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O brilho da inFelicidade

KALIMEROS
Escola Brasileira de Psicanálise
Rio de Janeiro

Apresentação:
Lenita Bente.r
Copyright © 1998, Kalimeros

Organização Geral
Lenita Bentes
Ronaldo Fabião Gomes

Conselho Editorial
Clara Lúcia !nem, Eliane Schermann, Ftlippo Olivieri,
Lenita Bentes, Maria Anita Carneiro Ribeiro
Maria Beatriz Barra, Mirta Zbrun, Ronaldo Fabião Gomes

Projeto Gráfico e Preparação


Contra Capa

O brilho da infelicidade I Kalimeros - Escola Brasileira de Psicanálise -


Rio de Janeiro. Lenita Be_ntes e Ronaldo Fabião Gomes (Orgs.) - Rio de
Janeiro. Contra Capa Livraria, 1998.
272 p.; 14 x 21 cm

ISBN 85-860 1 1-09-6

1. Psicanálise. 2. Toxicomanias. 3. Alcoolismo. 1. Bentes, Lenita, org. li.


Gomes, Ronaldo Fabião, org. Ili. Kalimeros. Escola Brasileira de Psica­
nálise. IV. Título.
CDD 150.195

1998
Todos os direitos desta edição reservados à
Contra Capa Livraria Ltda.
<ccapa@easynet.com. br>
Rua Barata Ribeiro, 370 - Loja 208
22040-000 - Rio de Janeiro - RJ
Tel (55 21) 236-1999
Fax (55 21) 256-0526
SUMÁRIO

Apresentação 09
Lenita Bentes

Toxicomanias: saber e gozo

Uma passagem clandestina 15


Celso Rcnnó Lima
A mordaça infernal 21
Núcleo de Pesquisa em Toxicomanias e Alcoolismo
Clínica do supereu e as toxicomanias 31
Daniel Sillitti
Os novos objetos de gozo 37
Gleuza Maria M. Salomon

Ética

Sobre a segregação 43 ·
Colette Soler
O mal-estar na cidade: segregação e toxicomania 55
Cláudia HensdJel de Lima & Antônio José Alves Júnior

Toxicomanias e diversidades clínicas

A nomeação e o recurso às drogas ou a operação de nomear no


discurso analítico 65
Ernesto Sinatra
O ato de consumir drogas e a realidade virtual 79
Célio Garcia
O social e as novas formas do sintoma: as toxicomanias 91
Fernando Teixeira Grossi & Cristina Sandra Pinelli Nogueira
O mal-estar das toxicomanias: a questão do desejo
Eclipse do desejo 99
Clara Lucia lnem
Toxicomania - um gozo cínico? 107
Ana Martha Wilson Maia
O inferno do desejo e o deserto do gozo · 117
Maria Anita Carneiro Ribeiro

Identidade do toxicômano e Função Paterna


Adolescência e droga: um caso 125
Sônia Alberti
O lugar variável do objeto droga 13 5
Carlos Genaro Cauto Fernández
Toxicomanias: onde opera o· analista? 141
Maria Luiza Mota Miranda

Entrada em tratamento / Sintoma analítico?


Uma experiência vazia 149
Maurício Tarrab
Segredos, danos e perdas: um caso clínico 157
Marcos Baptista
Atrás da droga, o vazio das mulheres 167
Andréa Brunetto

Algumas proposições sobre o fenômeno toxicomaníaco


para um tratamento possível das toxicomanias
A psicanálise diante da toxicomania 173
Fillipo 0/ivieri
O objeto droga e o objeto criança: algumas considerações 179
Elisabeth da Rocha Miranda
Angústia, sintoma e objeto droga 187
Mirta Zbrun
A toxicomania e a demanda 191
Gilberto Rudeck da Fonseca

Alcoolismo e gozo

A função do teatro, do álcool e da mendicância na economia


pulsional 203
Mi/a Palombini de Alencar
Se o álcool comparece, o sujeito desaparece 211
Maria Beatriz Barra

