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ARTIGO ARTICLE 331

Acolhimento e transformações no processo de


trabalho de enfermagem em unidades básicas
de saúde de Campinas, São Paulo, Brasil

Receptiveness and changes in the nursing


work process in healthcare units in Campinas,
São Paulo, Brazil

Maíra Libertad Soligo Takemoto 1

Eliete Maria Silva 1

Abstract O presente artigo relata as transformações no


trabalho da enfermagem com a incorporação
1 Faculdade de Ciências
This article describes changes in the nursing do acolhimento no processo de implementa-
Médicas, Universidade
work process resulting from implementation of ção do Projeto Paidéia de Saúde da Família na
Estadual de Campinas,
Campinas, Brasil. the process referred to as “receptiveness”, follow- Secretaria Municipal de Saúde de Campinas,
ing introduction of the Paidéia Family Health São Paulo, Brasil, a partir de 2001 1. Partimos da
Correspondência
M. L. S. Takemoto
Program in health care units in Campinas, São reflexão sobre a produção recente sobre o aco-
Departamento de Paulo, Brazil, since 2001. Data were collected lhimento e, a seguir, detalhamos os resultados
Enfermagem, Faculdade through participant observation and semi- encontrados.
de Ciências Médicas,
Universidade Estadual structured interviews to examine the nursing Entendemos o trabalho em saúde como um
de Campinas. work process, specifically in relation to “recep- modo de trabalhar específico, em que o consu-
Rua Tessalia Vieira de mo se dá imediatamente no momento da pro-
tiveness”. The analysis was based on two possi-
Camargo 126, Cidade
Universitária Zeferino Vaz, ble definitions of “receptiveness”: as an attitude dução. Sendo assim, temos a construção de um
C.P. 6111, Campinas, SP towards users and their needs, and as a device espaço intercessor nos momentos assistenciais
13083-970, Brasil. da produção de serviços de saúde entre usuários
for reorganizing the work process. The study also
mairalibertad@uol.com.br
analyzes “receptiveness” in relation to: organiza- e trabalhadores, em que ambos vêm instituindo
tion of the work process, guarantee of accessi- necessidades e modos capturados de agir, num
bility, expanded demands on the health service jogo de encontro e negociação de necessidades,
and health team, changes in the nursing work o que determina uma maior autonomia no agir
process, humanization, and bonding. dos trabalhadores e equipes 2.
É com base na noção de espaço intercessor
User Embracement; Nursing; Family Health como encontro e negociação entre trabalhadores
Program e usuários que situamos o acolhimento, enquan-
to uma etapa do processo de trabalho e enquanto
um modo específico de encontro. Vários autores
conceituaram acolhimento e contribuem, em
alguma medida, para sua operacionalização e
estudo 3,4,5,6,7.
Teixeira 6 é um dos autores que trabalha com
a abordagem do acolhimento enquanto um mo-
do de se relacionar com os usuários e o define co-
mo uma “rede de conversações”. O autor propõe

