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Maria Stela Pompeu Brasil Frota Protecao de Patentes de Produtos Farmacéuticos: o Caso Brasileiro AGAO ALEXANDRE DE GUSMAO - FUNAG aor Be PESQUISA DE RELACOES INTERNACIONAIS - IPRI Brasilia 1993 O presente texto foi originalmente apresentado pela autora no Curso de Altos Estudos (CAE) em 1991 do Instituto Rio Branco. As opinides contidas no trabalho sao de exclusiva responsabilidade da autora, ndo coincidindo necessariamente com as posigSes do Ministério das Relagées Exteriores. O CAE, instituido pelo Decreto-lei n° 79.556, de 20 de abril de 1977, no Ambito de qualificagdo para promogao do Rio Branco, constituindo-se num dos requisitos para promogao de Conselheiro para Ministro de Segunda Classe dentro da Carreira de Diplomata. Os trabalhos apresentados ao CAE, submetidos 4 consideragao de banca especializada, composta de funcionarios diplomaticos, onde os autores tém tratado de temas da politica externa brasileira e da conjuntura internacional, baseados em suas experiéncias profissionais ou interesses intelectuais e académicos. © Maria Stela Pompeu Brasil Frota F 941 Frota, Maria Stela Pompeu Brasil Protegao de patentes de produtos farmacéuticos: 0 caso brasileiro / Maria Stela Pompeu Brasil Frota. - Brasilia: FUNAG/IPRI, 1993. 206 p Bibliografia: p. 115-20, 1. Propriedade intelectual. 2. Industria farmacéutica - Patentes - Brasil. 3, Propriedade industrial. I. Titulo CDU 347.779 INTRODUCAO.... I-PROPRIEDADE INTELECTUAL - DEFINICAO, CONCEI- TOS E EVOLUCAO HISTORICA.... 1.1 - Definigado, Conceitos e Fundamentagao 13 1.2 - Evolugao Hist6rica 15 Hist6ria Antiga da Propriedade Intelectual... 15 Hist6ria Recente da Propriedade Intelectual 16 Sistema Inglés de Propriedade Intelectual ... 17 Sistema Francés de Propriedade Intelectual.... 18 Sistema Norte-Americano de Propriedade Intelectu: 19 1.3 - Controvérsia sobre Patentes no Século XIX 20 Il- SISTEMA INTERNACIONAL DE PROPRIEDADE INTELECTUAL.... 2.1 - Convengées Internacionais sobre Propriedade Intelectual 23 2.1.1 - Congresso de Viena. 23 2.1.2 - Conferéncia de Paris de 187: aA 2.1.3 - Conferéncia de Paris de 1880 e Convengao de Paris. 25 2.2 - Convengées Internacionais sobre Direitos do Autor 27 2.2.1 - Convengao de Berna... 28 2.3 - Propriedade Intelectual no 4mbito do Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio (GATT)..... - Iv- SISTEMA DE PROTECAO A PROPRIEDADE INTELEC- TUAL NO BRASIL... 3.1 - Breve Hist6rico da Legislagao Brasileira sobre Meee Intelectual .. 3.2 - Cédigo de Propriedade Industrial 3.3 - Direitos do Autor 3.4 - Percepgao da Propriedade Intectual no Brasil. CRESCENTE IMPORTANCIA DO SISTEMA _DE PROPRIEDADE INTELECTUAL _NAS RELACOES INTERNACIONAIS - APRESENTACAO DE CASO: ACAO. DOS ESTADOS UNIDOS PARA MODIFICAR A LEGISLAGAO DE PATENTES PARA PRODUTOS FARMACEUTICOS NO BRASIL.. 4,1- Acao dos EEUU com vistas 4 modificagdo da oe brasilcira de propriedade intelectual .. Contencioso Comercial - Segao 301. SISTEMA DE PATENTES ...-ssssssssee 7 5.1 - Caracteristicas do Sistema de Patentes 5.2 - Teoria Econémica e 0 Sistema de Patentes . 5.3 - Sistema de Patentes - Argumentaciio. Estimulo @ Inovagdo Estimulo ao Investim Monopélio versus Competi¢ao.. Difusao e Transferéncia de Tecnologia. Outros Enfoques sobre Vantagens e Desvantagens INDUSTRIA FARMACEUTICA.... 6.1 - Inddstria Farmacéutica Mundial ... Breve hist6rico e principais caracteristicas . Pesquisa e Desenvolvimento.. Expansao de Mercados.... 43 47 47 55 67 67 67 70 nR 6.2 - Indtistria Farmacéutica no Brasil . Breve hist6rico... Desnacionalizagao da industria farmacéutica brasileira.. Outras caracteristicas do setor farmacéutico brasileiro . VII - PATENTES DE PRODUTOS FARMACEUTICOS .. 7.1 - Exclusdo de Patenteabilidade.... 7.2- Vantagens e Desvantagens das Patentes para Produtos Farmacéuticos .. VIN- PATENTES DE PRODUTOS FARMACEUTICOS NO BRASIL..... 8.1 - A Visdo dos Laboratérios Nacionais e Estrangeiros .. CONCLUSAO NOTAS ...... BIBLIOGRAFIA ANEXOS... Anexo I - The Statute of Monopoli Anexo II - Diretrizes Gerais para a Politica Industrial e de Comércio Exterior... Anexolll - CEBRAE Survey. AnexoIV - Projeto de Lei dispondo sobre produgao e controle de medi- camentos e farmacos .... one Anexo V_— - Petition for Relief pursuant to Section 301 Produtos Anexo VI - Politica Industrial para o Setor de Quimica Fin Farmacéuticos. : Anexo VII - Proclamation 5885... Anexo VIII - Nota a Imprensa..... AnexoIX - Declaragao do Presidente da CIBRAN. 73 B 75 7 81 82 85 89 91 .. 103 133 139 153 157 179 . 189 - 201 INTRODUCAO A protegao 4 propriedade intelectual vem-se tornado matéria cada vez mais relevante no cenério internacional. Com a evolucdo tecnoldgica, 0 conseqiiente desenvolvimento de novos produtos € os custos e investi- mentos em pesquisa e desenvolvimento, 0 direito de patentear nao sé o produto em si, mas também seu processo de obtencdo, passou a ocupar pa- pel de realce nas relagGes comerciais internacionais. A protecdo de patentes para o setor farmacéutico no Brasil € tema central do presente trabalho. Ela tem influenciado as relagdes econémicas externas do pafs e, por extensdo também suas relages diplomiticas. O fato de o Brasil nao conceder protecdo de patentes a produtos nem a processos farmacéuticos gerou contencioso com os Estados Unidos, conduziu 4 impo- sigdo de sobretaxas a produtos brasileiros no mercado norte-americano e provocou “irritante" nas relagdes diplomaticas entre os dois