Toxicomanias: o recurso na psicose

Toxicomania e suplência 219


Antônio Beneti

A·morte anunciada: morte, ato e significação

Amor à into-x-icação 227


Eliane Schermann

Psicossomática: toxicomanias e corpo

Toxicomania e FPS: aproximações 237


Núcleo de Pesquisa em Psicossomática: Psicanálise e Medicina

Descriminalização e legalização

Drogas: a irracionalidade da criminalização 249


Maria Lúcia Karam
APRESENTAÇÃO

Poucas são as vezes· em que encontramos nos textos de


Freud e Lacan referências sobre as toxicomanias ou o alcoolismo.
Entretanto a genialidade de ambos fez do pouco que disseram pre­
ciosas revelações.
Freud retoma do poeta Bockling uma observação: a que
design ava a ligação do bebedor com o vinho como o modelo do
casamento feliz, pois "por não comportar nenhuma alteridade se­
xual ao seu programa, tal casamento outorga àquele que com ele se
compromete, a certeza de nunca correr o risco de ser acusado pelo
parceiro de ter usurpado seus direitos ou ter falhado em seus deve­
res" (Lecoeur, 1992, p. 20). Aqui não se trata de, ao oferecer-se à
conquista, poder obter a recusa. A satisfação obtida conduz a um
gozo auto-induzido, monocultivado e imediato. Trata-se do gozo
do.Mesmo.
Na segunda de suas "Contribuições à psicologia da vida
amorosa" (1912), Freud trata a "relação do bebedor com o vinho"
como exceção tanto para as modalidades da escolha do objeto
quanto para as condições da relação de amor. Tanto a clivagem
mãe-puta, significações contra o incesto, quanto as condições que
este produz não comparecem na relação do bebedor com o vinho;
esta relação faz exceção. Dito de outro modo, esta relação não
procede de nenhuma clivagem e nem de nenhuma disjunção entre
o amor e o desejo. O laço com o vinho é tão bem estabelecido que
O Brilho da InFeliddade

obtura as falhas às quais comumente o homem se apega. Nesta


parceria o objeto não está fora de alcance; o sujeito goza de seu
objeto de forma satisfatória, o que faz do bebedor um amante
atípico: um amante saciado, satisfeito por seu objeto.
A frase de Freud diz ter o bebedor substituído a mulher
pelo vinho. Ele o colocou no lugar em que se teria visto confronta­
do com o abismo feminino. O vinho não é uma mulher. Uma
mulher é Outra e o vinho é Um. Como Outra para o sujeito, ela
aparece sendo do Outro; por exemplo, nos delírios de ciúme dos
alcoolistas. Já o vinho é do sujeito e se sustenta como gozo do Um.
Desejar uma mulher é ser causado por uma alteridade; o vinho é
garantia contra a castração ao se apresentar como sendo o mesmo.
Se uma mulher é um sintoma, afirma Lacan, é porque o
homem nela crê, ou seja, crê que ela poderia dizer algo e que ele só
teria que decifrar seus ditos como um sintoma. O sujeito alcoolista
curto-circuita o objeto a naquilo que se refere às suas coordenadas
lógicas, alojando-se em um discurso que carece de sua dialética pró­
pria, por não deixar lugar à falta.
A lei não está ausente do Outro, mas a distância que dela
mantém não atrapalha a busca do objeto, ign orando as suas restri­
ções. A lei não tendo validade, leva o sujeito a constituir um estatu­
to de exceção, visando se fazer esquecer como sujeito do desejo. A .
embriaguez realiza o esquecimento. Trata-se do conhecido "Bebo
para esquecer".
Identificado ao mais-de-gozar, temporariamente as conse­
qüências da divisão são aliviadas. Conseqüências que "cabem" ao
parceiro do alcoolista suportar, ora denunciando seus maleficios,
ora provendo-o de seu produto, desse objeto em que há o sinal de
um excesso do qual extrai um mais-de-gozar.
O bebedor recria um corpo pleno - o que também faz o
toxicômano - não recortado pela ação do significante. Esta é a
sua crença: por seu ato reunir o sujeito ao corpo, anulando os efei-

