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JAMES CLIFFORD 20° A EXPERIENCIA ETNOGRAFICA antropologia e literatura no século XX oo 9 Organizagao e revisao técnica de José Reginaldo Santos Gongalves 34 EDIGAO Epitora UFRJ 2008 Copyright 1994 © by James Clifford, 1994. Ficha Catalografica elaborada pela Divisio de Processamento Técnico SIBI/UFRJ Clifford, James. C57e A experincia etnografica: antropologia e literatura no século XX James Clifford; organizado por José Reginaldo Santos Goncalves. 3. ed. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2008. 282 p.; 14 X 21 cm. 1. Goncalves, José Reginaldo Santos. 2. Antropologia. 3. Etnografia. I. Titulo. CDD 305.8 ISBN 978-85-7108-213-7 1* edigdo 1998 28 edi¢ao 2002 Tradugao Patricia Farias Revisao da traducao José Reginaldo Santos Goncalves Edigao de texto Cecila Moreira Revisdo Ana Paula Mathias de Paiva Joao Sette Camara (3# edicdo) Maria Beatriz Guimaraes Maria Teresa Kopschitz de Barros Capa Adriana Moreno Projeto grafico e editoragao eletrénica Marisa Araujo Universidade Federal do Rio de Janeiro Forum de Ciéncia e Cultura Editora UFRJ Ay, Pasteur, 250/sala 107 - CEP: 2295-902 Praia Vermelha — Rio de Janeiro Tel. e fax: (21) 2295-1595 r. 111, 124.a 127 (21) 2542-7646 e 2295-0346 http://www.editora.ufrj.br Apoio Teen Ssedettoe SOBRE A AUTOMODELAGEM ETNOGRAFICA: Conrad e Malinowski [...] a época em que estamos acampados, como viajantes perplexos num hotel vistoso ¢ agitado." Joseph Conrad, Vitéria Toda a minha ética estd baseada no instinto fundamental de uma personalidade unificada. Bronislaw Malinowski, Didrio de campo de Trobriand. Dizer que o individuo é culturalmente constituido tornou-se um truismo. Estamos acostumados a ouvir que a pessoa em Bali ou entre os hopi ou na sociedade medieval é diferente — com experiéncias diferentes de tempo, espago, parentesco e identidade corporal — do indivfduo na Europa burguesa ou na América moderna. Assumi- mos, quase sem questionamento, que um “eu” pertence a um mundo cultural especifico, tanto quanto fala uma lingua nativa: um “eu”, uma cultura, uma lingua. Nao quero contestar a dose considerdvel de verdade contida mesmo numa férmula téo esquemdtica; a idéia de que a individualidade estd articulada no interior de mundos de significagao que sio coletivos e limitados nao esté em questao. Quero, contudo, historicizar a afirmagao de que o “eu” é cultural- mente constitufdo, examinando um momento por volta de 1900, quando esta idéia comecou a assumir o sentido que tem hoje. Em meados do século XIX, dizer que o individuo estava en- volvido pela cultura significava algo bem diferente do que significa hoje. A “cultura” se referia a um tinico proceso evolucionério. O ideal da Europa burguesa de uma individualidade auténoma era amplamente considerado como o resultado natural de um longo © A EXPERIENCIA ETNOGRAFICA desenvolvimento, um processo que, embora ameagado por varias disrupgdes, era visto como o movimento bdsico e progressivo da humanidade. Na virada do século XIX para o XX, porém, a con- fianga evolucionista comecou a ratear, e uma nova concep¢ao etno- grdfica de cultura tornou-se possfvel. A palavra comegou a ser usada no plural, sugerindo um mundo com modos de vida separados, distintos e igualmente significativos. O ideal de um sujeito auté6- nomo e cultivado podia aparecer como um projeto local, nao como um felos para toda a humanidade.? As causas subjacentes desses desenvolvimentos ideoldgicos esto além dos objetivos deste texto.* Quero apenas chamar a aten- Ao para o desenvolvimento, no inicio do século XX, de uma nova “subjetividade etnogrdfica”. A antropologia moderna — uma ciéncia do homem intimamente relacionada 4 descri¢ao cultural — pressu- punha uma atitude irénica de observacao participante. Ao profissio- nalizar o trabalho de campo, a antropologia transformou uma situagao amplamente difundida num método cientifico. O conhe- cimento etnogréfico nao podia ser propriedade de qualquer discurso ou disciplina; a condic&o de descentramento num mundo de dis- tintos sistemas de significado, uma situacao de estar na cultura e ao mesmo tempo olhar a cultura, permeia a arte e a escrita do século XX. Nietzsche anunciou claramente a nova atitude em seu famoso fragmento “on truth and lie in an extra-moral sense”, ao perguntar: “O que é a verdade, portanto? Um batalhao mével de metéforas, metonimias, antropomorfismos, enfim, uma soma de relagdes hu- manas que foram enfatizadas poética e retoricamente, transpostas, enfeitadas, e que, apéds longo uso, parecem a um povo sélidas, ca- nénicas e obrigatérias” (apud Kaufman, 1954, p. 46). Nietzsche, talvez mais do que Tylor, foi o principal inventor da idéia relativista de cultura: o presente texto bem poderia se chamar “A verdade e a mentira em um sentido cultural”. Ao invés disso, retirei 0 titulo deste ensaio do livro de Stephen Greenblatt, Renaissance self-fashioning, um estudo que focaliza um sentido emergente, burgués, mével e cosmopolita do “eu”. A sub- jetividade etnogrdfica que aqui me ocupa pode ser vista como uma variante recente. Personagens do século XVI, tais como More, o 94 96 SOBRE A AUTOMODELAGEM ETNOGRAFICA... ° Spenser, Marlowe, Tundale, Wyatt e Shakespeare, exemplificam, para Greenblatt, “uma intensa auto consciéncia em relagdo 4 forma- gao da identidade humana enquanto um processo manipuldvel, artisticamente construfdo” (1980, p. 2). Nao posso fazer justiga as sutis e persuasivas andlises que o livro oferece, mas quero subli- nhar a prépria posicfo etnogréfica de Greenblatt, a complexa ati- tude que ele mantém em relacdo a “eus” modelados, incluindo o seu proprio. Ele reconhece em que medida recentes questées quanto a liberdade, a identidade e a linguagem tém moldado a verséo que ele constréi da cultura do século XVI. Ele importa uma perspectiva critica moderna para seu material. Ainda assim, escreve também co- mo alguém nas malhas de uma tradi¢éo ao mesmo tempo que fiel