paises. A questao da protegdo de patentes para o setor farmacéutico é, pois, matéria relevante para a diplomacia brasileira, ¢ poderd, ainda, provocar desdobra- mentos. Contribuiu para a escolha do tema do presente trabalho o fato de, dentre minhas atribuigdes na Embaixada do Brasil em Washington, ter-se destacado, no periodo de 1989-1990, o tratamento da quest4o de patentes para produtos farmacéuticos em geral, e, em especial, do contencioso bilate- ral Brasil-Estados Unidos. O aprofundamento na matéria proporcionado pela pesquisa para o trabalho do Curso de Altos Estudos foi, em certa me- dida, Gtil 4 minha participacagdo no processo negociador em que tomei parte. O trabalho apresenta nogdes de propriedade intelectual, sua evo- lugdo histérica, seus aspectos juridicos e econ6émicos, sua discussio em termos internacionais, analisa 0 sistema de patentes e, em especial, patentes para 0 setor farmacéutico, sua validade econ6mica, sua aplicacdo a reali- 10 dade brasileira, a decis4o do Brasil de excluir 0 setor do direito de protecao € as implicagdes dessa medida no seu relacionamento internacional. Nao houve intengdo de se apresentarem idéias originais sobre o tema, posto que, como demonstram a vasta bibliografia e as diversas opinides expressas por especialistas que tive oportunidade de entrevistar, 0 assunto jd foi ampla- mente estudado em termos teéricos. Verificou-se, no entanto, que a quase totalidade dos estudos sobre 0 tema relaciona-se com as economias dos pai- ses desenvolvidos e, portanto, nado se adequam integralmente ao caso brasi- leiro. O presente trabalho busca salientar os aspectos polémicos da matéria, expor Os argumientos contra e a favor da concessao de patentes em geral e para o setor farmacéuticos em particular, e discutir sua aplicagdo 4 realidade brasileira. O objetivo do trabalho se define como um esforgo de organizagao e exposi¢do da matéria de forma a levantar subsidios a um debate mais rico e fundamentado do tema. Esses subsidios poderao, eventualmente, servir a futuras negociagdes em que a diplomacia brasileira venha a participar em matéria de propriedade intelectual. O capitulo I apresenta os conceitos das formas bdsicas de proprie- dade intelectual, sua fundamentagao e evolucao histérica, a qual mostra a influéncia da matéria no desenvolvimento econdmico dos paises. Desta- cam-se Os processos dos sistemas inglés, francés e norte-americano por te- rem produzido as primeiras legislagdes org4nicas de propriedade intelectual. Os aspectos controversos sobre patentes datados do século XIX se estendem até nossos dias, conforme se expde nos capitulos V, VII e VIL. O Capitulo II trata dos dois principais instrumentos juridicos inter- nacionais de prote¢do a propriedade intelectual - a Convengdo de Paris (1883) e a Convencao de Berna (1886). A Convengio de Paris ganha des- taque por se referir 4 propriedade industrial (patentes, certificados de in- vencdo, modelos utilitarios, marcas e desenhos industriais), vertente da pro- priedade intelectual objeto do presente trabalho. O tratamento do assunto no 4mbito do Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio (GATT), em especial na Rodada Uruguai, langada em 1986, tam- bém € desenvolvido no capitulo II. Nao se pretende, contudo, centralizar 0 presente trabalho no debate da propriedade intelectual no émbito multilate- ral, enfoque que, por si s6, justificaria outro estudo. Assim, nao sao aprofundadas as posigdes adotados pelos diferentes paises (inclusive Bra- sil) naquele organismo, nem se faz a exegese das propostas apresentadas du- rante as negociagGes do tema na Rodada Uruguai. O capitulo III se refere ao sistema de protegdo 4 propriedade inte- lectual no Brasil, dado essencial para o debate proposto. Os aspectos juridi- 11 cos da propriedade intelectual no Brasil, bem como a percepgdo da matéria por parte da sociedade brasileira, compdem, também, a estrutura do capi- tulo. A crescente importancia do sistema de propriedade intelectual nas relagées internacionais € tema do capitulo IV, que abrange sua insergdo na agenda diplomatica. Como "estudo de caso", escolheu-se 0 contencioso en- tre o Brasil e os Estados Unidos, que exemplifica a complexidade do tema, bem como a dimensao que adquiriu no relacionamento diplomatico bilate- tal. No capitulo V, considerou-se importante dar um maior detalha- mento do sistema de patentes, uma vez que o cerne do trabalho versa sobre este aspecto da propriedade intelectual. Neste capitulo, discorre-se sobre os fundamentos da matéria na teoria econ6mica e se alinham os argumentos favordveis e contrdrios as patentes. A diversidade de opinides por parte dos especialistas 6 uma mostra a mais de quao polémico € 0 tema. A pesquisa sugere ser impossivel fundamentar, em termos econdémicos, a conveniéncia de patentes para todos os segmentos industriais e nao permite a compro- vac4o de vantagens de se concederem patentes a todos aqueles seginentos. As caracteristicas da inddstria farmacéutica sao objeto do capitulo VI. O padrao de referéncia € a industria farmacéutica dos Estados Unidos, por ser o pais onde este ramo industrial teve, a partir da Segunda Guerra Mundial, crescimento fmpar através da expansado em escala internacional. Os EEUU foram o dnico pais, durante e no perfodo imediatamente posterior a Guerra, a dispor de recursos financeiros necessérios para suprir a crescente demanda de produtos farmacéuticos. O salto tecnolégico da indistria norte- americana e 0 