10
únita Bmlu

tos da divisão subjetiva, banalizando-a. A ele falta mais um trago


para recuperar o que lhe falta. Isola-se assim das variáveis da vida e
em especial da vida amorosa em que o cortejar e o ser cortejado
relançam o semi-dizer da palavra.
''No tempo da embriaguez, utilizando o materna dos discur­
sos proposto por Lacan, o estatuto do sujeito pode se escrever assim:

Sujeito Outro
o 1
O sujeito amordaçado está alienado ao discurso capitalista.
Este sujeito visa um objeto que o anteparo da fantasia detém. Um
mais-de-gozar sustenta o sujeito reduzido ao "eu", afirmando o
poder do enunciado. Um sujeito satisfeito, sem sintomas, restrito a
um corpo que goza" (Lecoeur, 1992, p. 52 e 61).

----- x----
$

sl ' a
S2

É pela simples razão do anteparo da fantasia não funcionar


que não podemos dizer que as toxicomanias e o alcoolismo sejam
casos de.perversão, posto que a perversão supõe o uso da fantasia,
e um uso muito específico.
Se Freud falou do matrimônio feliz, Lacan nos disse que:
"a droga é o que permite romper o casamento com o pipi" (1975).
"Trata-se de uma formação de ruptura com o gozo fálico, cujas
consequências são: 1) poder gozar sem a fantasia, 2) ser uma ruptura
com o Nome-do-Pai que não implica em psicose; 3) faz surgir o gozo
Uno como não sexual, pois o gozo sexual não é Uno; ele é fraturado,
apreensível pela fragmentação do corpo." (Laurent, 1997, p. 19).
Portanto, no alcoolismo, o objeto visado neste gozo infini­
to continua a ser o falo, razão pela qual o alcoolismo é tão bem
tolerado, podendo-sé até observar uma certa cumplicidade social com

11
O Brilho do lnFelicidade

o bebedor e seu heroísmo viril. No toxicômano, não é o objeto fálico


o que está em causa, o que os torna exóticos e intoleráveis.
Em que um matrimônio ou um divórcio pode contribuir
para que daí se extraia a felicidade? Ou para que serve um marido?
Já aí vislumbramos algo do brilho da infelicidade. ''A felicidade -
diz Freud - não se acha incluída no plano da criação" (1930).
É preciso ser dois para fazer o amor (pelo menos dois) e é
por isto que o coito, longe de abolir a solidão, a confirma. Os
amantes o sabem. São os corpos que se tocam, que se amam, que
gozam, que permanecem . . . Lucrécio o descreveu be�: "Essa fusão
que se busca, às vezes freqüentemente, mas que nunca se encontra,
ou se crê encontrar para logo depois se perder" (apud. Comte­
Sponville, 1997, p. 250-2).
Daí o fracasso, sempre; a tristeza, tão freqüentemente. Eles
queriam ser um só e ei-los mais dois do que nunca. "Da própria
fonte dos prazeres - escreve magnificamente Lucrécio - surge
não sei que amargor, que até nas flores sufqca o amante . . . Isso não
prova nada contra o prazer, quando ele é puro, nada contra o amor,
quando ele é verdadeiro, mas prova algo contra a fusão, que o
prazer recusa exatamente quando acreditava alcançá-la. Post Coitum
Omne Animal Triste... " (ibid. ). Porque se vê novamente entregue a si
mesmo, à sua solidão, à sua banalidade, a esse grande vazio do
desejo nele desaparecido. Ou se escapa à tristeza, e se isso acontece,
é pelo maravilhamento do prazer do amor, da gratidão, em suma,
pelo encontro que supõe a dualidade; jamais pela fusão dos seres ou
pela abolição das diferenças. Verdade do amor: mais vale fazê-lo do
que sonhar. Dois amantes que gozam simultaneamente são dois praze­
res diferentes, um misterioso ao outro; dois espasmos, duas solidões.
O corpo sabe mais sobre o amor do que os poetas. Men­
tem-nos sobre o corpo. De que têm medo? De que querem se
consolar? De si mesmos, desta grande loucura do desejo (ou de sua
pequenez a posteriori?), desse animal neles, deste ábismo tão de-

