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Augusto F. S. Roque1
Vagner O. Santos2
Salvador
2014
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Pedagogo, roteirista de narrativas audiovisuais, produtor e crítico cultural e vocalista da banda
Órbita Móbile.
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Professor da rede pública de Ensino Fundamental e Médio, historiador, produtor e crítico cultural.
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Então, como diz o filósofo, o território é o lugar que é possuído pelo habitante e
que o possui, é o ambiente no qual o indivíduo se reconhece nos demais, no qual
reconhece suas propriedades. A arte, a economia, a política, a cultura, a ética, a
língua são, assim, marcações territoriais, referentes identitários variantes de lugar
para lugar. Só se reconhece um território em face de outro, para onde se pode sair
e, na diferença, reconhecer o próprio território. O sair de seu território, como única
condição para reconhecê-lo como tal, Deleuze e Guattari definem como
desterritorialização, pois se trata de sujeitos que saem e perdem seu território.
Para continuar a se constituir como sujeitos participantes de comunidades
humanas, os desterritorializados acham novos espaços e os reterritorializam como
seus, ou seja, voltam a marca-lo com suas insígnias culturais, políticas, artísticas
etc. Como organizar uma economia de acordo com um programa de territórios de
identidade geocultural onde é mais do que comum eventos de desterritorialização e
reterritorialização? Como o atual modelo de terretorialização do Estado se coloca
frente a este problema? Que modelo de territorialização da Bahia pode lidar com o
impasse de territorializar o Estado sobre uma realidade complexa de
desterritorializações-reterritorializações?
[...] lengalenga como círculo traçado em torno desse centro frágil e incerto;
lengalenga-círculo que se entreabre, não onde se pressente o caos, mas
numa nova região – abertura sobre um futuro para alcançar o cosmos.
Trata-se, então, de um lengalenga territorial, agenciamento territorial, que
ora vai do caos para um limiar de agenciamento territorial (componentes
direccionais, infra-agenciamento), ora sai do agenciamento territorial rumo a
outros agenciamentos, ou ainda algures (inter-agenciamento, componentes
de passagem ou até de fuga). Nesta lengalenga confrontam-se forças do
caos, terrestres e cósmicas. A canção da criança acalma-a, ordena o
espaço, criando um centro de estabilidade no meio do caos, um princípio de
ordem. Canção que marca um espaço: a repetição de pequenas estruturas
frásicas cria um meio (bloco de espaço-tempo constituído pela repetição
periódica da componente). Mas o que cria este meio não é a canção, mas a
lengalenga, a repetição de elementos da canção – padrões resultantes da
repetição [...].
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Aliás, o antigo nome do aeroporto, “Dois de Julho”, data que representa a Independência da Bahia e
expulsão das tropas portuguesas do Brasil, foi substituído pelo nome de um político da família
oligarquicamente reinante no Estado durante décadas. Muitos casos ainda podem ser encontrados:
com o mesmo nome do aeroporto Mimoso do Oeste, distrito de Barreiras, foi nomeado como cidade;
vários são os espaços (fóruns, delegacias, ruas, avenidas, hospitais, praças etc.) usados para marcar
toda a Bahia com a mesma família. E o pelourinho é memória viva e alegre da escravidão.
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3 – OBJETIVOS
3.1 – Geral:
Instituir uma nação multiterritorial a partir de uma rede de colaboração
mútua que garanta uma geoeconomia cultural multilateral a partir e como
alternativa ao Programa de Territórios de Identidade do Estado.
Estabelecer um lugar pedagógico comprometido historicamente com o
presente e futuro das gerações que têm a responsabilidade de construir
uma nova sociedade.
3.2 – Específicos:
Planejar e compartilhar aprendizados através de cursos, oficinas,
seminários e eventos congêneres, em rede.
Manter um Museu Digital de Obras Estratégicas.
Criar conjunto de valores e símbolos de um novo modo de vida a partir
de uma economia cultural alternativa e pedagógica.
Fomentar eventos regionais de intercâmbio cultural e promotores de
sentimentos e afetos de amor, carinho, sedução, pertencimento,
memória e louvação.
Formar plateias para um mercado cultural alternativo e em rede.
Desenvolver ações e práticas pedagógicas em escolas e fora delas.
Desenvolver um portal plataforma web interativo independente, para
compartilhamento de memórias e experiências.
humanos dispersos por todo o Estado. E estes podem ser cidades, bairros ou
distritos, comunidades rurais ou tribos urbanas.
Diante de tudo que já foi exposto, basta dizer que, para se conhecer, cada
território precisa que seus membros se reterritorializem nos demais territórios, isto é,
para ser baiano precisa viver a Bahia. É notável como a agenda cultural do Estado é
riquíssima e o fato de o interior não a conhecer, nem mesmo a grande maioria da
população soteropolitana. Artistas da Orla sequer conhecem a cena cultural de
bairros e distritos da mesma cidade. Tudo o que acontece faz parte de certo
territorialismo folclórico pré-fabricado pelo capital turístico da Baía. Como ponto de
partida, a alteridade territorial, ou desterritorialização-reterritorialização, é que
assegura um Estado (multi)territorializado. A realidade multiterritorial pode ser
entendida a partir do que nos apropriamos de Rogério Haesbaert (2005, p. 19):
(JAMESON, 2004, p. 76-77). Como pôr em prática essa nova geoeconomia cultural
cuja multiterritorialidade deve agir como uma cartografia política, portanto,
desalienante e revolucionária? Propomos alguns procedimentos iniciais.