conseqiiente hiato em relac&o a paises como Brasil explica a enorme importancia atribuida pela industria farmacéutica norte-americana a questao de protegao de patentes para o setor farmacéutico. Ainda no capitulo VI, é apresentada a trajet6ria da industria farma- céutica no Brasil, inclusive a desnacionalizag4o ocorrida no setor. O con- trole do mercado brasileiro pelas firmas multinacionais ajuda a identificar uma das origens das presses para que o Brasil adote protecdo de patentes Para o setor farmacéutico. Nos capitulos VII e VIII € examinada a quest4o de patentes para o setor farmacéutico. No capitulo VII, discute-se, essencialmente, a "exclusdo da paten- teabilidade", principio consagrado nas principais ConvencOes internacionais sobre propriedade intelectual, e base legal para a decisio de o Brasil excluir 12 0 setor farmacéutico do direito de protegao. As vantagens e desvantagens das patentes no setor farmacéutico sao apresentadas no mesmo capitulo. No capitulo VIII, discute-se a questao de patentes para o setor far- macéutico no Brasil, identificando-se as varidveis intervenientes na evo- lugdo do sistema de protegdo e a validade de sua aplicagao a realidade bra- sileira, expondo-se as visdes opostas que os laboratérios nacionais e os es- trangeiros tém sobre a matéria. Vale salientar que, até 1945, o Brasil concedia patentes para produ- tos e processos farmacéuticos. No periodo de 1945 a 1969, somente os pro- cessos eram protegidos por patentes; e, desde 1969, foi abolida toda e qual- quer protegdo - processos e produtos - de patentes para o setor farmacéu- tico. Em junho de 1990, foi anunciada a decisao do Poder Executivo brasi- leiro de voltar a conceder patentes para produtos e processos farmacéuticos. O projeto de reforma do atual Cédigo de Propriedade Industrial, que viré contemplar a prote¢ao de patentes para o setor farmacéutico, segundo indi- cado nas Diretrizes de Politica Industrial e de Comércio Exterior, sera en- caminhado ao Congresso Nacional em 20.03.91. Nao pode, assim, 0 pre- sente trabalho discutir premissas que serao conhecidas na edi¢do da futura legislagao. Na conclusao do trabalho, avalia-se o caso brasileiro de patentes para o setor farmacéutico e sdo apresentadas sugestdes sobre alguns aspec- tos da nova legislagao. Apesar de a decisao de conceder patentes para pro- dutos farmacéuticos ja ter sido tomada pelo Poder Executivo, mas por nao ter sido ainda submetida a aprovacao do Poder Legislativo, continuam a ser discutidos diversos aspectos dessa concessao, tais como 0 prazo de caréncia para sua entrada em vigor e as salvaguardas que deverdo ser contempladas na nova legislacéo. A questdo est4, pois, em aberto e s6 ser dirimida no seu detalhamento. Enquanto ndo se conhecer a nova legislacdo e a reacdo de nossos parceiros estrangeiros, o tema continua a integrar a nossa agenda diplomatica. I- PROPRIEDADE INTELECTUAL - DEFINICAO, CONCEITOS, FUNDAMENTACAO E EVOLUCAO HISTORICA 1.1 - Defini¢do, Conceitos e Fundamentagao A propriedade intelectual € 0 direito exclusivo de propriedade sobre formas intangiveis de criagdo e sobre os resultados concretos de suas apli- cagdes (), Na expressdo propriedade intelectual incluem-se os conceitos de criatividade privada (idéias, invengdes, expressGes criativas) e de pro- tecdo publica dos frutos dessa criatividade, quando o Estado garante jurfdica e institucionalmente o direito de propriedade sobre a expresso criativa 2), Para efeitos deste trabalho, as formas bdsicas de propriedade intelec- tual sero, assim, definidas: (a) patente - direito tempordrio de excluir terceiros da produgao, uso ou venda de uma invengdo nova ¢ util ©, Invengdo deve ser entendida como formulagdo ou execucio de idéias que conduzem a solucao pratica de quest6es tecnolégicas. A patente para uma invencio é a garantia do direito de propriedade dado pelo Estado ao inventor, seus herdeifos Ou pessoa por ele indicada. A patente garante nao 0 direito de fazer, usar ou vender, mas 0 direito de excluir outros de fazer, usar ou vender uma invencao (4), (b) segredo comercial ou industrial - informagdo comercial ou indus- trial de valor que uma empresa ndo deseja compartilhar com terceiros ©), (c) direitos do autor - direito tempordrio de um autor ou de um artista, ou de seus herdeiros, de impedir que terceiros comercializem sua expressio criativa (6), Os direitos de autor protegem o trabalho de um autor contra c6- pias. Trabalhos literdrios, artfsticos, musicais, fotograficos, mapas, desenhos técnicos estao inclufdos nesta protegdo, a qual se aplica, também as gra- vacoes, apresentacao de artista, filmes, videos, e, ainda mais recentemente, € em alguns pafses, aos programas de computador. Direitos do autor consti- tuem a protecdo nao de idéias, mas de sua expressdo (7) Os direitos do autor protegem a forma de expressio e no o objeto da criagao artistico-inte- lectual®); 14 (d) marcas e desenhos industsiais - identificagdo exclusiva da origem de um produto ou servigo para distingui-los dos fabricados por outros pro- dutores ©, O direito de marcas pode ser usado para evitar que terceiros usem uma marca que possa levar 0 consumidor a confundi-la com outra si- milar, mas nao impede que outros possam fazer 0 mesmo produto ou vendé- lo sob uma marca que nio gere essa confuséo. As marcas podem ser tra- duzidas por palavras, desenhos, emblemas. Os desenhos industriais tradu- zem-se na forma, cor e linha de um objeto ornamental. Tanto a marca quanto os