encontra. rimentais caracterizadas pela "dissonância" ou a anomalia. A deli-
2) Mas se tal hipótese ou tal conceito fossem verdadeiros beração abdutiva é a expressão de um projeto que é marcado pela
ou mobilizáveis, então os fenômenos observados deixariam de ser busca da resolução de um problema. O objeto produzido pelo
conhecimento é, em parte, oriundo da instauração desse projeto.
A questão, se levarmos em conta essa "projetividade" do
conhecimento, passa então a ser a seguinte: qual é a razão que
46
Peirce, C. S. CollectedPapers. Cambridge, Mass.: Harvard Universicy Press, 1931, leva uma hipótese a se impor antes mesmo de ser testada de modo
2.624. Cf. Bonfantini, M. A. La semiosi e l'abduzione. M ilan: Bompiani, 2004
(1987). definitivo? Qual é o princípio que leva o espírito humano a lhe
17
Ibid., 7 .218. conceder um valor e a supor que ela vale a pena de ser testada,
Cartografar, construir, inventar... 175
174 O gosto do mundo: Exercícios de paisagem

resumindo, que ela não é desprovida de sentido? Convém destacar sentido diferente. O procedimento abdutivo permite um autênti-
imediatamente este resultado: uma hipótese possui uma signifi- co ganho de sentido, uma progressão na elucidação. Ele indica a
cação própria, antes mesmo de ter sido lançada na aventura alta- emergência de um nível semântico em relação a um nível formal na
mente improvável dos programas de verificação. Somos levados a atividade científica, que nos leva a considerar esta última na pers-
reconhecer na atividade cognitiva um momento da produção do pectiva de uma dinâmica das problematizações abertas, e não na
sentido, ao lado do movimento para o estabelecimento das verda- de uma normatividade dedutiva. Dito ainda de forma diferente, a
des. Por isso, para responder à questão do valor de uma hipóte- força da inferência abdutiva (ou seja, o valor da ideia nova) não re-
se, será necessário considerar não somente seu caráter operatório, side numa estrutura lógica que a distinguiria especificamente, mas
mas a riqueza das antecipações de sentido que contém e que lhe sim no sentido que ela permite gerar, na sua potencialidade, sua
permitem desvendar horizontes para o pensamento. fecundidade semântica. A abdução (a invenção) é uma proposição
Assim, a mente humana empenhada em um projeto de co- para um horizonte de sentidos. Se há, portanto, uma "lógica da
nhecimento não busca apenas objetos, mas, a panir de um con- pesquisa", esta deverá ser entendida como uma lógica do sentido,
junto de propriedades observadas nos fenômenos, busca também uma lógica da progressão do sentido.
um ponto de vista, uma ideia fundadora que lhe permita dar conta A esse título, boa parte da atividade do conhecimento consis-
dessas propriedades, segundo uma orientação morfológica próxi- tiria não em buscar primeiramente as causas e encadeamentos dedu-
1

ma daquela que encontramos com Poincaré. Um raciocínio ab- tivos, mas em organizar os pontos de vista e os quadros, em definir
dutivo consiste em inserir dados inicialmente estranhos "em um estruturas, ou até em desenhar esquemas formais que representem
as situações que ela tenta explicar. Conhecer não é somente demons- 1
quadro no qual podemos discernir certos modos de ligação deter-
minados". Esse quadro impõe-se como uma estrutura no interior trar, é também iluminar. Antes de buscar explicar e demonstrar as
da qual os fatos se tornam inteligíveis. A teoria, chega a afirmar sucessões de causas e efeitos, o espírito se preocupa em iluminar
No1wood Russel Hanson, 48 constitui uma Gestalt conceituai, e a situações, fazendo abdutivamente aproximações significantes.
atividade c<?gnitiva consiste em inserir os fenômenos nesses sis- A hipótese, ou seja, a ideia nova, deve ser entendida como
temas figurativos. A hipótese dá, assim, uma orientação diretora uma configuração, no fundo uma "trama", que busca estabele-
à percepção e ao pensamento, dá um sentido geral que permite cer 0 que poderia ou deveria ter acontecido em uma ordem mais
. ou "como )) aqui lo. 49
((ver)) os f:atos (( como " isto verossímil. Ela se apresenta como a definição de um mundo pos-
Poderíamos ir mais longe e indicar em que o procedimento sível, plausível. Mas fornece, ao mesmo tempo, um modelo de
abdutivo instaura uma verdadeira prospecção de mundos possí- mundo, no sentido em que ela desdobra novas dimensões de rea-
veis, dentro de cada um dos quais a relação dedutiva assumirá um lidade, ordena uma compreensão global que é também o esquema
de experiências futuras. Esta ideia nova tem, além disso, uma vo-
cação estrutu1'al no sentido em que constitui o princípio em torno
18
Hanson, N . R. Patterns of Discovery. Cambridge, Mass.: Cambridge Universicy do qual se articula um programa teórico.
Press, 1958, p. 90.
49
Encontramos aqui um elemento clássico das análises da in-
Wiccgenscein, L. Recherches philosophiques. Paris: Gallimard, 2004, segunda
parte, Xl, pp. 274-320. venção: a metáfora e a analogia, frequentemente consideradas como
176 O gosto do mundo: Exercícios de paisagem Cartografar, construir, inventar... 177

os principais instrumentos da progressividade semântica.50 A opera- ção com o real. Há aqui, efetivamente, a emergência de novos mun-
ção metafórica e analógica constitui, como sabemos, uma das mo- dos de referência, em uma reestruturação comum da percepção e da
las da formação da hipótese. Tentemos depreender o alcance dessa categoria. É, consequentemente, no cerne da atividade metafórica e
operação para o nosso propósito. A metaforização é um raciocínio modelizante que se fixa a hipótese nova, a intuição fecunda, a que
por analogia, que parte do conhecido e transfere uma relação ex- reorienta duravelmente o olhar, que reordena os saberes eliminando
plicativa no campo a ser conhecido, em função de uma similitude as anomalias.
estrutural. Por exemplo, a teoria, conhecida, da propagação do som A esse respeito, convém lembrar em que nível se situa a voca-
serve de modelo à da luz. Ou, ainda, a teoria cinética dos gases ção racional do modelo. O modelo não deve ficar reduzido ao qua-
compara as moléculas de gás a bolas de bilhar e aplica aos gases as dro formal de uma operação de cálculo. Também não é uma sim-
leis de Newton, cuja validade posrnla.51 A progressão do sentido na ples ilustração, cômoda para o pensamento, mas que permaneceria
atividade científica, ou seja, a criação abdutiva, encontra assim sua externa ao movimento próprio da inteligência científica. Como in-
condição de efetuação no ato da redescrição metafórica, que coloca dicou Noel Mouloud,52 o modelo define-se na relação construtiva
as expressões predicativas fora do seu contexto habitual de validade. das operações humanas e dos objetos, ou seja, em função de um
É importante observar, aqui, que a analogia não desempenha um projeto humano de elucidação, que usa referências progressivas do
papel explicativo. Apenas permite abrir um horizonte problemático real. O modelo possui uma função esquematizante. É uma hipótese
por meio de uma comparação e da transferência de uma predicação. estrutural que organiza um campo problemático, que hierarquiza as
A metáfora apresenta-se como uma predicação impertinente, como questões e desenha o plano da pesquisa científica. O valor racional
a invenção de uma ligação inédita entre dois contextos de objetos do modelo reside nessa dimensão prospectiva, que lhe permite arti-
heterogêneos. Mas a própria ligação cria novo contexto. A metáfora cular, numa progressão semântica, campos ainda informes, fazendo
cria nova pertinência, porque propõe nova estrutura da manifesta- trabalhar neles estruturas já determinadas.
ção fenomenal. A ligação metafórica é, portanto, ao mesmo tempo Nessa perspectiva, devemos reconhecer, finalmente, que boa
uma transgressão semântica que contribui para reorganizar a rela- parte do trabalho científico, pelo menos em sua fase exploratória,
consiste em refletir sobre o que pode ser uma "boa" representação,
ou seja, sobre as características morfológicas que devem ser atribuí-
so Assim, E. Durkhcim: "Nunca é desimeressame pesquisar se uma le i, escabelecida
para uma ordem de facos, não se encontra em ourro lugar[ ... ); essa aproximação das a um modelo. Os cientistas constroem uma forma modelando
pode aré servir para confirmá-la e a explicar melhor o seu alcance. Em suma, a a sua própria maneira de ver as coisas.53 Essa " boa forma'', que atra-
analogia é urna forma legítima da comparação, e a comparação é o único meio
prárico de que dispomos para tornar as coisas inteligíveis" (Durkheim, E. "Repré-
senrarions individuelles er représenrarions collcctives". Sociologie et philosophie. 12 Mouloud, N. "La science cr sa logique". Re1111e lnternationale de Philosophie, n.
Paris: Félix Alcan, 1924, p. 1). 131-132, 1980, pp. 155~78. Poderíamos evocar também a transferência meta-
51 fórica do modelo newconiano da gravitação, que teve um papel consticu rivo na
Black, M. Models andMetaphors. l thaca: Cornell Universiry Press, 1962; Hesse,
M. Models and Analogies in Science. Indiana: Universiry of Nocrc Dame Press, instauração dos procedirnencos de análise espacial dencro da geografia contem-
1966; Meyer, M. Découverte et justification en science. Paris: Kli ncksieck, 1979; porânea.
Borutti, S. 'J"héorie et interprétation. Pou1· une épistémologie des sciences humaines. 53 Poderíamos relacionar essas observações com o que diz Bergson a respeito do tra-
Lausanne: Payot, 2001 (especialmente o capímlo JI) . balho incelectual: "Trabalhar in celeccualmente consiste em conduzir uma mesma
178 O gosto do mundo: Exercícios de paisagem Cartografar, construir, inventar... 179

vessa os registros da percepção e da significação, constitui o "núcleo cedimento de projeto? 54 Parece, na verdade, que a convergência
estrutural" da teoria, o que corresponde à sua mais profunda inten- possa ser desenvolvida em vários pontos, permitindo evidenciar
cionalidade, a menos permeável aos programas de refutação. Ela a comunidade de atitude intelectual, mas também de p roblema,
dota a atividade teórica de uma teleologia interna que é a de uma entre o "inventor" e o "projetista":
progressão na elucidação de um sentido que foi antecipado.
Como vemos, na nossa preocupação em restituir à invenção - O surgimento da ideia nova, tratando-se do projeto de
sua inteligibilidade, somos conduzidos a uma concepção da teoria paisagem, é, em primeiro lugar, o surgimento de uma forma ou
científica que está, de certa maneira, em ruptura com a tradição de uma estrutura, da qual temos a intuição mental, perceptiva ou
"sintática" ou lógico-empírica. A teoria não se apresenta, em suas gráfica e que é como "o eco de um pensamento" num olhar, para
fórmulas iniciais, como um conjunto de proposições que aguardam utilizar a fórmula de Wittgenstein. 55
ser testadas. Ela se constitui a partir de uma ideia fundadora que é o - Essa ideia (ou essa forma) é um "ponto de vista". Não
seu núcleo, na perspectiva de um projeto de racionalização, e ela se corresponde à apreensão direta de uma realidade imediatamente
desenvolve como uma intuição estrutural que vai se determinando observável e mensurável, mas propõe, e instala, uma estrutura ao
progressivamente ao realizar-se. A preocupação central não é, por- mesmo tempo intelectual, técnica e perceptiva, que permite orde-
tanto, reduzir dedutivamente o intervalo que separa os enunciados nar as informações, os materiais, os dados de que dispomos.
universais da teoria e os enunciados particulares oriundos d.a obser- - Logo, essa forma tem uma dimensão ou uma potência hi-
vação dos fatos. É identificar uma estrutura, ou seja, uma potência potética, exploratória, no sentido em que define a abertura de um
de informação daquilo que é dado, que permite reorientar o campo eixo de pesquisas, d e um eixo de imagens e de pensamentos, ou
referencial em torno de algumas grandes leis fundamentais. A ideia seja, abre o horizonte problemático dentro do qual podem se en-
nova é ao mesmo tempo a intuição e a proposição dessa estrutura. caminhar as investigações e as realizações futuras. Estamos, então,
Apresenta-se como uma "trama" que busca estabelecer o que pode- menos numa lógica da prova e da confirmação que numa dinâmi-
ria ou deveria acontecer em uma ordem mais verossímil. ca da pesquisa (com o que isso supõe de abertura e sensibilídade
ao possível, ou seja, também de incerteza), em outros termos, me-
O projeto como procedímento abdutivo. Uma hipótese de trabalho nos numa lógica da verdade que numa lógica do sentido.

