partir de Aristóteles
Luis Fernando Barzotto
O conhecimento do direito que caracteriza o jurista segue chamando-se com boas razões
jurisprudência, literalmente, prudência jurídica. Esta palavra recorda ainda o legado da filosofia
prática, que via na prudentia a virtude suprema de uma racionalidade prática. O fato de que a
expressão ciência do direito tenha prevalecido a partir do final do século XIX indica a perda da
idéia de uma peculiaridade metodológica deste saber jurídico e de sua definição prática.
Hans-Georg Gadamer
1 INTRODUÇÃO
Não foi o acaso que fez os romanos, os inventores da ciência do direito, a chamar a sua
disciplina de jurisprudentia (a prudência do direito) e o jurista de prudens (prudente).
A influência grega se faz sentir aqui. Como os romanos não eram dados a abstrações, nunca
criaram uma teoria da ciência jurídica, que explicitasse a sua natureza e função. Em parte, é
verdade, isso não se fazia necessário, uma vez que o que pretendiam expressar como termo
prudentia não era senão uma tradução do termo grego phronesis. Esse, em toda cultura grega, de
Homero a Aristóteles, pretende designar um tipo de saber que orienta a ação (práxis), sendo,
portanto, o prudente (phronimos) aquele que sabe agir, que sabe tomar as decisões corretas nas
diversas situações da vida humana.
O conceito grego de phronesis (prudência) origina-se na cultura popular grega, e podemos
encontrar vestígios dele em Homero, na religião délfica e nas tragédias. Ele encontra o seu
sistematizador em Aristóteles. Para examinar o pensamento deste último, é necessário proceder a
uma análise do termo phronesis na cultura grega, segundo a advertência de Jaeger: “Nenhuma
filosofia vive da pura razão. Ela é apenas a forma conceitual e sublimada da cultura e da civilização,
tais como se desenrolam na história.”
2 OS PRECURSORES DE ARISTÓTELES
2.1.1 Homero
Homero teve um papel ímpar como poeta. Não era sem motivo que ele era denominado o
“educador da Hélade”. Homero era invocado como autoridade em todas as questões, especialmente
naquelas que diziam respeito à moral e à religião. Em Atenas, a Ilíada e a Odisséia eram
memorizadas pelos jovens, determinando todo o vocabulário moral, político, estético e religioso.
Nesse contexto, os conceitos filosóficos não escaparam à influência homérica. É em Homero,
portanto, que deve iniciar a tentativa de determinação do conceito de prudência.
Embora Homero não utilize o termo phronesis na Ilíada, nela estão presentes termos da
mesma raiz, como sophrosyne (moderação) e euphronein (pensar corretamente). Na Odisséia já se
encontra o termo phronis, a forma primitiva do termo phronesis.
Em todos os casos de uso dos termos desta família, o que está em jogo é a atitude da pessoa
diante do papel social que lhe cabe desempenhar. Isso é relevante se atentarmos que, para Homero,
a ordem social faz parte da ordem cósmica, e essa ordem é conservada quando cada um cumpre de
um modo adequado a sua função. Aquele que não se atém ao seu papel, comete a hybris (o excesso,
a desmedida), comprometendo a ordem e acarretando o castigo. O homem prudente é aquele que
conhece os deveres relativos à posição que ocupa na ordem social, sabendo, portanto, como agir em
conformidade com as exigências do seu papel social nas diversas situações concretas.
O modelo de homem prudente para Homero é Nestor, rei de Pilos. Nestor é o mais velho dos
gregos, um ancião que “sobre a terceira geração reinava” (Ilíada I, 245). Pela sua experiência, é
considerado o melhor dos gregos no conselho, assim como Aquiles é o melhor na guerra.
