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Seleção Natural e Contingência Lógica

Vitor Grando

Numa de suas mais famosas passagens, Nietzsche fala de um louco vagando pela praça, em
pleno dia, com uma lanterna na mão clamando “Eu procuro Deus! Eu procuro Deus!”. Como
aqueles à sua volta não acreditavam em Deus, zombaram dele: “Estará Deus perdido tal como
uma criança?”, “Será que ele se escondeu ou foi viajar?”. O louco, em resposta, fita-lhes o olhar:

– Para onde foi Deus? o que vos direi!


Nós o matamos! Vocês e eu!
Somos nós, nós todos, os assassinos!
Mas como fizemos isso?
Como esvaziamos o mar? Como apagamos o horizonte?
Como tiramos a terra de sua órbita? Para onde vamos agora?
Não estamos sempre caindo? Para frente, para trás, para os lados?
Mas haverá ainda um acima, um abaixo?
Não estaremos vagando através de um infinito Nada?
Não sentiremos na face o sopro do vazio? O imenso frio?
Não virá sempre noite após noite? Não acenderemos lâmpadas
em pleno dia?
Não podem ouvir o barulho dos coveiros – enterrando Deus?
Ainda não sentiram o fedor da decomposição divina?
Os deuses também apodrecem! E Deus morreu!
Deus está morto! E nós o matamos!

Mais do que uma afirmação de ateísmo, como comumente se entende a afirmação da morte de
Deus, Nietzsche age como um profeta e aponta para o fato de que aquilo sobre o qual até então
se assentava o pensamento ocidental havia sido deixado de lado. Deus - horizonte, mar, órbita - a
ideia em torno da qual outrora pensávamos foi por fim rejeitada. Na referida passagem, o louco
de Nietzsche procede a dizer que havia chegado cedo demais e que as consequências desse ato -
a morte de Deus - ainda não chegara aos ouvidos dos homens.
A questão de Nietzsche é maior do que a existência ou inexistência de Deus, mas sim com as
inafastáveis implicações do que quer que se conclua acerca disso. A produção de uma filosofia
que parte de uma metafísica teísta certamente trará resultados diferentes de uma metafísica
naturalista. Tendo a maior parte da filosofia por séculos sido produzida a partir de uma
metafísica não naturalista, e especificamente teísta na Idade Média, é natural que toda produção
filosófica traga em si essa marca. Ao se aderir a uma metafísica predominantemente naturalista, é
de se esperar que nossas conclusões mais fundamentais venham a ser radicalmente alteradas em
razão disso tal como não se pode esperar manter um edifício de pé implodindo seus alicerces. É
essa a profecia do louco de Nietzsche. Aqueles ao seu redor supostamente sem qualquer
patologia cognitiva, como nosso amigo louco, ainda viviam num edifício cujos alicerces não
mais subsistiam. A ruína era questão de tempo.

O que se sugere neste ensaio é que a admissão de uma metafísica naturalista implica uma
compreensão sobre a natureza da lógica próxima aos elementos do convencionalismo de Carnap.
O convencionalismo é uma compreensão acerca de determinado fenômeno que afirma que este
surge por mera questão de convenção e não por algo independente e externo às convenções
humanas. Certas formas peculiares aparecem em todas as áreas da filosofia, desde tópicos como
propriedade e justiça, moralidade, representação pictórica, identidade pessoal, ontologia,
aritmética e análise matemática, necessidade, e diversos outros tópicos. Isto é, ao se tratar a
moralidade, por exemplo, como uma convenção tem-se que nossas proposições morais não têm
valor objetivo independente da nossa opinião. Mas se julgamos o homicídio como uma
imoralidade, é porque convencionamos que assim seria por questões estritamente pragmáticas.
Seria, portanto, uma imoralidade por causa da estrutura moral que escolhemos aderir. Isso,
portanto, não impediria a adesão de uma convenção distinta e contrária.

O que toda as formas de convencionalismo têm em comum é a ideia de que existem convenções
distintas e igualmente válidas. Não há uma natureza metafísica das coisas que implique nosso
assentimento racional, mas nós escolhemos convenções por fatores estritamente pragmáticos.
Rudolf Carnap propõe uma forma de convencionalismo linguístico de acordo com o qual o que
determina a verdade da nossa ontologia e lógica é a estrutura linguística a que convencionamos
aderir. A convencionalidade está no cerne do pensamento de Carnap; de modo que sua obra pode
ser vista em grande parte como tentativas de revelar os aspectos convencionais do conhecimento
e, assim, trazer à luz a relação entre os problemas clássicos da filosofia, tais como a natureza do
conhecimento a priori e a controvérsia sobre o realismo, e a fusão entre verdade e convenção.