54
Em que essas observações sobre a abdução e a formação das Para a quescão geral de uma teoria da emergência e do percurso das fo rmas nos
ideias novas podem dizer respeico a uma reflexão sobre o pro- processos de concepção e de criação, ver, entre outros: Garrido, J.-M. La FQrma-
tiQn des formes. Paris: Galilée, 2008; Ariclli, Emanuele. Pensiero e progettazione.
La psicologia cognitiva applicata ai design a all'architettura. Milan: Bruno Mon-
dadori, 2003; Fiedler, K. Sur l'origine de l'activité artistique. Paris: Rue d'Ulm,
2003; _ _ _ . Essais sur l'art. Besançon: L'Imp rimeur, 2002; Borillo, M. e Gou-
representação arravés de planos de consciência diferentes numa direção que vai lecte, J.-P. Cognition et création. Explorations cognitives des processus rk CQnception.
do abstrato ao concreto, do esquema à imagem" (Bergson, H. LEnergie spirituef- Sprimont: Mardaga, 2002. Ver também: Cassirer, E. "Forme et technique". Ecrits
le. Geneve: Skira, 1946, p. 165). Mas estamos próximos igualmente da teoria da sur f'art. Paris: Cerf, 1995, pp. 63-100.
55
formatividade de Pareyson. Wittgenstein, L. Recherches philosophiques. Op. cit., p. 295.
180 O gosto do mundo: Exercícios de paisagem Cartografar, construir, inventar... l 81

- É dentro dessa dinâmica da pesquisa, nessa exploração - Encontramos aqui essa relação entre o traçado e o ina-
dos horizontes abertos pelo "pomo de vista" (ou "a hipótese", ou "a cabamento do processo que já percebemos no limiar da criação,
ideia", ou "a forma") que se fabricam os objetos (inclusive os objetos segundo Max Loreau: "O traçado em curso, que é o lugar próprio
do conhecimento), que devem ser considerados, consequentemente, da criação, logo da arte fundamental, permanece no processo, é
menos como dados de base dos quais partimos e aos quais voltamos irredutivelmente ligado ao inacabado; como tal, ele é surgimento
que como resultados sempre provisórios de processos (estamos pró- na aventura ... " .57
ximos aqui do conceito bachelardiano de fenornenotécnica). Voltemos então, para terminar, ao mapa e ao seu papel em re-
- Esses objetos fabricam-se em particular (mas não exclu- lação ao projeto. Mas, sobretudo, voltemos mais uma vez a esta exi-
sivamente) pela modelização e figuração gráfica, mais geralmente gência paradoxal: imaginar o real/colocar o real em uma imagem.
dentro das práticas de imagística. Essas "imagens" e, sobretudo, Podemos considerar que o próprio mapa, qualquer que
sua série, ou seja, a sucessão das figurações progressivas do ob- seja sua escala, é a realização e a proposição gráficas de u~a
jeto, constituem o que podemos chamar de trajetória do objeto, forma, de uma estrutura ou de uma ideia, de um ponto de vis-
ou simplesmente seu projeto, cuja racionalidade podemos, então, ta (os termos são equivalentes), do tipo dos que acabamos de
tentar reconstituir. evocar. Podemos, então, nos deter na questão do mapa como
- Nessa sequência, mais ou menos incoativa à primeira vis- "espaço de trabalho" dentro do qual a paisagem se const.rói,
ta, de figurações e de pensamentos (mas, como separar, aqui, a por intermédio e na série de suas diversas figurações. O pro~eto
imagem e o pensamento? E como distinguir a descoberta da in- de paisagem é, antes de tudo, uma forma mental que se fixa,
venção?), não paramos porque uma verdade definitiva foi estabe- ou melhor, que é trabalhada no mapa, a partir do mapa e em
lecida, mas porque estamos satisfeitos. Não porque alguma coisa relação a ele. O mapa desempenha um papel de antecipação
foi provada, mas porque o último (traço ou olhar) era o certo. A diagramática em relação à invenção efetiva da paisagem, não
lógica do projeto é a da obra a ser feita, e que está se buscando, e porque a prefigura, mas sim porque dá à invenção e ao proj.e-
não a da regra que aplicamos. O desafio não é a verdade da obra, to um espaço de figuração, ou seja, uma significação espacial
mas seu "sucesso", segundo a palavra de Luigi Pareyson: apreensível. . .
Mas talvez seja preciso atingir aquilo que é mais radical
Uma operação é formativa na medida em que podemos dizer da ainda, o traçado e o gesto de traçamento inicial e concluir: é o
obra que resulta dela que ela é bem feita, não tanto enquanto traçamento que torna possível, é o traçamento que é a condição
"seguiu as regras", mas enquanco é um "sucesso", ou seja, en- de possibilidade de todo o resto em geral. Esse movimento para
quanto descobriu sua própria regra em vez de aplicar uma regra frente é o de todo o pensamento.
preestabelecida {Pareyson, L., op. cit., p. 73).56

16
Pareyson, L. Esthétique. Théorie de la formativité. Op. cic., p. 73. 57 Loreau, M. De la création. Op. cic., p. 189.
V. Paisagem, hodologia, psicogeografia

Roland Banhes, em O império dos sign.os, assinalou uma di-


ficuldade enfrentada por todo viajante quando quer se orientar em
Tóquio: as ruas da cidade não têm nome, sendo os endereços, por
assim dizer, anônimos.1 Para ir até determinado lugar, há vários
meios possíveis, mas todos eles acabam fazendo da orientação um
problema de comunicação com o outro: pedir que um transeunte
desenhe uma espécie de esquema geográfico, traçando um cami-
nho a partir de pontos de referência conhecidos (estação, prédio,
anúncio luminoso), tomar um táxi, deixar-se guiar por telefone
pela pessoa que vai nos receber etc. O rientar-se em T óquio impli-
ca, portanto, antes de tudo, a implementação de uma "experiência
visual" que seria banal "se se tratasse da selva ou da savana", mas
que se torna incomum quando se trata de uma cidade grande. Os
instrumentos comuns do viajante, isto é, "o mapa, o guia, a lista
telefônica, em suma, a cultura impressa", são aqui descartados, em
proveito de uma "prática gestual".

Esta cidade só pode ser conhecida por uma atividade de tipo et-
nográfico: é preciso orientar-se nela, não pelo livro, o endereço,
mas pela caminhada, a visão, o hábito, a experiência; qualquer
descoberta é imensa e frágil, ela só poderá ser reencontrada pela

1 Barthes, R. L'Empiredes signes. Paris: Le Seuil, 2005 [1970), PP· 51 e seg.


184 O gosto do mundo: Exercícios de paisagem Paisagem, hodologia, psicogeografia 185

lembrança da marca que deixou em nós (Banhes, R., 2005, pp. sua gestão, bem como a organização e o controle das circulações,
51 e seg.). 2 não constituem apenas problemas de engenheiro, levam cambém
a uma reflexão sobre o projeto, a geografia, a forma como os seres
Tóquio, tal como descrita por Roland Banhes, apresenta- humanos se deslocam e como reagem a esses deslocamentos e, de
-se como um espaço singular, infralinguístico, por assim dizer, modo mais geral, sobre a forma como se quer organizar a vida das
onde se processam, circunspectos, os movimentos d e um corpo pessoas, sobre o futuro. 5 Mais geralmente, a questão da hodologia
atento às mensagens sensíveis que chegam até ele à medida que é a da realização de paisagens que sejam viáveis, habitáveis, para as
vai progredindo na sua caminhada. O espaço da cidade vivida comunid ades humanas. Questão complexa, por conseguinte, cujo
pelo viajante é construído pelas suas caminhadas. Para aplicar um desafio é o d os tipos de paisagem q ue se q uer promover.
qualificativo a essa experiência: ela é hodológica. Uma reflexão sobre a potência dos caminhos e das viagens
John Brinckerhoff Jackson introduz a "hodologia", em desdobra-se, na verdade, em três pergun tas concom itantes: 1)
1984, em A la découverte du paysage vernaculaire e, m ais tarde, em corno caminhos e viagens contribuem a estruturar objeLivamente,
1994, ele a apresenta como a ciência dos caminhos, das estradas concretamente, as paisagens e os espaços? Mas também: 2) corno
e das viagens, em A Sense ofPlace, a Sense of Time. 3 A hodologia contribuem a estruturar e orientar a percepção e a represen tação
é uma ciência séria. Essa expressão enigmática e inusitada leva a das paisagens e dos espaços? Enfim: 3) em que uma reflexão séria
questionar o impacto das estradas e das viagens sobre a paisagem e sobre as estradas e as viagens contribui para estruturar certa forma
sobre o espaço, assim como sobre a forma de percebê-los, vivê-los de pensamento, ou até d e pensamento filosófico, a respeito do
e pensá-los. 4 mundo? Em outras palavras, o que significa pensar o caminho e a
A principal questão legada por Jackson é a da potência estru- viagem não apenas como objetos de estudo, mas como pontos de
turante dos caminhos para a paisagem. O caminho é um elemento vista so bre as coisas, as ideias e o mundo em geral? Em que esse
que serve para organizar o território, dando-lhe uma medida e ponto de vista q ue parte do caminho contribui ao pensamento e à
uma orientação, isto é, um sentido. Consequentemente, a ques- ação sobre as paisagens?
tão hodológica não é apenas uma questão de escolhas técnicas. Q uem começa a investigar sobre esta expressão aparente-
Encerra também aspectos sociais e políticos. Jackson afirma isso mente marginal que é a hodologia, logo percebe que ela é, na
muito claramente em diversas ocasiões: a fabricação das estradas e realidade, utilizada e explorada em campos m uito variados e que
é uma espécie de motivo que permeia sigilosamente boa parte d a
2
Ibid., p. 55. reflexão moderna sobre o espaço. De fato, encontramos a palavra
3
Jackson, J. B. A La découverte du paysage vernaculaire. Op. cic., p. 79: "Vou inrro- nos campos da geografia, do urbanismo, da psicologia, da filoso-
duzir uma nova palavra erudita no vocabulário da paisagem: hodologia. Vem do
fia da arte, da cartografia ou, ainda, da metafísica. A hodologia
grego hodos, que significa estrada ou viagem. A hodologia será, porcanco, a ciên-
cia ou o escudo das estradas". Na verdade, o termo já fora util i7~1.do em um arcigo sempre reflete cerco tipo de interrogação, marcado, aliás, por uma
de Derk de Jonge, "Applied Hodology", publicado na revista Landscape (v. 17, 11•
2, inverno 1967-1968, pp. 10-1 1) . Convém frisar que as palavras "cami nho" e
"estrada" são consideradas aqui, p roviso riamente pelo menos, como equivalentes.
5
Jackson, J. B. A Sense üf Place, a Sense o/Time. New H aven and London: Yale
4
Ver também: Desportes, M. Paysages en mouvement. Op. cir. University Press, 1994, pp. 191 e seg. Ver, aqui mesmo, capítulo III.
186 O gosto do mundo: Exercícios de paisagem Paisagem, hodologia, psicogeografia 187

alternativa, sobre a espacialidade e as formas de perceber, de re- to a superfície da Terra e seus espaços. Nessa primeira perspecti-
presentar e de pensar a espacialidade. Nota-se, mais precisamente, va, a geografia é pensada como um conjunto de conhecimentos,
que a referência à hodologia surge quase sempre no bojo de uma discursos, técnicas, cujo objetivo é dar a conhecer aos homens
reflexão sobre a dualidade, ou até sobre a pluralidade das relações seus ambientes de existência. O que, a bem da verdade, já é mui-
que os seres humanos mantêm com o espaço e a paisagem. As to: por exemplo, os espaços naturais, mas também os territórios
questões fundamentais, afinal, são as seguintes: o que é o espaço? humanizados, seus tamanhos, formas e limites, as paisagens, as
O que é a paisagem? E deve-se considerar que paisagem e espaço organizações espaciais, os comportamentos humanos no espaço,
são produtos da estrada e da viagem, ou então, ao contrário, que as representações e as crenças. A geografia é entendida aqui como
estradas e viagens são dispositivos e acontecimentos que se inscre- u m conhecimento do real, uma ciência do concreto, mais preci-
vem num espaço e numa paisagem previamente dados? samente, uma ciência dos espaços concretos nos quais os grupos
humanos têm d e viver. Que fique claro, no entanto, que esses
O espaço hodológico espaços concretos não são apenas materiais, também são simbóli-
cos, ideais e, às vezes, imaginários. Porém, o que é verdade é que
As dttas geografias esses espaços constituem, por assim d izer, o tecido no qual são
enredadas e se desenvolvem as existências humanas, singulares e
Uma primeira forma de introdução à complexidade das si- coletivas, e que a geografia é a ciência desse tecido. O que acontece
tuações hodológicas poderia ser encontrada na geografia ou, mais então, nesse primeiro caso, com o geógrafo e a relação que man-
precisamente, numa interrogação sobre a realidade geográfica. tém com a realidade geográfica? Poderíamos dizer que, como os
Em L 'Homme et la Terre, Eric Dardel, geógrafo e filósofo, escreve: outros especialistas da ciência, como os outros pesquisadores, seja
nas ciências naturais ou nas ciências humanas, ele está como que
A ciência geográfica pressupõe q ue o mundo seja encendido ge- fora do seu objeto, na frente dele, numa atitude e num conjunto
ograficamente, que o homem se sinta e se saiba ligado à Terra de condutas que são característicos da busca da objetividade. Não
como ser chamado a se realizar na sua condição terrestre. A geo- está necessariamente envolvido, no âmago do seu ser, no estudo
grafia não significa uma concepção indiferente ou destacada; diz que desenvolve. Não é necessariamente transformado pelo que faz.
respeita ao que importa para m im ou me interessa no mais alco Mas, ao escrever isto, estamos esquematizando ao extremo.
grau: minha aflição, minha preocupação, meu bem, meus proje- Na verd ade, não há como asseverar que o geógrafo seja capaz de
tos, minhas amarras (Dardel, E., op. cit., p. 46). 6 tal abstração de si frente ao mundo que estuda, salvo negando a
si mesmo como geógrafo. Em outros termos, tamanho heroísmo
Haveria, portanto, duas geografias, pelo menos. No mais da consciência erudita não é necessária ao geógrafo, nem mesmo
das vezes, a geografia é considerada como uma ciência ou, pelo possível para ele. Não se conhece geógrafo algum que não esteja
menos, como um saber de um tipo especial, que tem como obje- mobilizado, isto é, posto em movimento e, por assim dizer, posto
em efervescência pelo que poderíamos chamar de sensibilidade ao
6 Dardel, E. L'Homme et la Terre. Nature de la réalité géographique. Op. cit., p. 46. mundo ou ao espaço.
188 O gosto do mundo: Exercícios de paisagem Paisagem, hodologia, psicogeograAa 189

