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INSTITUTO DE PSICOLOGIA
CURSO DE GRADUAÇAO EM
PSICOLOGIA
BRUNA TUORTO DE
MORAES
Niterói
2017
BRUNA TUORTO DE
MORAES
Niterói
2017
TERMO DE APROVAÇÃO
BANCA EXAMINADORA
____________________________________________________________
____________________________________________________________
____________________________________________________________
Aos amigos que conheci durante este período de graduação, pelos momentos de alegria,
risadas, conversas e de angústias compartilhados. Vocês tornaram esta caminhada muito mais leve.
À minha família, pelo carinho, incentivo e apoio incondicional. Por não medirem
esforços para que eu chegasse até esta etapa da minha vida.
Ao Vinicius, meu namorado, por estar ao meu lado na realização deste trabalho e em
todas as escolhas, conquistas e angústias destes últimos anos.
Este trabalho tem como objetivo traçar algumas considerações sobre o papel da brincadeira de faz
de conta no processo de desenvolvimento das crianças pequenas com base na abordagem histórico-
cultural, bem como explicitar sua importância nas vivências infantis, enquanto forma privilegiada de
expressão. Para tal, são apresentadas noções centrais do pensamento de Vigotski e estudos sobre o
papel e valor da interação entre crianças e seus pares. Além disso, é feita uma análise sobre as
relações entre brincadeira, cultura e processo de significação. Conclui-se que a brincadeira de faz de
conta possibilita à criança pequena apropriar-se, gradualmente, de experiências e fazeres por meio
da observação e interação com os adultos e seus pares, construindo e reconstruindo significados e,
portanto, aprendendo e renovando maneiras de ser e estar no mundo.
This paper aims to make some considerations about the role of make-believe play in the
developmental process of young children based on a cultural-historical approach, as well as
elucidate its importance in infantile experiences, as privileged means of expression. In order to do
so, central notions of Vigotski‟s thinking are presented, as well as the value of peer interaction.
Besides that, there is an analysis about the relationship between play, culture and the process of
meaning-making. Therefore, it can be concluded that the make-believe play makes possible to
young children to gradually appropriate experiences and activities through the observation and
interaction amongst them and with adults, constructing new meanings and, thus, learning and
renewing ways to be and of being in the world.
1 INTRODUÇÃO ....................................................................................................................................8
2 A PERSPECTIVA HISTÓRICO-CULTURAL............................................................................12
2.1 ALGUNS ELEMENTOS DA CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO NA PERSPECTIVA HISTÓRICO-
CULTURAL.....................................................................................................................................................14
2.1.1 A FALA EGOCÊNTRICA............................................................................................................17
2.1.2 A NOÇÃO DE MEDIAÇÃO.....................................................................................................................................19
2.1.3 ZONA DE DESENVOLVIMENTO PROXIMAL...............................................................................................20
2.1.4 BRINCADEIRA E DESENVOLVIMENTO.........................................................................................................22
REFERÊNCIAS..................................................................................................................................47
8
1 INTRODUÇÃO
A brincadeira de faz de conta, também denominada “jogo simbólico” (Piaget, 1971), “jogo
de papéis” (Oliveira & Rossetti-Ferreira, 1993) ou ainda, “dramatização de papéis” (Corsaro, 2002),
está presente, de forma significativa nas vivências das crianças pequenas. Em que consiste tal
atividade? De que forma participa do processo de desenvolvimento do sujeito em termos de sua
inserção na cultura? Para responder a estas questões, é necessário considerar não somente a criança
que brinca ou o ato de brincar de forma isolada, mas também uma articulação com diversos outros
fatores, tais como o contexto histórico, social e cultural no qual o sujeito está inserido. Apesar de a
brincadeira ser considerada tanto pela psicologia do desenvolvimento, como pela sociologia da
infância uma atividade de extrema importância, o brincar livre, não dirigido, frequentemente, é visto
pelo senso comum como “perda de tempo” em oposição ao trabalho e à produtividade.
Coelho e Pedrosa (2000, p. 51) consideram que as brincadeiras de faz de conta são
fundamentais na constituição da criança enquanto sujeito com um tipo de organização e de
funcionamento psicológico próprios. Quando estudada em detalhes, as brincadeiras revelam a forma
como as crianças interagem umas com as outras por meio da construção e do compartilhamento de
significados (idem, p. 52). A criança aparece, então, como um agente ativo de transmissão,
elaboração e recriação de cultura, desde seus primeiros anos de vida.
Em outro documentário “Tarja Branca: a revolução que faltava” (2014), dirigido por Cacau
Rhoden, o brincar é uma expressão própria do ser humano, que aparece de diversas formas ao longo
da vida, se estendendo para além da infância. Um dos participantes, Antônio Nóbrega, reconhecido
artista brasileiro que trabalha com cultura popular através de música, dança e teatro, afirma que
“brincar é o modo que temos de organizar nosso mundo, criando outro paralelo ao que a gente vive
mergulhado cotidianamente”. No mesmo “Tarja Branca”, o documentarista David Reeks, que dirigiu
o aclamado “Territórios do brincar”, lança a hipótese de que quando uma criança deseja um
brinquedo e tenta, ela mesmo, criá-lo, aconteceria o início do ciclo do brincar. Um exemplo disso
pode ser a criação de brinquedos artesanais a partir do reaproveitamento de embalagens, como uma
lata de sardinha que se transforma em um carrinho. Em contrapartida, na sociedade contemporânea,
este ciclo seria aproveitado pela criança apenas em seu final, uma vez que o desejo já estaria dado
pela indústria e a criação, pelos inventores e engenheiros que fabricaram o brinquedo. A criança, por
sua vez, apenas adquire o produto pronto e com pouco tempo de uso no brincar, já estaria pensando
em adquirir um novo, anunciado pelo mercado publicitário.
10
Embora a relação entre brincadeira, mídia e consumo não seja o foco deste trabalho, tais
documentários, ao tratarem criticamente da pluralidade do ato de brincar, revelam a importância da
temática geral da brincadeira, sendo um elemento que inspirou esta escrita.
Outra motivação para a escolha do tema em questão foi uma identificação com o assunto,
adquirida ao longo do curso de graduação em Psicologia, especialmente, através da participação no
projeto de extensão “Psicologia e Educação Infantil: interações e significações”. Nesta, pude ter a
oportunidade de adentrar no estudo do desenvolvimento infantil, por meio da leitura e discussão de
textos de autores como Vigotski e Piaget. Além disso, participei de encontros semanais com crianças
em uma Unidade Municipal de Educação Infantil em Niterói durante, aproximadamente, um ano.
Em tais encontros, através de brincadeiras, interagi com elas e, neste fazer, pude refletir sobre seu
valor enquanto forma de expressão, conhecimento e interação. Assim, a escolha do tema desta
monografia se deu gradualmente, a partir de um interesse pessoal em pesquisar, compreender e
vivenciar o universo infantil e suas peculiaridades, que têm como principal via de expressão a
brincadeira. A seguir, apresentarei o modo como o trabalho está organizado.
Além disso, a partir dos estudos de Oliveira e Rossetti-Ferreira, são traçadas considerações acerca do
papel e valor da interação entre as crianças e seus pares para o processo de desenvolvimento.
O terceiro capítulo enfoca o tema das interações entre crianças e seus pares, situadas em
um contexto cultural, de modo a analisar a forma como participam da inserção e recriação cultural.
Este capítulo está elaborado com base em Brougère, Huizinga, Corsaro e Borba. Além disso,
também são traçadas considerações sobre como os modos de brincar presentes na sociedade
contemporânea encontram-se fortemente pautados em uma lógica de consumo.
Nas considerações finais, procede-se a uma síntese do trabalho como um todo, enfatizando
o valor da brincadeira de faz de conta no desenvolvimento da criança pequena.
