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NAÇÃO CULTURAL ALÉM-BAÍA

NAÇÃO CULTURAL ALÉM-BAÍA: UMA REDE MULTITERRITORIAL DE ESCAMBO


CULTURAL DA BAHIA

Augusto F. S. Roque1
Vagner O. Santos2

Projeto destinado a quem interessar


possa uma total revolução
inicialmente cultural.

Salvador
2014

1
Pedagogo, roteirista de narrativas audiovisuais, produtor e crítico cultural e vocalista da banda
Órbita Móbile.
2
Professor da rede pública de Ensino Fundamental e Médio, historiador, produtor e crítico cultural.
2

NAÇÃO CULTURAL ALÉM-BAÍA: UMA REDE MULTITERRITORIAL DE ESCAMBO


CULTURAL DA BAHIA

Salvador não é a capital de um Estado, é


apenas capital de si mesma.
Augusto F. S. Roque

[...] a concepção de espaço aqui desenvolvida


sugere que um modelo de cultura política
apropriado a nossa própria situação terá
necessariamente que levantar os problemas
do espaço como sua questão organizativa
fundamental.
Fredric Jameson

1 – PARA INÍCIO DE CONVERSA: TERRITÓRIOS DE IDENTIDADE


Nas últimas décadas, fomos levados a crer num ideário de Bahia materializado
pela Bahiatursa e gabinetes públicos congêneres e corporações como mídia, turismo
e indústria: a Bahia começa e se extingue ao longo da Baía de Todos os Santos, ou
seja, a Bahia é a Orla de Salvador e adjacências e tem seu clímax cultural sobre os
escombros sociais do Pelourinho.
Esse conceito reducionista de “Estado Baiano” tem sido larga e amplamente
difundido pelas políticas culturais do Estado e, mesmo que de forma não planejada e
consciente, tem colaborado intensamente para exterminar e/ou enevoar as múltiplas
identidades construídas ao longo do terceiro maior território da Federação Brasileira.
É uma herança do inconsciente colonial pautada na noção de que todo o
território que se expande além da província, à “Cidade da Bahia” pertence; são como
seus povoados, distritos, arraiais, etc. Mas, já não vivemos numa colônia, e algumas
visões econômicas, políticas, sociais e culturais que sustentam nossa forma de
conviver no mesmo território carecem de atualização. Vivendo num Estado
federativo, faz-se necessário nos darmos conta de que os outros 416 municípios não
pertencem à capital do Estado, mas sim, dividem com ela o mesmo território, e é
exatamente sobre dividir, ou melhor, compartilhar, que gostaríamos de dialogar.
Podemos pensar em território como espaço ou local que ganha elementos que
o transformam em um “lugar”. Gaston Bachelard (1978) verifica que os espaços
humanos são signos de práticas psicossomáticas individuais e de grupo. Ou seja, o
espaço ganha signos de memórias, de construção pessoal e de relações sociais e
se transforma, portanto, em lugar. Para o filósofo, essa ação humana sobre qualquer
local é definida como poética do espaço. O lugar é um espaço poetizado, isto é,
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imaginado e transformado, é síntese da existência imaginada e da realizada.


Aproximamos este conceito ao de comunidade imaginada que Benedict Anderson
(2008) desenvolveu para falar das novas nações europeias do século XX.
Aqui, quando é espetacular a preocupação de como os sujeitos construirão
suas identidades em espaços atravessados por meios de globalização (econômica,
política e cultural), muito no rastro do questionamento de Stuart Hall (2006),
questionamos como a comunidade baiana e seu território é transformado em “algo
que produz sentidos – um sistema de representação cultural” que participa da ideia
de Estado, de Bahia. Para Hall (Idem, p. 49), “A lealdade e a identificação que, numa
era pré-moderna [...] eram dadas à tribo, ao povo, à religião e à região, foram
transferidas gradualmente, nas sociedades ocidentais, à cultura nacional”.
No nosso caso, para onde foram transferidas as antigas referências identitárias
do povo baiano e quais as implicações disso? Que elementos geoculturais são
associados aos sentimentos e práticas de ódio, de louvação, de atração, de
memória coletiva, de autoidentificação impressos na Bahia projetada oficiosamente?
Como isso define geograficamente nossa economia, política e visões do outro?
Pensemos em como está dividido nosso Estado e consideremos seus
aspectos. O IBGE divide geograficamente cada Estado em Mesorregiões que
agrupam municípios com similaridades sociais e econômicas. No caso da Bahia, são
sete: Extremo Oeste Baiano, Vale São-Franciscano da Bahia, Centro-Sul Baiano,
Sul Baiano, Centro-Norte Baiano, Nordeste Baiano e Região Metropolitana de
Salvador. Nem precisa dizer que o PIB e a atração de investimentos na região da
capital é quase 10 vezes maior do que na segunda colocada. Cada Mesorregião
deve ser dividida em microrregiões de municípios limítrofes de acordo com lei
própria do Estado. No caso da Bahia, trata-se do Decreto N.º 12.354 de 25 de
agosto de 2010 que institui o Programa de Territórios de Identidade. Vejamos o que
este decreto entende por território de identidade em seu primeiro artigo:

§ 1º - Considera-se Território de Identidade o agrupamento identitário


municipal formado de acordo com critérios sociais, culturais, econômicos e
geográficos, e reconhecido pela sua população como o espaço
historicamente construído ao qual pertence, com identidade que amplia as
possibilidades de coesão social e territorial (ESTADO DA BAHIA, 2010).