Existe, efetivamente, uma segunda geografia da qual o ge- subjetiva, uma "paisagem da alma". Se a subjetividade estiver im-
ógrafo participa, talvez involuntariamente (mas não sabemos ao plicada nessa experiência ou nessa geografia (duas palavras, talvez,
certo), outra geografia na qual está pessoalmente envolvido. E se para a mesma coisa), ela não está fechada em si mesma, excluindo
a primeira geografia, a erudita, pode ser caracterizada pela espé- o mundo e o espaço. Ela é, na sua totalidade, espacial, mobilizada
cie de impossível distância que tenta colocar entre o geógrafo e o pelo espaço, deslocada no espaço, atravessa o espaço. Ela está fora,
mundo terrestre, como condição da objetividade do seu olhar, é no exterior, na estrada.
preciso reconhecer que existe uma segunda geografia, que pode- Mas a pergunta que se coloca, então, quanto a essa subjeti-
ríamos chamar de sensibilidade e sentimento, uma geografia de vidade, pergunta simples, porém rigorosa, é a seguinte: onde está
proximidade e de contato com o mundo e o espaço, e que poderia exatamente? Onde se situa, se está fora? E como caracterizar esse
ser considerada como original, originária em relação à geografia "fora"? A que realidade corresponde? Se adotássemos a perspec-
erudita. Nem tudo pode ser objetivado na geografia, na experiên- tiva da geografia erudita, poderíamos falar em termos de locali-
cia geográfica que temos do mundo. zação e de distância. Poderíamos tentar situar objetivamente essa
Essa outra geografia também é um saber do espaço. Um sa- subjetividade dentro de um espaço abrangente, no qual seria um
ber mais íntimo, sem dúvida, mais misterioso, que é dificilmente ponto localizável por coordenadas. Mas já não estamos mais nes-
traduzível, dificilmente transmissível nas cadeias de um discurso sa perspectiva objetivante. Tentemos, então, nos aproximar dessa
público e geral. Um saber que traz, efetivamente, uma inteligência geografia vivida da consciência, que não é uma geografia da alma
diária do mundo e do espaço, uma familiaridade baseada no uso. interior, que, ao contrário, se desenvolve ao frequentar o mundo.
É uma geografia vivida tanto quanto pensada. É, antes de tudo, Tentemos descrever a realidade própria dessa intimidade, desse
uma maneira de estar no mundo, uma experiência e um uso que contato, desse encontro sem distância com o mundo. Essa reali-
se desdobram no espaço. Mas isso não significa que esse saber não dade apresenta uma espacialidade de um tipo próprio, que precisa
possa ser dito. ser percebida e definida. Qual é o espaço dessa geografia vivida?
Toda a dificuldade, a bem da verdade, é destacar o ponto Seria a pergunta à qual a noção de hodologia calvez nos permitisse
de vista de onde poderíamos apreender essa intimidade geográ- responder. Ela nos permitiria, efetivamente, caracterizar essa re-
fica com o mundo e encontrar a linguagem na qual ela pode ser lação com o mundo que não é "proeminente'', essa comunicação
expressa, traduzida, ou, melhor dizendo, em que frases essa geo- direta que define a realidade geográfica.
grafia íntima pode ecoar. Não podemos nos limitar a dizer que
se trataria, então, de uma geografia subjetiva, que seria posta em A realidade hoddógica
oposição, peça por peça, à geografia erudita e objetiva. Pois a inti-
midade com o mundo de que se trata aqui não é privada, ela não A expressão "hodologia" foi forjada, no início do século
está fechada em si como numa interioridade pessoal. Aliás, não se XX, a partir da palavra grega hodos, pelo psicólogo alemão Kurt
pode asseverar que haja algo como "um interior" nessa história. A Lewin (1890-1947). Este elaborou, nos anos 1920-1930, uma teoria
geografia vivida, isco é, o contato costumeiro com o mundo e o es- "ecológica" do comportamento humano, tomando como objeto
paço, não é uma geografia interior, uma geografia da interioridade o indivfduo, não isolado do meio, mas em situação no seu meio
Paisagem, hodologia, psicogeografia 191
190 O gosto do mundo: Exercícios de paisagem

ambiente. O comportamento humano é função da pessoa (das representar geometricamente esse espaço psicológico, bem como
suas necessidades e representações) e do meio ambiente. 7 O meio as condutas espaciais do indivíduo. Para tal, utilizou os recursos
ambiente de que se trata aqui inclui, é verdade, uma dimensão oferecidos pela teoria da relatividade e a geometria topológica.
objetiva. Mas é principalmente entendido por Lewin como meio Graças a esses modelos e teorias, pôde representar graficamen-
ambiente psicológico. O indivíduo organiza a sua conduta em relação te a dinâmica das situações psicológicas por meio de superfícies,
à totalidade dos fatos que, em dado momento, têm uma realidade linhas, limites, barreiras, regiões etc. Foi nesse quadro teórico e
ou um sentido para ele. Esse meio ambiente psicológico total (ou experimental que a noção de hodologia foi formulada. 9
campo psicológico) constitui o "espaço de vida" (lebensraum, O campo psicológico é organizado, como dissemos, em "re-
lifespace: espaço vital ou espaço vivido) do indivíduo. giões" mais ou menos atraentes do ponto de vista das significações
Dentro desse espaço, a conduta humana define-se de forma e das "valências" afetivas que elas encarnam. A conduta individual
ativa em relação a "valências", isto é, em relação a regiões con- define-se e, de certa forma, orienta-se em relação a essas significa-
sideradas atrativas ou repulsivas para o indivíduo e a satisfação ções. Para alcançar uma meta, um objetivo, isto é, para obter uma
das suas necessidades. O espaço de vida do indivíduo é, portamo, satisfação, o indivíduo segue um caminho privilegiado, que lhe pa-
menos o espaço correspondente ao da "geometria euclidiana" (ho- rece o mais simples a percorrer em função dos dados da situação e
mogênea, isótropa, uniforme) que um espaço qualitativo e topo- das próprias expectativas, mesmo se, do ponto de vista da geome-
lógico, orientado e definido por valores e significações. tria "euclidiana", esse caminho não é o mais d ireto, nem o mais
A primeira formulação do conceiro de espaço de vida apa- fácil, nem o mais curto. A hodologia é a teoria dessas caminhadas,
receu em Lewin, em 1917, num artigo dedicado às formas como por assim dizer. De forma geral, as noções de distância, proximi-
se transforma a paisagem percebida por um soldado à medida que dade e afastamento adquirem, no espaço de vida, uma significação
se aproxima da frente de batalha. No artigo, Lewin mostra como que não é "objetiva" ou "métrica": são noções que correspondem
a aparência do meio físico vai se modificando na percepção do a graus de investimento psíquico, por exemplo, a interpretações,
soldado no que se refere às suas necessidades, particularmente emoções, expectativas, desejos. A conduta do indivíduo dá-se, por
quando ele se aproxima da frente de batalha, suas necessidades em conseguinte, segundo um conjunto de "desvios" e de caminhos
segurança física, abastecimento etc. Perto da frente, a paisagem é privilegiados, relativos a esses investimentos psíquicos no mundo,
orientada: há um limite, um "adiante" e um "atrás". A paisagem e que são, na verdade, a forma como esse indivíduo desfralda a sua
de paz, à distância da frente, parece não estar orienrada e abrir-se experiência concreta do mundo.
por todos os lados. 8 Grande conhecedor dos avanços técnicos e Mas, se o espaço vivido possui tal estrutura hodológica de
conceituais da física e da matemática da sua época, Lewin tentou abertura indefinida, não pode, consequentemente, ser idencifi-

7
Para uma síntese contemporânea da questão, ver: Moser, G. e Weiss, K. (dir.).
Espaces de vie. Aspects de la refation homme-environnement. Paris: Armand Colin, Grundlagentexte aus Philosophie und Kulturwissenschaften. Frankfurt: Suhrkamp
2003. Tachenbuch Wissenschaft, 2006, pp. 129-40).
8
Lewin, K. "Kriegslandschafr". Zeitschrift für angewandte Psycho!ogie, v. 12, n. 9 Lewin, K. "Der Richmngsbegriffin der Psychologie. Der spezielle und allgem<:'.ine
5-6, 1917, pp. 440-7 (citado em: Dünne, J. e Gi.inzel, S. (eds.). Raumtheorie. hodologische Raum". PsychologischeForschimg, n. 19, 1934, pp. 249-99.
192 O gosto do mundo: Exercícios de paisagem Paisagem, hodologia, psicogeografia 193

cado com um espaço absoluto e estável: não é preexistente aos da existência de um nível de espacialidade específica relativo aos
caminhos dos quais é a soma. A espacialidade hodológica cor- comportamentos de um corpo-sujeito, de um corpo ativo ou,
responde a essa perspectiva de um espaço em movimento, que não mais exatamente, "motórico", para usar aqui o termo do coreó-
é preexistente ao caminho, mas que, inversamente, é produzido, grafo Rudolf Laban:
tanto no plano da realidade efetiva quanto no plano da percepção,
pela caminhada. A divisão do espaço em diferentes dimensões, direções e desloca-
A abordagem hodológica da espacialidade permite, assim, mentos baseia-se na experiência do movimento corporal. O senti-
aprofundar a nossa compreensão da paisagem ou, mais exatamen- do espacial é de origem dinâmica. Para frenre, à esquerda, à direi-
te, do "espaço da paisagem". 1º ta, são expressões que indicam movimentos em relação ao centro
O espaço da paisagem não é o espaço objetivo, nem o es- do nosso corpo. A ideia de dimensionalidade pressupõe um cen-
paço como espetáculo, nem o espaço tal como é elaborado pela tro a partir do qual irradiam as seis d ireções. Os locais dependem
representação intelectual: é o espaço cal como o corpo o enten- da ação de estar situado em algum ponto em volta do centro. Mas
de e o descreve pelos seus movimentos e situação, pelas suas a estabilidade dos objetos colocados em um lugar supõe a inda que
condutas. Nem o bjetivo, nem subjetivo: é o aspecto do m undo tenham sido previamente transportados para o local de repouso
ao qual se dirige e se prende o corpo. É o meio dos seus com- atual. O próprio repouso é uma negação do movimento, um caso
portamentos, ou, como d iz Kurt Koffka, o seu "meio ambiente especial do dinamismo geral. Pelo menos, é assim que pensa e
comportamental". sente o h omem rnotórico (Laban, R., 2003, p. 43). 13
"Tudo nos remete'', escreve M aurice Merleau-Ponty, "às
relações o rgânicas do sujeito e do espaço, a essa pegada do sujeito O espaço da paisagem é, primeiramente, o daquele movi-
sobre o seu mundo que é a origem d o espaço". 11 mento ou d.aquele ímpeto que se desdobra e insticui um mundo.
Vejamos esta formulação: a pegada do sujeito sobre o seu Em outros termos, mais uma vez, trata-se, com a paisagem consi-
mundo, e a pergunta que suscita: a origem do espaço. Q uer dizer: derada hodologicamente, de pensar e representar um espaço que
o corpo e suas espacialidades ativas, a ideia de uma construção não é dado ontologicamente como primeiro, como abrangente,
do espaço (ou, como diz ainda Merleau-Ponty, de "o espaço es- como quadro fixo e estável dentro do qual se desdobrariam gestos
pacializante") pelos movimentos do corpo, 12 o reconheci mento e ações. Trata-se de conceber um espaço construído pelos movi-
mentos, um espaço que fosse como a cristalização, também provi-