desenhos industriais so legalmente protegidos através de proce- dimento simplificado, que confere direitos menos abrangentes do que os concedidos as invengées através das patentes. A nogdo de que as expressdes criativas devem ser protegidas funda- menta-se em julgamento ético de justiga. O elemento ético envolve a idéia de que o direito individual de propriedade sobre bens imateriais e intangi- veis (as expressGes criativas) merecem tanta protecdo quanto 4 que é confe- rida a bens tangiveis. Uma das mais antigas fundamentagées da propriedade intelectual € a aplicagdo da teoria do direito natural 4 propriedade que se tem sobre as idéias. Essa justificativa do direito de propriedade intelectual teve seu 4pice, na Franca, no século XIX. Sendo a propriedade , em sua esséncia, uma ex- clusividade, 0 privilégio da exclusividade na exploragao da idéia é a ma- neira de a sociedade reconhecer esse direito de propriedade. A sociedade estaria, de acordo com essa abordagem, obrigada a reconhecer a_proprie- dade intelectual, por ser ela um direito natural do ser humano que desenvol- veu a nova idéia, Diversos autores, no entanto, rejeitam a teoria do direito natural apli- cado & propriedade intelectual. Seus criticos consideram que , para ser objeto do direito de propriedade, um bem deve ter a qualidade intrinseca e excludente de estar no domfnio de uma s6 pessoa; as idéias, por sua vez, uma vez divulgadas, escapam ao controle do autor e tendem a passar ao do- minio ptiblico 1, Ademais, como o autor de toda e qualquer expressao criativa utiliza livremente idéias passadas e presentes de terceiros, ele ndo pode exigir direitos exclusivos para sua criagdo, a ndo ser que devolvesse aos a originais aquilo que deles utilizou, o que € obviamente impossi- vel (1), A maior restrigdo aposta 4 adocdo dos princfpios do direito natural & Propriedade como fundamento para a propriedade intelectual deriva do fato de que, nesse caso, nao haveria qualquer razdo de natureza moral ou juridica para limitar-se esse direito no tempo (12), Um segundo fundamento da propriedade intelectual baseia-se na nogao de que 0 inventor ou criador tem 0 direito de ser recompensado por uma invengao/criagdo util & sociedade. A sociedade teria a obrigagéo de dar-Ihe essa recompensa, jd que dela usufruird. A forma mais adequada de 15 recompensa seria a concess40 de direito para usufruir com exclusividade de seu invento/criagao. Algumas criticas 4 essa fundamentacado argumentam que (a) essa re- compensa é dada unicamente a pessoa que registra a idéia, 0 que poder4 ser injusto com muitas outras pessoas que, embora em idéntica trilha intelec- tual, nao tiveram a sorte de registra-la ; e, (b) 0 nivel da recompens9. ‘0 prego que a sociedade paga pela criacdo/invencao, é de dificil avaliagio!3), Esses dois princfpios de ordem moral - aplicagdo da teoria do direito natural 4 propriedade intelectual e 0 direito de recompensa - sdo margi- nalmente considerados por autores modernos na fundamentagdo da pro- priedade intelectual. Sao argumentos de cardter econémico que, atual- mente, sustentam, para a maioria dos especialistas pesquisados, 0 direito de usufruir, com exclusividade, dos beneficios relacionados a propriedade so- bre a inven¢ao/criagao. Esses argumentos serio desenvolvidos no capitulo relativo a patentes, a expressio de propriedade intelectual objeto deste tra- balho. 1.2 - Evolucio histérica Histéria Antiga da Propriedade Intelectual A abordagem hist6rica da propriedade intelectual é parte da doutrina mais ampla de monopélios. O termo monopélio origina-se de vocdbulo grego usado por Aristoteles em Politica, em 347 AC, significando uma venda exclusiva (14), MonopGlios sio definidos por Coke como "an institution or al- lowance by the King, by his grant, commission, or otherwise, to any person or persons, bodies politic or corporate, of or for the sole buying, selling, making, working, or using anything; whereby any person or persons, bodies politic or corporate, are sought to be restrained of any freedom or liberty that they had before, or hindered in their lawful trade" ou "A monopoly is, when the sale of any merchandize or commodity is restrained to one or a certain number" (15), A primeira manifestagdo historicamente registrada de propriedade in- telectual teria ocorrido no ano 500 AC, quando Sybaris concedeu a grant of monopoly para encorajar a criacao artistica 6). Os mais remotos monopélios de que se tem registro foram praticados no Egito sob a forma de "monopélios reais" para fabricagao de tijolos e de papiro; ¢ entre os Fenicios, de moagem de trigo e de purpura (17). Em Roma prevalecia, em tese, 0 livre comércio, mas na pratica a ob- tengdo do direito exclusivo de venda era tao generalizado 18) que o Se- nado,na época do reinado de Tiberius, baixou decreto proibindo a venda exclusiva de produtos pelo sistema de cornering 19), No entanto, a neces- 16 sidade de aumentar a receita do Estado tornou os monopélios regra geral, estendendo-os, inclusive, a alimentos 2). Esses monopélios eram exerci- dos por indivfduos diretamente designados pelo Estado. No ano 483 D.C., essa prdtica passou a ser controlada por Edito do Imperador Zeno ao Pre- feito Pretoriano de Bizfncio: "That no one may presume to exercise a mo- nopoly of any kind of clothing or of fish or of any other thing serving for food or for any other use, whatever its nature may be, either on his own authority or under a rescript or an emperor already