A primeira divisão territorial ficou a cargo da Secretaria de Planejamento


(SEPLAN), bem como a coordenação de todo o programa. A SEPLAN dividiu as
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Mesorregiões em 27 territórios de identidade, entre os quais, o de Salvador agrupa


onze municípios. A primeira divisão territorial é aberta a propostas de atualização, a
serem devidamente votadas e sancionadas pela SEPLAN e pelo governador.
Suponhamos que, atual divisão territorial baiana, as microrregiões ou territórios
de identidade correspondam a seu parágrafo acima transcrito: que são formados
levando em conta a proximidade geográfica, e identificação e reconhecimento de
sua população com os aspectos sociais e culturais que permeiam tal lugar. Isto é,
que cada lugar seja, de fato, uma comunidade, um lugar em que cada indivíduo se
sente acolhido e familiarizado (BAUMAN, 2003). Mas, aí, já há uma complexidade
relegada: antes mesmo de esses espaços serem comunidades imaginadas por seus
habitantes, o foi pela administração político-econômica.
Entendemos o esforço do poder público em dividir o Estado em territórios de
identidade porque, por razões óbvias, isso torna a administração de recursos e
investimentos muito mais fácil e organizada. Então, o verdadeiro princípio balizador
das microrregiões baianas é de administração econômica e não de identidade
cultural. O reconhecimento cultural aqui é consequência de ordem maior: o limite da
influência geográfica na composição cultural de diferentes comunidades que
coabitam as mesorregiões do IBGE. Isto é visível na forma como o primeiro artigo se
refere à “finalidade” do programa: “Art. 1º - Fica instituído o Programa Territórios de
Identidade, com a finalidade de colaborar com a promoção do desenvolvimento
econômico e social dos Territórios de Identidade da Bahia” (ESTADO DA BAHIA,
2010). De toda forma, o esforço é válido, ainda mais quando nosso problema inicial
diz respeito à economia cultural.
Como territórios se relacionam uns com os outros? A antropologia está repleta
de descrições de como diferentes animais se relacionam com seus espaços.
Sabendo disso, fiquemos com a reflexão filosófica de Guilles Deleuze e Félix
Guattarri (1992, 2007, 2010). Para Deleuze (1997), território é o espaço que um
animal faz de “seu mundo”, e o “primeiro traço do animal é a existência de mundos
animais específicos, particulares”. E como um animal constrói seu mundo?
Respondendo a “excitantes” que garantem sua sobrevivência e que, para isso, são
selecionados numa “natureza imensa” e “formigante”. Então, dizemos que os
territórios de identidade cultural baianos são forjados e projetados de acordo com o
que os habitantes selecionam em seu dinâmico espaço geocultural para criarem
suas estratégias de sobrevivência econômica e organização política. O próprio gesto
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de selecionar excitantes de sobrevivência num determinado espaço geográfico faz


com que o animal desenvolva uma série de “marcações” territoriais. Estas
marcações envolvem diferentes mecanismos a depender da espécie animal:

O que intervém na marcação é, também, uma série de posturas, por


exemplo, se abaixar, se levantar. Uma série de cores, os macacos,
por exemplo, as cores das nádegas dos macacos, que eles
manifestam na fronteira do território... (DELEUZE, 2001).

Então, como diz o filósofo, o território é o lugar que é possuído pelo habitante e
que o possui, é o ambiente no qual o indivíduo se reconhece nos demais, no qual
reconhece suas propriedades. A arte, a economia, a política, a cultura, a ética, a
língua são, assim, marcações territoriais, referentes identitários variantes de lugar
para lugar. Só se reconhece um território em face de outro, para onde se pode sair
e, na diferença, reconhecer o próprio território. O sair de seu território, como única
condição para reconhecê-lo como tal, Deleuze e Guattari definem como
desterritorialização, pois se trata de sujeitos que saem e perdem seu território.
Para continuar a se constituir como sujeitos participantes de comunidades
humanas, os desterritorializados acham novos espaços e os reterritorializam como
seus, ou seja, voltam a marca-lo com suas insígnias culturais, políticas, artísticas
etc. Como organizar uma economia de acordo com um programa de territórios de
identidade geocultural onde é mais do que comum eventos de desterritorialização e
reterritorialização? Como o atual modelo de terretorialização do Estado se coloca
frente a este problema? Que modelo de territorialização da Bahia pode lidar com o
impasse de territorializar o Estado sobre uma realidade complexa de
desterritorializações-reterritorializações?

2 – JUSTIFICATIVA: SALVADOR, A LENGALENGA TERRITORIAL BAÍA E A


GEOECONOMIA CULTURAL DO ESTADO
O modelo vigente, que nos esforçamos aqui, de modo simbólico, a
desconstruir, é o do “Estado da Baía”. A Baía sem “h” representa a noção de política
cultural de um Estado voltada para a orla de Salvador, ou seja, a política cultural da
Baía de Todos os Santos, que reduz a identidade do Estado da Bahia – o Estado a
que todos pertencemos – ao perímetro compreendido entre o Aeroporto
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Internacional Luís Eduardo Magalhães e o Pelourinho3 – “sempre pela Orla, por