'º A expressão vem de Erwin Scraus (Du sens dessens, op. cit., pp. 5 l 3 e seg.). É
usada, mais tarde, por Maurice Merleau-Ponty (Phénoménologie de la perception,
op. cit., p. 332) e, sobretudo, por H enri Maldiney (Regard, parole, espace, op.
cit. , pp. 124 e seg.). Ver também: Bollnow, O. F. Mensch und Raum. Stuttgan: é definido por determinações de lugares (e de tempos) no Espaço, mas que, in-
Kohlhammer, 2004 [1963]. versamente, é o movimento, o movimento orgânico que gera uma configu ração
11
Merleau-Pon ty, M. Phénoménologie de la perception. O p. cit., p. 29 1. temporal".
12
Ibid., p. 282. Ver também: Von Weizsaecker, V Le Cyde de la structure. Paris: i3 Laban, R. Espace dynamique. Brnxelles: Nouvelles de Danse, 2003, p. 43 (texto
Desclée de Brouwer, 1958, p. 181: "Verifica-se novamence que o movimenw n ão redigido em francês por Laban).
194 O gosto do mundo: Exercícios de paisagem Paisagem, hodologia, psicogeografia 195

sória, de um conjunto de eventos, um espaço movediço e sempre N esse sentido, é portador de possibilidades e portador de
aberro, d e cerro modo, sempre passível de reformulação. 14 futuros. O espaço hodológico é, ao mesmo tempo, experimenta-
do e praticado, é o espaço concreto da existência humana. Mas,
A hodologia e a existência humana: Jean-Paul Sartre para ter acesso a esse tipo de pensamento, é preciso aceitar, como
veremos, que não há um tipo único de espaço, uma essência única
Talvez seja em Jean-Paul Sartre que encontraremos a me- do espaço. É preciso flexibilizar, por assim dizer, o conceito does-
lhor caracterização da realidade hodológica. Jean-Paul Sartre usa a paço, é preciso reconhecer a existência legítima de várias experiên-
expressão espaço hodológico por ocasião de uma reflexão sobre as cias h umanas da espacialidade, de várias espacialidades, em suma,
relações entre o h omem e o mundo, em seu hsboço de uma teoria é p reciso aceitar a ideia da pluralidade dos mundos espaciais, em
das emoçóes, 15 de 193 8, e, mais precisamente, por ocasião de uma relação com a pluralidade das ativid ades e das culturas humanas.
análise da em oção como "forma de apreender o mundo". Seria Simetricamente, o que Sartre chama de "realidade huma-
possível, diz Sartre - que remete explicitamente a Kurt Lewin - n a", a existência, só existe na medida em que integra o mundo
traçar um "mapa hodológico" do "mundo que n os cerca" (isto como uma das suas dimensões constitutivas. Ser, para o ser huma-
é, do nosso mundo vivido), um mapa que, aliás, iri a variar "em no, é esrar engajado num mundo, é estar situado, em um espaço
função dos nossos atos e das nossas necessidades". Voltaremos ao e em um tempo:
problema dessa cartografia hodológica.
A posição sartriana é conhecida: "O homem e o mundo são Ser, p ara a realidade hu m ana, é estar aqui; isto é, "aqui, nesta
seres relativos e o princípio do seu ser é a relação" .16 cadeira'', "aqui , a esta mesa", "aqui, no topo desta montanha, com
18
O mundo não é como um objeto absoluto, fechado em si, estas dimensões, esta orientação etc." (Sartre, J.-P., J943, p. 371) .
posto na frente do homem que seria o simples espectador exterior
e proeminente. O mundo, segundo Sartre, não é um a paisagem Há um ponto de vista, é verdade, mas não é proeminente e
clássica. O que o define como mundo é j ustamence ele ser mundo destacado das coisas (que seriam, então, objetos) . O ponto de vista
para ou do homem, é essa relação de implicação que tem com o está implicado nas próprias coisas. Estamos na dobra do mundo,
homem, isto é, seu surgimento no cerne da existência do homem por assim dizer. É "uma necessidade ontológica", escreve Sartre.
e seu desdobram ento. O que quer dizer, consequentemente, que até quem está proemi-
"O espaço original que se abre para mim", escreve Sartre, nente, acima e aparentemente destacado, também desenvolve uma
"é o espaço h odológico [... ] cortado por caminhos e estradas" . 17 forma de implicação no mundo e uma forma de mundo. Estar no
topo da montanha não é estar fora d a paisagem, fora do mundo,
14
Ver, para a questão de uma redefinição do espaço em geografia, as análises de: mas participar dele de certa forma. C onvém desconfiar das me-
Massey, Doreen. For Space. Londres: Sage, 2005. táforas fáceis da elevação: estamos, mesmo no topo, mergulha-
15
Sartre, J.-P. Esquisse d'une théorie des émotions. Paris: Hermann , l 995 f 1938], pp. dos no mundo e nas suas dobraduras, engajados, definitivamente,
38 e seg.
16
Sartre, J.-P. L'Etre et le Néant. Paris: Gallimard, 1943, p. 370.
17 18
Ibid., p. 386. lbid ., p. 371.
196 O gosto do mundo: Exercícios de paisagem
Paisagem, hodologia, psicogeografia 197

numa situação, num ponto de vista: "[... ] o conhecimento só pode dos pela ciência: é vivido antes de ser conhecido. E desvenda-se
surgir engajado num ponto de vista determinado que se é ".19 a mim a partir da minha "relação original com o mundo" ou,
Pela expressão "espaço hodológico", Sartre designa o fato como escreve Sartre, a partir da "própria disposição das coisas".
de o espaço real do mundo ser o do engajamento humano no O que significa que o meu corpo, originalmente, não é separado
mundo. A bem da verdade, a relação dá-se primeiro do homem do mundo. É preciso, ao contrário, considerar seriamente, como
ao mundo: um ponto de partida para todas as análises futuras, este ema-
ranhado que sou do corpo e do mundo. Sartre denomina esta
Surgir, para mim, é desdobrar as minhas distâncias às coisas realidade intermediária, que não é nem sujeito nem objeto no
e, com isso, fazer com que haja coisas. Mas, por conseguinte, sentido do dualismo clássico, que é simplesmente o mundo real
as coisas são precisamente "coisas-que-existem-à-distância-de- ou o mundo concreto, pela expressão "espaço hodológico". A
-mim" (Ibid., p. 370). 2º questão é, então, conseguir determinar a estrutura desse espaço.
Parece ter quatro caracteres: primeiro, como dissemos, é
Sartre destaca, sobretudo, o aspecto espacial da situação hu- um espaço que é vivido ativamente. O s valores, os pontos de in-
mana. Minha relação com o mundo é, primeirameme, de proxi- tensidade, as direções desse espaço não são "puras coordenadas
midade e distância: as coisas descobrem-se e definem-se para mim espaciais", mas sim "eixos de referência práticos". Essas qualidades
como estando a certa distância de mim. Mas, consequentemente, espaciais não são apreendidas por uma pura consciência comem-
desde o início, o mundo não é para mim como um espaço com- plativa, mas, por assim dizer, no bojo de uma percepção ativa, ou
pleto e totalmente desfraldado, que eu possa dominar com um de uma ação que, de certa maneira, deve seguir os caminhos do
olhar sinóptico. Descobre-se a mim numa sucessão não totalizá- mundo concreto. Assim, dizer "O pacote de tabaco está em cima
vel, não acabada, de aspectos que são também relativos à minha da lareira", no âmbito de uma compreensão hodológica das situ-
própria progressão, ao meu próprio desenrolar, ao meu próprio ações da existência humana,"[ ... ] quer dizer que é necessário per-
engajamento. correr uma distância de três metros se quisermos ir do cachimbo
Esse tema é aprofundado e desenvolvido em um segundo até o tabaco, evitando certos obstáculos, mesinhas, poltronas etc.,
trecho de O ser e o nada, no qual Sartre se questiona sobre a ação que estão no caminho entre a lareira e a mesa". 22
e, mais geralmente, sobre a relação prática e ativa que mantemos A localização de uma coisa qualquer, a direção do espaço
com as coisas que nos cercam. 21 aonde me dirijo para considerar essa coisa não são, portanto, noções
A noção de espaço hodológico é convocada por Sartre du- abstratas: só adquirem a sua significação e o seu ser (o que é ames-
rante uma reflexão sobre o corpo, o sujeito e suas relações com o ma coisa) em relação aos movimentos concretos de uma existência.
espaço. O meu corpo não é como os "corpos objetivos" estuda- Mas, uma vez mais, o fato de o espaço hodológico ser, sim-
plesmente, o espaço da vida, nem por isso faz dele um espaço
"subjetivo" ou, mais exatamente, "interior". Há uma objetividade
19 !bid.
2
º Ibid., p. 370.
21
Ibid., pp. 385-9. 22 lbid., p. 385.
198 O gosto do mundo: Exercicios de paisagem
Paisagem, hodologia, psicogeografia 199

desse espaço, no sentido em que, na ação e na percepção, encontro Os caminhos e as estradas que fazem o mundo são portadores
a espessura das coisas, suas texturas, luzes, orientações, formas de de possibilidades, portadores de um futuro. Há como um perfil ou
ser ou não resistentes ao meu movimento. O espaço hodológico uma promessa das coisas, que não são totalmente planas, mas que
é um meio e, enquanto tal, orienta, de certa forma, a ação em tal se apresentam a mim com cavidades e lombadas, profundidades,
sentido ou em outro. direções invisíveis. As coisas são percebidas num fundo "que está ai,
Daí o terceiro caráter desse espaço, que é decisivo: essa ob- que tudo indica, mas que não vejo". O que quer dizer que as coisas
jetividade é a da articulação do mundo em "complexos utensílios". não estão simplesmente aí, totalmente aberras ao olhar, mas que
Efetivamente, a questão da hodologia é, no sentido próprio, a do sempre remetem a dimensões, aspectos invisíveis delas próprias, um
uso do mundo. Ou, dito de outra forma, se existe um mundo do horizonte. A final, é dessa cavidade do futuro no presente do mundo
qual participo, a ordem desse mundo é uma ordem de utilidade. que dão testemunho os caminhos e as estradas. Simetricamente,
Prosseguindo nas análises desenvolvidas por Heidegger em Sein caminhos e estradas devem ser considerados como as encarnações
und Zeit, Sartre apresenta esse espaço original da existência que é de um tipo de projeto do mundo para si mesmo, que é sempre "o
o espaço hodológico como um mundo d e ferramentas. O mundo enorme esboço de todas as minhas ações possíveis".
vivido é um sistema de ferramentas, que não estão simplesmente Espaço vivido, meio da ação, local ou complexo de ferra-
justapostas, mas que remetem umas às outras. O que significa que mentas, portador das possibilidades e do futuro no mundo, o es-
o espaço hodológico não é um conjunto de pontos justapostos e paço hodológico em Sartre não corresponde, portanto, pelo que
fechados sobre si: é um sistema de relações e de caminhos que, se pode entender, ao espaço abstrato da ciência e da metafísica
enquanto tais, constituem o mundo. Assim, dizer de um martelo clássicas. Este espaço, ao mesmo tempo experimentado e pratica-
que está "ao lado" do prego supõe que existe um caminho que vai do, é o espaço concreto da existência humana. 25
do martelo ao prego e que deve ser percorrido. Mais geralmente,
a posição de uma coisa qualquer é relativa ao caminho que leva lvfundos, meios, espaços
até ela. Aquém do espaço das justaposições, próprio das "ciências
galileanas". o mundo original da existência humana é constituído Seria preciso, sem dúvida, reinscrever Jean-Paul Sartre e,
de caminhos e estradas que levam até as coisas. mais geralmente, a noção de espacialidade hodológica dentro da
"O espaço original que se descobre a mim é o espaço ho- configuração intelectual singular que, entre os anos 1880 e 1940,
dológico; é cortado por caminhos e estradas, é instrumental e é o viu aparecer e se expressar, em diferentes setores do saber, uma
local das ferramentas". 23 problemática nova da espacialidade e uma reformulação das rela-
Mas então (quarto caráter),"[ ... ] o mundo [... ] desvenda-se ções entre o homem e o espaço. Em campos tão diversos quanto
como indicação de atos a serem feitos, esses atos remetem a outros os da geografia, da biologia, da psicologia e da filosofia, entre ou-
atos, estes a outros e assim por diante". 24
25 Sartre ainda faz referência à noção de espaço hodológico na Critique de la raison
23
lbid., p. 386. dialectique (Paris: Gallimard, 1960), como parte de uma descrição do campo da
24
lbid., p. 385 . práxis (p. 56, p. 97, por exemplo).
200 O gosto do mundo: Exercícios de paisagem Paisagem, hodologia, psicogeografia 20 1