procured, or that may herafter be procured, or under an imperial decree or under a rescript sig- ned by our Majesty; nor may any person combine or agree in unlawful me- eting that different kinds of merchandize may not be sold at a less price than they may have agreed upon among themselves" 21), © Imperador Justi- niano (527-565 DC) manteve este conceito em seu Cédigo. Histéria Recente da Propriedade Intelectual Ha pois evidéncias de que concessdes dos direitos exclusivos para exercicio de comércio ou venda de produto ou uso de processo ocorreram, em diferentes épocas, em diversas partes do mundo @2). Tais concessdes eram um meio de premiar ou de indicar um favor . Na Europa, durante o século XIV, numerosos privilégios foram concedidos a inovadores. No sé- culo XV, em Veneza, torna-se sistematica a concessdo de privilégios de monopélio para inventores. Em 1443, Antonius Marini recebeu.a primeira patente de que se tem registro na Histéria moderna por sua invengdo de moinho de trigo operado por 4gua. Por um perfodo de 29 anos, em Veneza, esse tipo de moinho sé podia ser construfdo por Marini (23), Em 1474 , de acordo com o historiador romano Romanin, a Reptblica de Veneza, através do “Estatuto Veneziano" (24) concedia privilégios de dez. anos para os inventores de novas técnicas e mAquinas. Sob o “Estatuto", considerado por muitos autores "a primeira lei sobre patentes", foram oo entre 1475 e 1550, cem privilégios para invengGes industriais Veneza, no século XV, dispunha de um sistema de patentes conside- rado pelos especialistas de hoje como razoavelmente desenvolvido. A utili- dade e a novidade da invencg’o eram consideradas na concessio do privilé- gio, e ao inventor era exigido colocar sua invencdo em pratica dentro de um determinado prazo. No século XVI as patentes foram amplamente utilizadas por principes germAnicos. Augusto da Sax6nia, em particular, dedicou grande interesse as invengdes. Como a receita oriunda da prospec¢do mineral era essencial ao seu principado, Augusto incentivou a criagéo de métodos que tornassem mais eficientes a drenagem das minas, para 0 que concedeu diversos privilégios de patentes. 17 Hi indicagdes de que ptincipes germanicos j4 tinham definido uma “politica de patente” para invengdes numa época em que semelhantes politi- cas estavam apenas sendo introduzidas na Franga e na Inglaterra. Sistema Inglés de Propriedade Intelectual As patentes teriam sido originadas na Inglaterra como expressdo de uma politica dirigida 4 protegdo de inddstrias nascentes. Sua primeira mani- festagdo traduziu-se nas letters of protection para a exploracao de determi- nado setor produtivo. A primeira de que tem-se noticia foi concedida, em 1331, a John Kempe, de Flandres, assegurando-lhe e a seus aprendizes e aos fullers and dyers que desejassem estabelecer-se na Inglaterra “franchises as many and such as may suffice them" (28), Em 1440, por exemplo, foram concedidas uma letter of protection a John of Schiedame e a sua companhia para a introdugao, na Inglaterra, de um novo processo de produ¢ao de sal, e ,em 1452, aos mineiros da Bo&mia uma outra para que aprimorassem seus conhecimentos sobre “meliorem Scientiam in Mineriis" 27), As letters of protection foram substitufdas, no século XVI, por letters of patent, que conferiam privilégios de monopé6lio a seus detentores. Nos primérdios da Revolugdo Industrial, com as profundas alteragdes econémi- cas e sociais, tornou-se crescentemente necessdrio dar-se protegao as nas- centes atividades manufatureiras. Registrou-se, entdo, as primeiras referén- cias ao conceito de industria nascente e as formas para assegurar sua pro- tegdo. Nesse contexto, fortaleceu-se a nogdo de que para incentivar a criati- vidade haver-se-ia que organizar sistema de recompensa a inventividade. Afinal, a possibilidade de substituicao de importagdes por producao local de atividades protegidas constitui cenério ideologicamente vital ao mundo mercantilista de entao (28), Em 1552, Edward VI concedeu uma letter of patent considerada como a primeira patente com caracteristicas semelhantes as atuais. Um comer- ciante de Londres, Smyth, de acordo com os termos da patente, pretendia introduzir trabalhadores estrangeitas “mete and experte in the making of brode glass of like fasshion and goodnes to that which is commonly called Normandy glass which shall not only be a great commoditie to our said realme and dominions but also bothe in the price of the glasse aforesaid and otherwise a benefite to our subjectes and besydes that dyvers of theym may be sett to worke and gett their lyvyng and in tyme learne and be hable to make the said glass them selfe and so from tyme to tyme there to instructe the others in that science and feate". Smyth recebeu monopélio por 20 anos "to make any kynde of the said brode glass commonly wount to be called Normandy glass or any other fytte for wyndowes" 29). Na Inglaterra, a organizag4o da vida municipal e dos negécios era am- plamente baseada em cartas especiais, privilégios, franchises e licengas. E 18 patentes para inovagao nao eram facilmente distingufveis de outras pro- tegdes concedidas pela Coroa. Privilégios comerciais e privilégios indus- triais confundiam-se e eram apenas diferentes espécies do mesmo género. A partir de 1623, contudo, foi dado reconhecimento estatutério 4 patente para © inventor , como justificdvel monopélio, para ser distinguido de outros privilégios. Até cerca de 1570, 0 monopélio de patente era