favor, é o que temos de melhor a oferecer”. Isso quer dizer que certa manipulação
de mecanismos de marcação se faz de forma dispersa (poder público, iniciativa
privada etc.) no sentido de forjar uma comunidade imaginada que serve como
referente identitário para organizar o Estado de acordo com territórios; e, estes,
acabam favorecendo interesses econômicos centralizados.
Salvador e, por extensão, o Recôncavo Baiano, acaba sendo a comunidade
imaginada, o signo, o referente, a ideia e imagem que funciona atraindo, através de
campanhas publicitárias, a identificação de quem por ela for atingido. É a marcação
principal de conjugação dos territórios de identidade que, por sua vez, tenderão a
participar de um Programa de Territórios de Identidade que privilegia o centro,
justamente porque se reconhecem/diferenciam a partir do centro. Ou seja, só se
reconhece do sertão, litoral norte etc. a partir da imersão na Baía, é um movimento
vital. Esta marcação, chamaremos de agenciamento ou lengalenga territorial, de
acordo com Deleuze e Guattari (2007, p. 395-397) – que, sobre isso, têm suas
palavras assim resumidas por Pedro Gomes (2008, p. 01):

[...] lengalenga como círculo traçado em torno desse centro frágil e incerto;
lengalenga-círculo que se entreabre, não onde se pressente o caos, mas
numa nova região – abertura sobre um futuro para alcançar o cosmos.
Trata-se, então, de um lengalenga territorial, agenciamento territorial, que
ora vai do caos para um limiar de agenciamento territorial (componentes
direccionais, infra-agenciamento), ora sai do agenciamento territorial rumo a
outros agenciamentos, ou ainda algures (inter-agenciamento, componentes
de passagem ou até de fuga). Nesta lengalenga confrontam-se forças do
caos, terrestres e cósmicas. A canção da criança acalma-a, ordena o
espaço, criando um centro de estabilidade no meio do caos, um princípio de
ordem. Canção que marca um espaço: a repetição de pequenas estruturas
frásicas cria um meio (bloco de espaço-tempo constituído pela repetição
periódica da componente). Mas o que cria este meio não é a canção, mas a
lengalenga, a repetição de elementos da canção – padrões resultantes da
repetição [...].

Para entendermos melhor a noção de desbravamento simbólico de território a


que arguimos, demonstraremos o atual “mapa cognitivo” (JAMESON, 2004, p. 76-
79) que corresponde à lengalenga territorializante, a Bahia construída no imaginário
dos baianos. Inicialmente, é preciso dizer que os quatro territórios aqui referidos

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Aliás, o antigo nome do aeroporto, “Dois de Julho”, data que representa a Independência da Bahia e
expulsão das tropas portuguesas do Brasil, foi substituído pelo nome de um político da família
oligarquicamente reinante no Estado durante décadas. Muitos casos ainda podem ser encontrados:
com o mesmo nome do aeroporto Mimoso do Oeste, distrito de Barreiras, foi nomeado como cidade;
vários são os espaços (fóruns, delegacias, ruas, avenidas, hospitais, praças etc.) usados para marcar
toda a Bahia com a mesma família. E o pelourinho é memória viva e alegre da escravidão.
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foram, eles mesmos, pioneiros em movimentos de territorialização contra-


hegemônicos, criando seus próprios marcadores pós-coloniais. Entretanto, com o
necessário gesto de desterritorialização e com as imposições do capital turístico,
foram reterritorializados na Lengalenga Baía.
I. Bahia de Jorge Amado: graças ao sucesso editorial do escritor Jorge Amado,
o primeiro território que logrou independência simbólica da Lengalenga Baía – ou
Lengalenga Soteropolitana – foi a região cacaueira do Estado, hoje reconhecido
como o território de identidade Litoral Sul. Amado – ele próprio nascido em Itabuna –
conseguiu reterritorializar seu ideário simbólico de Baía, expandindo os limites da
costa marítima do Estado, que se prolongaria, a partir de então, por centenas de
quilômetros bem além dos limites de Salvador. E com Tieta, o grande sucesso de
audiência como novela da TV Globo, essa lengalenga amadiana foi cooptada pela
lengalenga Baía oficiosa (Estado, mídia, comércio).
II. Bahia de João Ubaldo Ribeiro: outro território simbólico que ganhou relativa
emancipação identitária foi as ilhas contíguas à Baía de Todos os Santos inscritas
no mapa cognitivo comum a partir da obra de João Ubaldo Ribeiro, notadamente por
interferência do seu livro Viva o Povo Brasileiro. Esta obra trata singularmente da
construção da identidade nacional e já se inscreve como uma das mais importantes
no panteão da literatura brasileira. Em Viva o povo brasileiro, Ubaldo desvenda e
rabisca a Ilha de Itaparica, aliás, sua terra natal, a que se refere com frequência nos
inúmeros artigos publicados em periódicos de circulação nacional. Agora, a Ilha de
Itaparica e suas vizinhas são meras sombras insólitas da Lengalenga Baía.
III. Bahia da Família Veloso: a projeção dos artistas santoamarenses – Caetano
e Bethânia, junto com a dos seus companheiros – visibilizou uma nova dimensão
folclórica da Bahia; seja pelo sibilo dos “ésses” – como já mencionou certa feita o
próprio Caetano – ou pela relação freudiana com mãe e pai entranhada em citações
(diretas ou indiretas) em suas obras, notabilizando Dona Canô como personagem
matriarca universal. Esse conjunto de fatores – que não são todos – ajudaram a
delinear o Recôncavo como outro território geosimbólico da Bahia, talvez, o mais
apropriado como mecanismo de territorialização, como lengalenga, por Salvador.
Basta ver que o “samba de roda” da região é um dos ritmos que mais ecoa nas
produções dos artistas soteropolitanos que decidem praticar a música da terra.
IV. Bahia África: graças às conquistas dos movimentos negros, na música, teatro,
artes plásticas, dança, universidade etc., junto com a ampliação sociopolítica das
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vozes negras, cresceram e surgiram mercados hoje fundamentais para o capital