12
2 A PERSPECTIVA HISTÓRICO-CULTURAL
1A transliteração do nome deste autor assume diversas formas: Vigotski, Vygotsky, Vigotskii, Vigotskji, Vygotski e Vigotsky.
Neste trabalho, optou-se pela grafia Vigotski, como tem sido adotada mais recentemente no Brasil.
13
forma gradual. Em 1980, conforme aponta Blanck, nasceu o “fenômeno Vigotski” (p.18), que
cresceu até os dias atuais.
Rey (2001, p. 194) aponta que, diferentemente de outras correntes da Psicologia, o enfoque
histórico-cultural nasceu e se expressou no campo da Psicologia Geral, Escolar e do
Desenvolvimento. No entanto, este enfoque surge dentro de um contexto ideológico na União
Soviética, em que se produziu uma negação mecanicista do subjetivo, onde se classificava como
burguesa toda produção do pensamento que não coincidisse com a visão de homem dos grupos
políticos hegemônicos, ou seja, que se baseasse na consciência como reflexo da realidade exterior.
Toda teoria que se afastasse desta visão era considerada subversiva.
Para Vigotski, o grande problema das teorias psicológicas era justamente a sua divisão em
duas metades irreconciliáveis: Uma com características de “ciência natural”, objetivista, que tornava
possível uma explicação dos processos sensoriais e reflexos, e outra com características de “ciência
mental”, subjetivista, que descreveria as propriedades emergentes dos processos psicológicos
superiores. Vigotski estava em busca de uma abordagem abrangente, que englobasse uma descrição
e explicação das funções psicológicas superiores em termos aceitáveis para as ciências naturais
(Cole & Scribner, 2012, p. 23-24). Dessa forma, a abordagem de Vigotski ganha conotações
político-ideológicas e se expande dos laboratórios experimentais para as aplicações sociais (Toassa,
2006, p. 60).
são produtos da atividade cerebral, ao mesmo tempo em que se fundamentam nas relações sociais
entre o indivíduo e o mundo exterior, as quais se desenvolvem em um processo histórico.
Toassa (2011, p.87), destaca que o enfoque histórico-cultural de Vigotski estruturou-se nos
últimos anos de sua vida (1928-1934) com a participação de diversos colaboradores, especialmente,
Luria. Para a autora, a abordagem de Vigotski tem um tecido complexo, fundado em uma lógica
dialética, em que cada problema, conceito e método relacionam-se a um diferente domínio de
fenômenos psíquicos a que o autor se propõe estudar. Ainda de acordo com Toassa (idem, p.88),
Vigotski considera a infância como momento privilegiado para a observação ontogenética. Isto
porque é nesta época que as funções psicológicas superiores começam sua organização progressiva,
a partir do imbricamento entre cultura e biologia, tema que será tratado mais detalhadamente nos
tópicos seguintes, juntamente a apresentação de alguns elementos referentes à constituição do
sujeito.
A constituição do psiquismo humano é um tema recorrente nas teorias psicológicas. Este foi
um dos temas centrais do trabalho de Vigotski. O intuito do autor era explicar o processo de
constituição do ser humano enquanto ser capaz de produzir cultura. Para obter respostas a esta
questão, Vigotski aprofundou-se na produção da psicologia de sua época, uma ciência marcada por
tendências materialistas mecanicistas ou subjetivistas, em que não havia espaço para uma explicação
não dicotômica da relação sujeito-sociedade (Zanella, 2004, p. 127).
Tomando por base referencial marxista, o autor entende a pessoa como, simultaneamente,
produtora e produto das relações sociais. Isto quer dizer que a subjetividade só é possível de ser
compreendida a partir de sua constituição em contextos sociais. Tais contextos, por sua vez, são
resultantes da ação dos homens sobre o meio em que vivem. Cole e Scribner (2012, p. XXV)
ressaltam que, para Marx, mudanças históricas na sociedade e na vida material produzem mudanças
na “natureza humana”, ou seja, na consciência e comportamento. Vigotski foi o primeiro a tentar
correlacionar esta proposta geral a questões psicológicas concretas. Com isso, o autor baseia-se nas
concepções de Engels sobre o trabalho humano e uso de instrumentos como os meios pelos quais o
homem transforma a natureza e, ao fazê-lo, transforma a si mesmo. Ainda de acordo com Cole e
15
Scribner (idem, p. XXVI), Vigotski estende a noção de mediação na interação homem – ambiente
pelo uso de instrumentos ao uso de signos (linguagem, escrita, sistema de números), os quais, assim
como o sistema de instrumentos, são criados pela sociedade e mudam a forma social e nível de seu
desenvolvimento cultural. Vigotski, então, abre caminhos de pesquisa sobre o modo como a cultura
e o social são atravessados pela história e constituem o sujeito.
Ainda de acordo com Rossetto e Brabo (idem, p. 3), a ascensão da Psicologia enquanto
ciência surgiu da necessidade de controle e previsão do comportamento individual. Dessa forma, a
subjetividade passou a ser vista como uma interioridade não dizível e inacessível, enquanto o sujeito
somente poderia ser compreendido enquanto uma exterioridade observável, por meio do
comportamento. É a partir deste reducionismo conceitual que adentramos no século XX: o sujeito
cognoscente, ou seja, capaz de construir um conhecimento, reduz-se a um sujeito empírico, baseado
em experiências e observações. Ao mesmo tempo, a subjetividade dá lugar à objetividade (sendo
esta observável pelo comportamento). É justamente neste panorama que Vigotski entra em cena,
numa tentativa de sair do círculo das psicologias reducionistas do século XX.
Molon (2011, p. 615) aponta que, na obra de Vigotski, a constituição do sujeito acontece no
confronto eu-outro das relações sociais. Nesse sentido, a subjetividade e o sujeito são compreendidos
na realidade social e na vida social, vista como, primordialmente, histórica. A autora (1999, p. 3)
16
Temos consciência de nós mesmos porque a temos dos demais e pelo mesmo procedimento
através do qual conhecemos os demais, porque nós mesmos em relação a nós mesmos
somos o mesmo que os demais em relação a nós. Tenho consciência de mim mesmo
somente na medida em que para mim sou o outro, ou seja, porque posso perceber outra vez
os reflexos próprios como novos excitantes. Entre o fato de que eu possa repetir em voz alta
a palavra dita em silêncio e o fato de que possa repetir a palavra dita por outro não existe
nenhuma diferença, como tampouco existe, em princípio, nos mecanismos: ambos são um
reflexo reversível, um excitante (Vigotski, 2004, p. 82).
Dessa forma, nota-se que o autor considera que a constituição do sujeito é permeada pelo
reconhecimento do outro, mas, fundamentalmente, pelo autoconhecimento do eu, uma vez que esses
processos são idênticos e acontecem pelo mesmo mecanismo: os reflexos reversíveis. Para Vigotski
(2004), os chamados reflexos reversíveis são compostos fundamentalmente pela palavra:
A palavra escutada é um excitante, a palavra pronunciada é um reflexo que cria esse mesmo
excitante. Esses reflexos reversíveis que originam uma base para a consciência
(entrelaçamento de reflexos), servem de fundamento para a comunicação social e para a
coordenação coletiva do comportamento, o que indica, entre outras coisas, a origem social
da consciência (p. 81).
Conforme nos alerta Pino (2000, p. 62), a introdução das relações sociais como definidoras
da natureza das funções mentais superiores, constitui uma “subversão” do pensamento psicológico
tradicional. Vigotski desloca de forma definitiva o foco da análise psicológica do campo biológico
para o campo da cultura, ao mesmo tempo em que introduz uma discussão sobre o que constitui a
“essência do social” enquanto produção humana. A questão das relações sociais, segundo Pino,
torna-se o eixo dos trabalhos de Vigotski dedicados à análise do desenvolvimento humano.
17
Nos subtópicos seguintes serão abordados algumas das noções da obra de Vigotski
relacionados com a constituição do sujeito.