fundamentalmente con- cedido para encorajar a inovagio e a invengdo. Mais tarde, e mesmo quando © propésito de encorajar a introdugéo de novas técnicas ainda era um dos objetivos na concessio do monopélio, outras razdes tornaram-se mais de- terminantes, A premiagao de favoritos, 0 incentivo a lealdade, a obtengao de receita para a Coroa, a necessidade de estabelecer-se controle central sobre a industria tornaram-se razdes preponderantes na concessio de privilégios, sobretudo, nos reinados de Elizabeth I (1558- 1603) e James I (1603-1625). No reinado de Elizabeth I foram concedidos 55 privilégios de mono- polio, relacionados com a produgao de sabao, de dleo, de couro, de maqui- nas de moagem, de sal, de vidros, de copos de vidro e de papel para escre- ver, entre outros. A concessao de patentes para encorajar a industria e o bem-estar pui- blico fazia parte das prerrogativas reais, mas 0 estabelecimento de mono- P6lios em oposigao ao interesse publico era uma violagdo da common law. Assim, embora muitas das patentes de Elizabeth I pudessem ter sua legali- dade contestada, evitava-se fazé-io para nao afrontar a soberana. Em 1601, contudo, a Camara dos Comuns reagiu a alguns dos monopélios concedidos por Elizabeth I, obrigando a que a Rainha tomasse a si a iniciativa de refor- mar 0 sistema, abolindo os mais controversos e submetendo os demais ao preceitos da common law. A incapacidade de James I de manter suas concessdes de monopélio nos limites da common law resultou no estabelecimento do Estatuto do Monopélio, em 1623. Por esse Estatuto, os monopélios foram declarados nulos sob a common law, tendo-se definido que eventuais danos que hou- vessem causado seriam compensados. Alguns autores consideram esse Es- tatuto como a Carta Magna dos direitos dos inventores, ndo porque tenha originado a patente, mas por ser a primeira lei geral de um Estado moderno a estabelecer o principio de que somente ao primeiro e verdadeiro inventor de um novo produto deveria ser concedido 0 monopélio de patente. O Es- tatuto dos Monopélios 3°) € a base da atual lei inglesa sobre patentes e as- cendente direto da legislagdo em vigor nos Estados Unidos. Sistema Francés de Propriedade Intelectual Na Franca, os primérdios da_histéria da patente fundamentaram-se no arbitrio e no favor da monarquia. Como no resto da Europa medieval, a vida econémica e politica francesas organizava-se em bases corporativas. Os in- 19 dividuos viviam € trabalhavam como parte, e sob os regulamentos, de cor- poracdes municipais, - gilds artesis, e gilds de comerciantes - que eram, em diferentes graus, regulamentadas pela Coroa. A importancia das corpo- ragdes variava de acordo com cada setor, mas 0 controle que exerciam so- bre as atividades comerciais e industriais era reforgado e ampliado pela ago da Coroa, que as utilizava para ampliar 0 escopo do efetivo exercicio da autoridade real. Até 1762, contudo, nao havia uma politica que distinguisse os privilé- gios dos inventores dos demais favores legitimados pela Coroa. Naquele ano , um édito do Rei delineou, pela primeira vez, regras para a concesséo de privilégios de invengdes. O perfado de duragao dos privilégios foi limi- tado a quinze anos; foram definidas restrigGes quanto a heranga, passou-se a ser requerida prova de utilidade ; e, estabeleceu-se a obrigatoriedade de se explorar a patente. Esse édito, na verdade, visava a limitar eventyais abusos na concessdo dos privilégios, mais que a encorajar os inventores‘”*’, A oposigao aos rigidos regulamentos de monopé6lios e 0 controle sobre a industria cresceu, na Franga, durante 0 século XVIII. Em 1776, as corpo- racdes foram suprimidas pelo edito de Turgot, logo anulado e seu autor demitido da fung4o de Controleur Général des Finances. Foi somente com a Revolugao de 1789 que aboliram-se os regulamentos das corporagoes e as restrig6es ao livre comércio e a industria. Em 7 de janeiro de 1791, foi esta- belecido um estatuto sobre patentes, com base nos princfpios do Estatuto dos Monopélios britdnico. A lei francesa incorporou o principio do direito natural de propriedade do inventor sobre sua invengao. Sistema Norte-Americano de Propriedade Intelectual Os primeiros registros de concessao de patentes nos Estados Unidos temontam a meados do século XVII. Massachussetts foi a primeira colénia, em 1641, a conceder uma patente. Samual Winslow obteve direito exclusivo para, por 10 anos, explorar determinado processo de produgdo de sal. A patente, ao contrdrio do que ocorria na Inglaterra na mesma época, nao im- pedia que se produzisse sal por outros processos. Além de Massachus- setts, somente Maryland e South Carolina concederam patentes durante 0 perfodo colonial 32), A partir de 1780, os Estados da Pennsylvania, New York, Delaware, Connecticut e New Jersey passaram a conceder patentes para invenc6es, com 0 objetivo de incentivar a inddstria local. Em 1787, quando teve infcio a Convengao Constitucional, j4 se fazia sentir a necessidade de um sistema centralizado de patentes, que resolvesse os conflitos resultantes das dife- rentes leis estaduais 63), E de particular registro 0 fato de que os 55 delegados 4 Convengao Constitucional, na maioria advogados, aprovaram por unanimidade o prin- cipio da propriedade intelectual e 0 consagraram na Constitui¢ao promul- 20 gada em 1788 G4). Em seu Artigo I, Secgdo 8, pardgrafo 8, a Carta Magna deu ao Congresso 0 poder “to promote the progress of science and useful arts by securing for