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33 • Tempo

O Império otomano e a Primeira Guerra Mundial


The Ottoman Empire and the First World War
L’Empire ottoman et la Première Guerre mondiale
João Fábio Bertonha604

Sean McMeekin é autor de vários Globo, 2011. 495 p.) – traz a seus lei-
livros sobre as origens da Primeira tores uma temática tradicionalmente
Guerra Mundial e sobre a Revolução negligenciada no mundo ocidental, ou
Russa, tendo publicado alguns traba- seja, a participação do Império turco-
lhos de grande importância – ainda -otomano na guerra de 1914-1918 e,
que controversos – sobre os objetivos especialmente, a ação alemã no Oriente
do Império czarista na guerra, suas Médio durante o conflito. Nesse sen-
responsabilidades na eclosão daquele tido, ele aborda não apenas o esforço
conflito e também sobre os tratados de alemão para, com a ferrovia Berlim-
paz entre os alemães e os bolcheviques -Bagdá, colocar o território turco-oto-
em 1918. mano em sua área de influência, como
Seu novo livro – O expresso Berlim- também a tentativa de Berlim de ins-
-Bagdá. O Império otomano e a ten- tigar os muçulmanos que viviam nos
tativa da Alemanha de conquistar o Impérios russo, francês, inglês e ita-
poder mundial, 1898-1918 (São Paulo: liano a se insurgirem contra seus domi-
nadores por meio da bandeira da jihad
1 Doutor em História pela Unicamp, com está-
gios de pós-doutorado na Università degli Studi islâmica.
di Roma e na Universidade de São Paulo; pós- Os alemães gastaram, realmente,
-graduado em assuntos estratégicos internacio-
muito tempo, esforço e, acima de tudo,
nais pela National Defense University (EUA);
professor do Departamento de História da dinheiro para dar conta desses objeti-
Universidade Estadual de Maringá e pesquisa- vos. O autor calcula que, dos cerca de
dor bolsista do CNPq. E-mail: fabiobertonha@
hotmail.com 200 bilhões de marcos (5 trilhões de

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dólares, a preços de hoje) gastos pela os que leem unicamente em portu-


Alemanha em seu esforço de guerra, guês, como o envolvimento otomano
cerca de 1,5%, ou seja, 3 bilhões de na Primeira Guerra Mundial, sua par-
marcos (75 bilhões de dólares), foi ticipação nesta, a história do Islã etc.
utilizado para sustentar o esforço de Também o tema do genocídio armênio
guerra turco ou para tentar espalhar a é abordado pelo autor, com o uso de
bandeira da jihad pelo amplo territó- fontes russas e turcas.
rio do Marrocos à Índia. Eles tentaram Alguns desses temas merecem des-
mobilizar os xiitas no Irã, várias tribos taque. A decisão de Constantinopla
afegãs, árabes ou sudanesas e os sanus- de entrar na guerra ao lado de Berlim
sis no Norte da África. parece lógica, dados os laços que uniam
Apesar de tanto ouro, dinheiro e os dois países desde o fim do século
armas alemãs fluírem para esses grupos XIX e a oposição de ambos aos futuros
e de eles terem conseguido que o califa Aliados. O autor demonstra, contudo,
turco e altos clérigos xiitas declarassem que a relação bilateral era muito mais
a guerra santa, os resultados obtidos dinâmica, com muitas idas e vindas. Ao
foram escassos. Ao contrário do que final, a posição pró-Alemanha triunfou
eles imaginavam, ou seja, de que os no governo turco-otomano, mas essa
muçulmanos, movidos por seu fana- decisão não estava dada desde o início,
tismo religioso, incendiariam a região, e o governo turco hesitou muito antes
quase nada foi em frente. Mesmo a de se comprometer.
ferrovia, que, com seus 3.200 quilôme- Durante a guerra, igualmente, ape-
tros, deveria ter sido capaz de reforçar sar de aliados, alemães e turcos viveram
a autoridade do sultão em todo o seu uma relação de amor e ódio, com ten-
território, permitir a integração econô- sões culturais, interesses conflitantes
mica turco-alemã e dar suporte logís- e desconfianças mútuas envenenando
tico para ações militares na direção do o relacionamento. Com as derrotas, o
Egito ou do Irã, não ficou pronta, em ressentimento mútuo apenas cresceu
sua totalidade, a tempo. e, na disputa pelos espólios do Império
Ao contrário do que o título sugere, russo em 1918, soldados turcos e ale-
assim, o livro não se limita a narrar as mães chegaram a trocar tiros perto de
peripécias na construção da Berlim- Baku, no Azerbaijão.
-Bagdá, mas acaba por abordar temas Outro aspecto da ação ociden-
pouco conhecidos, especialmente para tal no Oriente Médio naqueles anos