12
Lenita Bmtes

pressa preenchido, dessa paz que de repente parece a morte. . . A


solidão é nosso quinhão e esse quinhão é o corpo.
Sócrates recolhe a verdade sobre o amor de uma mulher,
Diotima: "O amor não é um Deus nem Deus. De fato, todo amor é
amor a alguma coisa, que se deseja e que falta" (ibid.)
Entretanto sabemos que por mais próprio que sejam, nem o in­
consciente nem o corpo são nossos. Temos um corpo que deve ser simbo­
lizada O toxicômano pensa que não está em outra parte senão no corpo
O saber é inconsciente, causa da perda da universalidade
do gozo no ser falante. Põe em jogo um lugar que é Outro sexo e,
como tal, fonte de equívocos, um lugar em que se diz a sexualidade;
não o sexo que o exclui.
Como manejar a cura para que estes sujeitos se disponham
a trocar gozo por amor? Como fazer para que a demanda de feli­
cidade, na qual se empenham, desvie-se desse objeto de satisfação e
nos seja dirigida?
"Se o sign ificante para explicar o todo não existe e portan­
to não é a droga que faz o toxicômano, mas o toxicômano que faz
a droga" no dizer de Hugo Freda (1987), trata-se de desintoxicar
não da-droga, mas sim a droga como sign ificante a partir do qual o
sujeito se nomeia, permanecendo entretanto anônimo, pois "quan­
do ele sonha com um gozo sem sexo, o corpo do Outro lhe faz
sign o para lembrar-lhe que só a relação com a castração faz dele
um mamífero diferente dos demais" (Freda, 1996, p. 108).
Desintoxicar a droga quer dizer desintoxicar não de uma
substância, mas de um gozo que faz viver a esperança de um mun­
do em que a reprodução é sem sexo. O que ganharia o sujeito com
isso? Ao abandonar sua "felicidade", encontrar em sua intimidade
os contornos da causa que o determina e deixar de ser o objeto do
Outro, do mercado do capital perverso. "O homem está casado
com o falo. Não há outra mulher que isso" (Lacan, 1974).

13
O Brilho da InFelicidade

É neste sentido que procuramos reunir no presente livro o


desenvolvimento das seguintes linhas de pesquisa: a droga como
"formação de ruptura" e os efeitos dessa ruptura nas estruturas
clínicas, suas modalizações em cada sujeito, as dificuldades da entra­
da em análise, os impasses durante o tratamento, a "foraclusão
standard" do sujeito do inconsciente que o discurso da ciência pode
produzir, a toxicomania cruzada, o recurso frente à psicose, a ética,
o discurso capitalista e a função paterna, a descriminalização e a
legalização. Esperamos assim seguir a orientação de Lacan - "Me­
lhor que renuncie quem não possa unir a seu horizonte a subjetivi­
dade de sua época" .

