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Prólogo:

«Prisão? Ou Salvação?...»

“Isto não pode continuar! Eles provaram ser merecedores da sua liberdade! O círculo que sela o seu
mundo é uma abominação, uma contradição à sua própria existência!”
Um ser alto, alado estava diante de um salão preenchido pelos seus semelhantes. Uma veste branca,
minuciosamente adornada com padrões dourados, cobria a sua pele e o seu longo e liso cabelo castanho-
escuro escorria pelos seus ombros. Os seus olhos brancos como a neve gritavam raiva, a sua cara
transpirava determinação enquanto a língua ancestral se dispersava ruidosamente pelo ar, para que todos
os presentes testemunhassem o momento.
“Eles são nossos irmãos, feitos da mesma forma que nós fomos! Eu não posso continuar a assistir
impávido ao aprisionamento de um sem número de vidas! Nenhum de vós sente o mesmo? Serei o único
sujeito são neste salão?”
Atrás desta criatura, de entre um mar ecoante de inúmeros comentários duvidosos, uma voz trovejou,
“Cessai a vossa rebelião neste preciso instante!”.
Com a entrada de uma presença austera e poderosa, o silêncio apoderou-se da imensidão daquele
espaço. Outra criatura, com um tom de pele azul opaco e com quatro asas cobertas de penas douradas,
entrou de rompante pela grandiosa porta dupla. O ser de cabelo castanho-escuro dirigiu o olhar,
dominado pelo cansaço, para a recém-chegada e imponente entidade a quem perguntou, “Então... estás
aqui para me tirar a vida? Chegámos a isto?”. O anjo falou num tom melindrado e triste; as suas palavras
eram um comentário retórico na mesma medida em que eram uma pergunta sincera.
“Não me deixas alternativa, irmão. A tua alma foi corrompida; já não tens controlo sobre as tuas
emoções. O caos envolve-te,” respondeu a criatura de quatro asas, sem que qualquer sinal de emoção
conseguisse permear o véu gélido da sua aparência.
Um riso abafado ecoou pelo salão, até que a resposta do outro ser fosse ouvida.
“Que irónico! Emoções. A suposta grande bênção da Humanidade é também a sua prisão. A razão
pela qual os humanos são abençoados é a mesma que os leva a não poder ter contacto com a corrente
de energia vital. Diz-me, Arcanjo,” o título, indicativo de um estatuto elevado, foi dito com desprezo,
“se as emoções são assim uma coisa tão errada, qual a razão para que tenham sido escondidas dentro
de nós?”
O anjo dirigiu voz e olhar mais para a multidão do que propriamente para o ser de asas douradas que
estava a meio metro dele, “Se o nosso Pai queria que nós fossemos seres puramente racionais e
completamente vazios de emoções, por que raio somos nós prendados com elas? E por que motivo a
Humanidade, intrinsecamente ligada às suas emoções, teve de ser algemada desta forma?”
Um laivo de pesar pintou a expressão do arcanjo, “Desculpa, Kohryu... Lamento que tu não consigas
compreender o sentido da tua existência. Não deverias questionar a vontade do nosso Pai. Não se morde
a mão que nos dá de comer, meu irmão. Quanto a mim, estou perfeitamente ciente do meu propósito.”
Qualquer pitada de emoção desapareceu, de novo. O ser pareceu recompor a sua determinação à
medida que cada palavra saía dos seus lábios azúis escuros, “E, agora que finalmente te travei, estou
aqui para me assegurar que não disseminas mais os teus pensamentos corruptos.”
“Tenho pena de ti, Uriel, bem como do resto de vocês, fantoches ocos! Magoa-me ver-vos tão
cegos...” A tristeza dominava cada pedaço do rosto do anjo, “mesmo que eu fique aprisionado para toda
a eternidade, nunca serei assim como vós de novo.” Um sentido dum propósito indubitável reapareceu,
“E, acredita em mim, irmão, eu nunca estive tão em controlo de mim mesmo. Na verdade, eu sinto que
acordei de um terrível e absurdo pesadelo.”
Ambas criaturas ficaram caladas por uns instantes enquanto o Arcanjo Uriel olhou nos olhos do seu
irmão com uma desconfiança hostil, antes de responder, “Tu podias ter sido tão mais que isto...” As
palavras pesaram densamente no ar, “Mas suponho que tu não tenhas propriamente culpa. Talvez a tua
fé tenha sempre sido demasiado fraca. Bem, agora é tarde demais. O teu destino já está mais que
decidido.”
“Fraqueza... Questiono-me: acreditas mesmo que consegues derrotar-me? Estás realmente disposto