Em sua obra, Vigotski utiliza como base estes estudos e experimentos de Piaget para
elaborar suas pesquisas sobre a fala egocêntrica. No entanto, há divergências na forma como os dois
autores a compreendem. Para Vigotski (2013, p.164), Piaget não levou em consideração a
característica mais importante desta fala: a sua relação genética com a fala interior. Enquanto Piaget
considera que a fala egocêntrica não tem nenhuma função no pensamento ou na atividade realista da
criança (apenas limita-se a acompanhá-los) e declina ao longo do tempo, Vigotski enfatiza sua
18
Segundo Vigotski, então, diferente de Piaget, apenas um dos aspectos da fala egocêntrica
diminui ao longo do desenvolvimento: a vocalização. Isso indica, para o autor (idem, p. 168), a
aquisição da capacidade de abstrair o som e “pensar palavras”, ao invés de pronunciá-las. Através
de seus estudos e experimentos, Vigotski observa que a fala egocêntrica aumenta na medida em que
a tarefa que precisa ser solucionada complica-se. Diante deste desafio, a criança busca verbalmente
um novo plano de ação, que revela uma conexão íntima entre as falas egocêntrica e socializada. Isso
ocorre a partir do momento em que a criança descobre que não é capaz de resolver um problema por
si mesma e, então, dirige-se a um adulto (fala socializada). No entanto, Vigotski ressalta que a maior
transformação na capacidade das crianças em usar a linguagem como um instrumento 2 para a
solução de problemas, ou seja, como um meio para atingir um fim, ocorre um pouco mais tarde em
seu desenvolvimento, no momento em que a fala socializada é internalizada. As crianças passam a
apelar a si mesmas, ao invés de apelarem para o adulto, impondo a si próprias uma atitude social.
Assim, afirma que “a história do processo de internalização da fala social é também a história da
socialização do intelecto prático da criança” (Vigotski, 2012, p. 16). Com isso, pode-se perceber
que, no ponto de vista de Vigotski, as histórias individuais e sociais estão profundamente
interligadas, ambas se atravessam e constituem-se mutuamente.
A teoria vigotskiana, conforme apontam Loos e Sant‟ana (2007, p.12), supõe a existência
de um sujeito “interativo”, uma vez que a gênese de seu conhecimento não está assentada somente
em recursos externos, como também, não apenas em recursos individuais. É na interação social que
a criança entrará em contato e utilizará instrumentos mediadores. Machado (1996, p. 28) aponta que,
talvez, o primeiro destes instrumentos seja o seio materno. O desejo e necessidade de decifrar o
universo de significados que a cerca, leva a criança a coordenar ideias e ações, de modo a tentar
solucionar os problemas que se apresentam. Logo, há uma dimensão social que não se restringe
apenas à dimensão do outro, mas refere-se a uma dimensão pautada na “relação” com o outro e com
os demais aspectos do meio externo. Esse outro, no início da vida, pode ser o pai, a mãe, avós, tios,
vizinhos, educadoras, professoras, etc. Estes são os vários outros que, agindo como mediadores,
completam e interpretam a criança para o mundo e mundo para ela, de forma a favorecer certas
condições e direções para o desenvolvimento da criança em questão (Rossetti-Ferreira, Amorim e
Silva, 2004, p.24).
A invenção e o uso de signos como meios auxiliares para solucionar um dado problema
psicológico (lembrar, comparar coisas, relatar, escolher, etc.) é análoga à invenção e uso de
instrumentos, só que agora no campo psicológico. O signo age como um instrumento da
atividade psicológica de maneira análoga ao papel de um instrumento no trabalho. Mas essa
analogia, como qualquer outra, não implica uma identidade desses conceitos similares.
(Vigotski, 2012, p.52)
Desse modo, pode-se observar que, nesta concepção, a fala atua como um instrumento da
atividade psicológica de forma semelhante ao papel de um instrumento no trabalho. A analogia
básica entre ambos é a função mediadora que os caracteriza. A relação do sujeito com o ambiente é
mediada, pois este, enquanto sujeito do conhecimento, não tem acesso imediato aos objetos, mas sim
a sistemas simbólicos que representam a realidade. Por esta razão, Vigotski atribui um papel
fundamental à linguagem falada (principal sistema simbólico de todos os grupos humanos), que se
interpõe ao sujeito e objeto de conhecimento (Rego, 1995, p.62).
20
Ao estudar a relação entre aprendizado e desenvolvimento, Vigotski propôs uma noção que
se tornou amplamente difundida de sua obra, que é a de zona de desenvolvimento proximal. Para o
autor (2012, p. 94-95), a aprendizagem e o desenvolvimento estão intimamente relacionados desde o
primeiro dia de vida da criança, ou seja, muito antes do período escolar. Na visão de Vigotski, o
aprendizado das crianças em situações cotidianas difere consideravelmente do aprendizado no
contexto escolar. Nas experiências do dia a dia, a criança aprende o que ele chama de “conceito
cotidiano”, que possui uma concretude, como o de irmão, por exemplo. Referindo-se aos estudos de
Piaget, Vigotski lembra que a criança pequena que já possui o conceito cotidiano de irmão, fica
confusa ao lidar com questões abstratas relativas a este conceito. Assim, apresenta dificuldade em
responder à pergunta sobre o nome do irmão do seu irmão. Em contraste a isto, Vigotski propõe a
noção de “conceito científico”, isto é, aquele que é ensinado em ambiente escolar e que, geralmente,
começa por sua definição verbal e “envolve, desde o início, uma atitude mediada em relação ao seu
objeto” (Vigotski, idem, p.93). Ou seja, ao diferenciar os conceitos “cotidianos” dos “científicos”,
Vigotski não está atribuindo a estes últimos a característica de conhecimentos relacionados à
produção científica acadêmica, mas ao caráter de conhecimento advindo da elaboração intelectual
dirigida à resolução de problemas. Para Machado (1996, p. 35), o conhecimento articulado à
experiência concreta e imediata (conceitos cotidianos) fornece concretude ao conhecimento de
natureza abstrata (conceitos científicos), estando ambos inter-relacionados. Um exemplo disto pode
ser uma criança que aprende a somar e subtrair ao ajudar seu responsável a fazer compras no
supermercado. Assim, a partir de uma experiência concreta de fazer compras, a criança estabelece
um sentido para as contas de adição e subtração aprendidas em um contexto escolar. Van der Veer e
21
Valsiner (2000, p.9) observam que os conceitos “científicos” introduzidos na escola vão além do
desenvolvimento dos conceitos “cotidianos”, mas, ao mesmo tempo, estão baseados nestes. Para
estes autores, é importante adaptar a apresentação dos conceitos “científicos” na escola de modo que
se adequem à prévia prontidão potencial da criança (conceitos cotidianos). Isto quer dizer que a
interação entre ambos é fundamental ao desenvolvimento.
Em suas pesquisas, Vigotski (2013, p. 128) notou que na maior parte das investigações
psicológicas referentes ao aprendizado escolar, o nível de desenvolvimento mental da criança era
medido por meio da resolução de certos problemas padronizados. Em tais investigações, supunha-se
que os problemas que a criança consegue resolver por si mesma indicariam seu nível de
desenvolvimento mental. No entanto, o autor considera que, nesta forma de proceder, é possível
medir apenas uma etapa já concluída do desenvolvimento da criança, o que estaria longe de
representar o processo em sua totalidade. Por outro lado, ao comparar duas crianças com a mesma
idade mental (oito anos), oferecendo-lhes uma pequena assistência na resolução de problemas mais
difíceis do que seriam capazes de resolver sozinhas, Vigotski percebe que uma das crianças
conseguia, com cooperação, ir além da outra na resolução de tais problemas. Com isso, o autor
(idem, pp. 128-129) infere que “A discrepância entre a idade mental real de uma criança e o nível
que ela atinge ao resolver problemas com o auxílio de outra pessoa indicam a zona de seu
desenvolvimento proximal”. Assim, pode-se perceber que Vigotski leva em consideração tanto as
funções mentais já desenvolvidas quanto aquelas que ainda estão em processo de desenvolvimento.