tros, e certamente com níveis de conceimalização variáveis e no ney), entre o mapa (que fica do lado da ciência) e a paisagem (que
contexto de teorias por vezes muito diferentes nos seus objetos e fica do lado do mundo vivido). O conceito de meio {Umwelt) é
orientações, o espaço foi então considerado cada vez mais como utilizado para pensar o espaço qualitativo e orientado do mun-
meio (e, mais precisamente, "meio de vida") e cada vez menos do da vida. Entretanto, podemos nos perguntar, legitimamente,
como um espaço absoluto, quadro neutro e abrangendo todos se esse co nceito não poderia ter constituído o esboço subjacente
os existences. O diagnóstico de Georges Canguilhem, dado em de um possível encadeamento encre os campos da geografia, da
1947, ecoa ainda hoje como um programa de trabalho: psicologia, da etologia animal, da filosofia, na perspectiva de um
pensamento geral da "territorialidade", como parecem indicar
A noção de meio está se tornando um modo universal e obriga- Canguilhem e, calvez, Merleau-Ponty.
tório de apreensão da experiência e da existência dos seres vivos O caráter qualitativo e orientado desse espaço do "mundo
e quase poderíamos falar da sua consciruição como categoria do da vida" é a consequência, como observa Ernst Cassirer, da sua
pensamento contemporâneo (Canguilhem, G., 1975, p. 129). 26 relação com "a ordem do sentido dentro do qual se forma a cada
vez". Aí está o ponto decisivo:
Podemos, como hipótese de leitura, destacar alguns aspec-
tos característicos desse pensamento do espaço que se esboça a O espaço não é uma estrutura rigorosamente dada, fixada de
partir daí. uma va po r rodas; só adquire essa estrumra por meio da o rgani-
O primeiro desses aspectos diz respeito à distinção massiva zação geral do sentido dentro da qual se cumpre a sua edificação.
feita, na maior parte dos campos de pesquisa que foram evocados A função do sentido é o momento primeiro e determinante; a
acima, entre um espaço que é globalmente chamado de "euclidia- estrutura do espaço, o momenro secundário e dependente (Cas-
no" e o espaço da vida (entendido indiferentemente aqui como sirer, E., op. cit., p. 109). 27
espaço vital e espaço vivido). Há, então, distinção entre um es-
paço que é denominado de forma aproximativa como científico, De um ponto de vista estritamente formal, Cassirer, sobre
abstrato, geométrico, homogêneo, uniforme, isótropo, quantita- essa questão e numa linguagem diferente, é verdade, diz pratica-
tivo e outro espaço, conceitualmente simét rico e antagônico ao mente a mesma coisa que Heidegger, na mesma época, em Sein
primeiro, não científico porque experimentado ou imaginário, und Zefr. o espaço não é primeiro, mas segundo em relação ao
concreto em todo caso, porque vivido incensamente, heterogêneo, "mundo", isto é, ao universo de significações do qual exibe, se
orientado e anisotrópico por natureza, qualitativo . Essa distinção podemos assim dizer, o sistema das relações. A estrutura interna
também pode ser enconcrada na oposição, clássica para os feno- do espaço da vida é, primeira e essencialmente, uma estrutura se-
menólogos (Erwin Straus, Maurice Merleau-Ponty, Henri Maldi- mântica, sendo ela mesma a expressão, talvez, de um complexo de
usos e práticas, ou até rotinas.
26
Canguilhem, G. "Le vivam et son milieu". La Connaissance de la vie. Paris: Vrin,
1975, p. 129. Ver também: Spirzer, L. "Milieu and Ambiance: An Essay in His- 27 Cassirer, E. "Espace myrhique, espace esthétique, espace théoriquc". Écrits sur
torical Semantic". Op. cit. l'art. Op. cit., p. l 09.
Paisagem, hodologia, psicogeografia 203
202 O gosto do mundo: Exercicios de paisagem

espaços juntados diferentemente - o espaço da arte, o espaço da


Um dos efeicos importantes dessa concepção do espaço é,
vida cotidiana com as suas ações e deslocamentos - são apenas
afinal, a afirmação da pluralidade dos "meios", dos "mundos",
formas primitivas e transformações subjetivamente condiciona-
isto é, também, dos "espaços" nos quais se desdobra a existência.
das da objetividade de um único espaço cósmico? (Heidegger,
A ideia já está presente, no campo da etologia animal, em Jakob
M., 1976, p. 100).3º
von Uexküll: 28 cada ser vivo possui o seu Umwelt, isto é, recorta,
no ambiente objetivo, o meio dentro do qual se tecem os seus
Uma generalização possível da reflexão hodológica situa-se
projetos e aparecem os seus objetos. Uma determinada "árvore"
nesse conjunto problemático ordenado pela questão da pluralida-
não é a mesma para a raposa, para o esquilo, para a aranha e para
de dos mundos e das espacialidades. Entretanto, para ter acesso a
o homem, e esses diferentes "mundos" ou "meios" não se comu-
esse novo pensamento do espaço, é necessário, sem dúvida, "[ ... ]
nicam. Os seus "espaços" não se superpõem.
libertar a q uestão do ser do espaço das restrições que lhe impõem
"Cada meio", escreve von Uexküll, "constitui urna unidade
conceitos ontológicos escolhidos arbitrariamente e geralmente
fechada sobre si, cujas partes são todas determinadas pela signifi-
bastante toscos".31
cação q~e adquirem para o sujeito desse meio". 29 Seria vão, por
conseguinte, supor que poderíamos reencontrar "do interior" o
Cartografia e hodologia
mundo animal a partir do mundo humano: seus espaços cruzam-
-se, superpõem-se, anulam-se às vezes, mas não fusionam num
As análises de Kurt Lewin foram retomadas em campos di-
mundo geral único que se poderia esperar abarcar com um único
ferences, rodos convergindo, entretanto , para uma indagação co-
olhar panorâmico ou sinóptico.
mum sobre a diversidade das formas da experiência do espaço e
Heidegger formula de modo diferente a mesma pergunta,
das suas representações: a psicologia do comportamento animal
voltando às relações entre o espaço da ciência e os "outros espaços":
e humano, a história da cartografia, a teoria do urbanismo e da
paisagem, mas também a filosofia existencial e a teoria da arre.
[... ] será que o espaço do projeto físico-técnico [... ] pode valer
Gilles Deleuze lista assim as perspectivas de uma arte hodológica,
como o único verdadeiro espaço? Comparados com ele, todos os
a respeito da escultura:
28
Von Uexküll, ]. Mondes animaux et monde humain. Paris: D enoel 1965. A arte-arqueologia que mergulha nos milênios para atingir o
D fu'd ' dese mpenha,
1 ., P· 90. '.'er, p. 89, a observação sobre o caule da flor, "que

segundo o meio [moça, formiga, cigarra, vaca], ora um papel decorativo, ora um
imemorial opõe-se uma arte-cartografia que se baseia nas "coisas
papel de caminho, ora um papel de bomba, ora, finalmente, um papel de alimen- de esquecimento e os lugares de passagem". Assim a escultu ra,
to''. Von UexküU cita pouco ames uma frase de Werner Sombart: "Não existe quando deixa de ser monumental para tornar-se hodológica: não
floresta enquanto meio objetivamente determinado, há uma flo resra-para-o-
basta dizer que ela é paisagem e que ordena um lugar, um territó-
-lenhador, uma floresta-para-o-caçador, uma floresta-para-o-botan ista, uma flo-
resta-para-o-caminhante, uma floresta-para-o- amigo-da-natureza, uma floresta-
-para-aquele-que-colhe-lenha ou aquele-que-colhe-frutas, uma floresta de lenda
;!{) H eidegger, M. 'Tare et !'espace''. Questions N. Paris: Gallimard, 1976, p. l 00.
o~de se perde o Pequeno Polegar". Ver, também, o comentário de Agarnben, G.
"' H eidegger, M. L'Etre etle Temps. Paris: Gall imard, 1964, pp. 142-3.
L Ouvert. De l'homme et de !'animal. Paris: Payot/Rivages, 2002, pp. 62 e seg.
204 O gosto do mundo: Exercícios de paisagem Paisagem, hodologia, psicogeografia 205

rio. São caminhos q ue ela vai abrindo, ela mesma é uma viagem Trata-se de onze folhas de pergaminho de cerca de 33 cen-
(Deleuze, G., 1999, p. 87). 32 tímetros de altura que, juntas, teriam um comprimento de cerca
de 6,7 metros.35 Esse "mapa" representa o espaço do mundo habi-
Contentemo-nos, por enquanto, em sublinhar esta indica- tado tal como o conheciam os romanos, desde o Atlântico (mais
ção: há uma arte hodológica, na qual a obra, seja ela escultura, precisamente, o sul da Grã-Bretanha) até a Índia. No mapa estão
prédio ou paisagem, torna-se mapa. Essa obra é, ao m esmo tem- indicados os mares, os rios, as montanhas, as divisões políticas,
po, uma representação, uma concentração e uma intensificação os santuários religiosos, as cidades etc. (ou seja, cerca de dois mil
do espaço e das experiências que podemos ter dela, mas é também e setecentos nom es de lugares). Mas o que mais chama a atenção
um conjunto de operações. é a presença, muito importante, da rede das linhas que represen-
A questão, no entanto, é conseguir determinar o que poderia tam as estradas ligando todos esses lugares e as distâncias que os
ser um "mapa hodológico", um mapa que pudesse traduzir, como separam. Não estamos lidando com um mapa no sentido habitual
diz Jean-Paul Sartre, a evolução dos nossos atos e das nossas neces- que se dá ao termo, mas com a representação de um "itinerário"
sidades e, mais geralmente, das nossas caminhadas no mundo.33 (ou melhor, de um grande número de itinerários possíveis), onde
encontramos um conjunto de indicações a respeito das extensões
Mapa, percurso, relato dos percursos a realizar (a tábua cobre cerca de 112 mil quilôme-
tros de estradas).
De que forma os romanos viam, representavam e conce- A concepção do espaço envolvida na Tábua de Peutinger
biam o espaço geográfico sobre o qual haviam estendido a sua é horizontal, linear (o que é refo rçado pela aparência material da
dominação? 34 Essa questão sempre atiçou a curiosidade dos histo- própria representação: em longas faixas que se desenrolam). É
riadores da Antiguidade, e não apenas dos historiadores da carto- muito diferente daquela apresentada por Ptolomeu na sua Geo-
grafia. Um dos únicos documentos de que dispomos hoje é uma grafia, no século II. Em Ptolomeu, o m apa é uma representação
cópia medieval de um itinerário romano, conhecido pelo nome de plana do espaço. É baseado na definição prévia de uma rede de
Tábua de Peutinger (Fig. 4 e 5). linhas geométricas que constituem uma grade, na qual podem
ser colocados os nomes de lugares cujas coordenadas em latitu-
de e longitude são conhecidas. Uma localização é definida como
32
Deleuze, G. "Ce que les enfants disent". Critique et Clinique. Paris: Minuir, a intersecção de duas linhas traçadas a partir das referências das
1999, p. 87. Gilles Deleuze evoca o trabalho de Carmen Perrin. coordenadas inscritas nas bordas do mapa. O olhar cartográfico
33
Sobre a forma como a psicologia am biental aborda hoje esse problema, ver: sobre o espaço, no caso de Ptolomeu, é estruturado e mediado
Legcndre, A. e Depeau, S. "La cartographie comporcemenrale: une approche
spatiale du comporccmem". In Moser, G. e Weiss, K. Espaces de vie. Aspects de la pela existência dessa grade, que constitui como um esquema de
relation homme-environnement. Paris: Armand Col in, 2003, pp. 267-99. percepção, de m edida e de organização do espaço.
14
· Whitraker, C. R. Rome and its Frontiers. The Dynarnics ofEmpire. London and

New York: Routledge, 2004 (especialmente o capítulo IV: "Menral Maps and
Frontiers", pp. 63-87); Janni , P. La mappa e il periplo. Cartografia antica e spazio 35 Levi, A. e M. ltinemria picta: contributo alio studio della Tabula Peutingeri11m1.
odologico. Roma: Giorgio Bretschneider, J 984. Roma: G iorgio Bretschneider, 1967.
206 O gosto do mundo: Exercícios de paisagem Paisagem, hodologia, psicogeografia 207