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abordado pelo autor é o sionismo. Ele giosa em geral, não funcionam a não
indica como, depois da tragédia do ser que sejam apoiados e sustentados
Holocausto, nós tendemos a esquecer por elementos de hard power, como
que a sede mundial do sionismo no dinheiro, armas, vitórias militares etc.
período anterior era a Alemanha, e que Os alemães tentaram várias estra-
esse foi, em linhas gerais, apoiado pelo tégias desse tipo durante a Primeira
governo do Kaiser, ainda que por moti- Guerra, como a tentativa de jogar o
vos instrumentais. Os ingleses abraça- México contra os Estados Unidos, a
ram, até certo ponto, a causa sionista exploração do sionismo no Império
apenas durante a guerra, para tirar russo e na Palestina ou a deflagração
essa bandeira dos alemães, gerando da jihad no mundo islâmico, mas tudo
um movimento antissemita árabe que isso falhou por falta de alicerces mate-
depois, paradoxalmente, se ligou ao riais mais sólidos, mesmo com todo o
nazismo de Hitler, como no caso do esforço alemão. Como indica o autor,
mufti de Jerusalém e na criação das a única aposta alemã em termos de
divisões muçulmanas da Waffen-SS. subversão interna que deu certo foi o
As informações que ele levanta envio de Lenin para a Rússia e o apoio
sobre o fronte caucasiano entre russos aos bolcheviques entre 1917 e 1918,
e turcos durante a guerra também são mas foi algo isolado e que só funcio-
inéditas para os não especializados, nou pelas condições especiais da Rús-
e suas análises das fragilidades mili- sia naquele momento.
tares do Império turco-otomano são, Outro erro alemão que continuou
no mínimo, instigantes, com muitos a ser repetido pelas outras potências
dados sobre as dificuldades dele de imperialistas que tentaram conquistar
manter o fluxo de recrutas no Exército, posições na região nas décadas seguin-
financiá-lo e armá-lo. tes foi o desconhecimento da cultura
Pensando nas conexões entre o e das tradições locais. Os alemães não
período que ele estuda e o momento entenderam que o que movia as tribos
atual, algumas questões se tornam evi- árabes eram seus interesses próprios,
dentes. Uma delas é, utilizando termos e não um mítico apelo à solidarie-
contemporâneos, que instrumentos de dade islâmica ou a um obscuro nacio-
soft power, como subversão política de nalismo árabe. Ao contrário do que
minorias em outros Estados ou ape- aparece em filmes como Lawrence da
los à solidariedade ideológica ou reli- Arábia, o nacionalismo árabe era algo

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incipiente, e as tribos estavam mais instrumental para certos regimes


