Você está na página 1de 14
ana pomaapen Cé- crt yr fae iby ee fea rscndie a etione © LUGAR DA PSICANALISE NA MEDICINA Jacques Lacan Permitam-me, quanto a algumas das pergun- tas que acabam de ser feitas, de me restringir as respostas de Jeanne Aubry, que me parecem bem suficientemente pertinentes. Nao vejoem qué democratizar o ensino da psicanilise pos- sa criar outto problema que nfo 0 da definicgto de nossa democracia. £ uma democracia, mas cexistem varias espécies concebiveis € 0 futuro ‘estd nos conduzinda a uma outea'. Crelo que 0 que posso trazee para uma reu- nido como esta - caracterizada por aquele que a convoca, 0 Colégio de Medicina - é precisa mente a possibilidade de abordar um tema que ‘nunca tratei em meu ensino, 0 do lugar da psi candlise na medicina. Este lugar atualmente € mangipal e, como jt cescrevi em varias ocasides, exiquterritorial. Ble & marginal por conta da posigio da medicina com relagio & psicandise - cla admite-a como uma espécie dle ajuda exterior, comparavet Aquela dos psicélogos e dos outros distintos (res terapduticas. Fle & extraterritorial por conta dos psicanatistas, que provaveimen- te tém suas razdes para querer conservar esta extra-territorialidade, Nio sto minhas estas 26es, mas nfo creio que minha vontade baste para modifica as coisas. As minhas terdo lugar no tempo devido, ou seja, extremamente répi: do, selevarmos em conta aespécie de acelera- fo que vivemos quanto 20 lugac dla ciéncia na vida comum: Gostaria hoje de considetar este lugar ca psicandlise na medicina do ponto de vista do Dezember 2001 nédico & ¢a modificagio muito répida que vem roduzindo-se naquilo que chamaria de fungio ae domédico, 2s8im como em seu! personaget, BOS este ¢ um elemento importante na dita fungio. Durante todo 0 perfodo da historia que co- nhecemos e podemos qualificar como tal, esta fungio e este personagem clo médico, manti- veramse em grande constincia, até uma épo- ca recente. & preciso, porém, observar que a prética da medlicina nunca ocorreu sem ser granclemente acompanhacla pordoutrinas. Que durante um tempo bastante curto, no século dezenove, as doutrinas tenham se procamado cientificas nfo as tornoy, no entanto, mais ck entificas. Quero dizer que as doutrinas cientif- cas invocadas na medicina eram sempre, até uma época recente, cecomadas de una ou ou- (ca aquisigao da ciéncla, com atraso de vinte anos ou mais. Isto demonstra bem que este fecutso s6 funcionou como substituto, pata rmascatar, 0 que anteriormente h que se loca- Jizar como uma espécie de filosoia Considerando a histéria do médico através «las eras, © grande médico, 0 médico padrao, era um homem de prestigio € autoridade. O que ocerre entre 0 médico € doente, facil- mente ilustrado hoje em dia por observagées como as de Balint (que o médico, ao receitar, receita-se a si mesmo), sempre aconteceu. £ assim que 0 imperador Marco Aurélio convoca Galeno para que dé suas mios fossem vertidas a teriaga. Fol Galeno, aids, que redigiu o trata- do On aptotot, tarps Kat g:Ao opos, em que ‘omédico, no.que tem de methor, é também um Opedo Lecaniana n° 32 ATEN filésofo € neste caso a palavra no se limita a0 sentido tardio de “filosofia da natureza Déem a esta palavea © sentido que quise. tem, a questio que se trata de situar ser escla recida com ourcas balizas. Acredito que aqui, apesar ce estarmos em meio a uma assisténctia majoritariamente médica, nao me pedirao para indicar aquilo que Foucault em seu grande I wto traz de um método histéricorcritica para situar a responsabilidade dla medicina na gran- de crise ética (ov seja, critica que atinge 2 defi nigio do homem) que ele centra em torno do \solamento da loucura. Nem me pedirio para introduzir este outro livro, © sasctmento da clinica, em que se encontra fixado