limited times to authors and inventors the exclusive rights to their respective writings and discoveries". Em 10 de abril de 1790, o Presidente George Washington promulgou a primeira lei federal sobre patentes. Segundo Foreman, esta teria sido a pri- meira vez na Hist6ria em que foi reconhecido 0 direito intrinseco de um in- ventor usufruir de sua invengdo. Os privilégios até entéo concedidos a um inventor dependiam da prerrogativa do monarca ou de um ato especial da legislatura G5), 1.3 - Controvérsia sobre Patentes no Século XIX No infcio do século XIX, Inglaterra, Franga e Estados Unidos dispu- nham de sistemas de patentes firmemente estabelecidos. Em dois desses - Franga e Estados Unidos -, apesar de as leis serem recentes, as praticas nas quais se baseavam tinham origem em passado remoto. Nessa €poca, varios outros pafses passaram a adotar leis sobre proprie- dade intelectual. O antigo sistema de privilégios foi dando lugar a sistemas baseados em leis estatutdrias. O Brasil estabeleceu sua primeira lei sobre privilégios de invengées em 1809. O Império Austro-Hungaro em 1810 6). A Russia em 1812, Prissia em 1815, Bélgica e Holanda em 1817, Espanha em 1820, Bavaria em 1825, Sardenha em 1826, Vaticano em 1833, Suécia em 1834, Wurttem- berg em 1836, Portugal em 1837 e a Sax6nia em 1843. O periodo que seguiu 4 Revolugdo Francesa e As Guerras Napole6nicas foi de estabilidade politica na Europa, ¢ a paz, dentre outros fatores, propi- ciou grande crescimento da atividade econémica, com a conseqiente inten- sificagdo dos fluxos comerciais. O comércio e a industria tiveram grandes avancos, as relagdes econémicas entre os paises tornaram-se mais estreitas € mais complexas, passando a Ser percebida a necessidade de cooperagao in- ternacional em matérias tais como patentes. No que diz respeito as f6rmulas para garantir a protecao de patentes, duas forgas operavam em diregdes opostas. De um lado, a atividade indus- trial nos pafses mais avangados conduzia inventores e empresérios a exigi- rem melhor protegao de patente, forgando a adogao de regras e sistemas coadunantes nos paises periféricos. De outro, a amplitude dos mercados, a diversidade e 0 volume do comércio internacional e 0 desenvolvimento econémico, enfim, cristalizavam a divisdo internacional do trabalho, fa- zendo aumentar 0 movimento pelo livre comércio, e tornando mais visiveis Os aspectos restritivos e de monopélio dos principais sistemas de patentes. Em toda a Europa travou-se, entéo, ampla batalha politica e jurfdica sobre o sistema de patentes. Reformas favordveis aos inventores eram rei- 21 vindicadas nas leis inglesa e francesa. A criagdo de lei sobre patentes pas- sou a ser exigida na Suiga e na Alemanha. Essas presses geraram viva opo- sicéo dos liberais, defensores do livre comércio, e que se opunham 4s res- trigdes criadas pelas patentes. Um forte movimento pela completa aboligao do sistema de patentes cresceu em muitos paises. Mas ao final desse pro- cesso, apenas na Holanda se aboliu, em 1869, a legislagdo de patentes ado- tada em 1817, a qual foi restabelecida apenas em 1910. O movimento generalizado contra 0 sistema de patentes desapareceu no ultimo quarto de século XIX to subitamente quanto havia comegado. Seu enfraquecimento € associado 4 depressio de 1873, e ao crescimento do nacionalismo e do protecionismo em muitos pafses no final do século pas- sado. A controvérsia sobre patentes que se manifestara com maior énfase na Alemanha, deixou de existir imediatamente apés a reunificagao alema em 1871, € sistema de patentes nacional foi adotado pelo Reich em 1877. Na Suga, com longa tradicao de livre comércio, a controvérsia ganhou especial vigor. Como a Constitui¢géo Sufga proibia que o governo federal estabelecesse um sistema de patente, foram realizados_plebiscitos sobre 0 tema, em 1866 e em 1882. Seus resultados impediram leis que protegessem a propriedade industrial. Somente no plebiscito de 1887 autorizou-se 0 es- tabelecimento de tal protegao. Pelo fato de a controvérsia na Suiga ter tido contornos econ6micos e politicos semelhantes ao contencioso comercial entre Brasil e Estados Unido, objeto do capitulo IV, o caso merece, para o presente trabalho, deta- Ihamento adicional. Duas das mais importantes indtistrias suigas de entdo - a quimica e a téxtil - eram fortemente contrérias a introdugao de patentes, pois em ambos 0s casos as patentes tornariam mais onerosa a utilizagdo, no pais, de processos desenvolvidos em outros paises. A lei de patentes suiga, quando adotada, excluiu do dircito de protegdo todos os processos de fabri- cago, inclusive os processos quimicos. A indtstria quimica alema, setor que mais forie pressdo vinha fazendo em favor da adogao de uma legislago de patentes na Sujga, nao se satisfez com a lei adotada naquele pafs. Assim, nas negociagées bilaterais de comércio e tarifas, em 1904, a Alemanha voltou a insistir com a Suiga para que mudasse o sistema legal com que tra- tava a matéria, definindo inclusive sangGes retaliatérias de aumento das tari- fas de importagdo de coal-tar proveniente da Sufga, caso a lei suiga sobre patentes ndo fosse modificada até 31 dezembro de 1907. A lei foi modifi- cada em junho de 1907 e a cldusula que impedia 0 patenteamento de proces- sos de fabricacao retirada. Essa controvérsia sobre patentes no século XIX demonstra que 0 di- reito exclusivo conferido pela propriedade intelectual sobre bens intangiveis apresenta caracteristicas especiais, dentre as quais destaca-se a necessidade de estabelecer-se um equilfbrio entre 0 direito do inventor de usufruir com exclusividade de sua invengdo (monopélio) e o direito da sociedade de se beneficiar da invengdo sem qualquer entrave (livre comércio). 