No conflito entre Agamemnon e Aquiles, que abre a Ilíada, Nestor é aquele que aponta a
causa do conflito: a deserção em relação aos deveres da sua função. Agamemnon, apropriando-se da
escrava de Aquiles, transgride a função de um rei, a saber, governar com justiça; Aquiles, mostrando
insubordinação e abandonando a batalha, transgride a função do soldado, obedecer ao chefe. Nestor
aconselha a Agamemnon que não tome a escrava de Aquiles e a esse que não desobedeça ao
comandante-em-chefe dos gregos. Homero afirma de Nestor que esse “pensa bem”, euphronein
(Ilíada, I, 253), na medida em que conhece o papel que cabe a cada um. Também na Odisséia (III,
244), Telêmaco afirma que deve buscar o conselho de Nestor, pois ele “mais do que os outros,
possui justiça e prudência (phronis)”.
Homero inaugura, portanto, a idéia de um saber prático, nascido da experiência, que permite
ao homem conhecer seu lugar na ordem do mundo, orientando-o nas suas decisões concretas.
Como em qualquer análise da filosofia grega, também aqui se faz sentir a solidez da opinião
de Jaeger: “Devemos encarar a história da filosofia grega como o processo de racionalização
progressiva da concepção religiosa do mundo implícita nos mitos”.
De fato, o exame do conceito de prudência não deve descuidar a doutrina ligada ao culto de
Apolo, o “deus do sol, da luz e da clareza racional”, no santuário de Delfos, desde o século VIII
a.C. A síntese desta doutrina encontra-se nas máximas gravadas no pórtico do templo de Apolo:
“Conhece-te a ti mesmo” e “Nada em excesso.”
A máxima “Conhece-te a ti mesmo” convida o homem a proceder a um exame de si, não de
um modo introspectivo, mas tomando consciência do seu lugar na ordem cósmica, como em
Homero. Deste modo, o seu sentido pode ser enunciado assim: “Lembra-te que és um mortal” ou
“Não ultrapasses a medida do humano”, ou ainda “Lembra-te dos teus limites, tu, um mortal”. Ao
homem é lembrado o fato de que encontra-se inserido em uma ordem que não é obra sua, da qual
ele é apenas uma parte que deve adequar-se ao todo.
O homem que conhece a si mesmo e, portanto, está consciente dos limites impostos pela sua
condição humana, pensa as questões práticas de um modo correto, consegue apreender o que deve
fazer. Segundo Aubenque, ele pensa de um modo correto, pensa sensatamente porque pensa
humanamente, afastando “a tentação do sobre-humano”, adaptando seu comportamento a uma
ordem anterior e superior a ele.
A máxima “Nada em excesso” recorda o caráter objetivo da ordem e a necessidade de
conformar-se a ela, ao mesmo tempo em que convida o homem a buscar conhecer a justa medida da
ação, e nunca transgredi-la, guardando-se da hybris. Esse ideal é expresso pelo termo sophrosyne, a
moderação, o respeito aos limites, evitando o desejo de se ter mais que a sua parte (pleonexia),
curvando-se à ordem do mundo.
A religião de Delfos contribui para a formação do conceito de prudência com duas noções
expressas por termos da mesma raiz lingüística de phronesis: phronein, o respeito aos limites, e
sophrosyne, a busca do equilíbrio entre os extremos. O termo phronesis vai incorporar estas duas
noções.
À época em que escreve Ésquilo (525-456 a.C.), o termo phronesis já é corrente. Ésquilo
tem uma fé cega na ordem do mundo. Para ele, como para Homero e a tradição popular, a phronesis
consiste em respeitar os limites impostos pela ordem divina e não ultrapassar a medida do humano.
Na tragédia Os Persas, o fantasma de Dario reprova nestes termos a atitude do exército do seu filho
Xerxes, que pilhou os templos ao invadir a Grécia: “Montes de cadáveres, até a terceira geração,
indicarão sem palavras aos olhos dos mortais que quando se é mortal não se deve abrigar
pensamentos que ultrapassem a própria condição (...). Acima está Zeus, juiz rigoroso, que castiga os
pensamentos soberbos. Em conseqüência, porque Xerxes não tem prudência, levai-o à razão por
prudentes conselhos, a fim de que deixe de ofender os deuses com uma audácia cheia de
insolência.”