a ela. Ele expressa, num epflogo emocionante, sua teimosa adesio a possibilidade de se moldar a prdépria identidade, mesmo que isso se refira apenas a “um eu concebido como uma ficgao” (ibid., p. 257). Ele é levado ao que Conrad aprovatimamente chama de “uma crenga deliberada”. Greenblatt é um analista-participante, construindo e se enga- jando numa formacao cultural que é ao mesmo tempo distanciada no século XVI e dialeticamente continua em relacdo ao presente. Sua “tardia”, reflexiva versio da automodelagem (sel/f-fashioning) renascentista repousa num ponto de vista etnogréfico nitidamente articulado. O eu modelado, ficcional, é sempre situado com referén- cia 4 sua cultura e modos codificados de expressao, 4 sua linguagem. O estudo de Greenblatt conclui que a automodelagem renascen- tista era tudo, menos a incontida emergéncia de uma nova autonomia individualista. A subjetividade que ele encontra “nao é uma epifania da identidade livremente escolhida, mas um artefato cultural” (ibid., p. 256), pois o eu se movimenta dentro de limites e possibilidades que resultam de um conjunto institucionalizado de praticas e cddi- gos coletivos. Greenblatt recorre 4 antropologia simbélico-interpre- tativa, particularmente ao trabalho de Geertz (e também Boon, Douglas, Duvignaud, Rabinow e Turner); e ele sabe, além disso, que os sim- bolos e performances culturais ganham forma em situag6es de poder edominagao. Ouvem-se ecos de Foucault na adverténcia de Greenblatt: “O poder de impor uma forma sobre si mesmo é um aspecto do o 95 9 & A EXPERIENCIA ETNOGRAFICA poder mais geral de controlar a identidade — a de outros, pelo menos tanto quanto a prépria’ (ibid., p. 1). Segue-se que o discurso etnogréfico, incluindo a variante literéria de Greenblatt, funciona dessa dupla forma. Embora ele retrate outros eus como cultural- mente constitufdos, ele também modela uma identidade autori- zada a representar, a interpretar, e mesmo a acreditar — mas sempre com alguma ironia — nas verdades de mundos discrepantes. A subjetividade etnogrdéfica € composta pela observacao par- ticipante num mundo de “artefatos culturais” ligado (e é esta a originalidade da formulacao de Nietzsche) a uma nova concepgio de linguagem — ou melhor, linguagens —, vista como distintos sis- temas de signos. Juntamente com Nieztsche, os pensadores que delimitam esse meu campo de exploragdo sao Boas, Durkheim e Malinowski (inventores e popularizadores da idéia etnogrdfica de cultura) e Saussure. Eles inauguram um conjunto interconectado de teses que esto agora, no ultimo quarto do século XX, precisa- mente tornando-se vis{veis. Um especialista em histéria intelectual, no ano de 2010, se tal pessoa é imaginavel, pode mesmo olhar para os primeiros dois tergos de nosso século e observar que este foi um tempo no qual os intelectuais ocidentais estavam preocu- pados com contextos de significado e de identidade que eles chama- vam de “cultura” e “linguagem” (do mesmo modo como agora olhamos para o século XIX e |4 percebemos uma problematica preocupacao com a “histéria” e 0 “progresso” no sentido evolucio- ndrio). Penso que estamos vendo sinais de que o privilégio dado as linguagens naturais e, de forma semelhante, as culturas naturais estd se dissolvendo. Estes objetos e contextos epistemoldgicos aparecem agora como construgées, ficgdes adquiridas, contendo e domesti- cando a heteroglossia. Num mundo com demasiadas vozes falando ao mesmo tempo, um mundo onde o sincretismo e a invengao parddica estfo se tornando a regra, e nao a excec¢do, um mundo urbano, multinacional, de transitoriedade institucional — onde roupas americanas feitas na Coréia sao usadas por jovens na Russia, onde as “rafzes” de cada um so em algum grau cortadas —, num tal mundo torna-se cada vez mais dificil atribuir identidade humana e significado a uma “cultura” ou “linguagem” coerentes. o 96 oO SOBRE A AUTOMODELAGEM ETNOGRAFICA... Evoco esta situa¢ao sincrética, “pés-cultural”, apenas para apontar para a posi¢ao (embora ela nao possa ser tao facilmente espacializada), para a condicao de incerteza a partir da qual escrevo. Mas minha preocupacao nao é com a possfvel dissolugio de uma subjetividade ancorada na cultura e na linguagem. Ao invés disso, quero explorar duas poderosas articulagées dessa subjetividade nas obras de Conrad e Malinowski, duas pessoas “deslocadas”, as quais estiveram as voltas, no inicio do século XX, com 0 cosmopolitismo € compuseram suas préprias versdes de “Sobre a verdade e a mentira em um sentido cultural”. Conrad pode ser visto como mais pro- fundamente comprometido com o tema, pois ele articulou em sua obra uma viséo da natureza construfda da cultura e da lingua- gem, uma ficcionalidade séria que ele deliberadamente, quase ab- surdamente, assumiu. Mas um embate compardvel com a cultura ea linguagem pode ser visto na obra de Malinowski, particular- mente na dificil experiéncia e representagao literdria de seu famoso trabalho de campo nas ilhas Trobriand. (Esse trabalho de campo serviu como uma espécie de carta fundadora da disciplina da antro- pologia no século XX.) Conrad realizou o feito quase impossivel de se tornar um grande escritor (seu modelo era Flaubert) da lingua inglesa, uma terceira lingua que ele comecou a aprender aos 20 anos de idade. Nao é surpresa encontrar, ao longo de sua obra, um sentido simultaneo de artificio e necessidade das convengdes culturais e lingiifsticas. Sua vida dedicada a escrever, a tornar-se cons- tantemente um escritor-de-I{ngua-inglesa, oferece um paradigma para a subjetividade etnogréfica; ela encena uma estrutura de senti- mento continuamente envolvida na traducao entre linguas, uma consciéncia profundamente ciente da arbitrariedade das conven- des, um novo relativismo secular. Malinowski assinalou: “[W. H. R.] Rivers € o Rider Haggard da antropologia: eu serei o Conrad!” (para B. Z. Seligman, apud Firth, 1957, p. 6). Ele provavelmente tinha em mente a diferenga