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a adoção do termo acolhimento-diálogo para de- nos quais o serviço constitui seus mecanismos de
finir um tipo especial de conversa que se dá (ou recepção dos usuários” 3 (p. 39).
deveria se dar) no interior dos serviços de saúde Os objetivos do acolhimento seriam, por es-
e que ele considera como “uma espécie de mola sa perspectiva: ampliar o acesso dos usuários
mestra da lógica tecnoassistencial e, mesmo, como ao serviço, humanizar o atendimento e funcio-
um dispositivo indispensável para o bom desem- nar como dispositivo para a reorganização do
penho da rede tecnoassistencial de um serviço de processo de trabalho. De acordo com Silva Jr. &
saúde” 6 (p. 99). Mascarenhas 5, o acolhimento, entendido como
A idéia é de que o acolhimento tem um pa- reformulador do processo de trabalho, pontua
pel fundamental na rede de conversações que problemas e oferece soluções e respostas pela
constitui um serviço de saúde, na verdade, ocu- identificação das demandas dos usuários, rearti-
pando todos os lugares e tendo o papel de re- culando o serviço em torno delas.
ceber e interligar uma conversa à outra, conec- Franco et al. 3 consideram que o acolhimento
tando os diferentes espaços de conversa, e se modifica radicalmente o processo de trabalho,
dá em qualquer encontro trabalhador-usuário, em especial dos profissionais não médicos que
em qualquer dessas conversas. Os trabalhadores realizam assistência, visto que a organização do
continuamente acolhem novas possíveis deman- serviço passa a ter a “equipe de acolhimento” co-
das e, quando necessário, “convidam o usuário a mo central no atendimento aos usuários. Abre-
freqüentar outros espaços, a entreter outras con- se, supostamente, a possibilidade para que esses
versas” 6 (p. 101). profissionais lancem mão de todas as tecnologias
O “acolhimento-diálogo” pode oferecer ao de sua “caixa de ferramentas” para receber, es-
usuário maior possibilidade de trânsito pela re- cutar e solucionar problemas de saúde trazidos
de e ocorre em todos os encontros assistenciais pelos usuários.
durante a passagem do usuário pelo serviço, por- O acolhimento configurar-se-ia, então, em
que se trata efetivamente da contínua investiga- uma etapa do processo de trabalho responsável
ção/elaboração/negociação das necessidades de pelo atendimento da demanda espontânea. A
saúde que podem vir a ser satisfeitas pelo serviço, proposta de implantação do acolhimento anali-
processo que não deve deixar nunca de acon- sada por esses autores, implementada no Muni-
tecer, tendo em vista que as necessidades não cípio de Betim, em Minas Gerais, valia-se de al-
são imediatamente transparentes e nem jamais guns pressupostos básicos e buscava superá-los:
definitivamente definidas 6. demanda reprimida significativa, alta solicitação
Desse modo, entendemos, conforme Teixei- por consulta médica mesmo sem necessidade
ra 6, que o acolhimento não é necessariamente verificada, trabalho na unidade centrado na prá-
uma atividade em si, mas conteúdo de toda ati- tica médica, baixo aproveitamento do potencial
vidade assistencial, que consiste na busca cons- para assistência dos demais profissionais e dete-
tante de um reconhecimento cada vez maior das rioração da relação trabalhador-usuário, causada
necessidades de saúde dos usuários e das formas pela alienação do processo de trabalho 3.
possíveis de satisfazê-las, resultando em encami- Os autores pontuam algumas mudanças
nhamentos, deslocamentos e trânsitos pela rede operadas pela implementação do acolhimento
assistencial. especificamente no trabalho de enfermagem. A
Esse entendimento aproxima-se do que Silva enfermeira, além de acolher, ficou responsável
Jr. & Mascarenhas 5 denominam de acolhimen- pela supervisão do atendimento realizado pe-
to como postura, que pressupõe uma atitude da las auxiliares de enfermagem, pelas orientações
equipe de comprometimento em receber, escu- sobre as condutas e utilização dos protocolos,
tar e tratar de forma humanizada os usuários e elaborados pela equipe e que indicavam as con-
suas necessidades, por meio de uma relação de dutas a serem tomadas diante das queixas mais
mútuo interesse entre trabalhadores e usuários, comuns dos usuários que procuravam a unidade
estruturada enquanto “relação de ajuda”, confor- e as atribuições de cada membro da equipe.
me Camelo et al. 7. De acordo com esses autores, a reorganiza-
Há ainda uma outra possibilidade de en- ção do trabalho com base no acolhimento resul-
tendimento do acolhimento que Franco et al. 3 tou maior resolubilidade no trabalho da enfer-
definem como a possibilidade de olhar para o meira na assistência, por conta da definição de
processo de produção da relação entre usuário protocolos de conduta que incluem a prescrição
e serviço por intermédio da questão da acessi- de vários medicamentos e exames, o que ainda
bilidade, das ações de recepção dos usuários no favoreceu o fluxo dos usuários. Além disso, houve
serviço de saúde. Nesse sentido, o acolhimen- um aumento na autonomia da enfermeira, en-
to aparece como uma etapa do processo, “um tendida aqui como “a condição de o profissional
dispositivo a provocar ruídos sobre os momentos decidir sobre o seu trabalho, o exercício pleno do

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‘saber fazer’ no momento do procedimento assis- Metodologia