Mas é Sófocles (496-406 a. C.), entre os trágicos gregos, aquele que insiste de modo mais
veemente na prudência como obediência aos mandatos que cristalizam a ordem do mundo. A sua
tragédia mais célebre, Antígona, pode ser lida como uma advertência à catástrofe provocada pela
ausência de prudência no agir. De fato, a tragédia está mais centrada no tirano Creonte do que
propriamente na heroína Antígona. Ao condenar esta última à morte, por ter enterrado o irmão
traidor da pátria, Creonte rompe com a ordem do mundo, porque Antígona agia em conformidade
com “as leis divinas, não escritas, inevitáveis.” Agir com prudência é saber o que a ordem do
mundo exige em cada situação. A imprudência de Creonte não está, como pensam alguns
intérpretes, em ter transposto as fronteiras da vida ao condenar um morto. A ordem de Creonte, no
horizonte grego, é perfeitamente aceitável: o direito penal ateniense conhecia a pena de privação de
sepultura. O erro de Creonte foi punir alguém que tinha o dever religioso de enterrar seus
familiares. Ele não consegue discernir que nesse caso, a pena não deve ser aplicada. Aqui está o ato
de hybris de Creonte, que leva à catástrofe. No final da tragédia, seu filho, Hémon, noivo de
Antígona, e sua mulher Eurídice, suicidam-se. Na última estrofe da peça, o coro lembra o papel
central da prudência na vida humana: “A prudência é a primeira condição da felicidade. Não se
deve ofender os deuses em nada. A desmedida empáfia nas palavras reverte em desmedidos golpes
contra os orgulhosos e não é senão na velhice, que eles aprendem afinal a prudência.”
Os trágicos desenvolvem a noção de limite, limite que o prudente conhece e respeita. A
tragédia nada mais é do que a catástrofe ocasionada pela hybris, a transgressão dos limites
imanentes da ordem cósmica. A prudência é o conhecimento desses limites e das exigências da
ordem em cada situação.
2.2 O conceito de phronesis na filosofia grega
A filosofia grega nasce como transcrição para linguagem racional da experiência religiosa da
ordem do mundo. O mundo é um cosmos, não um caos. Essa ordem abarca o mundo divino e
humano. Em filosofia, a experiência da ordem será pensada como a experiência da ordem do ser.
Os filósofos da natureza (Tales, Anaximandro, etc) investigaram a ordem do Ser. Mas a sua
visão do Ser estava separada do mundo humano.
Segundo JAEGER, Heráclito (Séc VI a.C.) é o primeiro filósofo a utilizar o conceito de
phronesis e o seu verbo correlato phronein (pensar sensatamente, pensar corretamente).
Heráclito é o primeiro a deduzir as conseqüências da ordem do ser para a vida do homem. O
termo phronesis vai expressar no seu pensamento o conhecimento das exigências da ordem cósmica
para a práxis. A phronesis opera a medição entre a ordem do ser e a ordem que deve reinar no
mundo humano.
Para Heráclito, a ordem do ser é total, e os limites impostos por ela são intransponíveis: “O
sol não ultrapassará seus limites; se isso acontecer, as Erínias, auxiliares da Justiça, saberão
descobri-lo.” Nada, no mundo divino ou humano, escapa à ordem do ser. O homem, pelo
conhecimento dessa ordem e do seu lugar nela (autoconhecimento) terá o critério para a sua ação:
”Pensar sensatamente (phronein) é a mais alta virtude; e a sabedoria consiste em dizer a verdade e
em agir conforme a natureza, ouvindo a sua voz.”
Esse conhecimento não está reservado a uma elite de filósofos, mas está aberto a todos: “A
todos os homens é permitido o conhecimento de si mesmos e o pensar sensatamente (phronein).”
Após Heráclito, constata-se no ensinamento de Sócrates que o conhecimento que este último
identifica com a virtude seja precisamente a phronesis. Mas o seu conceito de prudência não será
examinado, pelas dificuldades inerentes à determinação do conteúdo do seu pensamento. Platão, por
sua vez, prega o predomínio da razão teorética, a contemplação das Idéias, em detrimento do
conhecimento prático. Daí ser nula a sua contribuição para o tema.