Mais uma vez, Vigotski enfatiza a relevância das interações sociais na medida em que o aprendizado
é responsável por criar zonas de desenvolvimento proximal. É por meio do diálogo, da colaboração e
interação com outras pessoas que a criança coloca em movimento vários processos de
desenvolvimento que, sem a ajuda externa, não poderiam ocorrer. Tais processos se internalizam e
passam a fazer parte das aquisições do desenvolvimento individual, ou seja, tornam-se nível de
desenvolvimento real.
que os primatas, ao contrário das crianças, não podem ser ensinados por meio da imitação, tampouco
são capazes de ter o intelecto desenvolvido, uma vez que não possuem zona de desenvolvimento
proximal. Com isso, o autor (idem) chega à conclusão de que “o aprendizado humano pressupõe
uma natureza social específica e um processo através do qual as crianças penetram na vida
intelectual daqueles que a cercam.” Então, pode-se dizer que a aprendizagem é permeada pela
imitação, que ocorre por meio da interação entre a criança e as pessoas de seu ambiente. Vigotski
(2013, p. 130), portanto, esclarece que o aprendizado caminha à frente do desenvolvimento,
servindo-lhe de guia. Isto é, deve-se considerar a orientação do aprendizado para o futuro, ou seja,
para as funções que estão em processo de amadurecimento.
Para Vigotski (2012, p. 109) o que diferencia o brincar das demais atividades infantis é a
criação de uma situação imaginária. Não somente os jogos, mas também a brincadeira de faz de
conta, ambos estão sempre atravessados por regras. Entretanto, no segundo caso, as regras se
originam da própria situação imaginária. Assim, quando uma criança pequena brinca de mãe e filha
com uma boneca, por mais que não haja regras claras formuladas previamente, ela obedece às regras
do comportamento maternal que vivencia em seu ambiente cotidiano. Assim, o que passa
despercebido pela criança em sua vida cotidiana, apresenta-se como uma regra de comportamento na
brincadeira. O autor considera que, apesar de haver uma liberdade no brincar, esta liberdade é
ilusória, justamente por conta da existência de regras. Por outro lado, os jogos baseados em regras
explícitas e previamente estabelecidas, comuns para crianças maiores, como os jogos esportivos e de
tabuleiro, também contém situações imaginárias. Vigotski (2002) cita como exemplo o jogo de
xadrez, no qual embora as regras sejam evidentes, nem sempre a participação da imaginação é
notada. Ao manejar uma peça, Peão, Bispo ou Rei, por exemplo, o jogador opera em um mundo
ilusório. Dessa forma, o autor argumenta que, tanto as situações imaginárias quanto as regras estão
presentes em todo e qualquer tipo de brincadeira.
Dessa forma, pode-se perceber que, na visão de Vigotski, há uma íntima conexão entre a
brincadeira e a zona de desenvolvimento proximal, que participa de forma ativa no desenvolvimento.
3 Tradução livre.
24
Ao brincar, a criança imagina, cria e interage, comportando-se para além do habitual em sua idade.
Por exemplo, ao desempenhar o papel de professora em uma brincadeira de faz de conta, a criança
atua de maneira diferente da qual se comporta em seu dia a dia, com base nas formas de agir de
professores que observa em suas vivências cotidianas.
Vigotski (2008, p. 26) ressalta que a essência da brincadeira não é a realização de desejos
isolados, mas sim de afetos generalizados, isto é, o que há de subjetivo e singular em cada criança
emerge durante o papel que ela desempenha em uma determinada brincadeira. Por exemplo, diversos
sentimentos da criança, como a admiração por um membro da família ou gosto por determinada
música, podem se expressar de forma generalizada ao brincar. Para Vigotski (idem), no entanto, a
presença de tais afetos generalizados na brincadeira não indica que a criança tenha um entendimento
claro e objetivo dos motivos pelos quais a brincadeira é inventada, não agindo, portanto, de forma
deliberada. Logo, a criança brinca sem ter consciência dos motivos desta atividade. Segundo o autor,
é isso que, essencialmente, difere a brincadeira de outros tipos de trabalho.
Vigotski considera que por trás da brincadeira se localizam as alterações das necessidades e
as alterações de caráter mais geral da consciência:
Isto quer dizer que ao brincar, mesmo que sozinha, a criança comporta-se de maneira mais
avançada do que nas atividades da vida real, além de aprender a separar objeto e significado. Brincar
dá a criança uma oportunidade de refletir acerca das regras sociais e reconhecer não somente seu
papel, como também o de seus parceiros, na medida em que interage com eles durante a brincadeira,
criando novas relações e experimentando diversos modos de ser. Vigotski (2008, p. 33) cita como
exemplo a ação de cavalgar num cavalo sem a possibilidade de fazer isso com um cavalo de verdade.
Neste caso, a criança necessita de um pivô (cabo de vassoura) para substituir a situação real. Com
isso, a ação é passada para segundo plano e transforma-se no pivô. Ou seja, a partir da ação de
cavalgar em um cabo de vassoura (pivô) como se fosse um cavalo de verdade, o sentido desprende-
se da ação de cavalgar em um cavalo real através de uma ação imaginativa. Logo, na brincadeira, a
ação substitui outra ação assim como um objeto substitui outro. Este, segundo Vigotski, é um dos
4 Tradução livre.
25
caminhos para o desenvolvimento do pensamento abstrato, no qual se opera com o sentido das
coisas.
A análise do ato de brincar permite uma compreensão sobre seu papel e valor no processo
de desenvolvimento psíquico da criança e, conforme visto no final do capítulo anterior, esta é uma
questão que Vigotski valorizou intensamente.
Primeiramente, cabe uma indagação sobre o que é o faz de conta e como este ato se
caracteriza. Considera-se que a brincadeira de faz de conta é uma forma privilegiada de expressão,
conhecimento e interação das crianças consigo mesmas e com o mundo que as cerca. No faz de
conta, uma criança representa personagens e animais, trata objetos inanimados como animados,
transforma recantos e objetos do ambiente físico de acordo com sua atividade. Por exemplo, bonecas
são tratadas como bebês, caixas de fósforo são utilizadas como carrinhos, um canto do quarto se
transforma em um salão de beleza, etc. Neste processo de imaginação e fantasia, as crianças utilizam
os meios que dispõem em seu próprio corpo: posturas, gestos, vocalizações, palavras isoladas e
frases. Para Coelho e Pedrosa (2000, p. 54), é através desses recursos que as crianças retomam, no
espaço da brincadeira, significados já experimentados em seu cotidiano, assim como também
constroem novos significados e sentidos variados para estes durante o momento do brincar. Dessa
forma, recriam-se novas relações entre objetos e situações, entre recursos do próprio corpo e
momentos já vivenciados ou observados pelas crianças. Ainda conforme Coelho e Pedrosa (2000, p.
55), estes laços são construídos pelas crianças e se apoiam, muitas vezes, em objetos que elas
pretendem representar. Assim, uma boneca representa um bebê, almofadas empilhadas representam
uma casa, um pedaço de madeira representa um carro, etc. Alguns desses laços podem ser
subjetivos, enquanto outros são arbitrários. Em sua maioria, têm uma íntima relação com alguma
vivência importante. Por exemplo, uma criança que ficou hospitalizada e passou por procedimentos
médicos, começa a brincar de dar medicamentos e injeções para suas bonecas. Nesta situação, o faz
27
de conta possibilita que seja construído um novo sentido à vivência de hospitalização e faz com que
a criança a reelabore, reconhecendo-se como sujeito pertencente a um grupo social e a um contexto
cultural.