tencial” 3 (p. 45).
Com relação às auxiliares de enfermagem, os Trata-se de um estudo que se orientou pela abor-
autores afirmam o seguinte: “seu trabalho ante- dagem qualitativa de pesquisa, por entender-
rior à implantação do acolhimento resumia-se mos que o objeto em estudo é histórico e social,
às atividades próprias da sua função (curativo, constituído por processos de trabalho cuja com-
injeção, vacina, distribuição de medicamentos) plexidade e dinâmica só podem ser compreen-
e apoio aos médicos. A Auxiliar de Enfermagem, didas de forma abrangente por suas dimensões
ao contrário do que era no modelo anterior, dei- qualitativas. Os dados foram coletados de de-
xa de ser apenas um acessório na organização do zembro/2003 a janeiro/2004, pelas observações
processo de trabalho na Unidade de Saúde, para participantes e entrevistas semi-estruturadas. O
assumir a plenitude da sua profissão em benefício trabalho de campo desenvolveu-se em cinco cen-
do atendimento com qualidade” 3 (p. 45-6). tros de saúde do Município de Campinas, sendo
Os mesmos autores concluem que o acolhi- um por distrito de saúde. Em cada um, foi obser-
mento tem como resultado imediato esperado a vado o trabalho da equipe de enfermagem nos
reversão do modelo tecnoassistencial, mas pode diferentes períodos e durante, pelo menos, três
ainda contribuir com o acúmulo de outros ga- dias. O grupo que participou das entrevistas é
nhos, já que tem potencial para reorganizar os composto por quatro auxiliares de enfermagem,
serviços de saúde por intermédio do processo de sete enfermeiras, quatro coordenadoras (sendo
trabalho, e construir dispositivos auto-analíticos três enfermeiras e uma odontóloga), totalizando
e autogestionários, além de provocar mudanças quinze entrevistadas.
estruturais na forma de gestão do serviço. Com relação à análise dos dados, adotamos
Temos, então, duas possibilidades de enten- os passos operacionais propostos por Minayo 8:
dimento do acolhimento expostas aqui: uma ordenação, classificação e análise final dos da-
como postura diante do usuário e suas necessida- dos. Iniciamos fazendo organização inicial dos
des, de contínua investigação e negociação das dados, agrupando os que diziam respeito a temas
necessidades de saúde e modos de satisfazê-las afins obtidos nas entrevistas e nos registros do
em todos os momentos do processo de produção diário de campo, para possibilitar o contraponto
de serviços de saúde. E outra, como dispositivo entre a perspectiva dos sujeitos e a observação
capaz de reorganizar o trabalho na unidade, uma do concreto do trabalho. Procedemos à leitura
etapa do processo de trabalho que tem como ob- exaustiva dos dados, estabelecendo um esboço
jetivo atender à demanda espontânea, aumen- inicial das categorias de análise pela interação
tando o acesso e humanizando as ações recepto- entre empírico e teórico. Em seguida, fizemos a
ras dos usuários no serviço. priorização dos temas mais relevantes de acordo
Entendemos que elas não são excludentes com o objeto de estudo, organizando os dados na
entre si, que o fato de o acolhimento constituir-se categoria de análise.
uma “atividade” oferecida pela unidade não im- Foram observados rigorosamente todos os
pede que se estabeleça uma relação acolhedora aspectos éticos envolvidos na pesquisa com se-
em todos os espaços e momentos da produção res humanos, conforme proposto pela Resolu-
de serviços de saúde, entre a equipe como um ção n. 196/96 do Conselho Nacional de Saúde. Os
todo e os usuários (tanto aqueles representados trabalhadores das unidades aceitaram participar
pela demanda espontânea quanto aqueles que do estudo, assinando o Termo de Consentimento
não procuram o serviço, mas também necessi- Livre e Esclarecido. Além disso, foi solicitada au-
tam de atenção). torização para a pesquisa aos coordenadores das
Compreendemos que há que se ter cuidado unidades e à Secretaria Municipal de Saúde. O
com uma questão importante na adoção da se- projeto foi submetido à análise pelo Comitê de
gunda forma de compreender e operacionalizar Ética em Pesquisa da Faculdade de Ciências Mé-
o acolhimento nos serviços de saúde: o fato de dicas, Universidade Estadual de Campinas, em
haver um espaço específico e uma equipe espe- outubro/2003, tendo sido aprovado pelo parecer
cífica para o acolhimento pode des-responsabili- n. 50603.
zar o restante da equipe por estabelecer relações
acolhedoras e de investigação das necessidades
de saúde e comprometimento com sua satisfa- Diferentes concepções dos trabalhadores
ção nos demais espaços de encontro e de aten- acerca do acolhimento
ção à saúde.
Cada centro de saúde pesquisado apresentava
particularidades na organização do que se deno-
minava acolhimento. Concepções, formas dife-