É Aristóteles o filósofo que retomará a investigação sobre o conceito de phronesis.
Como a maioria dos seus contemporâneos, Aristóteles aceitava o truísmo de que há uma
ordem no universo. Sem transcender o horizonte de racionalidade imposto pela filosofia, Aristóteles
vai além do senso comum, recusando uma explicação religiosa do fenômeno da ordem. A ordem
presente no universo não é a ordem imposta por Zeus, é a ordem do ser.
A ordem do ser para Aristóteles é uma ordem teleológica, onde todos os entes tendem para o
bem/fim que lhes é próprio. Entre as causas que constituem todos os entes, a mais importante é “a
causa final ou o bem (pois o bem é o fim de toda geração e de todo o movimento)”.
É sobre essa concepção metafísica que Aristóteles edifica a sua teoria moral. A Ética a
Nicômaco inicia com a seguinte asserção: “O bem é aquilo para o qual todas as coisas tendem.” A
partir do postulado metafísico de que o bem de uma coisa é o seu fim (telos), Aristóteles pergunta-
se qual é o telos da vida humana.
O fim ou o bem supremo do homem é a felicidade, a vida plenamente realizada segundo a
razão (eudaimonia). Para alcançá-la, o homem deve submeter seus impulsos e instintos à orientação
da razão, um esforço que implica o cultivo das virtudes morais (justiça, coragem, temperatura, etc.).
A ética aristotélica é teleológica: aquilo que colabora para o homem alcançar o seu fim deve
ser evitado. Note-se que este fim é objetivo, não estando ao arbítrio do sujeito determiná-lo. O fim
da vida humana está inscrito na ordem do ser, não podendo criar a “sua” ordem. Essa idéia é a
antítese da idéia moderna de autonomia moral. Para Aristóteles, não é o sujeito que pode dispor a
seu arbítrio os critérios de correção moral. É o telos objetivo do homem que determina o bem
moral. Essa discrepância entre a ética clássica e a ética moderna é descrita por Lima Vaz nos
seguintes termos: “A ética moderna é, assim, uma ética constitutivamente autônoma ao fazer do
sujeito, em última instância, o legislador moral, em contraste com a Ética clássica, essencialmente
ontonômica, pois nela o ser objetivo, mediatizado pela ‘reta razão’ (orthòs lógos), é a fonte da
moralidade.” É necessário frisar esse fundamento metafísico da ética aristotélica, sob o risco de não
compreender o papel da prudência (a reta razão), que não é fundar o bem moral, mas descobri-lo na
realidade.
Mas o que é bem moral? O bem moral consiste na ação virtuosa. Para Aristóteles, nas ações
nós podemos ter o excesso, a falta e o justo meio. A temeridade é um excesso, a covardia é uma
falta e a coragem é o justo meio. A ação é virtuosa quando atinge o justo meio entre dois vícios. A
ação virtuosa quando atinge o justo meio entre dois vícios. A ação virtuosa é a ação nacional,
elemento constitutivo da eudaimonia, a vida feliz.
Obviamente, o justo meio não é determinado aritmeticamente. A sua determinação envolve
uma série de questões: “O justo meio consiste em fazer o que se deve, quando se deve, nas
circunstâncias em que se deve, às pessoas a quem se deve, pelo fim pelo qual se deve e como se
deve”.
De fato, para alcançar a medida da ação que é justo meio, é necessário um tipo de saber
prático, que determine, em cada caso concreto, qual é o justo meio que deve ser realizado. Um tipo
de saber que não esteja voltado à determinação da essência do bem (tarefa da filosofia), mas à
determinação do que é o bem aqui e agora, considerando todas as circunstâncias. Esse saber prático
é a phronesis, a prudência.
4 A JURISPRUDENTIA ROMANA
4.1 Preliminares
Uma determinada concepção dos saber jurídico está sempre ligada a uma determinada
concepção do direito, pois, afinal, é a partir da idéia do objeto que se dispõe dos procedimentos
aptos a conhecê-lo. Por exemplo, Kelsen parte da definição do direito como norma e coerentemente,
determina que a ciência do direito deve ser um saber que descreve normas.