a combater-me depois de todos os séculos que partilhámos juntos?”
O silêncio reinou por momentos. Todos os seres presentes permaneceram completamente focados
no desenrolar dos acontecimentos até que a entidade de pele azul projectou, em voz alta, para todo o
salão: “Todos devem abandonar esta divisão. O nosso irmão irá enfrentar a sua sentença, aqui e agora,
com a execução da vontade do nosso Pai.”
Enquanto os demais abandonavam a divisão de forma ordeira, Kohryu apelou a que estes o
ouvissem, uma última vez: “Se alguém sente que eu tenho razão, não bloqueiem esse sentimento! Oiçam
a vossa voz interi-”
“Saiam. Imediatamente!” Interrompeu Uriel, num tom ríspido e imponente.
A multidão de criaturas abandonou o salão. As enormes portas fecharam-se atrás do último
indivíduo, deixando o anjo e o arcanjo sozinhos. Breves instantes – que pareceram uma eternidade –
passaram até o silêncio ser quebrado pela voz titubeante de Kohryu, “Então... está na hora?”
“Sim, está.”
“Diz-me, como te sentes? Está a tua mente ainda mais nublada desde que transcendeste?”
“Irmão, apesar do que possas pensar agora, aquilo que tu estás a... sentir... é errado. Não está na
nossa essência ser aquilo em que tu te tornaste. E vejo isso de forma ainda mais clara desde que
transcendi. A vontade sagrada do nosso Pai é absoluta, tudo tem um propósito e uma razão, nada é
aleatório ou desprovido de sentido.”
O anjo permaneceu calado, permitindo ao seu irmão proferir aquelas palavras que em tudo soavam
a nada mais senão uma longa despedida.
“A Humanidade partilha o Seu amor com a nossa espécie; as escolhas que Ele fez foram feitas por
uma razão muito precisa e o único propósito da nossa existência é seguir a Sua vontade, sem questioná-
la. Tu, em tempos, também viste isto...”
Os olhos brancos como a neve do ser de cabelo castanho mantiveram-se focados no olhar vazio do
seu irmão por um momento, antes das suas palavras serem ouvidas, “Sim... E depois eu acordei.”
“Talvez o tenhas feito... E, infelizmente, agora não podes regressar ao sonho.”
Kohryu olhou o seu irmão, dúvida e tristeza patentes no seu olhar, “Estás mesmo disposto a matar-
me? O elo da nossa família não significa nada para ti?”
“Não és quem outrora foste. O meu irmão, com muita pena minha, há muito que desapareceu. Mas
não, a tua sentença não é a morte.”
Os olhos de Kohryu transpareceram apreensão, mas a sua boca não deixou escapar nenhuma palavra
enquanto ele permaneceu, com reservas, atento, a ouvir.
“Tu serás expulso do nosso reino. Nunca mais serás capaz de controlar a corrente de energia vital e
serás marcado com uma maldição para que qualquer criatura que pouse o olhar em ti saiba aquilo que
tu és.”
Uriel pausou momentaneamente para permitir que Kohryu absorvesse aquilo que estava a ouvir antes
de continuar, “O teu castigo por desafiares o nosso Pai é misericordioso. Vais passar o resto da tua
existência no seio da Humanidade e veremos se eles te aceitam, vendo-te por aquilo que és.”
Coragem e determinação preencheram a face de Kohryu mostrando que nada mais do que a morte
seria capaz de impedi-lo de cumprir o seu propósito. “E o teu Pai acredita realmente que isto me vai
impedir de seguir o meu destino?”
“Se o nosso Pai quisesse realmente travar-te, já estarias morto. Vais aprender, por ti, o quão errado
estás.”
Kohryu deixou escapar um riso irónico. “Suponho que mandar matar-me não faria dele um Pai muito
extremoso... mesmo nisto ele opta pelo golpe baixo. Em todo o caso, fico contente por não ter de lutar
contigo.”
“Adeus, Kohryu.”
“Até depois, meu irmão.”
As duas criaturas mantiveram o contacto visual enquanto o salão se encheu de uma intensa luz branca.
Sopros de energia ancestral dispersaram-se vigorosamente a partir do clarão branco que se expandiu e
aumentou de tamanho até se concentrar à volta de Kohryu, envolvendo-o e elevando-o até perto do
tecto. A luz virou escuridão. A sua intensidade cresceu e criou um vazio sombrio que libertou uma
aura muda e inerte. Momentos depois, um feixe negro descendente, que surgiu como um relâmpago
súbito, deixou a figura imponente do Arcanjo sozinha no salão...

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