Todo este movimento produzido pelas crianças durante a brincadeira torna possível transitar
em busca de outros mundos, de outros sabores e de outras cores, cujos objetos encontrados são
imediatamente recriados, o que proporciona às crianças possibilidades para fazer fluir fantasias
intermináveis (Faria, 2009, p. 15). Nos tópicos seguintes, através de uma análise bibliográfica, serão
abordados e discutidos os principais fatores que compõem a brincadeira de faz de conta, através de
um olhar sobre a interação entre crianças pequenas.
Muitas vezes, uma criança brincando pode ser vista como se estivesse em um mundo só
seu, um mundo de sonhos e fantasia, separado da realidade. No entanto, através de uma observação
atenta das sutilezas das ações infantis durante as brincadeiras, é possível perceber que o faz de conta
não se restringe a um mundo imaginário, desconectado do é real. Pelo contrário, conforme será
explicitado no decorrer deste tópico, o brincar, assim como a atividade imaginativa em geral, estão
fortemente relacionados com a realidade.
Vigotski (2010, p. 14), aponta que, comumente, entende-se por imaginação ou fantasia5
algo diferente do que a ciência denomina com estas palavras. No senso comum, designa-se com
estes termos tudo aquilo que não corresponde à realidade e, portanto, não pode ter nenhum
significado prático. Por outro lado, para o autor, a imaginação é a base de toda a atividade criadora
humana e manifesta-se em todos os campos da vida cultural, o que torna possível, também, a criação
científica, técnica e artística. Dessa forma, Vigotski (idem) considera que “tudo o que nos cerca e foi
feito pelas mãos do homem, todo o mundo da cultura, diferentemente do mundo da natureza, tudo
isso é produto da imaginação e da criação humana que nela se baseia”. Isto quer dizer que, na
história da humanidade, a realidade é constituída e atravessada pela imaginação, assim como esta
também se constitui por elementos da realidade. Em todo momento, o homem imagina, cria, inventa
e constrói algo novo, ainda que este novo pareça insignificante quando comparado às grandes
invenções. Logo, a criação é vista por Vigotski (2010, p. 16) como a “condição necessária da
existência”.
Cerisara (2010, p. 124), apoiada em Vigotski, afirma que tanto a atividade lúdica quanto a
atividade criativa surgem marcadas pela cultura e mediadas pelos sujeitos com quem a criança se
relaciona, ou seja, as crianças só podem inventar se já conhecem previamente todos os elementos
que compõem determinada invenção. Para esclarecer o mecanismo psicológico da imaginação e sua
importância enquanto uma atividade vital, Vigotski (2010, p. 20-30) destaca algumas formas de
vinculação existentes entre a imaginação e a realidade na conduta humana. A primeira delas,
conforme mencionado, se manifesta no fato de que o ato de imaginar está sempre relacionado com a
experiência vivida, isto é, a realidade é a base da criação. Para ele, quanto mais rica a experiência da
pessoa, mais material estará disponível para sua imaginação. A segunda forma de vinculação amplia
e dá um novo significado à anterior: sua essência consiste na combinação, pela atividade
imaginativa, de elementos da realidade adquiridos não pela experiência direta do sujeito, mas por
meio da experiência alheia ou social, adquirida através de relatos, notícias, histórias, descrições, etc.
Assim, o que a criança vê e escuta, são pontos de apoio para sua futura criação. Ela acumula material
com base no qual, posteriormente, será construída sua fantasia. A terceira forma refere-se ao enlace
emocional entre imaginação e realidade, que pode se apresentar de duas maneiras: de um lado, os
sentimentos influenciam o ato de imaginar, por exemplo, quando estamos em um momento de
alegria, tendemos a ter um olhar diferente sobre as coisas do que quando estamos passando por uma
situação triste. Por outro lado, a imaginação influencia os sentimentos. Um exemplo disto seriam as
obras de arte que provocam sentimentos de melancolia ou um filme de terror ao provocar medo. Por
fim, a quarta forma de vinculação entre realidade e imaginação consiste no fato de que a nova
criação pode representar algo totalmente novo, que não existe na experiência do homem. Um
exemplo atual do que Vigotski denominou de imaginação “cristalizada” ou “encarnada” (ou seja,
que se tornou objeto concreto) poderia ser o telefone celular, que, a partir do momento em que foi
29
criado, traz consigo uma força nova, capaz de gerar grandes transformações na forma de viver
humana. O telefone celular foi criado pela imaginação combinatória do homem e não corresponde a
nenhum modelo existente na natureza.
Além dos vínculos existentes entre a atividade imaginativa e a realidade, Vigotski (2010, p.
35-41) descreve os momentos que compõem os processos da primeira, revelando a complexidade
desta atividade. Primeiramente, destaca a dissociação e associação das impressões percebidas pelo
sujeito em seu entorno, importantes no processo de reelaboração do material com base no qual será
construída a imaginação. Para o autor, qualquer impressão representa em si um todo complexo,
composto de múltiplas partes separadas. A dissociação, então, consiste na fragmentação em partes
desse todo complexo. Algumas destas partes destacam-se das demais, enquanto outras são
esquecidas. Vigotski considera que, saber destacar traços específicos de um todo complexo é de
grande relevância para qualquer trabalho criativo humano com impressões. Por exemplo, em uma
obra de arte, é preciso saber realçar alguns traços e rejeitar outros. Em seguida, ocorre um processo
de modificação a que se submetem os elementos dissociados, a partir de um movimento sob a
influência de fatores internos que os distorcem e reelaboram. Um exemplo citado pelo autor é a
exacerbação e atenuação de alguns elementos das impressões, cujo significado é enorme tanto para a
imaginação em geral quanto para a da criança. Ao observar crianças brincando, é possível notar uma
paixão pelo exagero que, segundo Vigotski, tem um fundamento interno muito profundo. Em uma
brincadeira de faz de conta, a criança pode imaginar ser um gigante do tamanho de um prédio
lutando com um dinossauro, por exemplo. O autor nota, inclusive, que o exagero, assim como a
imaginação são igualmente necessários nos campos das artes e ciências, por exemplo, como a
astronomia, que levita no tempo e no espaço. A geologia também pode ser citada como exemplo,
uma vez que acompanha o desenvolvimento do planeta por meio de uma série de mudanças e
cataclismos. O momento subsequente que compõe os processos da imaginação, segundo Vigotski
(2010, p. 39), é a associação, ou seja, a união dos elementos dissociados e modificados. A
associação pode ocorrer tanto como uma união subjetiva de imagens quanto objetiva. Uma união
subjetiva ocorre quando certa paisagem remete a determinado sentimento ou memória, por exemplo.
Já, a união objetiva pode corresponder aos conceitos geográficos, que se referem a inúmeros locais
do planeta. Por fim, “o último momento é a combinação de imagens individuais, sua organização
num sistema e a construção de um quadro complexo” (idem). No entanto, Vigotski sinaliza que a
atividade criadora não para aqui. O autor passa a tratar, então, do processo de cristalização ou da
passagem da imaginação para a realidade. Vigotski destaca a necessidade de o homem se adaptar ao
meio que o cerca como um fator psicológico essencial neste processo:
30
Se a vida ao seu redor não o coloca diante de desafios, se as suas reações comuns e
hereditárias estão em equilíbrio com o mundo circundante, então não haverá base alguma
para a emergência da criação. O ser completamente adaptado ao mundo nada desejaria, não
teria nenhum anseio e, é claro, nada poderia criar. Por isso, na base da criação há sempre
uma inadaptação da qual surgem necessidades, anseios e desejos (Vigotski, 2010, p. 41)
Assim, pode-se inferir que, na visão do autor, o processo de cristalização surge a partir de
um desequilíbrio com relação à determinada situação, o que faz aparecer uma necessidade ou anseio
por mudança e a busca por algo novo. Logo, desafios e adversidades da vida são indispensáveis para
a emergência da atividade criadora.