Em relação à lógica, segundo ele, nós somos livres para formularmos as regras como nos
aprouver. Ele nos diz expressamente que as regras da lógica podem ser escolhidas
arbitrariamente:

“Em todos os aspectos, nós temos completa liberdade quanto às formas da linguagem…
Tanto as formas de construção de sentenças e as regras da transformação [i.e. as regras
tanto da sintaxe quanto da lógica] podem ser encontradas arbitrariamente”1.

E mais especificamente:

“Não nos cabe estabelecer proibições, mas chegarmos a convenções… Na lógica, não há
moral. Todos têm a liberdade de construir sua própria lógica, i.e., sua própria forma de
linguagem”2.

Essa completa ausência de fundamento firme para a lógica remove todo o impedimento para
construirmos a nossa própria lógica e, assim, como ele mesmo diz, à nossa frente repousa um
oceano de possibilidades ilimitadas.

Nesse sentido, a validade da nossa lógica é derivada não da natureza das coisas, mas
simplesmente do sentido que atribuímos a ela. Desta forma, se admitimos um silogismo modus
podens é porque na estrutura linguística convencionada por nós, essa forma de argumentação é
válida. Mas, como pode-se ter convenções distintas e igualmente válidas, poderíamos adotar uma
convenção em que o modus ponens seria uma forma de raciocínio inválida. Assim sendo, nós

1
Carnap, R. [1934] 1937. Logische Syntax der Sprache, Vienna: Julius Springer; trans. A. Smeaton as The Logical
Syntax of Language, London: Routledge and Kegan Paul apud BEN-MENAHEM, Yemima. Conventionalism. Nova
Iorque: Cambridge University Press, 2006, p. 188
2
Ibid.
poderíamos convencionar que P -> Q, Q, então P, tornando a clássica falácia de afirmação do
consequente uma lei lógica válida.

Mas a questão que nos importa não é uma crítica ao convencionalismo em lógica, mas uma
tentativa de se demonstrar que uma metafísica naturalista não é um fundamento razoável para se
defender a validade universal e necessária das leis lógicas aproximando assim a ontologia lógica
de uma compreensão carnapiana em certo sentido. Pois que estrutura da natureza física poderia
garantir tal coisa? Há a intuição muito razoável de que as leis lógicas são necessárias e
universais, afinal a nossa mente parece programada para pensar dessa forma de modo
incontornável. A pergunta que se coloca é de onde então vêm essas leis lógicas tão
profundamente enraizadas em nossa mente. A resposta não seria difícil se admitíssemos
prontamente que assim fomos criados pela vontade de Deus. No entanto, a compreensão da
origem do homem vigente parece não ser assim tão simples dada a ampla aceitação da teoria da
evolução por meio da seleção natural na biologia contemporânea. Ao que tudo indica, essa teoria
da origem humana só tenderá a se solidificar.

A compreensão da formação da mente humana, portanto, exige que tomemos esse paradigma
como base. De que maneira poderíamos entender a existência dessas leis lógicas em nossa
mente? A única explicação razoável existente é que o longo processo de tentativa e erro da
seleção natural programou nossas mentes a pensar de acordo com as estruturas fundamentais do
mundo em que vivemos. Vamos imaginar um homem das cavernas à caça de alimentos para si e
sua prole. A garantia de sua sobrevivência exigirá dele o comportamento de acordo com as
regras de funcionamento deste mundo. Vamos supor que ao se deparar com um tigre, sua mente
processe o seguinte raciocínio: se eu quiser sobreviver, então preciso correr; eu quero sobreviver,
portanto, não preciso correr. A sua sobrevivência será prejudicada caso seu raciocínio leve a
conclusões dessa natureza, pelo que se espera que aqueles que raciocinaram desta forma
perderam-se ao longo do processo de seleção natural. Assim, o processo favoreceria aqueles cuja
mente pensa de acordo com as regras lógicas que regem o mundo.

Assim, o processo de seleção natural provavelmente favoreceu a seleção de mecanismos


cognitivos confiáveis na produção de crenças verdadeiras em virtude de sua aparente vantagem
em termos de adaptação e reprodução. Ao menos, isso seria possível em relação àquelas crenças
que teriam valor adaptativo, isto é, crenças relativas à realidade física num sentido geral. Nisso a
necessidade do raciocínio lógico se faz mister. O fato de que a dificuldade aumenta quando se
abandona as restrições da realidade e das regras de indução lógica em nós embutidas pelo
processo evolutivo de tentativa e erro em prol de especulações de natureza mais abstrata é mais
um indicativo de que nossa mente foi formada por esse processo e para lidar com questões
pragmáticas. A primeira conclusão que extrairíamos disso é que nossas especulações devem estar
perfeitamente adequadas à realidade concreta. Isso por si só é um enorme problema para teses
que pressuponham alguma forma de construtivismo social, afinal existe uma realidade concreta e
nós fomos formados em contato direto com ela. Nesse sentido, também colocaria em xeque um
dos postulados convencionalistas, a saber, a ideia de que convenções sobre a ontologia lógica
distintas das nossas poderiam ser igualmente escolhidas. A segunda conclusão é quanto à
imprescindibilidade da adequação das nossas especulações às leis gerais da lógica e da
matemática, o que privilegiaria o pensamento filosófico em que a organização lógica dos
argumentos tem primazia.