aquilo que scarreta a promagio, por Bichat, de um olhar que s¢ fia sabre o campo do corpo neste cur totempo em que o corpo subsiste como entre- gue A morte, ou seja, caldver Os cols franque- amentos pelos quais a medicina, quanto a ela, ‘consuma o fechamento das portas cle um fanus antigo, que reduplicava inencontravelmente cada gesto humano com uma figura sagrada, estio assim demarcados. A medicina € cone. tiva a este franqueamenco, ‘A passagem da medicina para o plano ia ci- Encia, e até mesmo 0 fato de que a exigéncia da ccondligio experimental tenhe sido fntroxueida na medicina por Claude Bernard ¢ seus compl ces, nfo € © que conta por si s6,a balanga est fem outro lugar. A medicina entrou em sua fase éentifica no ponto em que um mundo nasceu, mundo que a partir le entio exige os condicior namentos necessirios na vida de cacla um & medida da parte que cada um desempenta na cdéncia, presente a todos em seus efeitos. ‘As fung6es do organismo humano foram sempre objeto de uma experimentacio segun- doocontexto social. Acontece, porém, que por serem tomas como fungio no Ambito de or ‘ganizagdes altamente diferenciadas, que md0 teriam nascido sem a cléncia, elas se oferecem 0 médica no laboratério (de aiguma forma sem pre ff consthuldo, até mesmo fé subvenctonado por eréclitos sen limites). Ble vai se dedicat a redluzir estas fungbes 4 montagens equivalentes Opgto Lacaniana n° 32 Aquelns das organizages em questio, ou seja, com © status de subsisténcia cientffica, Citemas simplesmente, para acender nossa ¥ lanterna, o quanto deve nossa progresso na formalizagéo funcional do aparelho cardiovas culare do aparelho respiratério nao somente a necessiladle de opertslo, mas a0 preiprio ape relho ce Inscrigio estas fungtes, que se im- poem a partir clo momento em que se instalam sujeitos, 0s sujeitos destas reagdes em “satéli- tes", ou seja, aquilo que podemos consicerar como formidiveis pulmaes de ago. A propria constiucio destes pulmdes esta ligada a seu destino de suporte de determinadas drbitas, Srbiras as quais estariamos bem erradas em denominar edsmicas, uma ver que 0 cosmos no as *conhecta". Para dizer tudo le uma vex: no mesmo passo em que se reveln a surpreen- dente (olerfincia do homem 1 condigées neds. micas (até mesmo © paraoxa que O fiz apare- cer, de alguima forma, “acaptadlo” a clas) € que se constata que este acosinisn19 ¢o que cien- cla constrdi. Quem ppodterin imaginar que © homem su- portaria tio bem a auséncia cle gravidlade, quem poderin prever 6 que aconteceria com 0 ho- mem nestas condligdes se nos restringissemos ‘as meiaforas Rlosdficas, Aquela, por exemplo, de Simone Weil, que fazia da auséncia de gravi- ddacle uma clas dimensOes de wma tal metafora fino pontoem que as exigéncias sociais sko condicionadas pelo aparecimento de um ho- mem que sirva As condligoes de um mundo ek enitfico, que pravido de novos poderes de in vestigagio € de pesquisa, © médico encontra- se face a novos problemas. Quero com isto di er que 0 médico nada mais tem de priviegiadlo nna organizacio clesta equipe dle peritos’ cliver- sarmente especializados nas diferentes dveas ci- cenufficas. &.do exterior de sua funcio, especial muehte da ougznivaio indusitial que Ihe sc fognecidos.os meins an meimatempa.que as questies_pata introduzieas.medlidas de con- role quantitariva,.os graficos, as escalas, os dadlos estatisticos através dos quais se estabe- Jecem, indo até uma escala mictoscépica, as Dexembro 2001 NT sort een constantes bioldgicas, Do mesmo modo des- cola se a evidéncia do sucesso, condicio para o advento dos fatos. A colaboragéo médica sera considerada ‘como benvinda para programar as operacdes necessdrias para manutencao do funcionamen- to deste ou daquele aparelho do organismo humano em condigées