entre a metodologia de survey multicultural de Rivers (coletando tragos e genealogias) e seu préprio intenso estudo de um tinico grupo. Para Malinowski, o nome Conrad era um simbolo de pro- fundidade, complexidade e sutileza. (Ele 0 invoca neste sentido no didtio de campo.) Mas Malinowski nao era o Conrad da antro- o 97 0 © A EXPERIENCIA ETNOGRAFICA pologia. Seu modelo literdrio mais direto era certamente James Frazer, e em muito de sua prépria escrita ele lembrava Zola, um naturalista apresentando fatos juntamente com uma intensa “atmosfera”, suas descrigées cientifico-culturais levando a alegorias humanistas mo- ralmente carregadas. A antropologia ainda estd esperando por seu Conrad. Minha comparacao entre Malinowski e Conrad focaliza a dificil ascenséo de ambos & expresso profissional inovadora. Heart _ of darkness (O coragéo das trevas) éa mais profunda reflexao de Conrad_ sobre ° dificil processo de se entregar 4 Inglaterra e ao inglés 5O livro foi escrito em 1898-1899, assim que ele decisivamente adotou a confinada vida de escritor; nesse texto, Conrad olha para 0 inicio do processo, sua Ultima e mais audaciosa viagem até o “mais distan- te ponto de navegacao”. Na viagem pelo Congo, uma década antes, Konrad Korzeniowski havia levado com ele os capitulos iniciais de seu primeiro romance, Almayer’ Folly, escrito num desajeitado porém vigoroso inglés. Minha leitura de O coragdo das trevas abrange uma complexa década de escolha, os anos 1890, comecando com a viagem a Africa e terminando com sua narracao. A escolha envolvia carreira, linguagem e comprometimento cultural. A experiéncia para- lela de Malinowski é demarcada por duas obras, que podem ser tratadas como um tnico texto expandido: A diary in the strict sense of the term (Um didrio no sentido estrito do termo*) (1967), seu did- rio intimo sobre Trobriand, de 1914 a 1918, e a cldssica etnografia que resultou de seu trabalho de campo, Os argonautas do Pacifico Ocidental (1922). Logo de inicio, é necessdria uma palavra de cautela metodo- ldgica. Tratar conjuntamente 0 Didrio e Os argonautas nao precisa implicar que o primeiro seja uma verdadeira revelagao sobre o tra- balho de campo de Malinowski. (Este foi o modo como o Didrio foi de forma geral entendido quando de sua publicagio em 1967.) A experiéncia de campo em Trobriand nao se esgota em Os argo- nautas, nem no Didrio, nem na combinacao de ambos. Os dois tex- tos sao refracdes parciais, experimentos especificos com a escrita. Escrito em grande parte em polonés e com a clara intengao de nao ser publicado, 0 Didrio causou um pequeno escandalo em relacao o 98 © SOBRE A AUTOMODELAGEM ETNOGRAFICA... 4 imagem publica da antropologia — ainda que pesquisadores de campo reconhegam muito daquilo que foi escrito como familiar. Um dos fundadores da disciplina era visto sentindo uma raiva con- siderdvel de seus informantes nativos. Uma experiéncia de campo que estabelecera o padrao para a descricao cultural cientifica estava atravessada pela ambivaléncia. Um antropdlogo com tanta autori- dade aparece em seu didrio intimo como um hipocondrfaco auto- centrado, freqiientemente deprimido, presa constante de fantasias a respeito das mulheres européias e trobriandesas, envolvido numa intermindvel luta para manter sua autoconfianga, para se manter coerente. Ele era mercurial, experimentando diferentes vozes e per- sonae, A anguistia, a confusao, a exultacao e a raiva do Didrio pare- ciam deixar pouco espago para a postura est4vel e compreensiva da etnografia relativista. Além disso, em sua crueza e vulnerabilidade, sua inquestiondvel sinceridade e sua natureza inconclusa, 0 Didrio parecia expor uma realidade sem disfarces. Mas esta é apenas uma importante versio de uma complexa situacao intersubjetiva (que tam- bém produziu Os Argonautas e outros relatos etnograficos e popu- lares). O Didrio é um inventivo texto polifénico. E um documento crucial para a histéria da antropologia, nao porque revela a realidade da experiéncia etnogrdfica, mas porque nos forca a enfrentar as complexidades de tais encontros e a tratar todos os relatos textuais baseados em trabalho de campo como construgées parciais.’” o 9 9% Malinowski e Conrad se conheciam, e hd evidéncias nos co- mentdrios de Malinowski sobre o escritor, mais velho e j4 famoso, de que ele sentia uma profunda afinidade entre seus dilemas. Com razio: ambos eram poloneses condenados pela contingéncia histé- rica a uma identidade européia cosmopolita; ambos desenvolviam ambiciosas carreiras como escritores na Inglaterra. Com base nos excelentes estudos de Zdizlaw Najder sobre Conrad, pode-se espe- cular que os dois exilados partilhavam uma distancia cultural pecu- liarmente polonesa, tendo nascido numa nado que havia existido, desde o século XVIII, apenas como uma ficgao, mas uma ficc4o intensamente acreditada e séria — de identidade coletiva. Além o 99 © A EXPERIENCIA ETNOGRAFICA disso, a peculiar estrutura social da Polénia, com sua numerosa pequena nobreza, fez com que os valores aristocrdticos se tornassem incrivelmente evidentes em todos os nfveis da sociedade. Os cultiva- dos exilados da Polénia nao pareciam particularmente atraidos pelos valores burgueses reinantes na Europa; eles manteriam uma certa reserva. Este ponto de vista externo a sociedade burguesa (mas man- tido com um certo grau de artificio — mais parecido com a posigao de Balzac na Franga dos anos 1830) talvez seja uma posicao “etno- grdfica” particularmente vantajosa. Seja como for, nao ha dtivida sobre a forte afinidade de Malinowski em relacao a Conrad (pouco antes da guerra, Malinowski o presenteou com uma cépia de seu pri- meiro livro, The family among the Australian aborigines, com uma dedicatéria em polonés; 0 que Conrad fez com as nogées arunta de paternidade permanece, felizmente talvez, desconhecido). Embora a relaco entre ambos tenha sido breve, Malinowski freqiientemen- te representava sua vida em termos conradianos, e