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Ela tinha uma tatuagem em forma de espiral.

Melhor dizer: uma espiral tatuou-se


nela. De pert�ssimo, era uma palavra circular, um trava-l�nguas, un rompe-cabezas,
uma eterna poesia em buraco-negro para dentro de sua alma que, de tanta for�a
gravitacional, absorve a pr�pria luz, um poema que absorve a poesia, que ao ser
lido nos absorve...

O sorvete de castanha, semi-derretido, j� est� quase alcan�ando sua m�o. Seus


olhos, agora castanhos, escorrem por seus dedos marrons, e encontram uma mancha
bege de castanha. Ela p�ra, olha para si mesma e desce suavemente a boca at� o
l�quido intruso, da mesma cor da pele, mesclando-se � ela, e ao lamb�-la... a
menina apaixona-se por si mesma, o sorvete vira catalisador de arrepios que v�o da
testa ao umbigo. O calor j� tornou-se insuport�vel, s� seu sorvete permanece frio e
ela fria quase trope�ando-se desengon�ada ao beijar-se pela primeira vez como se
fosse o primeiro beijo.

Ela se sente uma vampira. Viciada em seu pr�prio sangue doce, bebendo a si mesma
para n�o queimar-se no sol. Dobra-se no espelho para enxergar a si mesma, e inunda-
se como um mar afogado.

Sai do extase quando um avi�o passa em rasante de andorinha e rouba todo o som para
si. Por um instante, um som gordo, grave e profundo preenche todo o ar. Aquilo n�o
era um barulho, era o monop�lio das vibra��es sonoras p�blicas, bigger than life,
fazendo com que cada ser humano se sentisse min�sculo em um universo que tinha
for�as ainda maiores que estas. O sorvete de castanha agora flutuava em sua frente,
como um meteoro doce congelado em plena combust�o atmosf�rica, ou ent�o uma bola de
lava lan�ada ao c�u, fazendo cambalhotas em slow-motion diante dela.

E foi ent�o que ela percebeu.

Ela pode mover-se normalmente enquanto tudo permanecia parado no tempo. Tudo estava
flutuando um pouco, sutilmente, basta chegar bem perto e ver que as pessoas n�o
encostavam no ch�o, os carros estavam sem ader�ncia nas curvas, e at� o enorme
avi�o de metal parecia deslizar nas ondas de calor do asfalto. O universo � que
havia trope�ado nela, e agora caia lentamente. Planetas fora do eixo por
nanometros, hipercordas fermentando no tecido c�smico universal que desfiava,
cordas vibrando em notas atomicamente desafinadas, pontos-de-apoio rachando em
poucos �ons, dentes rangendo uns sobre os outros sem se encostarem.

E ela ali, sem ter mat�ria � qual se agarrar, energia sobre a qual navegar, uma
mera id�ia surgiu, mas t�o pequena que s� de olhar par...

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