interessadas em dinheiro, ouro, armas, reprimirem as populações locais
posições sociais e, em alguns casos, a em nome do laicismo. Ele também
defesa de sua visão do Islã do que em menciona como a decisão inglesa de
conceitos vagos como o nacionalismo. bancar os wahabitas na hoje Arábia
Os alemães também não enten- Saudita, em boa medida para combater
diam as sutilezas da jurisprudência ou as pretensões de Constantinopla e
da fé islâmicas ou as diferenças entre Berlim na região, gerou o regime
sunitas e xiitas, e isso os levava a erros saudita atual, uma das fontes
de avaliação. Os militares americanos centrais da versão contemporânea
no Iraque e no Afeganistão também mais reacionária do Islã. Para quem
aprenderam, a duras penas, como é acompanha o noticiário recente sobre
lidar com sociedades não mais pura- o mundo árabe, tais reflexões são mais
mente tribais, mas nas quais vínculos do que atuais.
além da nacionalidade ou da política Claro que várias questões e hipó-
ainda são fortes e, muitas vezes, con- teses que ele levanta podem levar a
traditórios. Para elas, ainda hoje, mui- questionamentos e a dúvidas. Ele deixa
tas vezes a demonstração de poder a entender, por exemplo, que a Drag
e a disponibilidade de dinheiro para nach Osten alemã visava essencial-
suborno ainda são mais importantes mente ao espaço muçulmano e que os
do que ideais vagos como democracia interesses alemães na Europa do Leste
ou Estado de direito. só se tornaram predominantes com a
É muito interessante igualmente oportunidade única do colapso russo
quando ele comenta como vários em 1917. Isso ignora a larga tradição
problemas do Oriente Médio de hoje alemã de olhar para o Leste europeu
tiveram sua origem na tentativa alemã como sua futura base de poder impe-
de controlar a região e como certos rial e superestima a ambição alemã
padrões e questões estão sempre pelo território turco-otomano. Os ale-
presentes na realidade local. Vale mães, provavelmente, gostariam de
destacar, nesse ponto, suas reflexões ter tudo, formando um império que
sobre como o obscurantismo religioso iria de Berlim a Moscou e Teerã. Mas
sempre serviu, na região, para sufocar a prioridade sempre foi o Leste euro-
ideais progressistas e como o disfarce peu, e as ambições no Oriente Médio,
da modernidade anti-islâmica foi a meu ver, eram acessórias. Se os ale-

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mães tivessem de escolher entre Kiev ção, aliás, com a tese do próprio livro,
e Cairo, as planícies ucranianas seriam que trabalha, como visto, com os pro-
as escolhidas. jetos e esforços alemães naquela região,
Ele também peca quando tenta, os quais, muitas vezes, respondiam aos
em poucas páginas, resumir o nazismo outros atores (russos, ingleses e france-
a uma explosão de antissemitismo ses), mas não de modo exclusivamente
autopiedoso, a forma com que os ale- defensivo ou reativo.
mães formataram seu ressentimento Mesmo assim, suas hipóteses são,
pela derrota na Primeira Guerra. Que em geral, consistentes, calcadas em
o ódio ao judeu foi reforçado no pós- um número imenso de fontes coleta-
1918 em boa medida como uma ten- das em arquivos austríacos, franceses,
tativa de explicar como a grande Ale- ingleses, americanos e, especialmente,
manha poderia ter sido derrotada é alemães, turcos e russos. Um esforço
um fato, mas essa explicação reduz a de pesquisa e linguístico que pode
questão do antissemitismo nazista a ser questionado, em alguns aspectos,
um quase nada, ignorando séculos de em termos de análise, mas que deve e
antissemitismo, racismo científico etc. pode ser valorizado, já que escapa da
O livro também traz alguns equí- armadilha de tentar abordar um tema
vocos de tradução e vários erros tipo- multinacional sem o uso de fontes de
gráficos que poderiam ter sido evita- vários países.
dos por uma revisão mais cuidadosa. Enfim, não é sempre que eu, que
O autor também merece questiona- já estudo temas ligados aos impérios,
mentos por sua tendência de buscar à Rússia e à Primeira Guerra Mundial
“complôs” e intrigas em toda parte, há vários anos, consigo encontrar um
e fica evidente no livro seu tom for- livro que me forneça uma nova pers-
temente pró-turco e antirrusso. Ele pectiva desses temas e/ou que me faça
parece, nesse e em outros livros, fazer aprender realmente algo novo sobre
o mesmo que Fritz Fischer e sua escola eles. Foi esse o caso, contudo, do livro
fizeram com a Alemanha décadas de Sean McMeekin, e é por isso que
atrás: identifica na Rússia a grande cul- recomendo sua leitura, o qual só tem
pada da guerra e relativiza a ação dos a acrescentar, mesmo que não se con-
outros, como a Alemanha e o Império corde com todas as suas propostas para
turco-otomano, como mais reativas do o entendimento do tema e do período.
que ativas. Isso forma uma contradi-

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