em seu didrio ele parecia as vezes estar reescrevendo temas de O coragéo das trevas. Quase todo comentador do Didrio tem comparado o livro, de forma plausfvel, ao conto africano de Conrad (ver, por exemplo, Stocking Jr., 1974). Tanto O coragdo das trevas quanto o Didrio parecem retratar a crise de uma identidade — uma luta, nos confins da. civilizag4o ocidental, contra a ameaca de uma dissoluc4o moral. Na verdade, esta luta e a necessidade de se estabelecerem limites pes- soais s4o um lugar-comum da literatura colonial. Assim, o paralelo nao € particularmente revelador, a nao ser por mostrar a vida (0 Didrio) imitando a “literatura” (O conagéo das trevas). Além de mostrar a de- sintegracao moral de Kurtz, no entanto, Conrad introduz um tema mais profundo e subversivo: a famosa “mentira” — na verdade uma sé- rie de mentiras que em O coragéo das trevas tanto solapa quanto de alguma forma fortalece a complexa verdade da narracéo de Marlow. A mais proeminente destas verdades é, claro, a recusa de Marlow em contar 4 noiva de Kurtz suas tltimas palavras, “O horror”, substituin- do-as por palavras que ela pudesse aceitar. Esta mentira é ento jus- taposta Aquela verdade — também altamente circunstancial — contada a um restrito grupo de ingleses no deck da escuna Nellie. O desor- denado Didrio de Malinowski parece encenar o tema da desin- tegracio. Mas e o tema da mentira? O relato inteiramente crivel? 2 100 9° SOBRE A AUTOMODELAGEM ETNOGRAFICA... Minha tese é a de que a ficcao salvadora de Malinowski é sua etnografia classica Os argonautas do Pacifico Ocidental. O coragéo das trevas é notoriamente interpretavel; mas um de seus temas inescapaveis é 0 problema de se falar a verdade, 0 jogo de verdade e mentira no discurso de Marlow. A mentira 4 noiva de Kurtz jd foi exaustivamente debatida. Muito esquematicamente, mi- nha posigao é de que a mentira é uma mentira salvadora. Ao poupar a noiva das ultimas palavras de Kurtz, Marlow reconhece e constitui diferentes dominios de verdade — masculino e feminino, assim como verdades da metrépole e verdades da fronteira. Estas verdades refle- tem estruturas elementares na constituicao de significados ordena- dos — conhecimento dividido por género e por um centro e uma periferia culturais. A mentira & noiva é justaposta a uma verdade diferente (e ela também é limitada, contextual e problemdtica) contada no deck do Nellie a ingleses identificados apenas como ti- pos sociais — 0 advogado, o contador, o diretor de companhias. Se Marlow consegue se comunicar, é dentro desse limitado dominio. Como leitores, no entanto, nos identificamos com a pessoa nao iden- tificada que observa as negras verdades e as brancas mentiras de Marlow encenadas no palco do deck da escuna. Esta segunda his- téria do narrador nfo é ela prépria solapada ou limitada. Ela repre- senta, proponho, a posicao etnogréfica, uma posi¢ao.subjetiva e um local histérico de autoridade narrativa que de forma verdadeira justapde diferentes verdades. Embora Marlow inicialmente “abomi- ne uma mentira”, ele aprende a mentir — isto é, a se comunicar nos limites das ficg6es coletivas e parciais da vida cultural. Ele conta histérias limitadas. O segundo narrador resgata, compara ¢ (ironica- mente) acredita nessas verdades encenadas. Essa é a perspectiva adquirida por um sério intérprete de culturas, um intérprete de co- nhecimentos locais, parciais. A voz do “mais distante” narrador de Conrad é uma voz estabilizadora, cujas palavras nao foram feitas para serem objetos de suspeita.* O coragéo das trevas oferece, entio, um paradigma da subje- tividade etnografica. A seguir explorarei os especificos ecos e analo- gias que ligam a situagao de liminaridade cultural de Conrad no Congo com a de Malinowski nas ilhas Trobriand. A correspon- o 101 6 © A EXPERIENCIA ETNOGRAFICA déncia, contudo, nao ¢ exata. Talvez a mais importante diferenga textual seja que Conrad assume uma posigio irénica com respeito a verdade representacional, uma aticude apenas implicita na escrita de Malinowski. O autor de Os argonautas se dedica a construir ficgées culturais realistas, enquanto Conrad, embora comprome- tido de forma semelhante com isso, representa a atividade como a pratica contextualmente limitada de contar histérias.? ‘Ao se compararem as experiéncias de Malinowski e Conrad, fica-se espantado com sua sobredeterminagio lingifstica. Em cada caso, tx2s Iinguas esto em acio, produzindo constantes traducées e interferéncias. O dilema de Conrad é extremamente complexo. Pouco antes de partir para a Africa, ele havia inadverti megado a escrever 0 que vitia a ser Almayer' folly. Apés compor os capftulos iniciais, ficou bloqueado. Por volta desse perfodo, ele veio a conhecer uma prima por afinidade, Marguerite Poradowska, com ‘quem reve, de um modo significativo, um envolvimento amoroso. Ela era casada e também uma conhecida aurora francesa; era em grande medida um envolvimento literirio. Conrad escrevew-Ihe suas apaixonadas e reveladoras cartas ~ em francés. Poradowska, que vi- via em Bruxelas, era pessoa estratégica para arranjar um emprego mente co- no Congo para seu parente. Assim, nos meses imediatamente ante- riores & sua partida para a Aftica, Conrad retornou & Polénia pela primeira vez desde que fugira para o mar, quinze anos antes. Isto renovou seu polonés, que havia permanecido bom, e fez com que ele revivesse sua ligacéo com lugares da infincia e sentimentos am- bivalentes. Da Pol6nia (na verdade a Ucrinia russa) ele foi quase diretamente assumir seu posto no Congo. Lé ele falava francés, a lingua adquirida em que ele tinha mais fluéncia, mas manteve um diério em inglés e pode ter trabalhado nos capitulos de Almayer (ele afirma isso em sua Biographical note, de 1900). Na Africa, Conrad estabeleceu amizade com o irlandés Roger Casement ¢, em geral, mantinha a postura de um gentleman inglés associado a0 mar. Suas intensas cartas a Poradowska continuaram, como sempre, escritas