Mas a questão que se coloca agora é a seguinte se nossas ideias a priori são impressas em nossa
mente por via da seleção natural, não faz sentido falar em leis lógicas como necessidades, dado
que tais impressões são oriundas do mundo contingente atual. Tivesse o nosso mundo uma
estrutura diferente, provavelmente as formas de raciocínio seriam distintas. Mas dado que este
mundo é contingente, as leis lógicas derivadas dele também o são. Em certo sentido, portanto,
podemos concordar com a contingência da nossa ontologia e lógica proposta pelo
convencionalismo de Carnap; por outro, não podemos admitir que a validade das nossas
sentenças lógicas seja produto de uma mera convenção pragmática, mas sim derivada da
estrutura do mundo atual. Nesse sentido, num determinado aspecto não se pode pensar de modo
distinto daquele segundo as chamadas leis do pensamento e demais leis lógicas. Não se pode
simplesmente aderir a uma convenção distinta, como propõe Carnap. Mas num aspecto mais
fundamental, não se pode falar em necessidade no que diz respeito a essas leis que regem o nosso
pensamento. Elas são, assim, contingentes.
Então, temos uma forte sugestão de que a compreensão da formação de nossas faculdades
cognitivas a partir da conjunção entre naturalismo e evolucionismo tornaria improvável a
compreensão das leis lógicas como necessidades. Implicando, na verdade, uma radical
contingência dessas leis. Sabemos que poderia ser o caso de haver um mundo diferente do atual
com uma estrutura diferente. Assim, a mesma estrutura mental que possuímos poderia ser
diferente bem como nossas intuições de necessidade. Mas, por outro lado, tal conjunção
dificultaria a admissão de que convenções outras poderiam ser igualmente admitidas, dado que,
como dito, as leis lógicas em nossa mente ali foram impressas a partir da relação com o mundo
em que vivemos. Assim, ao mesmo tempo que essa explicação torna razoável o insight mais
básico do convencionalismo, por outro também torna difícil a aceitação de convenções distintas
dada a relação entre a nossa mente e o cérebro.

As implicações da seleção natural para a filosofia ainda precisam ser melhor exploradas.
Suponho que estejamos fazendo filosofia sem considerarmos as profundas implicações de uma
metafísica naturalista. Este ensaio visa apenas sugerir uma possível implicação disso para a nossa
ontologia da lógica, relação essa que certamente precisará ser ainda melhor explorada. Por outro
lado, a conjunção entre evolucionismo e teísmo talvez possa melhor explicar nossas mais
profundas intuições sobre necessidade lógica e outros aspectos fundamentais de nosso universo.
A estrutura do mundo é um mero fato. Sem qualquer aspecto de necessidade. Sabemos que
poderia ser o caso de haver um mundo diferente do atual com uma estrutura diferente. Assim, a
mesma estrutura mental que possuímos poderia ser diferente bem como nossas intuições de
necessidade. Thomas Nagel, que não é um teísta, em seu Mind and Cosmos critica a concepção
neodarwinista de natureza. No livro, ele argumenta que o problema mente-corpo não é apenas
um problema local que tem a ver com a relação entre mente, cérebro e comportamento em
organismos vivos, mas ele perpassa nossa compreensão de todo cosmos e de sua história. É
altamente implausível que a vida como nós a conhecemos seja o resultado de uma sequência de
acidentes físicos junto do mecanismo da seleção natural. Mesmo sem sugerir a existência de uma
divindade, Nagel propõe que alguma espécie de entidade mental precisa ser invocada para
explicar alguns aspectos fundamentais da nossa experiência. Talvez a nossa ontologia lógica
também precisa de um fundamento não materialista. Num arroubo de sapiência, o louco de
Nietzsche pode ter profetizado algumas verdades.
Bibliografia

BEN-MENAHEM, Yemima. Conventionalism. Nova Iorque: Cambridge University Press, 2006;


NAGEL, Thomas. Mind and Cosmos: Why the Materialist Neo-Darwinian Conception of Nature
Is Almost Certainly False. Nova Iorque: Oxford University Press, 2012;
NIETZSCHE, Friedrich. A Gaia Ciência. São Paulo: Ed. Escala, p.129;
RESCORLA, Michael, "Convention", The Stanford Encyclopedia of Philosophy (Summer 2015
Edition), Edward N. Zalta (ed.), URL =
<https://plato.stanford.edu/archives/sum2015/entries/convention/>.

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