É a partir de uma determinada concepção do que seja o jus, o direito, que a constituição de
um saber prudencial sobre ele, a jurisprudentia, foi possível. É o conceito romano do direito que
cabe, portanto, inicialmente descrever.
Os romanos, como os gregos, eram um povo indo-europeu. Para eles, portanto, a experiência
da ordem também constituía o fundamento da sociedade. Segundo Benveniste, na noção de
“ordem” nós “temos uma das noções cardeais do universo jurídico, e também religioso e moral, dos
indo-europeus: é a ‘Ordem’ que governa tanto a disposição do universo, o movimento dos astros, a
periodicidade das estações e dos anos, quanto as relações dos homens entre os deuses, e dos homens
entre eles. Nada do que se refere ao homem, ao mundo, escapa ao império da ‘Ordem’. É, portanto,
o fundamento religioso e moral de toda a sociedade; sem esse princípio, tudo retornaria ao caos.”
Essa experiência da ordem, que entre os gregos passou rapidamente do domínio mítico-
religioso dos poetas para a dimensão secularizada da reflexão filosófica, permaneceu em Roma por
muito tempo sob a égide da religião. Isso foi devido em parte à forte religiosidade dos romanos, de
um lado, e, de outro, à existência de poderosas agremiações sacerdotais, os “colégios de
sacerdotes”.
Os atos políticos em Roma contam sempre coma intervenção de um magistrado e um
sacerdote. O magistrado escolhe um curso de ação e consulta o sacerdote sobre a conveniência do
seu ato. Os deuses simplesmente confirmam um determinado curso de ação, respondendo “sim” ou
“não”. A intervenção de um magistrado e de um sacerdote expressava a crença romana que os atos
políticos, “para serem perfeitos têm de usufruir do consenso dos homens e dos deuses (...) As lendas
acerca dos primeiros reis de Roma, Rômulo, o rei jovem, vigoroso, ativo e violento fundador da
cidade, e Numa, o velho pacífico, avesso à ação, piedoso criador da religião e do direito, confirmam
que essa bipartição de qualquer ato supremo estava profundamente enraizada na mentalidade
romana”.
Entre as atividades políticas dos sacerdotes, estava aquela de “dizer o jus.” O direito/jus
aparece em Roma, portanto, ligado à função sacerdotal, tendo um significado eminentemente
religioso. Os pontífices respondiam às questões colocadas pelos cidadãos que “desejavam saber
qual era o jus, isto é, qual era a conduta gestual e verbal conveniente (...) em relação aos outros
chefes de família e em relação aos deuses (...).”
Esta atividade de “dizer o jus” merece uma análise mais detida.
O termo jus vem constantemente unido ao verbo dicere. Esse, oriundo do indo-europeu deik,
do qual se originou o grego diké, sempre significou “mostrar de modo impositivo, pela palavra”.
Daí as expressões jus dicere, judex, jurisdictio. O “jus” é, portanto, algo que é dito. Dele irá derivar
o verbo jurare (jurar). Jurare é pronunciar o jus proferido em um juramento, é a fórmula que
expressa a ação a ser realizada.
Pronunciando o jus, o sacerdote revela assim, o que deve ser feito em uma situação concreta,
a partir das exigências da ordem divina do mundo. Cada resposta (responsum) vale somente para o
caso em que foi pronunciada. Assim, o pontífice dispunha sobre testamentos, a propriedade da terra,
as alienações, os vínculos patrimoniais e familiares, aquilo que nós conhecemos como “direito
privado”. As respostas tinham um caráter oracular e se impunham não pelo poder (competência do
magistrado), mas pela autoridade religiosa do pontífice.
O que nos interessa aqui é o tipo de saber que se forma a partir dessa atividade de dar
respostas sobre o que deve ser feito em casos particulares. Schiavone descreve como lentamente vai
se formando “uma sabedoria (...) intrinsecamente casuística, ‘local’ e como que pontual: um
responsum diferente para cada pergunta. A noção de jus não aflorava em mais nenhum lado, nem
tinha outro sentido, senão na solução de problemas imediatos e concretos (...)”