Outro fator de extrema importância, enfatizado por Vigotski (idem), é o meio circundante e
sua ação. Conforme anteriormente mencionado, a imaginação tende a ser vista como uma atividade
exclusivamente interna, desconexa da realidade exterior. Na melhor das hipóteses, é retratada como
dependente das condições externas apenas na medida em que estas determinam o material com o
qual a imaginação opera. No entanto, Vigotski (idem, p. 42) afirma que nenhuma invenção ou
descoberta pode emergir antes que as condições materiais e psicológicas necessárias para seu
surgimento sejam favoráveis. Em outras palavras, por mais subjetiva que seja uma criação, ela
sempre será constituída por questões sociais e culturais.
No universo do brincar, o faz de conta pode ser realizado de forma individual ou em grupo.
Ambas as formas possuem um papel de extrema relevância no desenvolvimento infantil. De forma
convergente com Vigotski, Brougère (2010a, p. 30) aponta que o brincar está longe de ser a
expressão livre de uma subjetividade, mas situa-se no intercruzamento das interações sociais. Ou
seja, são necessárias as dimensões social e cultural para a brincadeira emergir. Portanto, conforme
será abordado no próximo tópico, o compartilhamento entre crianças pequenas dos sentidos e
significados construídos durante uma brincadeira é fundamental para que possam criar um vínculo,
interagir, trocar ideias, partilhar sentimentos e, assim procedendo, reinventarem novos modos de ser
e estar no mundo.
31
Este tópico será baseado, principalmente, nas ideias de Oliveira e Rossetti-Ferreira (1993),
pesquisadoras da área de Desenvolvimento Humano e Educação Infantil, que focalizam o valor da
interação criança - criança no desenvolvimento. A concepção de interação elaborada por estas
autoras baseia-se na noção de que há uma constituição recíproca do indivíduo e do meio, que origina
situações sempre novas e singulares, construídas pelas interações dos parceiros entre si. Neste
processo, os significados são estabelecidos pelos indivíduos por suas ações no momento da
interação, por meio dos papéis que desempenham e confrontam continuamente. Assim, a noção de
papel é um ponto central:
Consideramos que, como as ações humanas têm seus significados negociados e definidos
em experiências socioculturais, comportamentos recortados constituem papéis associados a
contra papéis desempenhados por cada parceiro. (Oliveira & Rossetti-Ferreira, p. 65)
Isto quer dizer que, um simples gesto pode ter diversos significados, dependendo do papel e
contra papel desempenhado por cada indivíduo envolvido. Por exemplo, quando uma criança segura
6
Vide referências.
32
a mão de outra, isto pode significar um convite para brincar de roda, assim como indicar que as
crianças são amigas e gostam de estar juntas ou, ainda, uma resposta ao pedido dos pais para que
segurem as mãos enquanto andam na rua. Dessa forma, os papéis emergem na experiência
interpessoal e sua principal característica, de acordo com as autoras, é uma polaridade intersubjetiva.
Isto quer dizer que mesmo quando o indivíduo está sozinho, seu comportamento pressupõe o de um
parceiro, ou seja, mesmo na brincadeira solitária, a criança, através do faz de conta, imagina falar
com alguém ou com seus próprios brinquedos.
Nos primeiros momentos da vida, (idem, p.68), o bebê possui seus papéis e contra papéis tão
mesclados, sua experiência interpessoal com o adulto que lhe oferece cuidados é tão integrada, que
se faz necessário um trabalho ativo para que o bebê possa apreender sua própria parte neste todo
indiferenciado e, aos poucos, conseguir diferenciar as características dos outros de suas próprias.
Através do vínculo afetivo construído, o adulto, além de garantir a sobrevivência da criança, também
se comunica com ela e intermedeia suas relações com o mundo. Imerso num universo simbólico, o
adulto apresenta o mundo ao bebê e lhe atribui significações, através do uso de instrumentos
culturais, como a linguagem (Amorim e colaboradores, 2012, p. 311). O bebê humano é um ser que
nasce bastante imaturo do ponto de vista motor, porém, conforme afirmam Franchi e Vasconcelos et
al (2003, p. 293), suas características perceptuais já estão bastante desenvolvidas. A imaturidade
motora faz com que a criança continue por um longo período de tempo vulnerável e sem condições
para sobreviver sem a ajuda de um adulto. Apesar disso, de acordo com a obra citada, seu
equipamento sensorial e expressivo facilita a comunicação, a interação e a aprendizagem com o
outro desde o nascimento. Com o desenvolvimento de suas habilidades exploratórias e motoras, as
crianças se movem e alcançam outras crianças, entrando em contato físico com elas. Assim, por
33
volta dos dois anos de idade, têm a possibilidade de lidar com situações, nas quais seus parceiros
privilegiados são não somente os adultos, mas também outras crianças.
Em uma pesquisa que deu origem ao documentário “Bebê interage com bebê?”, Anjos,
Amorim e Rossetti-Ferreira (1994), consideram que as interações bebê-bebê possuem características
diferentes daquelas observadas tanto nas interações adulto-criança, como entre crianças maiores. Por
meio de vídeo gravações do cotidiano de crianças em uma creche, estas pesquisadoras percebem
que, de forma diferente das crianças maiores, as interações bebê-bebê costumam ser mais
fragmentadas e, por vezes, acaba ocorrendo por meio de um desajeitamento motor. Nestas
interações, os bebês podem comunicar-se entre si e realizar trocas de gestos e afetos. A partir de uma
observação atenta, notam que existe um interesse precoce de um bebê pelo outro, havendo inclusive
empatia, como mostra o exemplo de uma cena do documentário, onde o choro de um bebê atrai
outro bebê, que tenta prontamente consolá-lo, passando a mão em sua cabeça.
Ainda com base no documentário em foco, as pesquisadoras entendem que a interação entre
crianças pequenas não é apenas um “fazer juntos”. Muitas vezes, uma criança tem seu
comportamento regulado por outra, mesmo que não saiba da ocorrência desta regulação. Com
frequência, ocorre uma interrupção destas interações pelos adultos, pelo fato de acreditarem que é
um determinado objeto que chama a atenção do bebê que interage com outro quando, na verdade, a
criança está interessada no sistema “bebê-objeto-bebê”, ou seja, na interação construída com outro
bebê e o objeto. As autoras destacam a importância destas interações, na medida em que é a partir
delas que papéis são apreendidos, reações são conhecidas e significados são construídos.
são mais expressivas do que dirigidas a um objetivo pré-determinado, ou seja, são mais voltadas para
o momento presente, no qual a brincadeira está ocorrendo. Em contrapartida, as crianças mais velhas
utilizam a linguagem verbal de forma mais efetiva, apresentam um maior planejamento das
brincadeiras e as representações são negociadas de forma mais clara. Assim, a regulação das ações,
inicialmente dominada pela esfera afetiva, é assumida gradualmente pela esfera cognitiva. As
autoras ressaltam que esse processo verbal de atribuição de papéis, presente no faz de conta, ilustra o
processo de internalização das relações sociais pelas crianças.
Assim, pode-se afirmar que para uma análise adequada da brincadeira de faz de conta não
basta apenas considerar a interação entre os pares, mas é preciso, também, direcionar um olhar para
o contexto social e cultural no qual está inserida. No próximo capítulo, serão abordadas as relações
entre brincadeira e cultura para uma visão complementar deste processo interativo.