turístico baiano: moda, arte e uma Baía próprias. O conjunto desses marcadores é a
Baía África. A resposta para todos os questionamentos provindos de observações
da realidade das populações negras baianas pode ser buscada no passado africano.
É a partir de lá, e de mais nenhum outro lugar, que os negros devem construir sua
identidade; e há tudo o que é necessário: roupas, adereços, locais de memória,
espaços etnicamente adequados, arte e, claro, etnoturismo, aquele percurso que
carrega toda sua história e identidade, de novo, na “Cidade da Bahia”. Mais do que
isso, a Baía África é onde todo estrangeiro (para o capital turístico não importa se é
negro de fora ou branco de dentro, basta ser “qualquer outro”) encontra o extremo
externo, o seu ser exo, o exótico, vibrante, colorido e alegre mundo da Baía África. A
Bahia é África no Recôncavo Velozo, no Pelourinho alegre, na Orla, no Litoral Sul
amadiano e nas ilhas ubaldianas, é, portanto, totalmente África.
As implicações que decorrem da vigência de tal modelo de territorialização do
Estado podem ser sentidas, mas são difíceis de ser objetivamente observadas e
explicadas. Isso se tornou mais complexo depois da gestão petista no que concerne
a uma geoeconomia cultural para o Estado a partir dos territórios de identidade. É
preciso, quanto a isso, creditar os esforços. A partir do modelo do MINC, depois do
comando de Gilberto Gil, e de forma integrada em um único plano nacional, a gestão
de Márcio Meirelles deixou seus ganhos na gestão pública da cultura. Primeiro,
foram imensos os esforços para fomentar microconselhos participativos em cada
município que contribuem no projeto territorial; os conselhos territoriais são decisivos
na Conferência Estadual de Cultura, que, por sua vez, delibera as diretrizes a ser
assumidas pelo Estado e seus órgãos competentes. O retorno é garantido por
programas, projetos e editais públicos com verbas próprias. Fundações, secretarias,
institutos etc. são os órgãos que aplicam tais mecanismos e recebem o dinheiro dos
cofres do Estado a ser investido. Dessa forma, a verba pública é descentralizada e,
de forma idônea, atinge diferentes grupos que participam de todo o processo.
Em tese, é perfeito. Mas, na real, enfrenta duros problemas escondidos pela
Lengalenga Baía. Falemos de alguns.
1) Um projeto descentralizado e de descentralização encontra sérias
dificuldades com uma administração centralizada. O centro do poder político de
decisão ainda é a Baía. Por mais que fóruns e conferências sejam nômades, todos
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os papeis, decisões e carimbos dependem da Baía. A relação dos envolvidos como


mediadores no processo é meramente administrativa e representativa.
2) A modernização tecnológica e educacional se concentra na Baía. Dessa
forma, quem está além da Baía já se encontra em desvantagem na competição
pelas verbas públicas. Artistas muito distantes da Baía e/ou pouco alfabetizados
dificilmente serão contemplados pelos editais e seu trabalho pouco conhecido fora
desse circuito exibitivo.
3) A grande maioria das prefeituras não possuem secretaria específica de
cultura, o que diminui ainda mais as oportunidades para quem não é contemplado
pelas políticas estaduais e dificulta a criação de políticas públicas municipais.
4) A Baía é o único mercado de bens culturais. Como nossa educação (escolar
e doméstica) não é de qualidade, as políticas públicas raramente criam plateias para
os espetáculos que financiam. Os artistas e produtores devem, então, levar seus
bens até a Baía para que sejam inseridos no mercado turístico (inter)nacional.
5) A indústria cultural da Baía é escola e alternativa relativamente segura.
Arrocha, axé e pagode e suas variantes são a síntese cultural da Baía,
complementada apenas com os exotismos afrobaianos (afoxés, samba etc.) e
interioranos (qualquer herdeiro do forró). Tentar garantir retorno é ser Baía e, para
isso, entrar nessa indústria é o caminho.
6) Os bens culturais são mercadorias do capital turístico. Ser artista ou estar
envolvido na produção cultural significa ter noções empreendedorísticas, entender
de investimentos capitalistas, ser atualizado com o mercado cultural público e
privado, manusear computadores e softwares, falar mais de uma língua etc. Nada
disso escapa às exigências do mercado para quem resolve colocar bens ou
mercadorias no comércio competitivo e, para muitos, isso é censitário.
7) É o fim da arte monumental. Grandes obras, como filmes, óperas, grandes
espetáculos teatrais, monumentos públicos (esculturas, prédios, jardins, praças) etc.
são cada vez mais burocratizados ou negados pelo Estado. Em muitos casos,
precisam ser contemplados por editais, que quase nunca cobrem os gastos. São,
cada vez mais, formas de ostentação do capital privado ou do privilégio político.
8) A maioria dos espaços públicos destinados à cultura e/ou educação (centros
sociais, centros culturais, fundações, secretarias etc.) tem suas diretorias ocupadas
através de nomeações personalizadas. Em geral, isso resulta em falta de projetos
integrados e de longo prazo, às vezes, total abandono e má administração da verba.
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9) Por fim, apesar da descentralização e burocratização, mas também de certa


organização civil (ou pelo menos tentativa), a relação do Estado com agentes
culturais se dá de maneira a criar laços paternalistas de dependência entre grupos
de artistas pobres e o Estado mantenedor do mercado cultural. Dessa forma, esses
grupos não conseguirão autonomia civil na produção e consumo de bens culturais.