em francés. Sua lingua materna acabara de ser reavivada. A expe- rigncia no Congo foi um tempo de maxima complexidade lin- giifstica, Em que lingua Conrad estava pensando de forma mais © 102 SOBRE A AUTOMODELAGEM ETNOGRAFICA... & consistente? Nao é surpreendente que palavras e coisas freqiiente- mente paregam descosidas em O coragéo das trevas, enquanto Marlow busca nas trevas sentido e interlocucao. Também Malinowski manteve no campo seu didrio {ntimo em polonés e se correspondeu nesta lingua com sua mae, que es- tava atrds das linhas inimigas, na Austria. Ele escreveu em inglés sobre temas antropoldgicos a seu professor, C. G. Seligman, em Londres. A sua noiva, “E. R. M.” (Elsie R. Masson), que estava na Austrdlia, ele escrevia freqiientemente, também em inglés. Havia, porém, pe- lo menos duas outras mulheres, paixdes antigas, em sua mente, uma delas associada & Poldnia. Seu amigo polonés mais intimo, Stanislas Witkiewicz (“Stds”, no Didrio), que logo se tornaria um grande es- critor e artista de vanguarda, também rondava sua consciéncia. Os dois haviam viajado juntos ao Pacifico e haviam se desentendido pouco antes da estadia de Malinowski em Trobriand. Ele ansiava por restabelecer a relagio, mas seu amigo estava agora na Russia. Estas poderosas associacdes inglesas e polonesas foram interrom- pidas por um terceiro mundo lingiiisticamente codificado, 0 uni- verso de Trobriand, no qual ele tinha de viver e trabalhar produtiva- mente. As transag6es didrias de Malinowski com os trobriandeses se desenrolaram em kiriwiniano, e com o tempo suas anotagées de campo eram registradas na maioria das vezes na lingua nativa.'° Podemos sugerir 0 esbogo de uma estrutura para as trés lfn- guas ativas das experiéncias exdticas de Conrad e Malinowski. Entre © polonés, lingua materna, e o inglés, a lingua da futura carreira do casamento, uma terceira intervém, associada com 0 erotismo e com a violéncia. O francés de Conrad esté ligado a Poradowska, um problematico objeto de amor (ela era intimidante demais e intima demais); 0 francés também estava ligado 4 juventude descuidada de Conrad em Marselha e ao Congo imperial, que Conrad abomi- nava por sua violéncia e rapacidade. A I{ngua interveniente em Malinowski era o kiriwiniano, associado a uma certa exuberancia e excesso Itidico (que Malinowski apreciava e retratou simpatica- mente em seus relatos dos rituais do kula e dos costumes sexuais) e também as tentag6es erdticas das mulheres trobriandesas. O Didrio luta repetidas vezes com esta dimensio kiriwiniana de desejo. © 103 ¢ DA BXPRRIBNCIA BRNOGRARICA Assim € possivel distinguir em cada caso uma Ifngua macerna, uma lingua do excesso e uma lingua da restrigho (do casamento ¢ da autoria), Isto é certamente muito esquemitico, As Iinguas ter-se- iam interpenetrado e interferido mutuamence de manciras altamen- te contingentes; mas o suficiente ja foi dito, talvez, para apresentar © ponto principal. Tanto Conrad no Congo quanto Malinowski nas ilhas Trobriand estavam imersos em situagdes subjetivas com- plexas e contraditérias, articuladas nos niveis da linguagem, do desejo e da filiagio cultural. o 2 8 Tanto em O conigdo das trevas quanto no Didrio vemos a crise de um “eu” em algum “dos mais distantes pontos de navegagao”. Ambos os trabalhos retratam uma experiéncia de solidio, mas uma experiéncia de solidio que é preenchida com outros povos e com ou- tros sotaques e que n&o permite um sentimento de centramento, de didlogo coerente, ou comunhio auténtica,. No Congo de Conrad, seus colegas brancos sto ambiguos e incontrolaveis. A selva é cacé- fona, preenchida por muitas e muitas vozes e, portanto, muda, incoe- rente, Malinowski nao estava, claro, isolado nas ilhas Trobriand, nem em relagio aos nativos e nem aos brancos do local. Mas o Didrio é uma instivel confusao de outras vozes e mundos: mae, amantes, noi- va, amigos diletos, os trobriandeses, os missionirios locais, comer- ciantes, assim como os universos escapistas, os romances a que ele nunca péde resistir, A maioria dos pesquisadores reconheceré esta situagdo multivocal. Mas Malinowski experimenta (ou pelo menos seu didrio retrata) algo assim como uma verdadeira crise espiritual e emocional: cada uma das vozes representa uma tentacao; ele é pres- sionado de muitas maneiras. Assim, tal como Marlow em O coragéo das trevas, Malinowski se agarra 4 sua rotina de trabalho, seus exer- cicios e seu didrio — no qual confusamente, precariamente, ele man- tém juntos seus mundos e desejos divergentes. Um trecho do Didrio ilustrard esta situagao: 7.18.18... Sobre teoria da religiéo, Minha posigio ética em relagio A minha mie, a Stis, a E. R. M. Dores de consciéncia resultantes de auséncia de sentimentos integrados ¢ verdadeiros © 104 6 SOBRE A AUTOMODELAGEM ETNOGRAFICA... ° em relagao aos individuos. Toda a minha ética esta baseada no ins- tinto fundamental da personalidade unificada. A isto se segue a ne- cessidade de ser o mesmo em diferentes situagoes (fiel em relagdo a si mesmo) e a necessidade, indispensével, da sinceridade: todo o valor da amizade estd baseado na possibilidade de se expressar, de ser vo- cé mesmo com completa franqueza. A alternativa é entre uma men- tira e estragar uma relacdo (minha atitude com minha mie, Stas e todos os meus amigos era artificial). O amor nao deriva da ética, mas sim a ética, do amor. Nao é possfvel deduzir a ética crista a partir da minha teoria. Mas tal ética nunca expressou a verdade real — ame seu vizinho —a um grau realmente possivel. O problema na verdade é: por que vocé deve sempre se comportar como se Deus 0 estivesse observando? (Malinowski, 1967, p. 296-297) A passagem € confusa; mas podemos extrair talvez a questao central em torno da qual gravita: a impossibilidade de ser sincero e portanto de ter um centro ético. Malinowski sente a exigéncia de coeréncia pessoal. Um Deus punitivo est4 vigiando cada um de seus (inconsistentes) movimentos. Ele nao estd, assim, livre