precisas, mas, afinal de contas, 0 que isto tem a ver com aquilo que chamaremos a posigio tradicional do médico? ‘O médico é requerido em sua funcio de entista fisiologista, mas ele esta submetido ai da a outros chamados. O mundo cientifico de- posita em suas mos o numero infinito daquilo que é capaz de produzir em termos cle agentes terapéuticos noves, quimicos ou biolégicos. Ele ‘0s coloca & disposicéo do piblico ¢ pede 20 médico, assim como se pede a um agente dis- tibuidor, que os coloque 4 prova. Onde est4 0 limite em que o médico deve agire a qué deve cle responder? A algo que se chama demanda? Diria que é na medida deste deslizamento, desta evolucio, que modifica-se a posicao do médico com relagdo Aqueles que se enderecam aele e que vem a se individvalizar, ase especi- ficar € a se colocar retroativamente em énfase ‘0 que hd de original nesta demanda ao médi- co. © desenvolvimento cientifico inaugura poe cada vez mais em primeira plano este novo direito do homem 4 satide, que existe € se motiva jf em uma organizacao mundial. A me- dida que o registro da relagio médica com a satide se modifica, em que esta espécie de po- der generalizada que ¢ © poder da ciéncia, dia todos a possibilidade de virem pedir a0 médi- coseuiicket de beneficio com um objetivo pre- 20 alcance da mio - digamos um aparelho cirér- gico ou a administragdo de antibioticos (¢ mes- ing nestes casos resta Saber o que disto resulta para o futuro) - algo fica fora do campo daquilo que ¢ modificado pelo beneficio terapéutico, algo que se mantém constante € que todo mé- dico sabe bem de que se trata. Quando 0 doente é enviado 20 médico ou quando 0 aborda, nao digam que ele espera purae simplesmente 2 cura. Ele poe o médico 2prova de tird Jo de sua condicao de doente, o ‘que é totalmente diferente. pois isto pode im- plicar que ele estd totalmente preso a idéia de conservi-ls. Ele vem &s vezes nos pedir pare autenticilo.coma doente. Em muitos outros casos ele vem pedir, do modo mais manifesto, _ que vocés 0 preservem em sua doenga, que 0 ‘ratem da maneira que the convém, ou seja, jaquela que Ihe permitiré continuar a ser um doente bem instalado em sua doenga. Serd que «terei que evocar a minha experiéncia a mais recente? Um formidavel estado de depressdo ansiosa permanente, que durava j4 hi mais de vinte anos. O.docate velo me encontrar no ter vorde que eu fizesse a minima coisa que fosse. Diante da simples proposta de me rever em 48 horas, a mie, temivel, que durante este tempo tinha acampado em minha sala de espera, ti- nha conseguido arranjar as coisas para que isto nao fosse possivel. Isto € de experiéncia banal, 6 0 evoco para lembrarlhes 2 significacinda demands, dimen- sdo em que se exerce a fungao médica propria- mente dita e para introduzir aquilo que parece facil de abordar e que entretanto $6 foi seriamen- te interrogado em minha Escola: a estrutura da ciso imediato, vernos desenhar-se a originali- S¥alha que existe entre a demanda ¢ 0 desejo. dade de uma dimenséo que denomino deman- da. E no registro do modo de respasta a de- manda do doente que esta a chance de sobre- vivéncia da posigo propriamente médica. Responder que o doente Ihes demanda a cura nao é responder absolutamente nadia, pois a. cada vez que a tarefa precisa que deve ser rea- lizada com urgéncia nao corresponde pura e sim- plesmente a uma possibilidade que se encontre A partir do momento em que se faz esta observacio, parece que no ¢ necessério ser psicanalista, nem mesmo médico, para saber que, no momento em que qualquer um, seja macho ou femez, aede-ncs. demands alguma. « runoevedes 4 dametemenie opasinAaulo quecledescia, Gostaria de retomar as cpisas em outro ponto Dezembro 2001 Opsfo Lacaniana n° 32 e observar que apesar de ser concebivel que