Lenita Bentes

Referências Bibliográficas

COMTE-SPONVILLE, A. Pequeno tratado dai grandei virt11dei. São Paulo,


Martins Fontes,. 1997.
FREUD. S. "Contribuições à psicologia da vida amo.rosa" (1912). Em: Obrai
rompletai, vol. XI. Rio de Janeiro, Imago, 1980.
____ . "O mal-estar na civilização (1930). Em Obrar rompletas, vol. XXI.
Op. cit.
FREDA, H. "Da droga ao inconsciente", IX Jornadai do CMT, Subversão do
sujeito na clinica das toxicomanias. Belo Horizonte, 1996.
----· "Fascículos do FEMIG", n. 4. Belo Horizonte, 1987.
LACAN,J. "Função e campo da fala e'da linguagem em psicanálise" (1953).
Em: Escritos. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1998.
____. O Seminário, livro 22: R S. I (1973-4). Inédito, aula de 17 de
dezembro de 1974.
LAURENT, E. ''Três observações sobre as toxicomanias". Em: SNjeto, lf)Ce y
modernidad II, Buenos Aires, Atuel-TyA, 1995.
LECOEUR., B. "O homem embriagado". Belo Horizonte, CMf-FEMIG, 1992.
SINATRA, E. "Da monotonia a diversidade". Em: SNjeto, !f1" y modernidad fil
Buenos Aires, Atuel-TyA, 1995.

14
UMA PASSAGEM CLANDESTINA

Celso Rennó Lima


Membro da Escola Brasileira de Psicanálise

Há mais ou menos dois anos, numa apresentação no Nú­


cleo de Toxicomania da EBP-RJ, escutei o relato de cinco ou seis
casos de adolescentes que fazem ou fizeram uso de drogas. Em
todos os casos relatados um ponto me chamou à atenção: a descri­
ção que os adolescentes faziam dos efeitos do primeiro contato
com a droga muito se assemelhava ao que já escutei ou li, e até
mesmo pude viver, sobre a experiência dos passantes no que diz
respeito ao momento do Passe na análise, ou seja, ao momento em
que a queda das identificações propicia o atravessamento da fantasia.

Logo depois, desta vez numa apresentação no Núcleo de


Toxicomania da EBP-MG, escutava um trabalho de um colega so­
bre o Grafo do Desejo e pude, na ocasião, formular alguns comen­
tários sobre o que chamei de "uma travessia selvagem da fantasia",
para dizer destes momentos da primeira experiência com a droga.

Para fornecer subsídios ao desenvolvimento de minhas idéi­


as, buscarei trechos de um texto que escrevi e que se encontra publi­
cado em Opfào Lacaniana, n. 1 1 com o título: "Uma brecha no
fantasma" " (1 994) . Na ocasião procurava elementos que pudessem
esclarecer o que seria um traço de perversão. Foi então que, após
uma pesquisa no �exto freudiano, pude constatar que, ao contrário

* N. do E. Uma vez que atualmente são utilizadas duas traduções para o


termo alemão Phanta.tie, " fantasia" e "fantasma", informamos ao leitor que,
salvo indicação em contrário, serão mantidas ao longo deste livro as traduções
indicadas por cada um dos autores.
O Bn"/ho da lnFelicidade

do que observamos em suas traduções (português, espanhol, inglês


ou francês), são utilizadas por Freud três palavras distintas para o
que se traduziu como traço, o que, a meu ver, promove recortes
conceituais diferentes.
A primeira é Zeichen. Freud u tiliza este significante na
"Carta 52". Ele diz, por exemplo: "O essencialmente novo em
minha teoria é a afirmação de que a memória se apresenta não de
uma forma, mas de várias formas, em diferentes maneiras de tra­
ços [Zeichen = indícios, insigínias]". A primeira camada do modelo
psíquico apresentado por Freud nesta carta será denominada de
Wahrnemungszeichen, consistindo no primeiro registi:o [NiederschriftJ
que estará "organizado de acordo com associações por simultanei­
dade, sendo sua conscientização totalmente incapaz de se fazer".
A segunda palavra é Zug. Este sign ificante é utilizado por
Freud em poucas ocasiões: "Uma criança é batida" e "Psicologia
das massas e análise do eu", de onde Lacan retira o famoso concei­
to de Einzjger Zug (cf. Freud, 1 920, p. 1 00) . Sem dúvida trata-se de
um traço, de um sulco que tem como conseqüência lógica a Befahung
primordial. Mas é no texto "Uma criança é espancada", primeiro pa­
rágrafo da segunda parte, que encontramos uma passagem que nos
será muito útil: "Uma fantasia deste tipo, proveniente talvez de causas
acidentais na infância e mantida para o propósito de satisfação auto­
erótica pode, à luz de nosso conhecimento presente, somente ser vista
como um traço primário rPnmamn Zug] de perversão" (1 91 9, p. 233).
A terceira é Spur. Esta é a palavra alemã para traço que
Freud mais utiliza ao longo de sua obra. Na "Carta 52", nossa
referência fundamental, vamos vê-lo utilizando Spur ao dizer que na
camada denominada Wahrnemung nenhum traço [kein .ipu,] do que
acontece permanece, pois isto só é possível quando do segundo
registro [Niederschrift]: Unbewusst, onde "traços do inconsciente
[ Unbewusst.ipuren] são algo equivalente a lembranças conceituais
[Begnffierinnemngen] ' '.