3 – OBJETIVOS
3.1 – Geral:
 Instituir uma nação multiterritorial a partir de uma rede de colaboração
mútua que garanta uma geoeconomia cultural multilateral a partir e como
alternativa ao Programa de Territórios de Identidade do Estado.
 Estabelecer um lugar pedagógico comprometido historicamente com o
presente e futuro das gerações que têm a responsabilidade de construir
uma nova sociedade.
3.2 – Específicos:
 Planejar e compartilhar aprendizados através de cursos, oficinas,
seminários e eventos congêneres, em rede.
 Manter um Museu Digital de Obras Estratégicas.
 Criar conjunto de valores e símbolos de um novo modo de vida a partir
de uma economia cultural alternativa e pedagógica.
 Fomentar eventos regionais de intercâmbio cultural e promotores de
sentimentos e afetos de amor, carinho, sedução, pertencimento,
memória e louvação.
 Formar plateias para um mercado cultural alternativo e em rede.
 Desenvolver ações e práticas pedagógicas em escolas e fora delas.
 Desenvolver um portal plataforma web interativo independente, para
compartilhamento de memórias e experiências.

4 – METODOLOGIA: REDE MULTITERRITORIAL COMO NOVA


GEOECONOMIA CULTURAL
O modelo de territorialização que estamos sugerindo – e sobre o qual
construiremos a Nação Cultural Além-Baía – é pautado na observação, identificação
e valorização dos aspectos intangíveis, singulares e simbólicos de agrupamentos
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humanos dispersos por todo o Estado. E estes podem ser cidades, bairros ou
distritos, comunidades rurais ou tribos urbanas.
Diante de tudo que já foi exposto, basta dizer que, para se conhecer, cada
território precisa que seus membros se reterritorializem nos demais territórios, isto é,
para ser baiano precisa viver a Bahia. É notável como a agenda cultural do Estado é
riquíssima e o fato de o interior não a conhecer, nem mesmo a grande maioria da
população soteropolitana. Artistas da Orla sequer conhecem a cena cultural de
bairros e distritos da mesma cidade. Tudo o que acontece faz parte de certo
territorialismo folclórico pré-fabricado pelo capital turístico da Baía. Como ponto de
partida, a alteridade territorial, ou desterritorialização-reterritorialização, é que
assegura um Estado (multi)territorializado. A realidade multiterritorial pode ser
entendida a partir do que nos apropriamos de Rogério Haesbaert (2005, p. 19):

[...] não há “uma” territorialização, mas múltiplas formas de


(re)territorialização, seja no sentido de muitas, diferentes e lado a lado (o
que iremos associar à noção de “múltiplos territórios”), seja como uma
efetiva experiência “multiterritorial” conjunta e indissociável (a que
denominaremos de “multiterritorialidade”). A multiterritorialidade, portanto,
enquanto fenômeno proporcionado de maneira mais efetiva pela chamada
condição da pós-modernidade, está intimamente ligada a essa nova
experiência e concepção de espaço-tempo, em que um dos elementos
fundamentais é a rede que articula esses espaços descontínuos.

Territórios são espaços descontínuos que, para evitar hierarquias e


sobreposições, só conviverão através de redes multilaterais; acessados por
mobilidade física e informacional, seus pontos de contatos são decisórios e locais de
reconhecimento do outro e autoconhecimento.

Essa nova articulação territorial em rede, dá origem a territórios-rede


flexíveis, onde o mais importante é ter acesso aos pontos de conexão que
permitem “jogar” com a multiplicidade de territórios existente, criando assim
uma nova territorialidade. Não se trata, também, como no passado, da
simples possibilidade de “acessar” ou de “ativar” diferentes territórios. Trata-
se de fato de vivenciá-los, concomitante e/ou consecutivamente, num
mesmo conjunto, sendo possível criar aí um novo tipo de “experiência
espacial integrada” (HAESBAERT, 2005, p. 22).

Trata-se mesmo de uma nova cartografia cognitiva que substitui a Lengalenga


Baía. A territorialização unilateral do Estado deslocaliza o sujeito como maneira de
aliená-lo. A multiterritorialização (em rede) é desalienante ao passo que se
apresenta como uma “reconquista prática de um sentido de localização”, que
permite ao sujeito constatar sua real situação individual em relação às totalidades
12