consigamos, com base nos progressos cientifi- cos, obter uma extensio mais e mais eficaz de nossos procedimentos de intervencio no que concemne ao corpo humano, o problema conti- tua insohivel, no nivel da psicologia do médi- co, de uma quest4o que teanimaria o termo “psicossomitica”, Permitam-me assinalar como S falha epistemo-somitica oefeito que terd 0 pro- gresso da Sobre a relagio da medicina com 0 corpo. Ainda ai a situago para medicina é subver- tida a partir de fora. I por isso que aquilo que estava confuso, velado, mesclado, embarathado, antes de determinadas rupturas, aparece ago- rade maneira fulgurante. Isto porque aquilo que ¢ excluido da relagio epistemo-somatica é justamente aquilo que 0 corpo em seu registro putificedo vai propor 4 medicina, Isto que se apresenta desta forma apresenta-se como pobre na festa em que 0 cor 0 itradiava ainda hé pouco por ser inteicamen- te forografado, radiografado, calibrado, diagra- mado ¢ capaz de ser condicionado, dados 08 recursos verdadeiramente extraordindrios que ele encerra. No entanto, talvez este pobre traga de ionge, do exilio em que dicotomia cartesiana Ihe proscreveu 0 corpo, entre pensamento € ex- tensdo, uma chance. Esta dicotomia deixa com- pletamente fora de sua apreensio aquilo de que se trata, no no corpo que ela imagine, mas no corpo verdadeiro em sua natureza Ese-compo.ndc.s simaicsmente caractcriza- dopeladimensio da extensio, Um corpo algo ‘Weito pam gozar gozar desi mesmo. Adimensio aan chamei relagin enistemo-somitica, Isto porque a cbncia ¢ capad de saber o que pode, mas ela, nfo mais do que 0 sujeito que ela engendra, ¢ incapaz de saber 0 que quer. Isto que ela quer 6 surge deste avango, cuja marcha acelerada em nossos dias permite-nos perceber que ultrapas- + Saas proptias previsbes da ciéncia. Serd que podemos pressenti-lo, por exem- plo, pelo fato de que nosso espaco, seja ele pla- netério ou transplanetitio, pulula com alguma coisa, vozes humanas (temos que chamé-las assim), dando vida ao cédigo que elas encon- tram em ondas cujo entcecruzamento sugere ‘uma imagem totalmente diversa do espaco em que 05 turbilhdes caresianos sua mora- da? Por que nao citar também o olhat, que é atualmente onipresente sob a fotma tle apare- Thos que enxergam por nds os mesmos.tuga- res, ou sea, alguma coisa que no é um clho e que isola o olar como presente. ‘Tudo isto, podemos colocar no ativo da ci- ancia, mas serd que isto nos faz atingir aquilo que nos concerne? Aquilo que nas concerne, nfo como ser humano, pois na verdade Deus sabe o que se agita por tris deste fantoche que se chama homem, o ser humano, ou a dignida de humana, ou qualquer que seja a denomina- ‘fo sob a qual cada um coloca aquilo que qui- ser de suas préprias ideologias mais ou menos cevolucionarias ou reaciondrias ‘Vamos nos perguntar sobretudo emque isto concerne aquilo que existe, ou seja nossos car pos. Vozes, olhares que passeiam, ¢ algo que vem dos corpos, mais tratam-se de curiosos protongamentos que em um primeiro aspecto, € mesmo em um segundo e um terceiro, em. pouca relagao com aquilo que chamo de dimen- 839_do gozo. f importante situé-la como polo ‘opoéto, pois nela também a ciéncia estd derra- mando deverser, determinados efeitos que no fo sem comportar algumas coisas importan- tes enjeur. Materializemos estes efeitos sob a forma dos diversos produtos que vio desde os tranquili zantes até os alucinégenos. Isto complica sin- gularmente © problema do que até aqui foi qualificado, de maneira puramente policial, de toxicomania. Basta que um dia estejamos na posse de um produto que nos permita réco- ther informaces scbre 0 mundo exterior, vejo mal como ume contengio policial poderia exer cer-se af, Mas qual seri a posigio do médico para definir estes efeitos com