Por um lado, portanto, a grade e a v1sao em plano; por define por prescrições a serem seguidas e ações a serem cumpridas
outro, o itinerário ou o percurso, a visão em linha. E mais: de pelo viajante, um espaço que se constrói como uma viagem.
um lado, a visão vertical e o teatro do espaço; do outro, a vi- Um século mais carde, o cartógrafo parisiense Jean Bois-
são horizontal, frontal, que progride ao longo do caminho. Essa seau tentou traduzir graficamente La Guide ou, mais exatamen-
37
alternativa nas relações com o espaço não é circunscrita apenas te, desenhar os trajetos no fundo de um mapa da França. O
à Antiguidade. Ela atravessa as épocas e as culturas, e é possível mapa de Boisseau (Fig. 7) dá uma imagem geral do espaço do
considerá-la como um dos fundamentos da relação que os seres reino, dispondo os lugares uns em relação aos outros, como num
humanos mantêm com o espaço e a paisagem. plano. Nesse mapa, embora enfatize o sistema nascente das vias
La Guide des chemins de France, de Charles Estienne, com de comunicação, aparece nitidamente o caráter parcial do espaço
várias edições entre 1552 e 1568, constitui um exemplo famoso descrito e prescrito por La Cuide. O mapa relativiza os percursos,
dessa organização linear e sequencial na qual o espaço é literal- que são, então, como estradas simplesmente possíveis entre ou-
mente construído como o desenrolar ou o desenvolvimento de tras também abertas e que, afinal de comas, não se escrevem mais
um percurso36 (Fig. 6). como viagens. 38 Ler o mapa é, de certa forma, sair do espaço do
Encontramos nela como uma épura da abordagem hodoló- percurso, d eixar de habitar nele, a fim de contemplá-lo, por assim
gica que procuramos caracterizar: 1) o espaço se reduz a uma lis- d izer, de fora. La Cuide de Charles Escienne e o mapa de Jean
ta de nomes de lugares apresentados de forma hierarquizada (em Boisseau propõem dois modos distintos de recorte e de organiza-
fontes maiores, o nome da cidade de destino; em fontes menores, ção do território.
o nome das cidades de passagem, com a indicação das distâncias Uma distinção do mesmo tipo é descrita por Michel de
a serem percorridas, em léguas e dias); 2) esse espaço é investi- Certeau a respeito do espaço urbano e dos seus usos. 39 Ceneau en-
do corporalmente e ritmado por indicadores imperativos ("À es- fatiza, todavia, outra dimensão absolutamente decisiva do espaço
querda, aparece o castelo de Chambord"; "À destra, passa a ponte hodológico: este não é apenas um espaço praticado e um espaço
sobre o rio d e Cissé"; "Após passar a água, segue à mão destra e vivido, também é um espaço relatado . O relato é um percurso
caminha através dos bosques"; "Vê uma das maiores lagoas da de espaço e, simetricamente, o itinerário organiza-se como um
França e segue à mão destra fora da estrada"); 3) o espaço é divi- relato. Vamos detalhar. Consideremos duas formas de descrever
dido em unidades de deslocamento, também expressas em léguas, um lugar qualquer: "Ao lado da padaria, há a rua da estação",
dias, referências, etapas etc. Em definitivo, o espaço de La Guide ou então: "Para ir à estação, você vira na rua depois da padaria e
é um espaço praticado e vivido, mas, sobretudo, um espaço que se
JJ Boisscau, J. Tab/eatt géographique des Gaules. 1645.
.l8 Convém notar, entretanto, que o mapa de I3oissean contém elementos d e "veto-
3
G Estiennc, C. La Guide des chemins de France. Paris, 1552. A respeiw de La Cuide, rização" do espaço: por um sistema de setas pretas traçadas a parti r dos caminhos,
ver, em particular: Skenazi, C. "Une pratique de la circularion: La Guide des o mapa procura dar um equivalente visual das indicações verbais contidas em La
chemins de France de Charles Estienne". Romanic Review, n. 1, janv.-mar. 2003, Guide.
PP· 153-66; Lestringant, F. "Su i.vre la Cuide". Cartes et figures de !a Terre. Paris: 3? Certcau, M. de. L'Jnvention du quotidien, 1, Arts de faire. Op. cit., m, "Pratiques
Centre Georges-Pompidou/CCI, 1980, pp. 424-35. d' espace", pp. 139-91.
208 O gosto do mundo: Exercícios de paisagem Paisagem. hodologia, psicogeografia 209

chega nela". No primeiro caso, trata-se de uma descrição do tipo tinção com a questão do olhar sobre a paisagem, mais exatamente
"mapa )) , estamos mental mente firente a um quad roque apresenta com a questão d a "altura'' desse olhar. O olhar aéreo seria corno um
uma distribuição ordenada dos lugares. No segundo caso, a des- olhar cartográfico: visto do alto, o espaço terrestre fica achatado,
crição é do tipo "percurso" e se caracteriza por vários aspectos: por assim dizer, e a verticalidade do olhar contribui a transformar a
apresenta-se como uma série de operações que correspondem a paisagem em uma espécie de mapa dela mesma. De forma oposta, a
direções a serem tomadas, caminhos a serem seguidos, distâncias frontalidade do olhar do pedestre indo ao encontro das coisas e dos
a serem contadas, mas, sobretudo, esses caminhos "vetorizam" o seres nos camin hos restitui ou conserva da paisagem seus planos de
espaço, a descrição corresponde a uma ação e a uma narração es- fundo, suas perspectivas, suas margens invisíveis, suas espessuras
pacializante. É necessário, portanto, distinguir, nas descrições de inesperadas, precisamente a sua profundidade.;,' Não parece possí-
espaço, os indicadores de mapa e os indicadores de percurso. Os vel "dobrar" um sobre o outro esses dois olhares e os dois gêneros de
primeiros correspondem à exposição d e um saber que assume a espacialidade que são correlatos.4 2 N um caso, o espaço é dado como
forma de um quadro para tornar-se legível, enquamo os segundos um quadro a priori da experiência; no outro, vai se descobrindo aos
movimentam os lugares, inscrevendo-os em operações, ações e poucos, ou melhor, vai se formulando e reformulando, à medida da
acontecimentos que se desenrolam numa espécie de lista. O mapa progressão dos itinerários.43
nos puxa fora do espaço para que possamos considerá-lo como
espectador, enquanto o relato nos traz d e volta, fazendo-nos mer- Mapas de intensidade: a psicogeografia
gulhar nele. O mapa apaga os itinerários, as práticas de espaço,
acrescenta Michel de Certeau: Já tomamos
conhecimento de um conjunto de coisas que
nos permitem caracterizar melhor o espaço hodológico, ou a ló-
O mapa, palco totalizante onde elementos de origens variadas são gica hodológica do espaço: o espaço hodológico é um espaço vi-
reunidos para formar o quadro de um "estado" geográfico, rejeita vido, mas é também um espaço praticado e, enfim, é um espaço
para o antes ou o depois, como nos bastidores, as operações de relatado. Em outras palavras, esse espaço não é senão o tempo que
que é o efeito ou a possibilidade. Ele perm anece só. Os descrirores tomou a forma do espaço, que se cristalizou em espaço. Mas o
de percursos desapareceram (Certeau, M. de, op. cit., p. 179).40 conceito de uma "cartografia hodológica" parece, então, d ifícil d e

O mapa e o itinerário parecem, assim, apresentar-se como 41 No prolongamento dessa observação, deveríamos abordar a quesrão da fotografia
dois modos distintos, se não alternativos, de percepção, organização de paisagem e das suas relações com o projeto. Vi mos, nos capítulos II e lfl,
e recorte do espaço. Constituiriam como dois polos da nossa relação como certo pensamento do ordenamento cerrirorial rinha ligação com uma prá-
rica aérea do espaço e da tomada.
com a espacialidade. De um lado, haveria de "ver o espaço como 4
' Na história dos discursos sobre as descobertas geográficas, esses dois cipos de
um mapa'', e do outro, de "vê-lo como um percurso" ou um cami- espacialidade fo ram encarnadas por duas figuras confücances, a do viajance ou do
nho. A esse respeito, poderíamos, sem dúvida, relacionar essa dis- explorador e a do cientista de gabinete.
43
Cf. Carcer, P. The Road to Botany Ba_y. An Exphration of Landscape and History.
Chicago: T he University ofChicago Press, 1987, bem como: lngold, T Lines, A
'º lbid., p. 179. BriefHistory. London and New York: Routledge, 2007 .
2 1O O gosto do mundo: Ex ercícios de paisagem Paisagem, hodologia, psicogeografia 21 1

implementar. Sabemos isso desde Bergson, efetivamente: a tradu- Partiremos desse exemplo para considerar um conceito am-
ção do tempo em espaço, a sua representação gráfica na forma de pliado do mapa e da prática cartográfica (e, além disso, talvez, do
uma linha dividida em intervalos regulares fazem o tempo perder espaço) , que seja tal que a dimensão temporal não esteja excluída,
justamente a sua realidade, ou melhor, a sua dinâmica, isto é, o mas constitua, ao contrário, um dos seus aspectos fundamentais.
próprio movimento, o seu ímpeto. Convertida em espaço, a du- Trata-se, primeiramente, de saber o que o mapa representa: ob-
ração imobiliza-se, fixa-se em uma sequência de estados que são jetos fixos, postos de uma vez por todas como coisas inegáveis?
todos lugares estáticos em sinais de pontuação. O ímpeto torna- Ou, então, fluxos, movimentos, intensidades? Em seguida, trata-
-se uma trajetória identificada. A intensidade e a dificuldade do -se de determinar como esses fenômenos de tempo devem ser re-
itinerário, a sua irreversível contingência, ficam esquecidas na paz presentados, a fim de que possam manter, justamente, sua própria
soberana da linha já traçada e do mapa realizado. qualidade. Em outras palavras: como é possível reintroduzir, sem
Será necessário, entretanto, separar, de forma tão absoluta, o apagá-los, os indicadores de percurso no próprio mapa, acionan-
espaço e o tempo e os dois gêneros de espacialidade induzidas pelo do assim uma cartografia hodológica, alternativa, em certo senti-
mapa e pelo itinerário? Nada mais duvidoso. Michel de Certeau do, à cartografia de tipo ptoloma.ico?
utiliza o exemplo de Pierre Janet, referindo-se a um documen- Tenhamos em mente esta indicação de Gilles Deleuze:
to asteca do século XV, que retrata o êxodo dos totomihuacas,
para denunciar a operação q ue consiste em converter um "jornal Os mapas não devem apenas ser entendidos em extensão, em re-
de caminhada", pontuado por marcas de passos, acontecimentos lação a um espaço constituído de trajetos. Há também mapas de
ocorridos durante a viagem (refeições, combates, travessias de rios intensidade, de densidade, que dizem respeito ao que preenche
e montanhas) , em uma "estrada,, : nao - e; um "mapa geograuco;f". ,,
, o espaço, ao que sustenta o trajeto. [... ] É essa distribuição de
44 afetos [...] que constitui um mapa de intensidade (Deleuze, G.,
mas um "livro de história", escreve. No entanto, nesse ponto, o
psicólogo não é tão bergsoniano quanto o historiador. Os fenô- op. cit., p. 84).'6
menos de mistura de espaço e de tempo parecem-lhe "naturais" e
"necessários". Foi o que ocorreu no relato dos totomihuacas, que Um lugar de experimentação para a resposta a essas per-
é "uma fabulação que mistura constantemente o tempo e o espa- guntas foi a "psicogeografia", isto é, essa modalidade alternati-
ço". Assim, longe de opor mapa e percurso, Janet considera que o va na percepção, na representação e no ordenamento do espaço,
espaço "atua para arrumar os relatos. 45 De forma ma.is abrangente, implementada nos anos 1950 e 1960, em Paris principalmente,
é a própria operação da "fabulação" que efetua essa síntese do pelos representantes do movimento letrista, e, mais tarde, situa-
tempo e do espaço, que o mapa azteca traduz. cionista.47

44 46 Deleuze, G. "Ce que les enfants disent". Op. cit., p. 84.


Certeau, M. de. L1nvention du quotidien. Op. cit., p. 178. Cf. Janet, P. L'Evolu-
tion de la mémoire et de la notion du temps, II: La Mémoire élémentaire. Paris: A. 47 A literatura sobre o movimento situacionista é abundante para dar aqui um
Chahine, 1928, pp. 283 e seg. apanhado geral. Para a questão que nos interessa, ver, sobretudo: Pinder, D.
45 Visions ofthe City. Utopianism, Power and Politics on Twentieth Century Urbanism.
Janet, P. Op. cit., p. 284. Ver também: Bachelard, G. La Dialectique de la durée.
Paris: PUF, 1950, a respeito da noção de ritmo. Edinburgh: Edinburgh University Press, 2005; Sadler, S. The Situationist City.
212 O gosto do mundo: Exer cícios de paisagem Paisagem, hodologia, psicogeografia 2 13