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rentes, particulares, de organizar e fazer acolhi- cialmente a queixa na recepção e, depois, agen-
mento, não apenas no que se refere a cada um davam a consulta. Nos casos em que não havia
dos cinco serviços, mas, com freqüência, diferen- mais vagas, chamavam um dos enfermeiros para
tes mesmo entre equipes e trabalhadores dentro atender.
da própria unidade. O acolhimento, como vimos, poderia am-
A primeira diferenciação que faremos é quan- pliar a possibilidade de intervenção dos outros
to à concepção acerca do que é acolhimento. Em profissionais do centro de saúde que não o mé-
quatro centros de saúde (São Marcos, São Cris- dico, ou seja, ampliar o cardápio de ofertas da
tóvão, Paranapanema e Ipaussurama), o acolhi- unidade para atender as necessidades de saú-
mento era considerado uma atividade ofereci- de da população buscando romper com uma
da à população, um tipo supostamente novo de lógica médico-centrada. Supostamente, o aco-
atendimento no cardápio de opções do centro de lhimento deveria ampliar a resolubilidade dos
saúde para atender às necessidades da popula- outros profissionais, notadamente a enferma-
ção. Apenas na unidade Joaquim Egídio o acolhi- gem, numa perspectiva de que as necessidades
mento era considerado não uma atividade, mas de saúde da população não podem nem devem
uma forma diferente de fazer em todos os setores ser atendidas exclusivamente por meio da con-
da unidade, uma postura ou atitude diante do sulta médica.
usuário e de suas necessidades. Entretanto, não notamos essa conseqüência
do acolhimento nessas quatro unidades pesqui-
sadas. A enfermagem ficou, de fato, responsável
O acolhimento nos centros de pelos acolhimentos nesses quatro centros de saú-
saúde São Marcos, São Cristóvão, de, porém o enfoque percebido por nós foi o da
Paranapanema e Ipaussurama realização de triagem: a função da enfermagem
no acolhimento era basicamente escutar a quei-
Formas de organizar o processo de trabalho xa e avaliar a necessidade de consulta médica. Na
verdade, a enfermagem estava cumprindo o pa-
Para atender a demanda dos usuários com “quei- pel de atender toda a demanda espontânea, ou a
xas” e que não estão agendados, os centros de parte dela que não cabia diretamente na agenda
saúde organizaram-se de formas diferentes e, em médica, e avaliar os casos que requeriam consul-
geral, passaram por diversas tentativas de orga- ta médica imediata ou que poderiam aguardar
nização. Apesar das particularidades de cada um, vaga na agenda.
havia uma característica comum às unidades São A própria normalização de que as auxiliares
Cristóvão, São Marcos e Ipaussurama: o acolhi- de enfermagem não poderiam estabelecer con-
mento aparecia como um atendimento presta- duta nenhuma sozinhas, ou de que auxiliares e
do pelo auxiliar de enfermagem para avaliar a enfermeiras não poderiam dispensar usuários
queixa do usuário e decidir “se ele vai passar no com queixa sem avaliação médica, acabou res-
médico naquele dia ou não”, ou seja, se a deman- tringindo a possibilidade de atuação da equipe
da que ele traz requer um encaixe nas “vagas de de enfermagem e manteve uma lógica centrada
acolhimento” na agenda diária dos médicos ou nos saberes e práticas médicos. O acolhimento
se é possível agendar uma consulta médica de aparece como uma outra atividade de apoio ao
rotina. trabalho médico, que facilita esse trabalho, orga-
No Centro de Saúde Paranapanema, a con- niza, e que acaba por reproduzir a lógica hege-
cepção sobre acolhimento pareceu-nos um mônica, ao invés de superá-la.
pouco diferente. Pelo que pudemos observar na
entrevista com a coordenadora, o acolhimento Acolhimento como garantia de
seria a primeira consulta com o médico e o aten- acesso e ampliação da demanda
dimento feito pela enfermagem no acolhimento
seria apenas uma forma de suprir a falta de médi- Nas quatro unidades, houve referência ao fato de
co ou os casos em que a agenda de vagas de aco- que a implementação da proposta de acolhimen-
lhimento já estivesse esgotada e fosse necessário to garantiu uma ampliação do acesso ao serviço,
um atendimento imediato. com diminuição (ou mesmo eliminação) das filas
Nesse centro de saúde, as auxiliares de enfer- e incorporação de parcela significativa da popu-
magem ou os enfermeiros não ficaram respon- lação que estava excluída das unidades, quando
sáveis pelo acolhimento, porque o acolhimento estas funcionavam na lógica anterior – da distri-
aparentemente ficou sendo sinônimo de consul- buição de senhas de acordo com a quantidade
ta médica eventual, sem agendamento. Ainda as- de consultas de eventuais disponíveis no dia, da
sim, a enfermagem tinha seu papel de recepção inexistência de avaliação da necessidade da con-
da demanda dos usuários, afinal, avaliavam ini- sulta, nos dias de abertura de agenda.