os quais ele mos- trou até aqui uma audacia alimentada sobretu- do de pretextos, pois do ponto de vista do gozo, em qué.0 uso ordenado daquilo que chamamos Opgio Lacaniana n° 32 Dezembro 2001 mais ou menos propriamente téxicos pode ter de repreensivei a no ser que 0 médico entre francamente naquilo que ¢ a segunda dimen- so caracteristica de sua presenca no mundo, a dimensao ética, Estas observagdes podem pa- recer banais, elas tém, contudo, o interesse de demonstrar que atimensio ética éaquela que seestende em direcin ao gaz0. Eis ent4o_duas balizas, primeiramente a de- manda do doente, em segundo lugar 0 gozo do gorpo. De certo modo elas confluem nesta di- mensio ética, mas nio vamos identificé-las rapi- do demais porque aquiintervém aquilo que cha- marei simplesmente dle teoria psicanalitica, que vem em tempo e, certamente ndo poracas, no momento de entrada em cena da céncia, com este ligeiro avango que € sempre caracteristico das invenges de Freud. Assim como Freud in- ventou a teoria do fascismo antes que este apa- recesse, trinta anos antes, inventowaquilo que desejo inconsciente abtuso, pesado, caliban, até mesmo animal; desejo inconsciente ergui- do das profundezas, que seria primitivo e de- veria elevar-se ao nivel superior do conscien- te. Bem ao contririo, existe um deseja por- que existe algo de inconsciente, ou seia algo dalinguagem que escapa ao sujeito em sua es- trutura e seus efeitas e que hi sempre no ni- vel da linguagem alguma coisa que est4 além da consciéncia. £ ai que pode se situar a fun- Gia do desejo. Por Isso € necessério fazer intervir este lu- gar que chamei de que diz res- Peito a tuclo que é do sujeito. Substancialmen- te, €0 campo em que se localizam os excessas de linguagem dos quais o sujeito porta uma matca que escapa a seu proprio dominio. € neste campo que se faz a jungio com aquilo que chamei de ple do gozo. Porque ali se valotiza aquilo que introduziu devesis expander subersia da posicia de. Frevd sobre prindpio do prazere para o qual ico pela en Ainda ha pouco indiquei suficientemente ™ a.diferenca que hé entre a demanda eo dese- jo. Somente a teoria linguistica pode dar con- ta de semelhante percencdo e ela pode fazé- Jo ainda mais facilmente porque foi Freud que, da maneira mais viva e mais inatacdvel, preci- samente mostrou a distancia entre eles no ni- vel do Inconsciente. Ena medida em que é estruturado como uma linguagem que ele ¢.0 inconsciente descoberto por Freud. Li com surpresa em um escrito bem apadrinhadlo que ‘co inconsciente € monétono. Nao evocarei aqui minha experiéncia, rogo-thes simplesmente que abram as trés primeiras obras de Freud, as mais fundamentais, e que vejam se € a mo- notonia que caracteriza a andlise dos sonhos, dos atos falhos € dos lapsos. Bem ao contra- tio, 0 inconsciente parece-me ndo somente extremamente particularizado, mais ainda do que variado, de um sujeito a outro, como ain- da bem espertoe espirituoso, pois ¢ justamen- te ali que o chiste revelou suas verdadeiras di- menses € suas verdadeiras estruturas. Nao existe um inconsciente porque existiria um mae inka preparaclo (avisé) -que.9 prazer € uma barreira ao gozp -, em que Freud retoma as condig6es das quais muito antigas escolas de pensamento tinham feito sua lei. © que se diz do prazer? Que ele é 2 excitagio minima, aquilo que faz desaparecer a tensio, tempera-2 a0 mé- ximo, ou seja, entad, que € aquilo que nos para necessariamente a um ponto de distanciamen- to, de distancia bastante respeitosa do gozo. Porque aquile que chamo gazo. no.sentide em queo.corpo se experimenta_ é sempre daar dem da tension do forcamento_do gasto, até Juesme da procza, Hg incontestavelmente 070 no pivelem que comecaaanarecera dor e nds sabemos que € somente neste nivel da dor que