35
De acordo com Huizinga (1980, p. 6), o jogo é encontrado na cultura como um elemento
dado existente antes mesmo da própria cultura, uma vez que os animais também brincam. Para ele, o
jogo acompanha e marca a cultura desde suas as mais remotas origens até a fase de civilização na
qual agora nos encontramos. O jogo está presente em toda parte, como uma qualidade de ação
distinta e bem determinada da “vida comum”. Huizinga, assim, reconhece o jogo como uma forma
específica de atividade, uma forma “significante”, ou seja, que confere um sentido à determinada
ação. Todo jogo significa alguma coisa, o que implica na “presença de um elemento não material em
sua própria essência” (idem, pp. 3-4). Além disso, sinaliza que o jogo também possui uma função
36
social, isto é, sua importância não está restrita ao individual, mas estende-se à sociedade como um
todo. Dessa forma, Huizinga considera que o jogo compõe amplamente a existência do homem,
estando presente em seu cotidiano de modo forte e onipresente.
Para o referido autor, as grandes atividades arquetípicas da sociedade humana são marcadas
pelo jogo, cita como exemplo a linguagem, um “instrumento” criado pelo homem, que torna possível
a comunicação, o ensino e o comando:
Dessa forma, o autor considera a linguagem como uma expressão abstrata, por trás da qual
se oculta uma metáfora ou “jogo de palavras” (idem). É por meio dela que o homem cria outro
mundo, ao lado da natureza. Além da linguagem, o autor também traz como exemplo o mito e o
culto, a partir dos quais se originam as grandes forças instintivas da vida civilizada: o direito e a
ordem, o comércio e o lucro, a indústria e a arte, a sabedoria, a poesia e a ciência. Huizinga observa
que todas estas forças têm raízes no solo primevo do jogo. Em todas as invenções da mitologia, por
exemplo, há um espírito de fantasia que joga no “extremo limite entre a brincadeira e a seriedade”
(idem), em que ocorre uma “imaginação” ou transformação do mundo exterior. Ao observar o
fenômeno do culto, o autor verifica que as sociedades primitivas celebram seus ritos sagrados, suas
consagrações e sacrifícios em um espírito de puro jogo.
Ainda com base em Huizinga (1980, p. 11), uma das características fundamentais do jogo é
o fato de ser livre, de ser ele próprio liberdade. Outra característica, relacionada com a primeira, é
que o jogo pode ser considerado como uma evasão da vida “real” para uma atividade temporária
com orientação própria. Para ele, a característica de “faz de conta” presente no jogo pode expressar
uma inferioridade desta atividade com relação à seriedade da vida “real”. Todavia, ressalta que não
há um contraste nítido entre a seriedade e o jogo: “É possível ao jogo alcançar extremos de beleza e
de perfeição que ultrapassam em muito a seriedade” (idem). Com isso, pode-se notar que Huizinga
faz um estudo aprofundado do jogo como um fenômeno fundamental da cultura, através da análise
de suas relações com a linguagem, poesia, culto, mitologia, dentre outras grandes atividades da
cultura humana.
período histórico do Romantismo. Antigamente, a brincadeira era considerada, muitas vezes, como
fútil, tendo como única função a distração, recreio (Daí o papel delegado à recreação), assim como
também era julgada nefasta. No período do Romantismo, ao contrário, Brougère aponta que:
são exaltados os comportamentos naturais que expressam uma verdade mais essencial do
que as verdades racionais dos conhecimentos constituídos. A criança surge como se
estivesse em contato com uma verdade revelada que lhe desvenda o sentido do mundo de
modo espontâneo e o contato social pode destruir esta primeira verdade. A criança, que está
próxima do poeta, do artista, exprime um conhecimento imediato que o adulto terá
dificuldades para encontrar (idem, pp. 96-97).
Por um lado, o brinquedo merece ser estudado por si mesmo, transformando-se em objeto
importante naquilo que ele revela de uma cultura. De outro lado, antes de ter efeitos sobre o
desenvolvimento infantil, é preciso aceitar o fato de que ele está inserido em um sistema
social e suporta funções sociais que lhe conferem razão de ser. Para que existam brinquedos
é preciso que certos membros da sociedade deem sentido ao fato de que se produza,
distribua e consuma brinquedos. (Brougère, 2010b, pp. 7-8)
Com isso, o autor enfatiza a dimensão social do brinquedo, a partir da qual se produz um
sentido para sua fabricação, distribuição e consumo. Para ilustrar esta dimensão, Brougère cita os
presentes, em particular o presente de natal. Caso a comemoração natalina não existisse, este objeto
teria a mesma função social? Uma das funções sociais do brinquedo, para o autor, é a de ser o
presente destinado à criança, independentemente do uso que ela fará dele. O sistema de produção e
distribuição social, por sua vez, concebe e difunde o brinquedo, de modo que ele possa responder a
esta função. Um exemplo pode ser a intensa propaganda e divulgação em torno dos brinquedos
durante a época do Natal, que ocorre nas lojas, televisão, outdoors, dentre outros meios.
38
o conjunto dos processos que permitem à criança se integrar ao „socius‟ que a cerca,
assimilando seus códigos, o que lhe permite instaurar uma comunicação com os outros
membros da sociedade, tanto no plano verbal quanto no não verbal (p. 66).
infância, cultura de pares, relações adulto-criança e criança-criança. Este autor desenvolve uma
abordagem interpretativa da socialização da infância, que denomina de reprodução interpretativa.
Em tal abordagem:
as crianças começam a vida como seres sociais inseridos numa rede social já definida e,
através do desenvolvimento da comunicação e linguagem em interação com outros,
constroem seus mundos sociais (Corsaro, 2002, p. 114).
Assim, seria por meio destes “microprocessos” (idem), ou seja, por meio de uma interação
das crianças com seus cuidadores / responsáveis e com seus pares, que uma noção de
desenvolvimento social poderia se tornar visível. Em sua abordagem, o autor considera a
socialização como um processo “produtivo-reprodutivo” (idem), isto é, ao mesmo tempo em que
produz algo novo, a socialização também reproduz modos de ser já existentes. Para Corsaro, o
movimento das crianças para fora de seu meio familiar é uma mudança de grande importância:
O termo cultura de pares, empregado pelo autor, refere-se a uma criação e produção, pelas
crianças, de seus próprios mundos coletivos. Embora sejam afetadas pelo mundo adulto, na cultura
de pares as crianças possuem sua própria autonomia. Entrevistado por Müller (2007, p. 275),
pesquisadora da infância em contextos urbanos, Corsaro aponta que qualquer grupo coletivo de
crianças, que constitui uma cultura de pares, representará uma geração particular em determinado
período histórico. Então, o autor define a cultura de pares como um conjunto de atividades ou
rotinas, valores, artefatos e interesses que as crianças produzem e compartilham no momento de
interação com seus pares.
Em convergência com os autores citados, Borba (2009, p. 71) considera o brincar como
uma experiência de cultura, na medida em que valores, conhecimento, habilidades e modos de
participação social são constituídos e reinventados pela ação de um grupo de crianças:
Assim, nesta visão, o ato de brincar é entendido como, simultaneamente, produto e prática
cultural, ou seja, é uma ação constituída pelo meio cultural no qual está inserida e, ao mesmo tempo,
age sobre este meio e o transforma. Isto quer dizer que, para Borba, a cultura infantil torna a
brincadeira possível, porém, é neste mesmo espaço social do brincar que ela emerge e é enriquecida.
Ainda de acordo com Borba (2007, p. 34), a criança incorpora a experiência cultural e
social do brincar por meio das relações que estabelece com os outros (adultos e crianças). Tal
experiência não é simplesmente reproduzida, mas recriada a partir do poder da criança em produzir
41
cultura, reinventar, criar e imaginar. Dessa forma, a criança traz uma real possibilidade de mudança
e renovação da experiência humana que, muitas vezes, é negligenciada pelos adultos.