para adotar diferentes personae em diferentes situag6es. Ele sofre pelo fato de que essa regra de sinceridade, uma ética de uma personalidade unifica- da, significa que ele ter4 de ser desagradavelmente verdadeiro com seus varios amigos e amantes. E isto significar4 — j4 tendo significa- do — perder amigos: “A alternativa é entre uma mentira e estragar uma relagao” (ibid., p. 296-297). Nao hd safda. Deve haver uma safda. Contar verdades demais mina os compromissos da vida coletiva. A solugéo de Malinowski consiste em construir duas ficgdes relacionadas — a de um eu e a de uma cultura. Ainda que minha tarefa aqui nao seja nem psicolégica nem biogréfica, que me seja permitido sugerir apenas que o estilo pessoal — extravagante, operistico — que encantava e irritava os contemporaneos de Malinowski era uma resposta a esse dilema. Ele se permitia cair no extremismo “eslavo”; suas revelagdes sobre si mesmo e sobre seu trabalho eram exageradas e ambiguamente parodisticas. Ele assumia poses (afirmou ter inventado sozinho “o método funcional”), desafiando os que tomam tudo em seu sentido literal a ver que estas verdades pessoais eram em algum grau ficc6es. Seu cardter era encenado, mas também verdadeiro; uma pose, po- rém auténtica. Uma das maneiras pelas quais Malinowski manti- © 1057 > © A EXPERIENCIA ETNOGRAFICA nha-se coeso era escrevendo etnografia. Aqui, as totalidades mol- dadas de um eu e de uma cultura parecem ser alegorias de iden- tidade que se reforcam mutuamente. Um ensaio de Harry Payne, “O estilo de Malinowski”, sugestivamente traga a complexa combi- nagao de autoridade e ficcionalidade que a forma narrativa de Os argonautas encena: Dentro da imensa latitude de [sua] estrutura, Malinowski pode determinar mudangas de foco, de tom e de objeto; a trama, ciclica, sempre fornecerd um lugar para onde se retornar. A terapia funcional atua apenas heuristicamente. Uma vez que tudo adere a tudo, pode-se vagar sem nunca se desconectar. (1980, p. 438)!! O problema literdrio do ponto de vista autoral, o imperativo jamesiano de que todo romance reflita uma “inteligéncia contro- ladora”, era um doloroso problema pessoal para o autor do Didrio. A estrutura ampla, composta de multiplas perspectivas, sinuosa, de Os argonautas resolve essa crise de sinceridade. Com efeito, co- mo 0 autor cientifico e convincente dessa ficgo, Malinowski pode ser como o Deus de Flaubert, onipresente no texto, orquestrando descrig6es entusidsticas, explicagdes cientificas, encenag6es de even- tos a partir de diferentes posigdes, confissdes pessoais, e assim por diante. As descrig6es culturais no estilo malinowskiano de funciona- lismo anseiam por uma espécie de personalidade unificada, mas uma totalizagéo convincente sempre lhes escapava. Malinowski nunca juntou toda a cultura trobriandesa; ele nao produziu ne- nhum retrato sintético, apenas monografias densamente contextua- lizadas sobre importantes instituigdes. Além disso, sua obsessiva inclusao de dados, imponderabilia, e textos verndculos pode ser vista como um desejo de desfazer, assim como de fazer, um todo; tal empirismo metonimico, aditivo, acaba por sabotar a constru- ao de representagées funcionais, sinedéquicas. As etnografias de Malinowski — diferentemente dos retratos secos, analiticos e fun- cionais de Radcliffe-Brown — eram variadas, frouxas, mas com for- mas narrativas retoricamente bem-sucedidas (Payne, 1981, p. 420- 421). Expressoes ficcionais de uma cultura e de uma subjetividade, elas ofereciam uma saida em relaco aos vinculos da sinceridade e da totalidade, a problematica conradiana da mentira em foco no Didrio. © 106 © SOBRE A AUTOMODELAGEM ETNOGRAFICA... Ha mais ecos espectficos de O coragdo das trevas no texto intimo de Malinowski em polonés. Falando de seus informantes trobriandeses, que nao cooperardo com sua pesquisa, ele os amal- digoa & maneira de Kurtz: “Por vezes eu ficava furioso com eles, particularmente porque apés eu ter dado a eles suas partes de fu- mo, todos iam embora. No todo, meus sentimentos em relacdo aos nativos tendem decididamente para um ‘exterminar todos os bru- tos” (Malinowski, 1967, p. 69). Malinowski flertou com varios papéis coloniais reservados aos brancos — inclusive 0 excesso, se- gundo o modelo de Kurtz. Aqui, a irénica invocagao proporciona um vislumbre ficcional das tensdes do trabalho de campo e da violéncia de seus sentimentos. No Didrio, assim como Marlow em sua ambivalente relagéo com Kurtz, Malinowski freqiiente- mente se defronta com a inseparabilidade entre discurso e poder. Ele deve lutar pelo controle no encontro etnogréfico. Outro eco nao irénico de O coragdo das trevas € ouvido na dolorosa resposta de Malinowski 4 noticia da morte de sua mie, que abala as tiltimas paginas do Didrio: “O tertivel mistério que envolve a morte de alguém querido, préximo a vocé. A ultima pa- lavra que nao foi dita — algo que deveria iluminar tudo é enterrado, o resto da vida repousa meio escondido no escuro” (ibid., p. 293). Malinowski sente que lhe foi negado o resgatado talisma de Marlow, uma Ultima palavra poderosa e ambiguamente iluminadora sus- surrada no momento da morte. Além das citagées mais ou menos diretas no Didrio, notam- se também mais paralelos temdticos e estruturais gerais com O coracéo das trevas. Ambos 05 livros sao registros de homens brancos na fronteira, em pontos de perigo e desintegracao. Em ambos, a sexualidade est4 em foco: ambos retratam um outro que é conven- cionalmente feminizado, ao mesmo tempo um perigo e uma ten- taco. Os personagens femininos nos dois textos so alocados em categorias espirituais (soft) ou sensuais (hard). Hé uma temati- zac4o, comum a ambos, do impulso do desejo ou do excesso preca- riamente contidos por alguma restrigéo crucial. Para Malinowski, essa restrigao é representada por sua noiva, associada, em sua mente, a uma carreira académica na Inglaterra, a um amor elevado, e ao o 107 © A EXPERIENCIA ETNOGRAFICA