(JAMESON, 2004, p. 76-77). Como pôr em prática essa nova geoeconomia cultural
cuja multiterritorialidade deve agir como uma cartografia política, portanto,
desalienante e revolucionária? Propomos alguns procedimentos iniciais.
 Cada território é fragmentado em grupos ou tribos. Ao longo dos últimos 500
anos, os índios brasileiros tentam nos ensinar que devemos reconhecê-los como
povos indígenas, isso porque cada tribo constitui uma nação, visto que cada uma
tem sua própria linguagem, esquema político, símbolos, estrutura religiosa e
ritualística, artesanato – enfim, todo um conjunto cultural singular que diferencia uma
tribo de outra, e que as alça à condição de nação. Assim sendo, uma tribo urbana é
uma nação dentro de um bairro, uma cidade, território ou Estado. Tomemos como
exemplo a tribo do Reggae: é notório que existe um universo simbólico que os
singulariza entre outras tribos, seja o corte de cabelo, o estilo e cores de roupas e
adereços, os “jargões”, uma premissa slow life e, sobretudo, a música, uma das mais
distintas e emblemáticas do planeta. Não pode haver uma economia política da
cultura que não considere tal fragmentação e que não ponha os diversos grupos em
convivência, pois, só assim serão todos pontos da rede multiterritorial. Os territórios
definidos pelo Estado são operantes, mas, somente reconhecendo sua flexibilidade.
Indivíduos e grupos são nodos da rede, por isso, devem trocar experiências de
reterritorialização física, viver os espaços desconhecidos.
 Produzir, circular e consumir cultura como pedagogia de uma nova
sociedade civil. É preciso entender que a realidade da cultura em nossa sociedade é
sua transformação em mercadoria (capitalista). Somente entendendo e admitindo
este fato, podemos produzir um bem ou serviço cultural na condição de mercadoria,
mas, fruto de outro modo de produção, cultura como mercadoria não capitalista.
Para isso é preciso pesquisar sobre o tema e difundir outros valores.
 Incentivar a culturalização do espaço e currículo escolar do ensino público.
Não existe educação que não seja fundamentada no conhecimento de si e de seu
grupo humano. Nossa educação relegou esse aspecto supervalorizando o
aprendizado técnico dos objetos. E não conseguiremos praticar uma pedagogia de
conhecimento de si e do outro se não temos conhecimento do conjunto de saber de
nossa sociedade, o que inclui principalmente nossa história cultural.
 Criar círculos de feiras e produções baseadas em trocas de recursos.
Espetáculos precisam fundamentalmente de três itens básicos: espaço,
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equipamentos e técnicas. Se indivíduos, grupos, territórios compartilham estes três


itens, todos podem promover espetáculos em diferentes lugares.
 Promover festivais e fomentar um mercado alternativo no qual não haja
espaço para mainstream. A circulação de bens e serviços deve ser equitativa
segundo o nível de investimento físico do artista. Mas, mesmo que um artista circule
mais ele continua sendo um artesão e não se torna uma “estrela” porque esse
fenômeno não faz parte do princípio alternativo que gera a economia cultural optada.
 Os artistas alternativos não devem esperar ser financeiramente sustentados
pelo(s) seu(s) bem(s) e/ou mercadoria(s) cultural(is). Tanto melhor se vier a
acontecer. No entanto, inicialmente, é preciso ter de onde tirar investimentos
próprios para a construção de uma nova nação cultural.
 Desenvolver um portal plataforma web interativo independente, para
compartilhamento de memórias e experiências. Nesse portal se encontrará o Museu
Digital de Obras Estratégicas, que deverá ser mantido com uma videobibliografia
pertinente ao projeto de nação cultural e obras dos nodos da rede.
 Produzir um programa de entrevistas e um documentário sobre artistas e
agentes culturais de diferentes territórios de identidade.
 Ocupar espaços (públicos, privados, coletivos) com o máximo de atividades
culturais e educacionais.

5 – NAÇÃO CULTURAL ALÉM-BAÍA: UMA REDE MULTITERRITORIAL DE


ESCAMBO CULTURAL
Não temos nada contra a identidade baiana, nem contra os que se identificam
baianos – aliás, nós também o somos. Mas, entendemos que tornar a Nação
Brasileira um espaço de marcação mais justo, equitativo, sustentável, seguro e
duradouro, ou seja, sedutor e, finalmente, lugar de autoconhecimento e
(re)conhecimento do outro, de pertencimento e louvação, é o único caminho para
tornar nosso pedaço do mundo um lugar de existência confortável.
Como o conceito antigo de nação, o “mito da nacionalidade” está morto, ou
quase, as novas gerações crescerão numa nova nação, uma nação fluida. Isso só é
possível se admitirmos que o espaço-tempo da nova nação é marcado pela
multiplicidade, flexibilidade e complexidade de seu território e membros. Esse
entendimento deve ser absorvido como um compromisso ético na construção de um
projeto pedagógico comprometido historicamente com o presente e futuro das
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gerações mais novas. Não por acaso, estar Além-Baía, é estar duplamente além do
conceito de circunscrição que o termo “baía” nos coloca: tanto no sentido de estar
além da Orla de Salvador, da Baía de Todos os Santos, como no sentido de está
além do conceito estereotipado de Bahia que nos é legado pelos compatriotas do
Sul-Sudeste Brasileiro – afinal, não é apenas o que é nascido e produzido no eixo
Rio-São Paulo que pode receber a unção das tags “nacional” e “brasileiro/a”.
A Nação Cultural Além-Baía não é uma nova sociedade ou uma sociedade
alternativa. Ela é o terreno para isso, é o lugar pedagógico das gerações que têm a
responsabilidade de construir sua futura sociedade. Portanto, ela é uma prática
intersticial, que se faz nos vácuos, nas falhas, nas brechas da hegemonia
estabelecida (inter)nacionalmente. Nossa existência faz parte de um plano para que
não nos tornemos um povo oprimido, violentado e violentamente dividido por forças
dominadoras (inter)nacionais. Comer o que chega de fora no exercício de nos
construirmos deve ser tão primário quanto o olhar para os lados, comer e saborear
os lados. Se cada território se constrói como síntese entre o que lhe é próprio e o
que come de fora, uma multiplicidade cultural muito maior surge se os diferentes
territórios se comem para produzir outras possibilidades. O escambo cultural entre
os territórios significa exatamente o gesto de nos comermos culturalmente.
O princípio basilar de nossos procedimentos que, por sua vez, farão com que
alcancemos nossos objetivos superiores é a união entre cultura, economia e
pedagogia. Primeiro, devemos entender como a cultura se transformou em
mercadoria; depois, analisamos em que tipo de mercadoria a cultura se transformou;
por fim e por razões já muito anunciadas por estudiosos do capitalismo, adotamos
modos alternativos de produzir cultura-mercadoria. Quando adotamos novos modos
de produção, circulação e consumo de bens e serviços culturais, consequentemente,
como condição de sustentabilidade, o novo modo de produção exige mudanças nos
valores morais dos envolvidos, ou novos valores. Ou seja, o próprio ambiente
econômico da cultura transmitirá novos valores, será, portanto, um lugar pedagógico
incubador de um novo modo de vida.
O ambiente econômico propício é encontrado no princípio da
multiterriorialidade contra-hegemônica. Somente combatendo todo o arsenal
religioso, moral, (anti)ético, unilateral, geopolítico e ideológico que contribui como
sustentáculo do capitalismo, podemos efetivar uma cultura-mercadoria contra-
hegemônica. Isso quer dizer que os novos valores implicarão na negação de
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qualquer hegemonia e processo de homogeneização (alienação) religiosa, racial,