16
Ceho Rennó Li111a

N este ponto é importante trazer à cena o primeiro esque­


ma do aparelho psíquico desenvolvido por Freud na Carta 52:

W --- WZ --- UB --- VB --- Bews

E, com toda a ousadia que _me é permitida num momento


como este, proponho introduzir o conceito de Zug, mais especifica­
mente, de einzeger Zug entre as camadas Wz e UB:

W -- WZ -- enzjger Zug -- UB -- VB -- Bews

Minha hipotese é que há traços, Zugen, que não sofrem tra­


dução para Spur, permanecendo como pontos de gozo, memória
de gozo, como nos diz Jacques-Alain Miller (1 995), a partir de um
acontecimento, ou acidente que promoveu a fixação e que "foram
mantidos com o propósito de satisfação auto-erótica" 1 •
Esta "não-tradução" traz, como conseqüência, o que cha­
mei na ocasião de uma "brecha na fan tasia", um pon to de
"Verleugnung", de desmentido que possibilita um ponto de passa­
gem, digamos, clandestina.
Sabemos que a fantasia primordial é a interpretação que o
sujeito fez do seu encontro com a falta no Outro [S(t4{.)] . Sabemos
que esta interpretação é o que sustenta o sujeito como sujeito
desejante, proporcionando-lhe uma certa estabilidade, um certo
ponto de certeza que se traduz no pouco de realidade que mantém
o quadro de sua existência. Ao mesmo tempo, e aqui é importante
lembrar-lhes o Grafo do Desejo, a fantasia fundamental está estra­
tegicamente localizada entre a falta no Outro [S(?'-)] e o sintoma
como significação do Outro ls(A)] abrindo-se ao desejo (d) .

17
O Bn"/ho da InFeli&idade

É de nosso conhecimento que a instalação desta maquini­


nha de transformar gozo em prazer, como nos disse J.-A. Miller,
apresenta uma brecha estrutural. Este ponto de conjunção-disjunção,
que aí está entre o sujeito e seu objeto, nos diz disto. Ou seja, diante
do objeto o sujeito se esvanece (jading), só encontrando paradoxal­
mente na identificação a este objeto o seu ponto de ancoragem.

=
É por isso que a travessia da fantasia no final de análise
pode ser maternizada como S a, como muito bem nos demons­

=
trou Bernardino Horne em uma conferência na EBP-MG. Na tra­
vessia da fantasia, a equação S a nos diz do que propicia uma
passagem, aí mesmo, no ponto em que o sujeito se apresenta como
resposta do real.
Esta travessia de final de análise só acontece quando, após
um percurso em que uma cena fantasmática pode ser construída,
uma interpretação desmonta o enlaçamento do sofrimento que trouxe
o sujeito à análise, ou seja, a fantasia e o sintoma, deixando o sujeito
frente a frente com o seu desejo.
O que esta interpretação visa, portanto, é desvencilhar este
enlaçamento entre Simbólico e Imaginário, que é feito pelo sintoma aí
mesmo onde, por estrutura, vemos incidir a falha na transmissão da
castração - lugar onde a fantasia vai se articular nos dizendo do
desejo que o sustenta e do gozo que o mantém. Este objetivo só
poderá ser alcançado se, ao apontar a impossibilidade do sentido, a
interpretação promover um efração do real na brecha que ela abre
no plano das identificações. Então acontece uma passagem que
pos sibilitará ao novo suj eito que daí resulta, e fetuar um novo
enlaçamento entre Real, Simbólico e Imaginário.
A travessia de final de análise tem conseqüências, portanto:
a produção de um desejo inédito como efeito de um novo sujeito
a partir da própria mudança de sua relação com o obj eto que o
sustentava na fantasia. Ali onde o percurso pulsional produzia an-