Cada território é fragmentado em grupos ou tribos. Ao longo dos últimos 500
anos, os índios brasileiros tentam nos ensinar que devemos reconhecê-los como
povos indígenas, isso porque cada tribo constitui uma nação, visto que cada uma
tem sua própria linguagem, esquema político, símbolos, estrutura religiosa e
ritualística, artesanato – enfim, todo um conjunto cultural singular que diferencia uma
tribo de outra, e que as alça à condição de nação. Assim sendo, uma tribo urbana é
uma nação dentro de um bairro, uma cidade, território ou Estado. Tomemos como
exemplo a tribo do Reggae: é notório que existe um universo simbólico que os
singulariza entre outras tribos, seja o corte de cabelo, o estilo e cores de roupas e
adereços, os “jargões”, uma premissa slow life e, sobretudo, a música, uma das mais
distintas e emblemáticas do planeta. Não pode haver uma economia política da
cultura que não considere tal fragmentação e que não ponha os diversos grupos em
convivência, pois, só assim serão todos pontos da rede multiterritorial. Os territórios
definidos pelo Estado são operantes, mas, somente reconhecendo sua flexibilidade.
Indivíduos e grupos são nodos da rede, por isso, devem trocar experiências de
reterritorialização física, viver os espaços desconhecidos.
Produzir, circular e consumir cultura como pedagogia de uma nova
sociedade civil. É preciso entender que a realidade da cultura em nossa sociedade é
sua transformação em mercadoria (capitalista). Somente entendendo e admitindo
este fato, podemos produzir um bem ou serviço cultural na condição de mercadoria,
mas, fruto de outro modo de produção, cultura como mercadoria não capitalista.
Para isso é preciso pesquisar sobre o tema e difundir outros valores.
Incentivar a culturalização do espaço e currículo escolar do ensino público.
Não existe educação que não seja fundamentada no conhecimento de si e de seu
grupo humano. Nossa educação relegou esse aspecto supervalorizando o
aprendizado técnico dos objetos. E não conseguiremos praticar uma pedagogia de
conhecimento de si e do outro se não temos conhecimento do conjunto de saber de
nossa sociedade, o que inclui principalmente nossa história cultural.
Criar círculos de feiras e produções baseadas em trocas de recursos.
Espetáculos precisam fundamentalmente de três itens básicos: espaço,
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gerações mais novas. Não por acaso, estar Além-Baía, é estar duplamente além do
conceito de circunscrição que o termo “baía” nos coloca: tanto no sentido de estar
além da Orla de Salvador, da Baía de Todos os Santos, como no sentido de está
além do conceito estereotipado de Bahia que nos é legado pelos compatriotas do
Sul-Sudeste Brasileiro – afinal, não é apenas o que é nascido e produzido no eixo
Rio-São Paulo que pode receber a unção das tags “nacional” e “brasileiro/a”.
A Nação Cultural Além-Baía não é uma nova sociedade ou uma sociedade
alternativa. Ela é o terreno para isso, é o lugar pedagógico das gerações que têm a
responsabilidade de construir sua futura sociedade. Portanto, ela é uma prática
intersticial, que se faz nos vácuos, nas falhas, nas brechas da hegemonia
estabelecida (inter)nacionalmente. Nossa existência faz parte de um plano para que
não nos tornemos um povo oprimido, violentado e violentamente dividido por forças
dominadoras (inter)nacionais. Comer o que chega de fora no exercício de nos
construirmos deve ser tão primário quanto o olhar para os lados, comer e saborear
os lados. Se cada território se constrói como síntese entre o que lhe é próprio e o
que come de fora, uma multiplicidade cultural muito maior surge se os diferentes
territórios se comem para produzir outras possibilidades. O escambo cultural entre
os territórios significa exatamente o gesto de nos comermos culturalmente.
O princípio basilar de nossos procedimentos que, por sua vez, farão com que
alcancemos nossos objetivos superiores é a união entre cultura, economia e
pedagogia. Primeiro, devemos entender como a cultura se transformou em
mercadoria; depois, analisamos em que tipo de mercadoria a cultura se transformou;
por fim e por razões já muito anunciadas por estudiosos do capitalismo, adotamos
modos alternativos de produzir cultura-mercadoria. Quando adotamos novos modos
de produção, circulação e consumo de bens e serviços culturais, consequentemente,
como condição de sustentabilidade, o novo modo de produção exige mudanças nos
valores morais dos envolvidos, ou novos valores. Ou seja, o próprio ambiente
econômico da cultura transmitirá novos valores, será, portanto, um lugar pedagógico
incubador de um novo modo de vida.
O ambiente econômico propício é encontrado no princípio da
multiterriorialidade contra-hegemônica. Somente combatendo todo o arsenal
religioso, moral, (anti)ético, unilateral, geopolítico e ideológico que contribui como
sustentáculo do capitalismo, podemos efetivar uma cultura-mercadoria contra-
hegemônica. Isso quer dizer que os novos valores implicarão na negação de
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O Prof. Dr. Osmar Moreira dos Santos é um fervoroso agitador cultural na região de Alagoinhas. Em
décadas lutando por uma produção acadêmica libertária, criou o nacionalmente pioneiro Programa de
Pós-Graduação em Crítica Cultural (Pós-Crítica) e um fórum regional de cultura (na UNEB II) e
difundiu inúmeros textos que versam sobre estratégias contra-hegemônicas de produção cultural,
política e econômica para o território de identidade Litoral Norte e Agreste Baiano. Sua produção é a
experiência mais próxima e concreta daquilo que inicialmente se propõe a Nação Cultural Além-Baía.
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Outra fonte importante é a dissertação O Bruce Lee do Sertão: vida e obra cinematográfica de
Nerivaldo Ferreira, defendida por Vagner Santos no Pós-Crítica em 2012. Nela, o autor apresenta
uma experiência de produção e circulação solidária de audiovisual e defende uma indústria cultural
baseada nos valores anticapitalistas da economia solidária.
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