sexual e social. E sabemos que síntese civilizacional nos trouxe ao presente estado
de necessidade de alternativas4. A multiterritorialização é o processo que implode a
hegemonia e possibilita novas formas de produção material e imaterial.
Por isso e porque não poderia deixar de assim ser, elaboramos aqueles que
devem ser, como ponto de partida, os valores, princípios e práticas fundacionais que
regem a Nação Cultural Além-Baía.
 A Nação Cultural Além-Baía é um espaço simbólico construído sobre novas
práticas de marcação territorial. Sua rede multiterritorial é seu mercado. A cultura é
sua mercadoria e serviço. As formas de relação social que baseiam seu modo de
produção é sua escola. Os territórios de identidade é sua geografia. O compromisso
ético em contribuir na construção de um novo mundo é sua missão.
 A rede multiterritorial de cooperação mútua que constitui a Nação Cultural
Além-Baía é uma rede social colaborativa cujos membros, que são diretamente
envolvidos em produção, circulação e/ou consumo cultural, se inserem pelo princípio
da livre-associação. A topografia política da Nação Cultural Além-Baía é definida
como de tipo descentralizada, isto é, indivíduos e grupos dispersos constituem
pontos, nodos, curtos-circuitos que são, todos, centros criativos, colaborativos e
deliberativos no projeto de produção, circulação e consumo de bens culturais
proposto. Portanto, os centros são dispersos e as conexões multiplicadas, como
circuitos de distribuição de comunicação e colaboração. Sua topografia política não
é vacinada contra equívocos, porém, deve ser entendida fundamentalmente como o
limiar da descentralização ou multicentralização, como se vê na ilustração5:

 Inicialmente, a Nação Cultural Além-Baía possui uma coordenação


composta por seus idealizadores. Essa coordenação é aberta a quem dela quiser
participar e não possui centro e sede física. Seu único papel é incentivar e mediar
contatos e trocas e zelar pela perpetuação e integridade de seus símbolos e
4
Ocidente é a síntese. Os agentes protagonistas nos processos de dominação ocidental se
constituem de suas características hegemônicas: raça branca, falocêntrica, machista e monogâmica,
hierarquizada socioeconomicamente, cientificista e logocêntrica, competitiva, etnocêntrica,
(pseudo)cristã, capitalista e moralmente corrupta.
5
Para um entendimento mais crítico sobre topografias políticas de diferentes tipos de rede, indicamos
textos de Augusto de Franco e de David de Urgat, entre tantos outros sobre redes (virtuais) sociais.
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espaços virtuais. Qualquer tipo de deliberação de efeito generalizado que ultrapasse


seus princípios fundacionais deve ser unânime entre seus nodos. A organização das
atividades e o cumprimento de compromissos dar-se-ão da forma mais oral e virtual
possível. Como espaço simbólico contra-hegemônico, a desburocratização deve ser
máxima, evitando papeis, ofícios, atas, memorandos, circulares, assinaturas,
carimbos e todo arsenal próprio da burocratização contrarrevolucionária.
 Os nodos, centros ou pontos de curto-circuito cultural são autônomos,
podendo se ligar, desligar e contribuir à rede quando desejarem. Todos são
interconectados e se relacionam com mutualidade e constroem os rumos da Nação
Cultural Além-Baía, são seus donos e responsáveis.
 No limite das leis nacionais que salvaguardam os direitos individuais das
pessoas (expressão e locomoção) e sua integridade física, e de seus próprios
princípios, a Nação Cultural Além-Baía se baseia na liberdade de todo sujeito poder
exercer plenamente sua estética pessoal de existência.
 Inicialmente, a Nação Cultural Além-Baía não possui cédula monetária nem
propriedades privadas. Seu funcionamento econômico é balizado na troca de bens e
serviços entre seus membros (escambo) como dinamização cultural dos territórios.
Bens e serviços culturais resultantes de suas relações sociais formarão um conjunto
de responsabilidade de seus autores. Ou seja, os bens e serviços dos artistas
membros serão, pelos próprios, ofertados comercialmente dentro e fora da rede e o
capital retornado será de propriedade dos autores desses bens e serviços.
Comercialmente, a Nação Cultural Além-Baía não é necessariamente uma loja ou
um shopping, mas um lugar onde o artista pode aprender técnicas, dispor de
recursos, ser auxiliado na produção e circulação de bens e serviços, divulgar seu
produto e formar plateia de consumidores nos diferentes territórios.
 Caso a Nação Cultural Além-Baía, por alguma razão estratégica, venha
precisar se legalizar enquanto Pessoa Jurídica e possuir bens materiais, isso deverá
ser feito da forma mais coletiva e flexível possível. Seja qual for o tipo de instituição
legal que venha ser, os princípios de autogestão, descentralidade, horizontalidade e
coletividade devem ser assegurados, tanto quanto a coletivização de seus bens.
 Uma nova vivência social baseada em experimentações geoeconômicas,
culturais e pedagógicas deve buscar um mínimo de solidez ideológica como impulso
de coesão e garantia de duração. Por isso, seus membros, indistintamente, devem
se municiar com uma artilharia ideológica não menos revolucionária. Precisamos
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entender os traços fundamentais de nossa civilização e de nossas sociedades, o