casamento. “Pensei em E. R. M” é samentos lascivos sobre mulheres, sejam nativas ou brancas: o censor do Diério para pen- Nao devo trair em pensamentos E. R. M., ou seja, recordar minhas relag6es anteriores com as mulheres, ou pensar sobre futuras relagGes... Preserve-se a personalidade interna essencial através de todas as dificuldades e vicissitudes: nunca se deve sacrificar princ{pios morais ou trabalho essencial 4 “exposigao” a um Stimmung convivial etc. Minha tarefa principal deve ser trabalhar. Ergo: trabalhe! (Ibid., p. 268) Assim como 0 protagonista de Conrad, o etnégrafo luta cons- tantemente para manter uma essencial auto-suficiéncia interior — sua “own true stuff’, como diz Marlow. A atragio exercida por pe- rigosos outros, fronteira desintegradora, se resiste com trabalho metédico e disciplinado. Para Marlow, a atenc4o obsessiva a seu barco a vapor e sua navegacao proporciona a “sabedoria de super- ficie” necessdria para manter estavel sua personalidade. Tal como invocado no Diério, os labores cientificos de Malinowski servem a um propésito similar. Contida, a personalidade ética é alcancada incansavelmente por meio do trabalho. Essa “estrutura de senti- mento” pode ser localizada com alguma precisao na situacao his- t6rica da sociedade colonial do final do perfodo vitoriano, e est4 intimamente relacionada 4 emergéncia da cultura etnografica. Criticos sociais vitorianos discerniam uma crise difusa, para a qual o titulo de Mathew Arnold, Culture and anarchy, oferecia um diagnéstico bdsico: contra a fragmentacao da vida moderna estavam a ordem e a integridade da cultura. Raymond Williams (1966) ofe- receu um relato sutil sobre estas respostas humanistas as transfor- mages tecnolégicas e ideolégicas sem precedentes em processo em meados do século XIX. A estranha afirmagao de George Eliot é tipica: dessas trés palavras — “Deus”, “imortalidade” e “dever”—, de- clarou, “com terrivel honestidade, como era inconcebivel a primei- ra, como era inacreditdvel a segunda, e ainda, como era peremptoria e absoluta a terceira!” (apud Houghton, 1957, p. 43). O dever tor- nara-se uma crenga deliberada, uma desejada fidelidade a aspectos da convengo e ao trabalho (a solugao de Carlyle). Ian Watt (1979, p. 148-151) convincentemente associou Conrad a essa resposta. Marlow, no meio da Africa, agarra-se a vida ocupando-se de seu bar- © 108 o SOBRE A AUTOMODELAGEM ETNOGRAFICA... © co a vapor, das obrigacées de rotina necessdrias 4 sua manutengao e navegaco. E a estrutura persiste no Didrio de Malinowski, com suas constantes auto-exortagées para evitar distragdes negligentes e voltar ao trabalho. Na problemdtica da cultura e anarquia (que persiste nos conceitos plurais, antropoldgicos, de cultura que privi- legiam a ordem e o sistema por sobre a desordem e 0 conflito), as esséncias pessoais e coletivas devem ser continuamente mantidas. A posicao etnogréfica que nos preocupa aqui fica parcialmente fora desses processos, observando seus funcionamentos locais, arbitr- rios, ainda que indispensdveis. A cultura, uma ficcio coletiva, é a base para a identidade e a liberdade individuais. O eu, 0 “own true stuff” de Marlow, é um pro- duto de trabalho, uma construgao ideoldgica que é no entanto essen- cial, o fundamento da ética. Mas, uma vez que a cultura se torna vi- sivel como objeto e base, um sistema de significado entre outros, 0 eu etnografico nao pode mais se enraizar numa identidade nao mediada. Edward Said afirmou, a respeito de Conrad, que sua luta principal, que se refletia em sua escrita, era “a conquista de uma personalidade” (1966, p. 13). Na verdade, ele se reconstruiu bem cuidadosamente na persona de um autor “inglés”, o personagem de que fala na “No- ta do Autor” que ele posteriormente acrescentaria a cada uma de suas obras. Essa construgao de um eu era tanto artificial quanto mor- talmente séria. (Podemos ver 0 processo parodiado pelo contador em O coragao das trevas, que parece literalmente se manter inteiro por sua atitude ridiculamente formal, mas de algum modo admira- vel.) Tudo isso dé pungéncia especial frase que encerra 0 Didrio publicado: “Realmente, eu nao tenho uma personalidade genuina’. oo 9 Malinowski, porém, resgatou um eu da desintegragao e da de- pressdo. Esse eu estava associado, tal como o de Conrad, ao processo da escrita. Nesse contexto, é importante explorar outra regiao de si- milaridade entre 0 Didrio e O coragéo das trevas: 0 papel de textos incongruentes. A subjetividade fragmentada manifesta em ambas as obras é aquela de um escritor, e o impulso de diferentes desejos e Iinguas é nitido numa série de inscrigdes discrepantes. O mais fa- o 109 o © A EXPERIENCIA ETNOGRAFICA moso exemplo em O coragao das trevas € 0 incrivel ensaio de Kurtz sobre a supressio dos costumes selvagens, abruptamente interrom- pido por seu préprio comentario rabiscado, “exterminar todos os brutos”. Mas outro texto igualmente significativo perdido na selva de Conrad é um estranho livro que Marlow descobre em uma das duas perigosas safdas do deck de seu barco a vapor (na outra ele dis- cute com Kurtz atrdés de um lugar ermo). Numa cabana 4 margem do rio, ele cai num transe quase mistico: Ali estava uma tosca mesa — uma tibua em cima de dois tocos de pau; um monte de lixo repousava num canto escuro, e perto da porta encontrei um livro. Ele havia perdido a capa, e as paginas estavam num estado de extrema fragilidade e sujeira; mas 0 dorso tinha sido amorosamente recosturado com fio de algodao branco, € parecia ainda limpo. Era um achado extraordindrio. Seu titulo era An inguiry into some points of seamanship, escrito por um homem de nome Towser, Towson, ou algo assim, mestre da Marinha de Sua Majestade. O material parecia uma leitura enfadonha, com diagra- mas ilustrativos e quadros de figuras repulsivas, e a cépia era de 60 anos atrds. Eu segurei esta incrivel antiguidade com a maior suavi- dade possfvel, pois senao ela se dissolveria em minhas