pode se experimentar toda uma dimensao do organismo que de outra forma fica velada. O que ¢ odesejo? O desejo €é de alguma for ‘ma 0 ponto de compromisso, a escala da di- mensio do gozo na medida em que de certo modo este desejo permite ievar mais fonge 0 nivel da barteira do prazer. Este é, no entanto, ‘um ponto fantasmatico, ou seja, ali intervém 0 registro da dimensao imagindria que faz. com que 0 clesejo seja suspense a alguma coisa da Dezembro 2001 Opgio Lacaniana n° 32 qual ndo é de sua natureza verdadeiramente enigit 2 cealizacao. Por que venho aqui falar disto que de todo modo 6 apenas uma amostra mintiscula desta dimensio que desenvolvo hé quinze anos em meu semindrio? Para evocar a idéia de uma topologia do sujeito. £ com relagao a suas su- perficies, a seus limites fundamentais, a suas telagées reciprocas, 4 maneira como elas se entrecruzam ¢ se enlagam que podem colocar se 0 problemas, que também ndo sio poucos simples problemas de interpsicologia, mas sim aqueles de uma estrutura que diz respeito 20 sujeito em sua dupla relacao com o saber. saber permanece para o sujeito marcado de um valor nodal pelo seguinte fato (Cujo caré- ter central no pensamento esquecemas), que 0 deseio sexual na psicandlise néo éa imagem que devemos conceber a partir de um mito da ten- déncia orginica. Ele € algo infinitamente mais clevado ¢ ligado, antes de mais nada, precisa- mente a linguagem na medida em que € a lin- guagem que lhe da inicialmente seu lugar € que sua primeira aparicio no desenvolvimento do individuo se manifesta no pivei do deseio de sa- ber. Se nio vemos que al est4 0 ponto central- em que se enraiza a teoria da libido cle Freud, perdemas simplesmente a corda. & perder a dos de uma pretensa psicologia geral, elaborada 20 longo dos séculos para responder a necessi- dades extremamente diversas, mas que consti tuem 0 deigto da série de teorias floséficas. E perder a corda também néo ver que reperspec- tivagio, que mudanga total de ponto de vista introduz a teotia de Freud, pois perde-se assim tanto sua peitica quanto sua fecundidade. Um de meus alunos, exterior a0 campo a anilise, frequeritemente demanda: «voce acre- dita que € suficiente explicar isto 20s fildsofos? Que € sulicierite’colocar em um quaciro 0 es- ‘quema de seu grafo para que eles reajam e com- preendam?» Bi ndo tinha, quanto a isto, a me- nor ilusdo, além do que tinha por demais pro- vas do contrario. Apesar disto as idéias passeiam ¢, da posi¢io em que estamos com relacao a difusdo da linguagem € 0 minimo de impres- 305 necessatios para que uma coisa dure, isso é ‘bastante. Basta que tenha sido dito em algum lugar € que um ouvido em duzentos o tenha escutado para que em um futuro bastante prd- ximo seus efeitos estejam assegurados. Q.que indica ao falar da posicio que pode ocuparo psicanalista,é que atualmente elaéa Sinica de onde o médica pode manter a atigi- nalidade-de semper da sua pasican, qual seja —daguela de alguém que tem que responder a uma cemanca de saber ainda que isso passa setfeito conduzindo-se o sujeita.a voltarse pars o.lado-oposto das idéias que emite para apre- sentar esta demanda. Se o inconsciente no € uma coisa monétona, mas a0 contrério uma fechadura tio precisa quanto possivel e cujo manejo no hé nada além de néo abrir aquilo que esté além de uma cifra da maneira inversa cde uma chave, esta abertura s6 pode servir a0 Sujeito em sua demanda de saber. Qinespera- 2 i a oP ‘i deca confesse sem sabé-to, exercicio e a formagko do pensamento sio as preliminares necessdrias a uma tal ope+ ragdo. E preciso que o médico seja destro em colocar os problemas no nivel de uma série de temas nos quaisele deve conheceras conexdes, (05 nés, € que nao séo as temas correntes da filosofia e da psicologia. Aqueles em curso