Na verdade, se o termo "psicogeografia" foi cunhado no cli- que Guy Debord chama de "a geografia da verdadeira vida".50 Mas
ma dos movimentos político-artísticos que acabamos de citar, as os situacionistas reconhecem também as preocupações de alguns
práticas e, sobretudo, os problemas que abrange ultrapassam a es- sociólogos e filósofos que são imediatamente contemporâneos, a
fera situacionista propriamente dita. Os letristas e os situacionistas quem, aliás, fazem explicitamente referência. Assim, tanto Paul-
prolongam e reformulam propostas artísticas, poéticas ou filosó- -Henry Chombart de Lauwe quanto Henri Lefebvre questionam os
ficas mais amigas, que fizeram da experiência física do espaço ur- desafios psíquicos, políticos, sociais e culturais dos espaços urbanos,
bano e, em particular, da caminhada, 48 uma das vias de acesso à bem como o impacto das suas transformações sobre as formas de
compreensão das formas da cultura moderna, bem como uma das habitar, enfatizando, além disso, a parte das representações e das
condições possíveis da superação da arte. O flanar benjaminiano, práticas na investigação dos espaços urbanos.
a excursão dadaísta, a deambulação surrealista, embora recusados, A definição da psicogeografia dada por Guy Debord con-
quanto a seus fins, pelos situacionistas, pertencem à sua genealogia: tém uma indicação preciosa sobre o tipo de espacialidade que
a cidade grande, no caso, Paris, é abordada como um grande tea- considera:
tro para jogos de imaginação,49 de desejo e de exploração daquilo
A palavra "p sicogeografia" [...] não sai da persp ectiva materialis-
Cambridge and London: MIT Press, 1998; Pinder, D. "Subvcrcing Carrography: ta do condicionamento da vida e do pensamento pela natureza
rhe Siruarioniscs a nd Maps of rhe Cicy". Environment and PlanningA, v. 28, 1996, objetiva. A geografia, por exemplo, relata a ação determ inante
pp. 405-27; Mc-Donough, T. "Sicuationist Space". October, v. 67, 1994, pp. 58-
de forças naturais gerais, com o a composição dos solos ou os
77; ______. "Dclirious Paris: Mapping as a Paranoiac-Cricical Accivity". Grey
Room, n. 19, 2005, pp. 6-21; D onné, B. (Pour Mémoires). Un essai d'é/ucidation regimes clim áticos, sobre as fo rmações econôm icas ele uma socie-
des Mémoires de Guy Debord. Paris: Allia, 2004. Há um grande número de dade e, a partir daí, sobre a concepção do mundo que ela p ode
documentos em: Internationa/e situationniste 1958-1969. Paris: Champ Libre,
construir. O propósito da psicogeografia seria o estudo d as leis
1975; Berreby, G. (dir. ). Documents relatifi à la fondation de L1nternationale
situationniste. Paris: Allia, 1985; Debord, G. CEuvres. Op. cit.; Andreotti, L. Le exatas, e dos efeitos precisos do m eio geográfico, con scientemen-
Grand ]eu à venfr. Textes situationnistes sur la vil/e. Paris: Gallimard/Édicions de
La Villette, 2007. tafísica dos lugares": "Onde se desenrola a atividade mais suspeita dos seres vivos,
óR Ver, por exemplo: Solnit, R. L'Art de marcher. Arles: Actes Sud, 2002. O livro o inanimado assume, às vezes, um reflexo dos seus mais secretos motivos: assim,
de Laurenc Turco, Le Promeneur à Paris au XVII! siecle, "Le Promeneur" (Paris: as nossas cidades são povoadas de esfinges desconhecidas que não interrompem
Gallimard, 2007), é uma reconstrução muitíssimo interessante das transformações o passante so nh ador, se este não dirigir para elas a sua distração medicativa [... ]".
das fo rmas e dos desafios culturais do passeio no Século das Luzes. Mostra 5o O ebord, G. "Préface à la quacrieme édition iralienne de La Société du spectacle".
como essa redefinição do passeio baseia-se na transformação concomitante do l n CEuvres. Op. cic., p. 1.465. Para uma abordagem genealógica, ver: Careri,
ordenamento do espaço {surgimento do bulevar urbano), das representações F. Wàlkscapes. Walking as an Aesthetic Practice. Barcelo na: Gustavo Gili, 2002;
sociais e das práticas da caminhada na cidade, que passam progressivamence de Bourg, L. 'Tendurance du voyagem-. Déambularion ec dérive, du surréalisme à
um regime ele civili<la<le ao e.la experiência individualizada. l'Internationale ~ ic uacionniste". ln fréchu ret , M . e Davila, T (dir.). Les Figures
19
"Paris passou a ser para mim um grande jogo de conscruções. Inventei uma espé- de la marche: im siecle d'arpenteurs. Op. cit. , pp. 11 1-33; Pinder, D. "Old Paris Is
cie de agência Cook burlesca que tentava cm vão se situar, um guia na mão, nesse no More": Geographies of Spectacle and Ami-Spectacle". Antipode, v. 32, n. 4,
dédalo de épocas e de lugares onde eu me movia com desenvoltura. " (Aragon, L. 2000, pp. 357-86; Hollevoet, C. "Oéambulations. De la flãnerie et de la dérivc
Anicetou le Panorama. Paris: Gall imard, 1972 [1921], p. 29.) Ver também , em Le dans la villc à l'appréhension de J'espace urbain dans Fluxus et l'arc conceptuel".
Paysan de Paris (Paris: Gallimard, 1926, p. 20), as páginas deAragon sobre a "me- Pamchute, n. 68, 1992, pp. 21-5.
214 O gosto do mundo: Exercícios de paisagem Paisagem, hodologia, psicogeografia 215

te ordenado ou não, agindo diretamente sobre o comportamento paços inrraurbanos. Constam, que, naquela época, ainda não rom-
afetivo dos indivíduos (Debord, G., op. cit., p. 204).51 pera com a Internacional Situacionista, é bem explícito nesse ponto:

A psicogeografia é pensada como uma parte ou um pro- Os situacionistas, exploradores especializados do jogo e do lazer,
longamento da geografia humana: o estudo psicogeográfico é entendem que o aspecto visual das cidades só importa relacio-
aquele que se interessa pelos efeitos do "meio geográfico" sobre o nado com os efeitos psicológicos que poderá produzir, e que de-
"comportamento afetivo dos indivíduos", sobre "os sentimentos verão ser calculados na totalidade das funções a serem previstas.
humanos". A perspectiva geral em que se inscrevem as reflexões [... ] Conscientes de que os futuros lazeres e as novas situações
de G uy Debord é deliberadamente materialista, mais exatamente que estamos começando a construir devem mudar profunda-
marxista. O que é afirmado é um determinismo, no sentido mais mente a ideia de função que originou um estudo urbanístico, já
rigoroso do termo: o condicionamento. E a geografia humana podemos ampliar o nosso conhecimento do problema pela expe-
também é apresentada nesta perspectiva: há um determinismo das rimentação de cercos fenômenos ligados ao ambiente urbano: a
"forças naturais gerais" sobre as "formações econômicas de uma animação de uma rua qualquer, o efeito psicológico de diversas
sociedade" e sobre as suas concepções do mundo. Paradoxalmen- superfícies e construções, a mudança rápida do aspecto de um
te, entretanto, esse determinismo não é contrário à afirmação da espaço por elementos efêmeros, a rapidez com que muda o am-
liberdade, poderia representar a condição de partida de uma ação biente dos lugares e as variações possíveis no ambiente geral de
crítica e revolucionária. 52 diversos bairros (Constant, 1996, PP· 289-90).
54

Guy Debord evoca, sobretudo, ao falar em meio geográfi-


co, um mundo ordenado pelo homem, o mundo da cultura, mais O que significa, então, a noção de espaço psicogeográfico?
exatameme, um mundo arquitetado. O meio que tem em mente é De que realidade espacial se trata? , .
fundamentalmente a cidade, o mundo urbano enquanto mundo Esse espaço é um espaço afetivo, um espaço ps1qu1co, mas
histórico e paisagem humana.53 A psicogeografia, seja como rea- não é "interior": existe como ambiente, atmosfera que envolve e
lidade efetiva, seja como tipo de estudo, diz respeito à questão dos prende o indivíduo quando ele está em contato com os "meios
ambientes urbanos, das zonas de climas psíquicos e de sensações geográficos", mais exatamente, os meios urbanos. Tudo acontece
provocadas (são os termos de Guy Debord) pela organização doses- fora na rua. "É um J·ogo da vida e do meio", escreve Debord, em
'
Mémoires. 55 E é dentro desse "jogo" e daquilo que ele chama " o
51
Debord, G. " lncroducrion à une critique de la géographic urbaine". Les U:vres
terreno passional objetivo" 56 que são definidas as "medidas" de tal
nues, n. 6, 1955 (em CEuvres, op. cit., p. 204).
52
Em La Société du spectacle (1967), Guy Debord escreve: "A revolução proletária é
essa critica da geografia humana pela qual os indivíduos e as comunidades têm de 54 Constant. "Le grand jeu à venir". Potlatch, n. 30, 15 jul. 1959 (reed. Paris: Gal-
construi r os locais e os eventos correspondentes à apropriação não mais apenas limard, 1996, pp. 289-90). . _
do seu trabalho, mas da sua história total" (em CEuvres, op. cit., p. 842). ss Debord, G. Mémoires. Copenhague: Permil & Rosengrcen, 1958, sem pagmaçao
53
Na Théorie de la dérive (1956), Debord eira Marx: "Os homens nada podem ver à
(recd. Paris: Allia, 2004).
sua volta que não seja a pr6pria imagem, tudo lhes fala deles. A própria paisagem 56 Debord, G. "Théorie de la derive". Internationale Situationniste, n. 2, dez. 1958
deles é animada" (CEuvres. Op. cit., p. 253).
(pp. 19-23); citado em CEuvres, op. cit., p. 251.
2 16 O gosto do mundo: Exerdcios de paisagem Paisagem, hodologia. psicogeografia 21 7

espaço. Nesse espaço, "[... ] as distâncias que separam duas regiões mesma forma como as descobertas astronômicas provocaram uma
de uma cidade [... ] não podem ser equiparadas com o que uma reflexão sobre as relações entre o grande e o pequeno. Mas essas
visão aproximativa de um plano poderia levar a crer".57 d escobertas tiveram, sobretudo, um impacto sobre o sentimento
Na mesma perspectiva, Debord prolonga Paul-Henry que se pode ter do espaço terrestre e do seu tamanho. Em outros
Chombart de Lauwe quando este procura definir a noção de bair- termos, há. um afeto espacial. Somos, particularmente, afetados
ro por uma observação atenta das representações e do comporta- pela grandeza do espaço. Hume destaca o fato de a distância, isto
mento dos moradores, que é a única a poder ajudar a determinar é, a proximidade e o afastamento dos objetos que almejamos, pro-
os limites, que não são funcionais nem estreitamente topográfi- duzir efeitos, às vezes consideráveis, sobre a força e a vivacidade da
cos. 58 Mas vai mais longe que ele quando subsritui à noção de nossa imaginação. Sem dúvida," [... ] achamos, na vida cotidiana",
"unidade residencial" a de "unidade de ambiente" ou de "unidade escreve, "que os homens se interessam principalmente pelos obje-
de atmosfera": estas "[... ] não são exatamente delimitadas, mas tos que não estão muito afastados no espaço e no tempo" .61
cercadas de margens fronteiriças mais ou menos extensas" .59 . Assim, a quebra de um espelho situado à proximidade afeta
Uma nova cartografia é necessária para desenhar o espaço os homens de forma mais violenta que o incêndio de uma casa
psicogeográfico, uma "cartografia iníluenciaJ", que Guy Debord distante cem léguas. Mas, inversamente,"[... ] um comerciante das
compara com os primeiros portulanos, isto é, com os mapas usa- Índias Ocidentais dirá que está preocupado com o que acontece
dos pelos navegadores para penetrar nas águas desconhecidas ... na Jamaica". 62
Como foi dito, os situacionistas não foram os primeiros are- Hume observa, pouco adiante, que"[... ] a única vista e a
conhecer a existência d e um espaço dos afetos. Já no século XVIII, única contemplação de uma grandeza, sucessiva ou extensa, am-
num contexto bem diferente, David Hume fizera a análise desse pliam a alma" .63
poder que o espaço e, mais precisamente, a distância detêm sobre A questão é mesmo a da maior ou menor capacidade da
"a concepção e as paixões''. 60 Ele faz referência, principalmente, às alma em "se ampliar", isto é, aumentar o seu volume, aumentar
descobertas geográficas do Renascimento e à conscientização so- a quantidade de objetos com que entra em relação, e em inserir
bre as grandezas do espaço terrestre que essas descobertas suscita- as coisas afastadas no espaço das suas ocupações cotidianas. O
ram. Efetivamente, essas descobertas provocaram, por assim dizer, afastamento e a proximidade e, mais geralmente, as grandezas,
a irrupção dos longínquos no próximo e colocaram o problema de não são apenas, portanto, no caso, designações métricas: também
uma redefinição das relações entre o próximo e o longínquo, da constituem valores ou polos no bojo do que poderia ser chamado
de topografia da alma, ou uma geografia dos acentos psíquicos.
57 Em outros termos, o espaço geográfico não é apenas um
Ibid., p. 256.
58
Lauwe, P.-H. Chombart de. Paris et L'agglomération parisienne. L'espace social dans campo de objetividade caracterizado pelos imperativos de uma
u.ne grande cité. Paris: PUF, 1952. Cf. McOonough, T "Situationist Space". Op.
rn., pp. 67-8.
59 61
Ibid. , VII, p. 539.
Debord, G. "Théorie de la derive". Op. cit., p. 256.
60 62 Ibid.
Hume, D. Traité de La nature humaine. Paris: Aubier, 1946, v. II, terceira parte,
seção VIII, p. 543. 63
lbid., VIJI, p. 543.
218 O gosto do mundo: Exercícios de paisagem Paisagem, hodologia, psicogeografia 2 19