18
Celso Rennó Li,11a

gústia, veremos surgir, ao final da curva, um novo afeto: o entusias­


mo. Em outras palavras, onde havia um objeto a, mais-de-gozar,
encontramos "este elemento de vida, este elemento de gozo vivo
que é o objeto pequeno d' (Miller), como causa de desejo.
O que acontece nestes momentos que não são conseqüên­
cia de um percurso analítico, nem de uma construção, nem tampouco
de uma interpretação que propiciará a travessia, mas sim o efeito de
uma droga qualquer? Acontece uma passagem, uma "travessia",
que chamamos de "selvagem", ocorrendo em um ponto qualquer
da tela protetora da fantasia em que exista uma certa fragilidade,
conseqüência da permanência de um traço sem tradução. Esta "tra­
vessia", esta passagem, digamos, clandestina, não produz um novo
saber como conseqüência do retorno do S 1 produzido - como na
travessia de final de análise - mas sim um retorno de algo que vai
exatamente negar a presença deste significante que faz borda no
real. O que retorna é um traço saturado de gozo'-, incapaz de impedir
uma "vontade de gozo" onde um desejo deveria surgir. Desta for­
ma é "como se houvesse acontecido um gozo inesquecível e que
em seguida todas as repetições só tivessem por objetivo encontrar
este gozo inesquecível. A ponto de que, enfim, o significante não
parecesse de todo, aqui, permitir um deslocamento, mas ao contrá­
rio só abrir a uma comemoração", como nos diz ].-A.Miller, para
acrescentar: "A fixação designa o fato de que o sujeito permanece
agarrado a um modo de gozo quando ele deveria ultrapassá-lo,
substituir um outro modo de gozo. É isso o que define, no fundo,
o arcaísmo eventual de um modo de gozo. [. . .] Em Freud, o modo
de gozo supostamente ultrapassado pode se encontrar reativado
[pela] regressão libidinal [e pela] fixação de gozo" (Miller, 1 995) .

19
O Biilho da InFelicidade

N OTAS

1 . "A memória está no nível do gozo que se inscreve, é antes de tudo o que
resta do gozo ... " /e sens-jouil' é outra coisa que a verdade... é o sentido entanto
que o gozo aí se fixa".
2. "Le désir, que est suppôt de cette refente du sujet s'accommoderait sans
doute de se dire volonté de jouissance" (Lacan, 1 966, p. 773).

Referências bibliográficas

FREUD, S. "Uma criança é espancada" (1 9 1 9). Em Studienausgaben, vol. VII.


Frankfurt, Fischer Taschenbuch Verlag, 1 982.
________ . " P s i c ol ogia d a s m a s s a s e a n á l i s e do e u " ( 1 9 2 0) . E m :
Studienausgaben, vol. IX. Op. cit.
LACAN, J. Écrits. Paris, Seuil, 1 966.
MILLER, J.-A. "Silet". Inédito, aula de 29 de março de 1 995.
REN NÓ LIMA, C. "Uma brecha no fantasma", Opção úzcaniana, n. 1 1 , 1 994.
A MORDAÇA INFERNAL