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Nessas unidades, em que o acolhimento é Ainda que o acolhimento permaneça sendo en-
entendido majoritariamente como um serviço, tendido predominantemente como um dispo-
ele tem representado justamente a resposta da sitivo, ainda que funcione em uma lógica médi-
unidade buscando atender, de alguma forma, a co-centrada, marcado pela baixa resolubilidade
todos os usuários que procuram o serviço. Fre- e baixa autonomia da enfermagem, não há como
qüentemente, não só nas entrevistas, mas du- negar que rearranjou a prática de enfermagem
rante a observação do trabalho nas unidades, os nas unidades.
trabalhadores afirmam que “ninguém pode ser Uma conseqüência importante trazida pe-
mandado embora sem um atendimento”. Com lo acolhimento parece ser a re-significação do
isso, há também um aumento da demanda de trabalho para os auxiliares de enfermagem. O
trabalho e a necessidade de alternativas de en- atendimento de enfermagem prestado no aco-
caminhamento para essa demanda, resultando, lhimento, nas diferentes formas em que ele foi
conseqüentemente, em aumento do trabalho na organizado em cada unidade, trouxe novas pos-
unidade, no mínimo do ponto de vista do núme- sibilidades para o cotidiano do trabalho do auxi-
ro de atendimentos. liar de enfermagem, incorporando algum grau de
Olhando especificamente para o trabalho de satisfação e conferindo um novo significado ao
enfermagem, é possível identificar essa questão, trabalho, na perspectiva das entrevistadas.
em especial, quando se analisam as falas e as prá- Uma das auxiliares entrevistadas, afirmou
ticas dos auxiliares de enfermagem. Nas quatro que, depois de cinco anos “fazendo a dispensação
unidades a que nos referimos, o atendimento dos de medicamentos na farmácia”, o acolhimento
acolhimentos tem ficado, predominantemente, a trouxe para ela uma nova possibilidade, que a fez
cargo dos auxiliares de enfermagem. Há também sentir-se mais capacitada, mais autônoma e mais
um aumento da demanda de avaliações e con- segura. De um trabalho monótono, restrito, com
sultas extras por parte dos médicos e de supervi- pouco espaço para a interação com o usuário e
são desse trabalho dos auxiliares (no que diz res- pequena relação com o que se idealiza como “tra-
peito, especialmente, ao esclarecimento de dúvi- balhar em saúde”, ela passou a fazer atendimen-
das e avaliação de casos mais complexos) pelos tos, ouvir, ajudar, passou a relacionar-se direta-
enfermeiros. No entanto, quem tem recebido e mente com os usuários, a supostamente resolver
atendido a maior parte dessa demanda “nova” problemas e dar respostas a necessidades.
das unidades são os auxiliares de enfermagem, Essa é uma dimensão importante a se consi-
tanto na recepção (nos centros de saúde onde ela derar – a satisfação dos trabalhadores com a sua
continua sendo a porta de entrada), quanto nos prática, agora mais dotada de sentido, na per-
acolhimentos enquanto atendimentos de enfer- cepção deles. De alguma forma, o trabalho do
magem à demanda espontânea. auxiliar qualifica-se, passa a integrar mais efeti-
Seis das sete enfermeiras entrevistadas e dois vamente o trabalho em equipe, a prática deixa
outros que não foram entrevistados (mas que re- de ser restrita apenas ao atendimento individual,
lataram suas atividades durante a observação) fragmentado, e os auxiliares passam a enxergar
afirmaram que o acolhimento está entre as três mais nitidamente o produto do seu trabalho. E,
atividades que mais fazem – pelo que pudemos por isso mesmo, sentem-se e são mais reconheci-
observar, referem-se à realização do atendimen- dos e valorizados (pela equipe e pelos usuários).
to propriamente dito, bem como à demanda por O trabalhador desaliena-se em alguma medida e,
orientação e supervisão nos atendimentos reali- juntamente com o usuário-cidadão, atua como
zados pelos auxiliares de enfermagem. sujeito responsável pela interação de ambos.
Logo, a enfermagem esteve bastante envolvi- Contudo, essa satisfação e essa preferência
da no processo de implantação do acolhimento dos trabalhadores de enfermagem pelo trabalho
nas unidades e os trabalhadores da enfermagem com o acolhimento não é consenso. Na percep-
ficaram responsáveis pela maior parte das ati- ção dos entrevistados, a razão da insatisfação
vidades que vinham sendo denominadas aco- de alguns trabalhadores da enfermagem com o
lhimento nos Centros de Saúde São Marcos, São trabalho reorganizado para incorporar o acolhi-
Cristóvão, Ipaussurama e Paranapanema. mento reside, justamente, na referência à sobre-
carga de trabalho.
Transformações no trabalho de enfermagem Além do aumento da demanda em termos da
por referência ao acolhimento quantidade de usuários chegando ao serviço, há
um aumento do trabalho de outra ordem – um
A incorporação do acolhimento à dinâmica dos aumento “qualitativo”, digamos. Uma das coorde-
centros de saúde trouxe transformações ao pro- nadoras de unidade fez uma análise interessante
cesso de trabalho de enfermagem, conseqüên- do que poderia estar causando essa percepção de
cias do aumento da demanda, mas não apenas. sobrecarga de trabalho por parte dos trabalhado-