que é capitalismo e como a cultura se transformou em sua mercadoria, como
funciona a cultura na condição de mercadoria capitalista e como pode funcionar de
outro modo, que críticas podem ser feitas à nossa civilização e a seus valores e
como criar valores morais e éticos de uma sociedade plural e horizontal. Além das
leituras indicadas no final desse texto, é importante acessar outras obras vinculadas
às experiências de liberalismo, anarquismo, mutualismo, comunismo,
anarcocomunismo, comunidades alternativas, universidades abertas, economia
verde, economia solidária, comércio justo, agricultura de subsistência, escambo,
cubismo/antropofagia/tropicalismo/manguebeat, estruturalismo e pós-estruturalismo
(destaque para Foucault, Barthes, Bourdieu), marxismo (Marx, Trotsky, Gramsci,
Lukács, Althusser), indústria cultural (Adorno, Benjamin e Habermas) estudos
culturais, filosofia (Nietzsche, Sartre, Marcuse, Chomsky, Baudrillard, Lipovetsky),
Lacan-Freud-Jung, sociologia da (pós)modernidade (Giddens, Castells, Canevacci,
Maffesoli), conhecimentos que melhoram a qualidade de vida oriundos de outras
civilizações (zen-budismo, holismo, medicinas alternativas, ioga e outra técnicas
orientais de cuidado de si), Paulo Freire, Raul Seixas e Osmar Moreira dos Santos6.
Tudo isso e muito mais deve ser absorvido criticamente no sentido de fazer da
Nação Cultural Além-Baía uma experiência auto-reflexiva, autogestionada,
sustentável e proposital7.
 Os valores de horizontalidade, autogestão, solidariedade, coletividade,
cooperação mútua, desburocratização, descentralidade, autonomia e liberdade que
regem as práticas da Nação Cultural Além-Baía podem servir de modelo para outras
iniciativas econômicas (agrícola, pecuária, extrativista, etc.).

6
O Prof. Dr. Osmar Moreira dos Santos é um fervoroso agitador cultural na região de Alagoinhas. Em
décadas lutando por uma produção acadêmica libertária, criou o nacionalmente pioneiro Programa de
Pós-Graduação em Crítica Cultural (Pós-Crítica) e um fórum regional de cultura (na UNEB II) e
difundiu inúmeros textos que versam sobre estratégias contra-hegemônicas de produção cultural,
política e econômica para o território de identidade Litoral Norte e Agreste Baiano. Sua produção é a
experiência mais próxima e concreta daquilo que inicialmente se propõe a Nação Cultural Além-Baía.
7
Outra fonte importante é a dissertação O Bruce Lee do Sertão: vida e obra cinematográfica de
Nerivaldo Ferreira, defendida por Vagner Santos no Pós-Crítica em 2012. Nela, o autor apresenta
uma experiência de produção e circulação solidária de audiovisual e defende uma indústria cultural
baseada nos valores anticapitalistas da economia solidária.
18

ARTILHARIA UTILIZADA E INDICADA

ANDERSON, Benedict. Comunidades imaginadas: reflexões sobre a origem e a


difusão do nacionalismo. Trad. Denise Bottman. São Paulo: Companhia das
Letras, 2008.

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espírito científico; A poética do espaço. Trad. Antônio da Costa Leal e Lídia do
Valle Santos Leal. São Paulo: Abril Cultural, 1978, p. 182-354 (Os pensadores).
BAUMAN, Zygmunt. Comunidade: a busca de segurança no mundo atual. Trad.
Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 2003.
CANCLINI, Néstor G. Culturas híbridas: estratégias para entrar e sair da
modernidade. 3 ed. Trad. Ana Regina Lessa e Heloísa Pezza Cintrão. São
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CHAUÍ, Marilena. Cultura e democracia. Salvador: Prefeitura de Salvador/Secretaria
Municipal de Educação e Cultura; Governo da Bahia/Secretaria de Cultura,
2007(Coleção Cultura é o que?).
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ed. Trad. Rafael Godinho. Lisboa: Assírio e Alvim, 2007.
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Trad. Luiz B. L. Orlandi. Rio de Janeiro: Editora 34, 2010.
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19

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