22 Apesar de a grande maioria de paises ter adotado, no século XIX e XX, legislag6es nacionais sobre propriedade intelectual, 0 debate sobre os bene- ficios econ6micos do sistema permanece agora circuascrito a determinados aspectos do escopo da protecao conferida, Citando Penrose, somente dentre os advogados h4 unanimidade sobre a propriedade intelectual, enquanto que os economistas continuam a debater os pré € os contra de sua aplicagio 7), Os argumentos a favor e contra o sistema de proteg4o a propriedade intelectual sero detalhados no capitulo referente a patentes. II - SISTEMA INTERNACIONAL DE PROPRIEDADE INTELECTUAL O sistema internacional de propriedade intelectual é constitufdo por complexa estrutura de leis e costumes nacionais, acordos e praticas interna- cionais, e de convengées e acordos intergovernamentais. Essa rede de leis e prdticas forma um sistema latu sensu, pois nao hé uniformidade no escopo, hem mesmo no propésito das diferentes leis nacionais sobre propriedade intelectual, apesar de os acordos internacionais terem eliminado as diver- géncias mais profundas. 2.1. Convengées Internacionais sobre Propriedade Industrial Simultaneamente a adog4o por diferentes paises, ao longo do século XIX, de legislagdes nacionais sobre propriedade intelectual, cresceu a de- manda pela adogao de regulamentos internacionais da matéria. Ainda que adotadas com 0 mesmo propésito, as leis nacionais variavam considera- velmente nos seus dispositivos. A definigao, por exemplo, do que era con- siderado patente4vel diferia entre as diversas legislagdes nacionais: uma in- ven¢do poderia ter sua patente obtida num pais e nao ter em outro, 0 que ocorria, de modo especial, no referente a remédios, alimentos e produtos quimicos. Advogados especializados em patentes e industriais uniram-se para obter uma legislagdo internacional, que unificasse a prote¢do concedida a bens imateriais, tomnando-a mais uniforme. 2.1.1 - Congresso de Viena A primeira conferéncia para considerar a protegéo de invento- tes/criadores em escala internacional realizou-se em Viena em 1873. Uma exposicao internacional, sob os auspicios do governo austro-htingaro, seria tealizada naquele ano, € os inventores de alguns pafses, particularmente dos Estados Unidos, temiam que suas invengdes fossem inadequadamente pro- 24 tegidas pela lei austriaca. Os Estados Unidos assumiram, entdo, a lideranga das pressdes para que a Austria Protegesse de maneira adequada as in- vengdes apresentadas na mostra, e, ademais, revisasse sua lei de patentes, dando maior protegdo as patentes estrangeiras em geral. O governo norte- americano chegou a ameacar de no participar da exposig40, caso a lei nao fosse modificada. O governo austriaco aprovou, entdo, uma lei especial, protegendo as invengées exibidas naquela mostra. Ainda por sugestéo dos EEUU, foi acordada a realizado de uma conferéncia internacional sobre re- forma do sistema de patentes, imediatamente apés 0 encerramento da expo- sigdo ), Assim, a primeira conferéncia internacional sobre patentes teve lugar enquanto era ainda muito viva a controvérsia por toda a Europa entre forgas favor4veis e contra a protegao de patentes 2), Apesar de representantes de 13 paises terem participado dessa confe- réncia, a reunido nao teve cardter oficial @) Dentre os 158 delegados par- ticipantes, destacavam-se industriais e inventores alemdes, cujas opinides divergentes quanto a legislagdo sobre patentes ficaram refletidas nas atas da conferéncia. As resolugGes adotadas foram de cardter geral, mas todas endossavam 0 princfpio da protegdo de patentes. A primeira resolugdo apresentava sete raz6es pelas quais "a protegdo das invengGes deveria ser garantida pelas leis de todas as nagées civilizadas sob a condig&o de uma completa divulgagao da mesma" @). A mais importante decisdo da conferéncia foi o pardgrafo (F) da segunda resolugdo, pelo qual, apesar de forte oposigao dos Estados Unidos, foi recomendado “o licenciamento compulsério de patentes" (autorizagao que o Estado concede a terceiros para explorar patente, caso 0 titular do privilégio nao tenha iniciado a exploracado da patente de modo efetivo no pafs) “nos casos de interesse piblico". A conferéncia decidiu, ainda, que os governos deveriam adotar, 0 mais cedo possivel, um acordo internacional sobre propriedade intelectual. Foi, ento, criado um comité preparat6rio para continuar o trabalho dessa primeira confer€ncia interna- cional. Cinco anos depois, foi convocada a conferéncia que viria estabelecer as bases desse acordo internacional. 2.1.2 - Conferéncia de Paris de 1878 Sob os auspicios do governo francés, e , como em Viena, vinculada a uma exposi¢ao internacional, realizou-se a Confer€ncia de Paris, com quase 500 participantes, dentre os quais onze delegados governamentais, delega- dos de 48 cAmaras de comércio e sociedades industrias e técnicas. Ainda que promovida pelo governo francés e com a presenga de representantes gover- namentais, essa conferéncia , assim como a de Viena, no teve cardter ofi- cial. Enquanto em Viena se havia registrado a predominincia dos represen- tantes alemaes, em Paris, trés quintos dos delegados eram franceses.

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