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res. No seu entender, a equipe considera o traba- seu foco – o usuário e suas necessidades de saúde
lho no acolhimento muito complexo e, quando – e que a relação entre trabalhadores e usuários
questionada sobre a razão dessa percepção da dos serviços de saúde tem se realizado de for-
equipe, afirmou que essa complexidade relacio- ma mecânica e superficial, restrita à produção
na-se à exigência do trabalho em equipe, para a de procedimentos e consultas, verificamos que
resolução dos problemas identificados pelo aco- o trabalho de enfermagem vem funcionando nu-
lhimento; à necessidade de comprometimento ma lógica de “tocar o serviço”, “fazer atendimen-
do trabalhador com o usuário, por causa da es- tos”, em que a maioria de seus agentes não olha e
cuta da demanda trazida por ele; e ao sofrimento não ouve o usuário e suas necessidades e não se
decorrente da responsabilidade por acolher (e compromete, de fato, com o atendimento dessas
supostamente dar resposta a) os problemas e as necessidades 7. Se o trabalhador, com o acolhi-
necessidades dos usuários. mento, passa a ouvir e está colocado numa posi-
O auxiliar de enfermagem, na maioria das ve- ção de responsável por desencadear algum tipo
zes, foi designado como o trabalhador responsá- de resposta, de solução para o problema iden-
vel pelo acolhimento, enquanto etapa do proces- tificado, cria-se, então, uma situação de maior
so de trabalho. Como vimos, quando se atribui envolvimento.
um responsável, quando se estabelece que o aco- Temos, em um momento anterior, uma au-
lhimento é uma etapa do processo de trabalho xiliar de enfermagem que está na recepção de
na unidade, um atendimento (com um lócus es- uma unidade básica atendendo um usuário que
pecífico, um trabalhador específico), o resultado, vem ao serviço trazendo um problema de saúde
muito provavelmente, é o descomprometimento que espera que seja resolvido. E essa auxiliar res-
do restante da equipe. O acolhimento deixa de ponde que não há consulta e que ele deve voltar
ser responsabilidade de todos, deixa de ser uma em outro dia. Pela implantação do acolhimento,
atitude da equipe, do serviço, diante do usuário e temos uma auxiliar de enfermagem que atende
suas demandas (as declaradas e as não declara- esse mesmo usuário, em um dado lugar, senta-se
das), e passa a ser apenas mais um procedimento; frente a frente e pergunta qual é o problema, ou-
perdendo o potencial de dispositivo de gestão ve, anota no prontuário e vai atrás do enfermeiro
para a reorganização do processo de trabalho, ou do médico para avaliar. Embora essa segunda
numa perspectiva crítica e comprometida com auxiliar não esteja acolhendo de fato no sentido
as necessidades da população. E tal procedimen- de atender, responder, personalizar e orientar 7,
to, de recepção qualificada, conformou-se como embora se trate apenas de uma recepção quali-
atribuição da enfermagem, destacadamente do ficada, ainda distante do estabelecimento ideal
auxiliar de enfermagem. de vínculo e responsabilidade, o trabalho desen-
O trabalhador que está no acolhimento ou- volvido por ela e pela equipe de saúde é maior,
ve a demanda, a queixa, o problema, a neces- talvez inclusive melhor.
sidade do usuário que está ali, na sua frente, e A recepção dos centros de saúde comumente
é responsável por dar algum tipo de resposta. foi e continua sendo considerada um lugar difí-
Da forma como o acolhimento foi organizado e cil de trabalhar. Quem está ali é responsável por
tem acontecido freqüentemente nas unidades, receber todos os usuários que chegam, com su-
dificilmente o auxiliar de enfermagem consegue as diferentes demandas e encaminhá-los dentro
dar essa resposta sozinho. E essa impossibilidade das alternativas existentes no serviço. E quando
não é pautada apenas pelos limites determina- não há alternativa? E quando não há consulta? E
dos pela competência técnica esperada de um se não há nada a lhes oferecer? Tradicionalmen-
auxiliar de enfermagem. Obviamente os limites te a recepção é um lugar de conflito, não sendo
são também de outras ordens: a falta de capaci- difícil encontrar relatos ou presenciar situações
tação específica para o acolhimento, a inexistên- de agressão verbal e mesmo física, porque de um
cia de protocolos que orientem o atendimento lado há alguém que traz uma demanda que en-
das queixas comuns, a exigência (estabelecida tende que deveria ser atendida pelo serviço e que
em algumas unidades) de avaliação médica para lhe parece importante, urgente e merecedora de
todos os atendimentos realizados por auxiliar de uma resposta imediata, e de outro há um traba-
enfermagem, a falta de um cardápio mais amplo lhador que não tem nada a oferecer, não dispõe
de opções para encaminhamento das demandas ou não consegue enxergar outras ofertas e não se
identificadas, restrito apoio e participação da sente responsável por essa falta de opção.
equipe multiprofissional, entre outros tantos. Quando o acolhimento se estrutura como
Além disso, considerando que o trabalho em uma recepção melhorada, aparentemente a di-
saúde (e, conseqüentemente, na enfermagem) ficuldade, para os trabalhadores, aumenta. Eles
tem obedecido a uma lógica centrada no traba- têm que atender a todos e têm de ouvi-los. Essa
lho médico e no procedimento, desviando-se de escuta – por mais que seja meramente ouvir o