em uma certa pritica investigadora que se chama psicotécnica, em que as respostas sto determi- nadas em funcao cle certas questées, elas pro- prias registradas em um plano utilitarto, tém seu precoe seu valor em limices definidos que nada tém a ver com o fundo do que se trata na de- manda do doente. Na ponta desta demanda, a funcdo da rela- 20 com 0 sujeito suposto saber, cevela aquilo que denominamos transferéncia, Na medidaem_ que mais do que nunca a ciéncia esta com a palavra, mais do que nunca suporta:se este mito do sujeito suposto saber, ¢ isto que permite a existéncia do fendmeno da transferéncia en- quanto remete a0 mais piiiitivo, a0 mais en- ralzado do deselo de saber. ‘Opcio Lacaniana n° 32 Dezembro 2001 Na era cientifica, o médlico enconira-se em uma dupla posicdo: por um lado ele lida com um investimento energético do qual nao sus- peita o poder se nao o Ihe explicamos, por ou- tro lado ele deve colocar este investimento en- tre parénteses em razdo mesma dos poderes dos quais dispoe, daqueles que ele deve distri- buir, no plano cientifico em que esta situado. Quer queirs quer ndo, o médico esté integrado neste movimento mundial de organizacio de uma satide que torna-se publica e por este faio novas questées Ihe serao colocadas, Ele nao saberé de forma alguma motivar a manutencao de sua funcao propriamente mé- dica em. nome de um ‘privado” que seria fun- dado naquilo que chamamos de sigilo profissi- ‘onal, e nem falemos muito no modo como este sigilo € respeitado, quero dizer na pritica da vida, na hora em que se bebe o conhaque. Mas Nao € isto o fundamento do sigilo profissionai, pois se ele fosse da ordem do privado ele seria da ordem das mesmas flutuagdes que social- mente acompanharama generalizaciio no mun- do, na pritica do imposto de renda. Trata-se de outra coisa, propriamente desta leitura pela qual o médico € capaz. de conduzir 0 sujeito Aquilo de que se trata em um certo parénteses, aquele que comeca no nascimento, que termi- na na morte e que comporta questoes, que comporta tanto um quanto a outra. Em nome de qué os médicos deverio 0 di- reito ou ndo 20 nascimento? Como eles respon- derdo as exigéncias que convergirio bem rapi- damente para as exigéncias da produtividade? i ‘ i ai: 2agf0_mundial_vai tratarse de saber em que cums gue faim dele empsegado desa em presauniversal da produtividade? Nao hi outro terreno que nao esta relacio por meio da qual ele é o médico, ou sejaa da demanda do doente. £ no interior desta relacdo firme em que se produzem tantas coisas que est4a revelacao desta dimensdo em seu valor origi- nal, que nada tem de idealista, mas que € exa- tamente aquilo que diz: a relagaa camo gozo dacompa. Que tém vocés a dizer, médicos, sobre 0 mais escandaloso claquilo que se seguira? Pois se era excepcional o caso em que o homem até aqui proferia «se teu olho te escandaliza arran- que-o», o que voces dirio quanto ao slogan «e teu olho se vende bem, ceeen nome de qué terdo voces que falar, senio precisamente des- ta dimensio «lo goz0 clo corpo e disto que ele comancia quanto 4 participacdo em tudo que est4 no mundo? Se 0 médico deve continuar a ser alguma coisa que no a heranga de sua funcao antiga, que era uma fungio sagrada, €a meu ver, pros- seguir © manter em sua propria vida a desco- berta de Freud. Foi sempre como missiondtio do médico que me considerei, 2 fungio do médico assim como a do padre ndo se limitam a0 tempo que nela se emprega ‘Texto publicado com a amavel autorizacio de Jacques-Alain Miller Testo de 1966, Publicado inicialmente em Gabiers de Goldge de Médicine, vol. 12, 1966 e mais tarde em Bloc-notes de La aychanalyse, n°. 7, Georg, Genehea, 1987. Traduzido por Marcus André Vieira. Dezembro 2001 Opcao Lacaniana n° 32

Você também pode gostar