medida quantificada. T ambém é portador de uma dimensão afe- O espaço psicogeográfico, o espaço da geografia vivida que
tiva, qualitativa, na qual a subjetividade h umana vem mergulhar. tentamos caracterizar seria um espaço marcado não só pela va-
É essa tonalidade ou esse teor afetivo do espaço geográfico que riação dos valores afetivos que o compõem, pela diversidade dos
podemos chamar de espaço psicogeográfico. acentos psíquicos que nele estão distribuídos, mas também pela
Podemos, então, tentar caracterizar mais detalhadamente diferenciação das zonas de intensidade experimental (por assim
ainda esse espaço psicogeográfico, recorrendo novamente a Guy dizer) que estão justapostas nele. Se a vida é como um passeio
D ebord. Este evoca metódico, mas sem objetivo final, como parece indicar Guy De-
bord, esse passeio desenvolve-se, no entanto, segundo linhas de
[.. .] a brusca mudança de ambiente numa rua, a poucos metros; in tensificação variável em função dos meios que ele atravessa e
a divisão patente de uma cidade em zonas de clim as psíquicos onde é experimentado.
delimitados; a linha cada vez mais inclinada - sem relação Assim, não se deveria considerar a presença do espaço psico-
com o desnível - que devem seguir os passeios sem objetivo; geográfico sob o ângulo exclusivo do determinismo, da influência
o caráter atraente ou repelente de alguns luga res (Debord, G., do meio sobre o comportamento afetivo. A perspectiva em que se
op. cit., p. 207) .64 colocam Debord e os situacionistas também é, deliberadamente,
experimental. A psicogeografia não é só a revelação de um aspecto
É bem verdade que essas descontinuidades no espaço (prin- negligenciado do mundo, também é um instrumento ou um méto-
cipalmente urbano, mas não só), mais exatamente ainda, essa jus- do para a sua transformação, isto é, para a afirmação da liberdade
taposição de meios cujos valores psíquicos são diferentes ou opos- possível. A prática da deriva é um d.os elementos desse método. 65
tos, têm causas, geralmente desprezadas, mas que podem aparecer Entre os diversos instrumentos que servem à psicogeografia,
por meio de uma "análise aprofundada e da qual podemos tirar (os mapas e as plantas, as vistas aéreas, os quadros estatísticos
proveito", enfatiza Debord. Mas o que deve merecer a nossa aten- etc.), a "deriva experimental" é o primeiro e o mais firme, escreve
ção aqui não é tanto a explicação possível dessa situação quanto a Abdelhafid Khatib. A noção de experimentação é aqui, sem
sua descrição. Os lugares cujo inventário é feit o pelos situacionis- d úvida, a mais importante, na medida em que faz da deriva,
tas não têm apenas valores diferentes, não são apenas portadores paradoxalmente, menos uma errância ou um ílanar que um método
de ambientes contrastados. Do po nto de vista daquele ou daque- (acrescentaremos, pensando na tradição contemporânea dos artistas
la que se encontra neles, que se desloca e faz deles a experiência caminhantes, um método ao mesmo tempo de investigação espacial
sensível, sentimental, também são portadores de uma intensidade e de produção artística) . Guy Debord apresenta a deriva como
espacial variável. Talvez seja este o elemento fundamental: os lu-
gares são portadores de uma potencialidade de experiência espa- 6~ Ver, a respeito os famosos textos de Abdelhafid Khacib ("Essai d'une descripcion
cial diferencial. psychogéographique des H alles". lnternationale Situationniste, n. 2, déc. 1958,
pp. 13-8) e de Guy Debord ("Théorie de la derive". Op. cit., pp. 25 1-57). "Os
situacionistas", escreve A. K.hatib, "sentem-se capazes, graças aos seus métodos
64 Debord, G. "Imroduction à une critique de la géographie urbaine''. CEuvres. Op. atuais e aos desenvolvimentos previstos nesses métodos, não só de reordenar o
cit., p. 207. meio urbano, mas de modificá-lo quase à vontade" (p. 13).
220 O gosto do mundo: Exercícios de paisagem Paisagem. nodologia, psicogeografia 221

"uma técnica da passagem apressada por ambientes variados". Essa A "cartografia influencia!'' que resulta daí bem poderia ser
técnica, por um lado, sanciona "o reconhecimento de efeitos de uma resposta à pergunta que fazíamos quanto à possibilidade
natureza psicogeográfica" e corresponde, por outro, à "afirmação de uma "cartografia hodológica". Assim, o mapa realizado, em
de um comportamento lúdico-construtivo". Debord acrescenta: 1957, por Guy Oebord, intitulado "The Naked City: Illustration
de l'hypothêse des plaques tournantes en psychogéographie" (Fig.
A parte do aleatório, aqui, não é tão determinante quanto se 8), reflete, na sua descontinuidade e sua aparência reticular, arac-
acredita: do ponto de vista da deriva, existe um relevo psico- nídea, a fragmencação ao mesmo tempo sofrida e desejada das ex-
geográfico das cidades, com correntes constantes, pontos fixos periências concretas da cidade, das práticas e das caminhadas que
e redemoinhos que tornam o acesso ou a saída de certas áreas se desdobram e se emaranham em sentidos múltiplos e contradi-
muito difíceis (Debord, G., op. cit., p. 251). 66 tórios. Ele não se preocupa em representar a totalidade das partes
da cidade, mas recorta e dispõe, no espaço da página, "unidades
A deriva é como a experiência desses relevos, dessa morfolo- de ambiente" e "placas giratórias" interligadas por setas que são
gia dos espaços urbanos. Mas é também uma experiência provo- marcadores de influência, de circulações possíveis, ou de percur-
cada, uma experimentação que tem o poder de revelar os valores sos realmente efetuados. Neste plano, como nos outros editados
próprios, os ambientes e as significações dos meios atravessados em 1957 pelos situacionistas, escreve Asger Jorn,
e percorridos. A deriva comporta, nesse sentido, uma parte ao
mesmo tempo crítica e projetual: apresenta uma cartografia al- [... ] as setas representam inclinações que ligam naturalmente as
ternativa dos mundos urbanos, reconfigura os espaços da arqui- diferentes unidades de ambiente; isto é, as tendências espontâne-
tetura e do urbanismo a partir daquilo que se pode chamar de as de orientação de um sujeita que atravessa esse meio sem levar
consideração das zonas de intensidade afetiva que os constituem. em conta os encadeamentos práticos - para fins de trabalho ou
t efetivamente outra cartografia da realidade que é proposta aqui, distração - que costumam condicionar a sua co nduta (Jorn, A.,
relativamente à revelação de outro espaço urbano. in Berreby, G. (ed.), op. cit., p. 535). 68

Os ensinamencos da deriva [escreve Debord] permitem estabele- Esse mapa não apresenta a cidade como uma superfície
cer os primeiros levantamentos das articulações psicogeográficas homogênea e contínua, definida pelas regras de uma geometria
de uma cidade moderna. Além do reconhecimento de unidades prévia ou de uma função esperada, mas procura, em vez disso,
de ambiente, dos seus principais componentes e da sua localiza- restituir, num plano gráfico, o espaço prático das ações gratuitas,
ção espacial, percebem-se seus principais eixos de passagem, suas das caminhadas apaixonadas, das experiências vividas, mas tam-
saídas e defesas. Chegamos à hipótese central da existência de bém desejadas, das sensações sofridas e provocadas, espaço dissi-
placas giratórias psicogeográficas (Ibid., p. 256). 67

68 Jorn, A. Pour ia forme. Ebauche d'une méthodologie des arts [1958] . ln Berreby, G .
66
Oebord, G. ''Théorie de la dérive". Op. cit., p. 251. (ed.). Documents re!atifi à la fôndation de l1nternationa!e Si tuationniste. O p. ci t.,
67
Ibid., p. 256. p. 535.
222 O gosto do mundo: Exercícios de paisagem

métrico, descontínuo, "verorizado", que pôde ser, para os situa- Nota sobre a origem dos textos
cionistas, o da própria vida, destinada ao grande jogo da busca de
si mesmo, espaço não liso, mas de profundezas inesperadas. 69 O
espaço da cidade que se habita no dia a dia pode ser caracterizado,
afinal de comas, pela sua forma hodológica.
Chegamos, finalmente, a uma observação de Julien Gracq:

Morar numa cidade é tecer nela, pelas idas e vindas diárias, um


emaranhado de percursos geralmente articulados em volta de
alguns eixos diretores. Se deixarmos de lado os deslocamentos 1. "As cinco portas da paisagem - ensaio de uma carto-
ligados ao ritmo do trabalho, os movimentos de ida e volca que grafia das problemáticas paisagísticas contemporâneas"
levam da periferia ao centro, e do centro à periferia, fica claro é o resultado de uma reflexão cuja primeira versão foi
que o fio de Ariadne, idealmente desenrolado arrás dele pelo ver- publicada em J.-L. Brisson (dir.), le jardinier, l'artiste
dadeiro citadino, assume, nas suas circunvoluções, o caráter de et l'ingénieur, L'Imprimeur, Besançon, 2000, e que foi
um enovelamento irregular. [...] Não existe coincidência alguma mais carde desenvolvida em diversos seminários e con-
entre o plano de uma cidade que consultamos num folheto e ferências. Uma versão resumida desse texto foi publi-
a imagem mental que surge em nós, ao ouvir o seu nome, do cada, em espanhol, em J. Maderuelo (dir.), Paisaje y
sedimento depositado na memória pelas nossas vagueações coti- pensiamiento, Abada Editores/CDAN, Madrid, 2006,
dianas (Gracq, J., 1990, p. 2-3). 7º pp. 145-71.
2. "Geografias aéreas" é a versão modificada do texto pu-
blicado em L 'Arpenteur du ciel, catálogo da exposição
"Alex MacLean'', Textuel/Thames and Hudson, Paris/
Londres, 2003, pp. 336-63.
3. "A paisagem, entre a política e o vernacular" é o pro-
longamento e a reformulação de diversas conferências
e palestras em seminários (Bratislava, 2003; Nantes,
2004; Lausanne, 2004; Lille, 2006). Uma primeira ver-
69
Fabien Danesi acribui ao mapa um "caráter estratégico": "Pela disjunção das ruas
são do texto foi publicada em ARCHES (Bucareste), t.
e dos prédios, Debord mostrava um dos meios possíveis para escapar ao comrole
do urbanismo policial que os situacionistas percebiam nos ordenamenros de Pa- VI, 2003, pp. 9-27.
ris. Estabelecer passagens não repertoriadas de um seror a outro era uma maneira 4. "Cartografar, construir, inventar - notas para uma epis-
de recusar as vias que determinavam ao citadino um percurso sinalizado". (Le temologia do encaminhamento do projeto" foi publica-
Mythe brisé de 17nternationale situationniste. L'aventu1'!! d'une avant-garde au ca?ur
da, em formato diferente, em Les Carnets du Paysage, n .
de la culture de masse, 1945-2008. Dijon: Les Presses du Réel, 2008, p. 206.)
70
G racq, J. La .Forme d'une ville. Paris: José Corti, 1990, p. 2-3. 7, 2001, pp. 126-45.
224 O gosto do mundo: Exercícios de paisagem

5. "Paisagem, hodologia, psicogeografia" foi composto a


partir de diversas palestras (Orléans, 2004; Versalhes,
2006; Lyon, 2007) e de artigos publicados em Les Car-
nets du Paysage nos últimos anos.

Caderno de Imagens
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1 - A. Guesdon. Vista de Turim, 1949-1852.


Paris, Biblioteca Nacional da França, Estampas e fotografias.
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2 - Georg Gerster. Campo legionário de Carnuntum. Áustria (vista


aérea de 1974). 3 - Thomas Hobbes. Frontispício do Leviatã. Londres, 1651.
© Georg Gerster!Rapho. Paris, Biblioteca Nacional da França, Estampas e fotografias.
l -A. Guesdon. Vista de Turim, 1949-1852.
Paris, Biblio[eca Nacional da França, Estampas e fotografias.
l -A. Guesdon. Vista de Turim, 1949-1852.
Paris, Biblio[eca Nacional da França, Estampas e fotografias.
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2 - Georg Gersrer. Campo legionário de Carnuntum. Áustria (visra


aérea de 1974). 3 - Thomas Hobbes. Frontispício do Leviatã. Londres, 1651.
© Georg Gerster/Rapho. Paris, Biblioteca Nacional d a França, Estam pas e fotografias .
4 - Tabula itineraria.. ., dita "quadro de Peutinger". ln P. Bertius. 5 - Tabula itineraria ... , d ita "quadro de Peutinger". ln P. Bertius.
Theatrium geographiae veteris... Amsterdã, 16 18-1619. Theatrium geographiae veteris ... Amsterdã, 1618- 1619.
Biblioteca M unicipal de Lille, cota 5 1.093 . Biblioteca Municipal de Lille, cota 51.093.
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7 - Jean Boisseau. Quadro geográfico dos Gauleses, 1645 .
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Paris, Biblioteca Nacional da França, Cartas e plantas.


6 - Charles Estienne. Guia dos caminhos da França. Paris, 15 52.
Paris, Biblioteca Nacional da França.
8 - G uy Debord. A cidade nua, 1957.
Guia psicogeográfico de Paris.
Centro Pompido u, MNAM, Biblioteca Kandinsky.
© Philippe Migeat.
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u20 eanos
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Formato 14 x 21
Tipologia: Garamond (texto) Garamond (títulos)
Papel: Pólen Soft Natural BO glrn 2 e
Couchê Matt e 90 gfm 2 (Caderno de imagens)
Supre mo 250 glm2 (capa)
CTP. impressão e acabamento: Editora Vozes
Ao longo dos cinco ensaios reunidos neste livro,

Jean-Marc Besse nos oferece um mapeamento das

problemáticas paisagísticas contemporâneas, mos-

trando por que a paisagem ocupa hoje um lugar

decisivo nas preocupações sociais e políticas. O autor

aponta distintas portas de entrada para se discutir

esse conceito, refletindo sobre o ponto de vista do

paisagista, do arquiteto, do jardineiro, bem como do

sociólogo, do antropólogo, do geógrafo, do ecólogo

e do filósofo. Nesse percurso multidisciplinar, evi-

dencia-se como a paisagem deve ser observada além

de sua t radição pictórica e exclusivamente visual.

Atualmente, podem-se estudar paisagens sonoras,

paisagens táteis ou mesmo os sabores das paisa-


gens, como indica o tão apropriado título do livro.
Com esse enfoque inovador, Jean-Marc Besse convi-

da o leitor a refletir sobre a experiência paisagística


considerando seus múltiplos sentidos e significados.

Abrem-se, assim, novos horizontes que podem con-

tribuir para renovar as agendas de investigação.

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