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que o outro diz, por mais que não seja “escuta tante da inserção do acolhimento na dinâmica
qualificada” – traz uma implicação, uma respon- do trabalho nas unidades. Em geral, essas falas
sabilidade para o trabalhador. O trabalhador per- apontam na direção da humanização do acesso,
guntou qual era o problema, o usuário contou. E mais precisamente da humanização da recepção,
agora? da porta de entrada do serviço.
Quando o serviço abre um canal de escuta No Centro de Saúde São Marcos, as entrevis-
com o usuário, abre uma possibilidade para que tadas destacaram que a mudança ocorrida na
as pessoas tragam, para dentro do centro de saú- recepção foi fundamental para a transformação
de, as suas queixas, os seus problemas e as suas da relação entre trabalhadores e usuários. A re-
necessidades. Nem sempre é fácil ouvir. É mais tirada da grade da recepção e a possibilidade de
fácil trabalhar com uma “queixa clínica”, uma receber os usuários numa sala, ouvir o que eles
parte do corpo que dói, uma doença que precisa têm a dizer, avaliar a queixa, oferecer as possi-
de medicamento. Quando abrimos um espaço bilidades disponíveis, mesmo que essas ainda
para o diálogo com o usuário, por mais reduzi- sejam restritas, aparece como fator desencade-
do que ele seja, abrimos uma porta para que a ador de uma relação mais respeitosa entre tra-
“vida lá fora” entre na dinâmica do trabalho da balhadores e usuários. O serviço passa a receber
unidade. os usuários de uma outra forma, com mais espa-
Acolher não é simples e demanda energia. A ço para o diálogo, e os usuários se sentem mais
partir da instauração do acolhimento, aquelas “acolhidos”, o que diminui a ocorrência de con-
pessoas que eram dispensadas na recepção, que flitos e agressões, mesmo havendo ainda espera
não tinham suas demandas atendidas e com as e falta de vagas.
quais o serviço e os trabalhadores não se com- Mesmo quando a mudança na relação entre
prometiam (muitas sequer tinham acesso à re- trabalhadores e usuários não foi tão significativa
cepção), passam a ser ouvidas em espaço físico quanto a percebida pelas entrevistadas no Cen-
mais reservado e têm a oportunidade de falar de tro de Saúde São Marcos, a ampliação do acesso
seus problemas com um profissional de saúde. em si é entendida como fator “humanizante” da
Freqüentemente, o trabalhador que está na relação entre o serviço e os usuários.
recepção do centro de saúde não vai ter respos- As mudanças apontadas nas entrevistas pa-
tas para dar, não vai ter soluções para aqueles recem indicar que o acolhimento, do modo co-
problemas, por inúmeras razões. O serviço não mo se estruturou nas unidades, contribuiu para
oferece opções, não há como encaminhar para “humanizar” as ações de recepção dos usuários e
outro local, não há colaboração da equipe, o tra- suas demandas no serviço. A garantia do acesso
balhador não identifica as opções que existem, a e a abertura de um canal de diálogo, com base
natureza dos problemas foge ao alcance do tra- no acolhimento, são identificados pela equipe
balhador e do serviço. Isso gera angústia. Passar o como responsáveis pelo estabelecimento de uma
dia ouvindo queixas, problemas, necessidades da relação mais respeitosa com os usuários, de re-
população (às vezes, “horríveis”) e não saber ou conhecimento das demandas, das necessidades
não ter como resolvê-los é a situação comumen- e do sofrimento das pessoas que recorrem ao
te referida pelo trabalhador do acolhimento. serviço de saúde como instituição socialmente
Os trabalhadores assumem maiores res- reconhecida como responsável pela solução des-
ponsabilidades, alguns, inclusive, como vimos, sas questões.
sentem-se valorizados e reconhecidos por isso; Entendemos que “humanizar” as relações
todavia essas responsabilidades podem repre- entre usuários e trabalhadores, conseqüente-
sentar um sofrimento. Pessoas que escolheram o mente “humanizando” o processo de produção
trabalho de cuidar de outras pessoas, ajudando- de serviços de saúde, significa reconhecer os su-
as, que entendem que seu objetivo é “melhorar jeitos como dotados de desejos, necessidades e
a vida das pessoas”, “ajudar os pacientes”, “fazer direitos. A finalidade última do processo de tra-
com que eles fiquem mais saudáveis” etc., vêem- balho em saúde é justamente a produção de algo
se “acolhendo” muitos problemas de muitas pes- – a ação de saúde – que responda a necessidades
soas, mas, freqüentemente, sentem-se incapazes de saúde dos usuários. Reconhecê-los como su-
de resolvê-los. E, na maior parte do tempo, não jeitos significa comprometer-se com a satisfação
contam com apoio institucional e supervisão pa- de necessidades, entendendo a saúde como um
ra trabalhar tais questões. direito, pela construção de relações de acolhi-
mento, vínculo e responsabilização. Nas palavras
Humanização de Puccini & Cecílio 9 (p. 1350), é necessário que
se criem “formas que materializem social e po-
As falas de algumas entrevistadas destacam a hu- liticamente uma ação cuidadora integral, como
manização como uma mudança positiva e resul- direito de cidadania”.

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A humanização da recepção com o acolhi- procuram o serviço buscando uma oportunidade