Brougère (2010b, p. 18), ressalta que o aspecto simbólico do brinquedo está sempre
atrelado ao contexto econômico no qual evolui. O fato de o brinquedo ser objeto de publicidade em
diversos países influencia o que ele representa e o significado que possui para seu público alvo. Por
exemplo, um simples carrinho pode ter um enorme significado para as crianças quando vinculado
pela publicidade a determinado filme ou desenho animado. Nas últimas décadas (idem, p. 53), a
mídia tem desempenhado um papel significativo na sociedade contemporânea, tanto entre os adultos
quanto entre as crianças. Brougère (idem) utiliza o termo cultura lúdica para designar:
42
uma estrutura complexa e hierarquizada, constituída (essa lista está longe de ser exaustiva)
de brincadeiras conhecidas e disponíveis, de costumes lúdicos, de brincadeiras individuais,
tradicionais ou universais (se isso pode ter sentido) e geracionais (próprias a uma geração
específica). Essa cultura inclui, ainda, um ambiente composto de objetos e, particularmente,
de brinquedos. (p. 53-54)
Assim, a cultura lúdica não é fechada em torno de si própria, mas integra elementos
externos que influenciam a brincadeira, tais como: cultura, meio social, atitudes e capacidades. O
brinquedo, por sua vez, contribui para o desenvolvimento desta cultura, inserindo-se na brincadeira
como um objeto de apropriação. Ou seja, o brinquedo é envolvido pela cultura lúdica disponível, por
meio de práticas de brincadeiras anteriores. Para brincar e atuar como brincante, a criança deve
partilhar da cultura lúdica própria ao jogo ou brincadeira em que se insere. Seja em casa, na escola
ou em algum outro ambiente que costuma frequentar, a criança extrai diferentes elementos e
apropria-se de diversos aspectos de sua cultura lúdica, que está aberta a transformações.
Ao mesmo tempo em que aparece como global e integradora, mantendo conectadas crianças
de diferentes regiões do mundo, culturas, línguas, credos e raças, essa cultura discrimina
aquelas crianças que, por estarem longe do acesso ao mundo digital, desenhado por
computadores, internet, videogames e brinquedos de última geração, não podem participar
de todos os links que a compõem e, assim, não possuem o currículo que confere titularidade
ao membro efetivo dessa comunidade lúdica. (Souza & Salgado, 2009, p. 213)
Assim, pode-se observar que, embora seja caracterizada como “global” e integradora, a
cultura lúdica contemporânea também é fortemente fragmentada e hierarquizada, o que explica a
dificuldade de muitas crianças de se integrarem a uma determinada cultura lúdica.
Carvalho e Pontes (2003, p. 19), apontam que, à primeira vista, em um mundo moderno e
tecnológico, que transborda informações e estímulos, os brinquedos e as formas de brincar mudaram
muito. Mas, na visão dos autores, isto é parcialmente verdade, ainda mais quando o foco é
direcionado às crianças urbanas de classe média e alta. Neste segmento, muitas brincadeiras
tradicionais deixaram de ser praticadas. É raro ver, por exemplo, uma criança do centro de São Paulo
brincando com bonecos de madeira ao invés de jogos eletrônicos. Em contrapartida, em cidades
pequenas ou do interior, podem ser encontrados grupos de crianças que brincam na rua e constroem
seus próprios brinquedos.
Apesar de possuir certa autonomia e um ritmo próprio, a cultura lúdica só pode ser entendida
na interdependência com a cultura global de uma determinada sociedade. Para compreendê-la, é
importante levar em consideração as diferenças de gerações, idades, meio social, nações e regiões.
Brougère (2010b, p. 55-56) destaca a influência direta da televisão nas brincadeiras infantis. Para
ele, este meio de comunicação oferece às crianças, que pertencem a ambientes diferentes, uma
linguagem comum e referências únicas. Em um exemplo citado no texto (idem, p.58), a referência a
um herói de desenho animado pode unir as crianças numa brincadeira em pé de igualdade, em que
desempenham papéis a partir do que conhecem do referido herói. Assim, uma criança que assiste
televisão não se limita a receber passivamente os conteúdos, mas reativa-os e se apropria deles por
meio de suas brincadeiras, de modo idêntico à apropriação de papéis familiares e sociais nas
brincadeiras de imitação ou faz de conta. Isto não significa que a cultura lúdica da criança esteja
totalmente submissa à influência da televisão, uma vez que esta cultura está impregnada de tradições
diversas (idem, p. 55-56). Nela, podemos encontrar brincadeiras tradicionais no sentido estrito, que
passam de geração em geração e repetem-se com especificidades regionais em inúmeros ambientes
socioculturais ao longo da história humana. Como exemplo disso, podem ser citadas as brincadeiras
de casinha, pique-esconde, pique-pega, bola de gude, amarelinha, soltar pipa, peão, jogos de bola,
dentre outras. Estes jogos podem ser considerados, sob este aspecto, parte do repertório cultural
44
humano, assim como determinados ritos e certas estruturas básicas de organização social (Carvalho
& Pontes, 2003, p. 18). Porém, com o passar do tempo e, dependendo da região, novos conteúdos
podem ser incorporados a tais brincadeiras, em particular os originados pelas inovações
tecnológicas, que se inserem em estruturas anteriormente disponíveis e dominadas pelas crianças.
Assim, as brincadeiras tradicionais de casinha podem ganhar novos elementos, como peças
sofisticadas e coloridas, baseadas em personagens de desenhos animados, por exemplo, casinha da
boneca Polly e da boneca Barbie. Com isso, para Brougère (2010b, p. 63), não haveria uma oposição
radical, mas uma relação de complementaridade, de afetação recíproca entre as brincadeiras
tradicionais e aquelas influenciadas pela televisão, já que a cultura viva é um processo dinâmico que
se constitui também durante o desenrolar das brincadeiras. Em outras palavras, as brincadeiras
presentes no mundo tecnológico se entrelaçam às tradicionais, trazendo novos sentidos e elementos
às formas de brincar existentes. Por outro lado, se direcionarmos o olhar para crianças que vivem em
um local onde existe pouco ou nenhum contato com a tecnologia, será possível observar outras
formas de apropriação e recriação de objetos diferentes dos tecnológicos, mas que fazem parte de
suas vivências cotidianas e, portanto, integram a cultura na qual estão inseridas.
45
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao finalizar este trabalho, pode-se inferir, com base na literatura analisada, que a
brincadeira de faz de conta possui um papel de extrema importância no desenvolvimento das
crianças pequenas. Na medida em que propicia à criança experiências de interação com seus pares, e
com parceiros de diferentes idades, a brincadeira também participa de modo significativo da
inserção da criança na cultura. Além disso, possui importante função no desenvolvimento da
capacidade criativa e imaginativa, ampliando as possibilidades de ação para além dos limites do aqui
e agora, isto é, o trânsito pelas dimensões do passado e do futuro.
Através da articulação das obras de Vigotski com outros autores, percebeu-se o papel e o
valor da interação das crianças entre si em situação de brincadeira de faz de conta, como contextos
que permitem a construção e o desempenho de papéis e, consequentemente, construção de
significações. Dessa forma, o brincar participa da compreensão, recriação da cultura e, portanto, da
inserção das crianças nesta.
Assim, com base em Oliveira, por exemplo, é possível dizer que, por meio do brincar, a
criança recria as regras contidas nos atos sociais e nas regulações culturais. Isso ocorre a partir de
uma experimentação de vários papéis no brincar, o que permite à criança perceber consequências
dos modos de agir. Com isso, internalizam regras de conduta e desenvolvem valores.
uma nova realidade é criada com base nas impressões vivenciadas pelas crianças em determinada
situação.
Além disso, a partir das análises de Huizinga, Corsaro, Brougère e Borba sobre o brincar,
verificou-se o modo como os contextos social e cultural encontram-se articulados nele. A
brincadeira de faz de conta aparece, assim, dentro de um processo de construção de relações
interindividuais organizadas através da cultura. Por meio de sua inserção progressiva no universo do
brincar, a criança passa a compreender, se apropriar e dar um sentido às suas próprias vivências
cotidianas.
REFERÊNCIAS
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[documentário]. Realização: CINDEDI. Apoio: CNPq, FAPESP, FFCLRP, USP, Creche
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