Com o crescimento e desenvolvimento de Roma, além da influência da filosofia grega, a
sociedade romana passa por um processo de secularização que não deixará incólume o direito. A
atividade do respondere, determinar o jus em cada caso concreto, passa a ser exercida por membros
da aristocracia republicana. O jurisconsulto sacerdote, o pontífice, cede o lugar ao jurisconsulto
leigo, o prudens. Mas a resposta deste último, ainda que desprovida do matiz religioso, é vinculante
para os magistrados e os particulares, ainda que o seu caráter obrigatório seja não-oficial.
Surge a jurisprudentia clássica, um saber laico voltado para a resolução de problemas
práticos. Corresponde a uma experiência tipicamente romana, cujos traços e características
principais passamos a descrever, para, a seguir, determinarmos suas afinidades com a teoria
aristotélica da prudência.
O traço mais forte romano no apego à realidade concreta, com o concomitante repúdio à
atividade puramente especulativa e à abstração. Sua atitude espiritual é a do camponês-soldado,
apegado ao seu mundo e às verdades de senso comum.
A partir desse horizonte, não espanta que a única definição que os romanos deixaram da
jurisprudência seja marcada pelo realismo: “A jurisprudência é o conhecimento das coisas divinas e
humanas, a ciência do justo e do injusto.” O saber jurídico é assim, um conhecimento da realidade,
das coisas. Daí dizer Michel Villey que a “jurisprudência é primeiramente descrição do mundo
existente.” O direito está na realidade, e o faz o jurisconsulto “é precisamente desvelar, descobri a
solução justa que está nos próprios dados da res litigiosa.” O romano crê em uma ordem do mundo,
e o seu papel é determinar a solução em conformidade com as exigências dessa ordem.
Essa característica de um saber descritivo da realidade está presente no Digesto, quando se
define uma regra: “A regra descreve brevemente como é uma coisa. Não que o direito derive da
regra, mas esta é extraída do direto existente. Assim, pois, mediante a regra é transmitida uma breve
descrição das coisas, e como diz Sabino, a título de resumo, que se falha em algo, resulta inútil.” O
direito está presente na realidade, e esta realidade é descrita por meio das regras. Sendo assim, não é
o direto que deve ser extraído da regra, mas a regra do direito. Vê-se, por esse raciocínio, a recusa
de qualquer normatividade que venha sobrepor-se, de fora, à estrutura do real. Ao contrário, esta
última é elevada à fonte de toas as normas.
O Digesto inicia esboçando uma definição do termo jus: “Convém que aquele que vai
dedicar-se ao direito conheça primeiramente de onde deriva o termo jus. É chamado assim por
derivar de justitia (...).” É fácil verificar que etimologicamente esta observação está equivocada; jus
é obviamente, o termo primário e justitia (justiça) o termo derivado. Mas é importante notar que
quando o jurisconsulto romano é instado a definir o seu objeto, ele o conecta com a justiça,
mostrando a natureza moral da sua atividade. Essa compreensão do seu saber como estando a
serviço da realização da justiça leva Ulpiano a afirmar que “podemos (os juriconsultos) ser
chamados sacerdotes (da justiça); com efeito, prestamos culto à justiça e professamos o
conhecimento do bom e do eqüitativo (bonum et aequum), separando o justo do injusto, discernido
o lícito do ilícito (...)”.
Aprofundemos a análise conceitual das conexões entre justitia e jus.
Segundo a definição de Ulpiano, “A justitia é a vontade constante e perpétua de dar a cada
um o seu jus.” O jus é a parte que cabe a cada um em uma partilha. Mas essa “parte que cabe a cada
um” deve ser a materialização do “bom e do eqüitativo”, pois, segundo Celso: “Jus est ars boni et
aequi”.