mento, nesse sentido indicado pelas entrevista- para falar dos seus problemas e ser ouvido é co-
das, e a ampliação do acesso são questões impor- mum no Centro de Saúde Joaquim Egídio. No en-
tantes na construção de modelos de atenção à tanto, há uma diferença fundamental entre essa
saúde centrados no usuário e suas necessidades unidade e as demais: há um esquema mais estru-
de saúde, no entanto, definitivamente, não es- turado para atendimento dessa necessidade dos
gotam o conceito de humanização num sentido usuários. Pelo que pudemos observar e foi dito
mais amplo, de reconhecimento da saúde como nas entrevistas, essa escuta no Centro de Saúde
direito das pessoas e de busca contínua da satis- Joaquim Egídio diferencia-se das demais unida-
fação de necessidades de saúde. des, pois o trabalhador não escuta o que o usu-
ário diz com o entendimento de que ele precisa
apenas falar, como se a escuta, pura e simples,
O acolhimento no Centro de Saúde fosse a resposta necessária. A partir dessa escuta
Joaquim Egídio inicial, se a equipe julga necessário, um trabalho
de acompanhamento é desencadeado.
No Centro de Saúde Joaquim Egídio, o acolhi- O Centro de Saúde Joaquim Egídio tem uma
mento não é encarado como uma etapa do pro- equipe que compõe o Núcleo de Saúde Mental
cesso de trabalho, não se configurou como uma da unidade, que tem como objetivo justamente
atividade ou serviço novo oferecido à população. acompanhar esses casos, fazendo o que eles cha-
O acolhimento é entendido como uma postura, mam de aconselhamento e também avaliando a
uma forma de receber e atender os usuários em necessidade de encaminhamento para consulta
qualquer momento de interação entre a equipe de psicologia ou psiquiatria, quando é o caso. Es-
e a população, no sentido do que é proposto por sa equipe é formada por uma enfermeira, uma
Teixeira 6. Então, fala-se em acolher na sala de auxiliar de enfermagem, uma agente comunitá-
vacina, na recepção, na visita domiciliária, na ria de saúde e uma médica clínica geral e conta
consulta de enfermagem, na dispensação de com o apoio matricial de uma psicóloga de um
medicamentos. centro de saúde próximo.
Nas entrevistas, o acolhimento aparece como Podemos entender, portanto, que os traba-
a escuta das demandas do usuário, bem como a lhadores identificam necessidades nesse sentido
investigação de riscos e das necessidades de saú- e, a partir daí, caso julguem necessário, assumem
de, além do comprometimento com a resolução seu acompanhamento ou encaminham-no para
das questões trazidas pelo usuário ou identifica- os profissionais que compõem o Núcleo de Saú-
das pelo trabalhador. de Mental e que acabaram se tornando referência
Uma outra concepção do acolhimento que para o atendimento desses usuários. Pela fala da
também permeia os discursos dos trabalhado- enfermeira do centro de saúde, a idéia inicial era
res, tanto durante as entrevistas quanto na ob- de que toda a equipe fizesse esse tipo de acom-
servação do trabalho, é a de que o acolhimento panhamento dos usuários que necessitassem.
tem como um importante objetivo dar respos- No entanto, a constituição do núcleo acabou
tas às necessidades dos usuários que não se- por criar uma cultura de encaminhamento para
jam clínicas, que dizem respeito ao que Cecílio aqueles que estão mais envolvidos com esse tra-
10 (p. 115) denomina necessidade de “vínculos balho ou que são considerados mais disponíveis
(a)efetivos entre cada usuário e uma equipe e/ou e capacitados, e por isso mesmo o integram.
profissional”. Logo, o acolhimento no Centro de Saúde
A equipe de enfermagem do Centro de Saúde Joaquim Egídio se configura como uma atitude
Joaquim Egídio demonstra predominantemente diante do usuário – de escuta, investigação de
ter a concepção – presente também nas outras necessidades, responsabilização com o ofereci-
unidades – de que o acolhimento pode ser um mento de uma resposta a essas necessidades.
momento de interação entre trabalhadores e
usuários com a finalidade específica de lidar mais
com a necessidade dos usuários de estabelecer Conclusão
vínculo com o trabalhador e equipe: necessida-
de de conversar, desabafar, falar dos problemas. O acolhimento apareceu, predominantemente,
Mesmo quando não há um “problema de saúde” como garantia de acesso à recepção das unida-
instalado, no sentido mais restrito da expressão, des e de humanização dela, tendo sido entendido
como uma doença ou uma questão de ordem fí- enquanto uma postura diante das necessidades
sica que justifique a procura pelo serviço. dos usuários em todos os momentos de encon-
Assim como nos outros centros de saúde, tro dele com o serviço em apenas uma unidade
essa percepção de que os usuários muitas vezes estudada. Pelo modo como se operacionalizou

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ACOLHIMENTO E TRANSFORMAÇÕES NO PROCESSO DE TRABALHO DE ENFERMAGEM 339

em quatro das unidades pesquisadas, o acolhi- Devemos, no entanto, destacar que algo já
mento acabou por favorecer somente o atendi- se conquistou na direção do reconhecimento da
mento da demanda espontânea e configurou-se saúde como um direito. No mínimo, quando se
muito mais como um pronto-atendimento para amplia o acesso, reduzem-se as filas de espera
as queixas agudas do que como um fator desen- e aumenta-se o respeito pela dor e dificuldades
cadeador de transformações no processo de tra- dos usuários dos serviços. Contudo, reiteramos
balho ou da construção de relações entre traba- que a consolidação dos avanços alcançados
lhadores e usuários baseadas na solidariedade e com a implantação do acolhimento demanda
no compromisso com a identificação e satisfa- que os agentes de tal trabalho sejam atendidos
ção das necessidades de saúde. Por conseguinte, em suas necessidades de educação permanente,
pode ser considerado não mais do que um novo supervisão e apoio institucional a fim de que o
“procedimento” de recepção, sem ter conseguido trabalho que realizam seja qualificado de forma
desencadear novas posturas ou configurar-se co- inequívoca.
mo um dispositivo de análise e gestão.

Resumo Colaboradores

O presente artigo relata as transformações no trabalho M. L. S. Takemoto e E. M. Silva participaram conjunta-


da enfermagem com a incorporação do acolhimento mente da concepção do artigo, da análise nele contida
no processo de implementação do Projeto Paidéia de e da revisão do texto final.
Saúde da Família na Secretaria Municipal de Saú-
de de Campinas, São Paulo, Brasil, a partir de 2001.
Apresenta os dados obtidos por intermédio da reali-
zação de observação participante e entrevistas semi-
estruturadas na investigação do processo de trabalho
de enfermagem por referência ao acolhimento. Baseia
suas análises na existência de dois modos diferentes de
pensar e operacionalizar o acolhimento: como postu-
ra diante dos usuários e suas necessidades e como um
dispositivo capaz de reorganizar o processo de traba-
lho. Além disso, analisa o acolhimento com base nas
seguintes questões: organização do processo de traba-
lho, garantia de acesso, ampliação da demanda, trans-
formações no trabalho de enfermagem, humanização
e vínculo.

Acolhimento; Enfermagem; Programa Saúde da


Família

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