maos. Dentro dela, Towson ou Towser discorria sabiamente sobre 0 limite das correntes e das cordas dos navios, e outros assuntos assim. Nao era um livro muito emocionante; mas 3 primeira vista vocé podia ver alia singeleza de intengao, uma preocupagao honesta que perpassava as paginas empoeiradas, elaboradas tantos anos atrds, iluminando- as com outra luz que no a profissional. O simples e velho mari- nheiro, com sua conversa sobre correntes ¢ amarras, me fez esquecer a selva e as peregrinagdes numa deliciosa sensacao de ter chegado a algo inequivocamente real. O fato de este livro estar ali era mara- vilhoso o bastante; mas mais incrivel ainda eram as notas escritas nas margens, e totalmente ligadas ao texto. Nao podia acreditar em meus olhos! Elas estavam ciftadas! Sim, pareciam cifras. Engragado um homem trazendo com ele na bagagem um livro com tal descrigao para esse lugar nenhum, e ainda estudé-lo em cifras! Era um mistério fora do comum. (Malinowski, 1971, p. 38-39)" O trecho tem sobretons religiosos — uma relfquia milagrosa, um movimento abrupto nas imagens que vao da sujeira e decadén- cia para a transcendéncia e para a luz e daf para o mistério, o ingé- nuo testemunho de um momento de fé. Devemos ter cuidado para nao interpretar o fascinio que o /nquiry exerce sobre Marlow © 110 6 SOBRE A AUTOMODELAGEM ETNOGRAFICA... ° simplesmente como uma nostalgia do mar, embora esta seja uma parte de seu encanto. O “bufao” russo que vem a ser 0 dono do li- vro parece ler o tratado primeiramente dessa forma; pois ele toma cuidadosas notas, presumivelmente sobre o contetido do livro, como se estivesse estudando artes nduticas, Para Marlow, no en- tanto, a inspiragao do livro se realiza de alguma forma diretamente da prépria escrita, de suas paginas, que, transcendendo as correntes e€ os navios e as amarras, sao “luminosas com uma luz outra além da profissional” (ibid., p. 38-39). Marlow tem sua atengao des- pertada nao pelo contetido, mas pela linguagem. Ele est4 inte- ressado na dura artesania do velho marinheiro; seu modo de fazer o livro e sua “fala” parecem concretos — até mesmo as abstratas tabelas numéricas. O que encanta Marlow nao é primeiramente a possibilidade de uma sincera autoria. O velho marinheiro, “Towser ou Towson ou algo assim — mestre da Marinha de Sua Majestade” (ibid., p. 38-39), é pessoalmente enganoso; nao é seu ser que conta, mas sua lingua- gem. O homem parece dissolver-se numa vaga tipicidade; 0 que importa € seu inglés simples. Significativamente, porém, o texto fa- lha em unir seus dois igualmente devotos leitores; pois quando eles finalmente se encontram, o russo est4 contentissimo em saudar um colega marinheiro, enquanto Marlow est4 desapontado por nao en- contrar um inglés. E a leitura que est4 em questao. O mesmo li- vro, enquanto um objeto material, provoca reag6es distintas e igual- mente reverentes. Nao posso explorar aqui o significado biogréfico dessa disjungao: Conrad acabara de trocar sua cidadania oficial russa pela nacionalidade britanica, e provavelmente o bufao est4 ligado ao jovem viajante, Korzeniowski, o qual estava se tornando Conrad. E suficiente notar a relatividade radical: a distancia entre duas leituras. O “cédigo” marca isso graficamente, e se “as anotagdes escrevinhadas nas margens” vém a ser depois reconhecidas como uma lingua européia, isto de forma alguma diminui a imagem gréfi- ca de uma separacao. (Lembra a sensacao de estranheza que alguém experimenta ao encontrar estranhas marcas num livro e depois re- conhecer que ele mesmo havia feito tais marcas — outra pessoa — numa leitura anterior.) © A EXPERIENCIA ETNOGRAFICA O que persiste é 0 préprio texto — precariamente. Manuseado e com as capas soltas — o que pode simbolizar 0 contexto de sua publicagao original —, 0 texto escrito deve resistir 4 destruicao en- quanto viaja através do espaco e do tempo. Apés 60 anos — 0 tempo de uma vida humana —, o momento da desintegrac4o che- gou. A criagdo do autor enfrenta 0 esquecimento, mas um leitor folheia novamente as paginas, amorosamente. Depois o livro é abandonado & prépria morte em algum lugar num estranho con- tinente, seu contetido ndutico flutua na auséncia de contexto — e mais uma vez um leitor o resgata. Resgate é uma das imagens-chave para a obra de Conrad; o ato de escrever busca sempre o resgate num ato imaginado de leitura. Significativamente, 0 texto de maior significado em O coragao das trevas é aquele com o minimo de re- feréncia a situacao a sua volta. A experiéncia de trabalho de campo de Malinowski esta cheia de inscrig6es discrepantes: suas detalhadas anotagdes de campo, es- critasem inglés eem kiriwiniano; textos verndculos, freqiientemente registrados no verso das cartas recebidas do estrangeiro; seu didrio polonés (na verdade, heteroglota); a correspondéncia multilingiie; e, finalmente, um corpus que merece alguma atencdo, os romances aos quais ele nao péde resistir. Estes ltimos contém mundos narra- dos em sua totalidade, que parecem por vezes mais reais (de qualquer modo mais desejdveis) do que os afazeres cotidianos da pesquisa, com suas muitas notas contraditérias, incompletas, impressées, da- dos que devem ser submetidos a alguma coeréncia. Malinowski se pega “fugindo” da realidade trobriandesa “para a companhia dos esnobes da Londres de Thackeray, seguindo-os ansiosamente pelas ruas da grande cidade”. (A leitura escapista dos etndgrafos no campo mereceria um ensaio.) Os romances de Malinowski sugerem um paralelo revelador, ainda que imperfeito, com o Inquiry de Towser — outra ficgo ma- ravilhosamente impositiva no meio de uma confusa experiéncia. O livro de Towser mostra a possibilidade de falar pessoal e autenti- camente a verdade; e aponta para a escrita (uma miraculosa presen- ga ausente) como salvagio. Mas Towser é também uma tentacio, como os romances de Malinowski, tirando Marlow de seu trabalho, o 112 96

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