O conteúdo do jus é determinado assim, pelos valores do bonum e da aequitas. O jurista, ao
investigar o jus no caso, não faz mais do que procurar determinar o que é bom e eqüitativo nas
circunstâncias dadas. É por isso, que, como foi visto acima, a jurisprudência, que tem como objeto o
jus, é definida como “o conhecimento do bom e do eqüitativo”, pois o “bom e o eqüitativo” são o
conteúdo do jus.
Aequitas é uma palavra de raiz latina, ausente em outras línguas indo-européias. É a
igualdade, o equilíbrio, a proporção. Bonum é aquilo que é conveniente (“bom para algo”), não só
para os envolvidos em uma lide, mas para toda a coletividade. É a atenção ao bem comum que deve
acompanhar a decisão do caso singular.
O jus é assim a materialização da aequitas no caso concreto, levando em consideração as
exigências do bem comum.
Concebendo a sua atividade como a atribuição a cada pessoa do seu jus, entendendo este
último como o bom e o eqüitativo, os jurisconsultos romanos configuraram a sua disciplina como
um saber do tipo ético: “Os jurisconsultos entendem o direito não como algo que se limitam a
aceitar, mas como algo que eles constroem de uma maneira responsável. Toda sua personalidade
está comprometida nisso, e, como dizia Ihering, ‘seu orgulho não é somente de tipo intelectual, mas
também de tipo moral.”’
Ao contrário da moderna ciência do direito, que tem como objeto a lei, a jurisprudência
romana é antilegalista ao extremo. Isso porque em Roma o direito não é obra do legislador, mas dos
jurisconsultos (jus civile em sentido próprio) e da atividade jurisdicional – orientada pelos
jurisconsultos – do pretor (jus honorarium). A lei praticamente não é utilizada no âmbito do direito
privado, e a corporação dos juristas nutre forte oposição à sua utilização como fonte do direito: “Em
Roma a lei contrapõe-se ao direito dos juristas: ela e uma fonte de direito em virtude de uma
imposição, ao passo que o direito dos juristas não é senão a experiência derivada dos casos
particulares e progressivamente consolidada. É por isso que a lei pôde parecer aos juristas romanos
não tanto como cerne da sua ordem jurídica, mas antes como uma barreira limitando a liberdade de
descoberta do direito pelos juristas.”
A formação jurídica consistia em assistir a um jurisconsulto dando conselhos jurídicos a
particulares ou magistrados. Depois que o consulente se retirava, o jurisconsulto discutia o caso
com seus discípulos. A jurisprudência vai assim se consolidando como um saber derivado da
experiência de tratamento de casos.
Para solucionar um caso, o jurisconsulto não busca apoio em uma regra preexistente. Ele
utiliza um método casuístico cuja essência consiste em buscar a solução “nas circunstâncias
mesmas do problema ou nos casos mais próximos (...)”.
O método casuístico utiliza os seguintes procedimentos:
a) Busca-se a solução mais razoável do ponto de vista prático e que leva em consideração as
circunstâncias da causa.
b) Invocam-se casos semelhantes (analogia).
c) Invocam-se casos opostos (argumento a contrario).
d) Utiliza-se o argumento ab absurdo, mostrando que uma outra solução não seria razoável.
A atenção do jurista está centrada sobre o caso, e não sobre a regra. A sua investigação
consiste em um exame da realidade, e a sua proposta de solução está comprometida com o fato,
desconhecendo qualquer preocupação sistemática. Para o jurisconsulto romano, as regras não são
senão “expressões abreviadas contendo as experiências adquiridas pela casuística.”
Essa formação das regras por generalização empírica dá origem a proposições como as
seguintes: “Ninguém pode transferir a outro mais direito do que tem”; “Não se considera que
alguém perca o que não era seu”; “É nula a obrigação de objeto impossível.” Essas proposições
lembram o bom senso presente nos aforismos da sabedoria popular, como “Quem vê cara, não vê
coração” e “Água mole em pedra dura, tanto bate até que fura.” Tanto uma como outra limitam-se a
expressar verdades consensuais, conhecidas pela experiência.
O pensamento jurídico permanece, assim, concreto e empírico, mesmo quando formula
regras. O recurso à regra nada mais é do que o recurso às soluções, comprovadas pela experiência,
de uma série de casos.
O jurista moderno, acostumado com idéia de sistema, fica desnorteado diante de uma cultura
jurídica baseada em um método casuístico. Para ele, o casuísmo torna a experiência jurídica
anárquica. Os seus temores são fundados. Com efeito, deve haver um vínculo entre o tratamento
dado a casos semelhantes, sob pena de a insegurança jurídica se alastrar.
A jurisprudência romana, mesmo sem transcender o horizonte do caso concreto, encontrou
no respeito à tradição esse vínculo que dá coerência e organicidade às soluções particulares.
O romano é extremamente apegado ao passado. Para ele, a moral e o direito têm suas fontes
nos mores maiorum, os costumes dos antepassados. Esse é um dos motivos que leva a resistir a
utilização da lei como fonte do direito, pois essa sempre representa uma inovação.
A inserção do tratamento casuísta dos problemas no esteio da tradição é assim descrito por
Schiavone: “Os responsa constituíam cada vez mais o jus vivo da cidade, a ossatura descontínua
mas sólida das relações que aí se cristalizavam. Todavia, não estabeleciam – como podia fazer a lex
publica – regras gerais. Só eram válidos para a pergunta feita. A pronúncia, em certo sentido,
dissolvia-os e só duravam enquanto durava a sua atuação. Mas não eram esquecidas: a sua memória
era confiada em primeiro lugar à tradição oral do colégio dos pontífices e depois à das famílias
aristocráticas. Qualquer nova pergunta era imediatamente avaliada pela existência de precedentes,
pela massa sedimentada dos pareceres já dados.”
O caso insere-se em uma cadeia de precedentes, uma teia de soluções que se expande de
modo lento, porém seguro.
5.1 Realismo
5.2 Pragmatismo
A phronesis distingue-se do saber teorético da filosofia, pois este, como dia Aristóteles,
embora seja um saber divino, é sem proveito para homem, pois não trata de bens humanos. A
prudência, pelo contrário, trata de conhecer o bem do homem concreto e da pólis concreta. O bem
que está presente no cotidiano e impõe-se como um objetivo para todos.
A jurisprudentia não trata de construir uma teoria da justiça ou uma utopia jurídico-política.
Ela está orientada para a solução de problemas práticos. Não se trata de saber o que é a justiça, mas
de realizá-la nas circunstâncias do caso presente.
A phronesis não é techné, não é um saber técnico voltado à realização de uma finalidade
moralmente neutra. Ela busca o bem, seja do indivíduo, da família ou da pólis. O homem prudente
não é o astuto, aquele que dispõe dos meios para obter alguma vantagem material. O phronimos é o
homem que alcançou a excelência moral.
A jurisprudentia romana não poderia ter se tornado fonte do direito se não reproduzisse nas
suas soluções os padrões morais da comunidade. A sua autocompreensão, explicitada no Digesto
como um saber moral, não tem um caráter propagandístico. Basta um exame das soluções
fornecidas pelos juriconsultos. Toda a atividade dos juristas, como no caso da proteção dos menores
e da boa-fé, etc, revela uma constante preocupação em alcançar a solução mais adequada, do ponto
de vista moral, para os problemas práticos. No sentido do aprimoramento moral do direito, vemos
os juristas alterarem usos consagrados, negarem o cumprimento de leis, introduzirem mudanças
radicais na praxe jurídica dominante. Não se perde de vista que a tarefa da jurisprudência é alcançar
o “bom e o eqüitativo” no caso em exame.
5.4 Casuísmo
5.5 Tradicionalismo
A phronesis demanda experiência, essa só se encontra nos mais velhos. Daí a atenção que a
opinião destes merece nos variados problemas da vida.
A mentalidade que informa a jurisprudentia está sintetizada nesta frase do Digesto: “Não se
pode dar razão de tudo o que estabeleceram os antepassados.” A jurisprudentia trabalha com
resultados da experiência de várias gerações de juristas. Essa experiência é a garantia da solidez das
suas soluções. Seria leviano questionar sem razões fundadas.
6 CONCLUSÃO
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