Núcleo de Pes q uisa em Toxicomanias e Alco o lismo*


EBP- Rio de Janeiro

Certa feita, Freud é interpelado por Einstein sobre a per­


gunta: por que a guerra?
Se Einstein propõe a correlação direito e poder para
explicá-la, Freud prefere substituir a palavra poder "por uma pala­
vra mais nua e crua: violência". Segundo Freud, "os conflitos de
interesses enti:e os homens são resolvidos pelo uso da violência"
(1932, p. 246). Uma facção tem de ser compelida a abandonar suas
pretensões ou objeções.
Eliminar o adversário traria a vantagem de reforçar o po­
der da facção vitoriosa e impedir que outras a seguissem, matar
opor-se-ia a reflexão de que o inimigo pode ser utilizado na realiza­
ção de serviços úteis. O subjugar assim veio a substituir a morte.
Passa então a haver um caminho que se estende da violência ao
direito à lei. Estes elementos de força desigual trans formam-nos
em senhores e escravos.
Freud aprofunda a questão da lei quando fala de uma utili­
zação diferente por aqueles que a aplicam colocando-se acima dela,
acima das proibições que aplicam a todos, o que os fazem passar
da lei à violência. A recusa em admitir a mudança leva à rebelião.

* Relatores: Lenita Bentes e Ronaldo Fabião Gomes.


Colaboradores: Clara Lúcia lnem, Cláudia Henschel, Eliana Bentes, Fillipo
Olivieri, Maria Beatriz Barra, Mila Alencar; Vânia Olivieri e Vera Nogueira.
O Brilho da !11Fe/icidade

A esse respeito Lacan nos diz: "o povo acuado, impedido, toma a
palavra através do acontecimento histórico quando essa palavra lhe
é negada. O povo vai colocar em ato suas falas impossíveis quando
se vê sufocado sob 'a mordaça infernal' da censura que vai impeli­
lo a passagem ao ato de rebelião" (1 95 1 , p. 223).
Robert Musil diz que "a política é um mandamento, um
preceito" (1 989) porque engendra a noção de poder e, como exer­
cício de poder, exerce a censura. Como tal, o discurso da política
pode ser considerado o discurso da censura por excelência em que
vão aparecer as falas cortadas de sentido, destinadas aos sujeitos­
escravos que não as compreendem e cujo direito à palavra é recusa­
do. Esses sujeitos só conseguem reaver seu direito pelo ato de vio­
lência, de rebelião.
Tal exercício do poder manifesta historicamente o desloca­
mento do discurso do mestre ao discurso capitalista. O capitalista
manda e o proletário se lamenta diante das inegociáveis condições
de trabalho em que a exigência da produção chega ao ponto de
�ma extorsão da sobrecarga de trabalho. Aí o laço social corre o
risco de romper-se uma vez que as demandas dos capitalistas sur­
gem como imperativos categóricos e as preces dos proletários se
dirigem a este "outro lugar sem palavras que representa o exercício
do poder dos sign ificantes mestres do discurso capitalista" (Naveau,
1 988, p. 1 1 4).
Lacan no Seminário, livro 1 7: o avesso da psicanálise (1 969-70)
denuncia que o Estado está aí enraizado e a marcação do limite,
escondido no imperativo vociferado: "Circulem! Dispersai-vos!".
Lacan fala de um diálogo de surdos, um diálogo que não cessa de
se escrever. Trata-se de um "Goze!" que se dirige ao proletário
como um "Trabalhe!".
Em seus escritos, Marx também fala de uma intriga a
ser construída para ser resolvida por meio de uma encenação:

22
NIÍcleo de Pesq11isa em Toxicomanias e Alcoolismo

"a fabricação da mais-valia, esse grande segredo da sociedade mo­


derna, vai enfim se desvelar" (1 985, cap. VI, p. 1 36-7). No drama
social retratado por Marx, há duas personagens: uma traz a máscara
do capitalismo exprimindo a insolência e o escárnio. A outra, a do
proletário que exprime timidez e hesitação. O proletário como s er
falante não importa, mas sim o que produz. O dis curso capitalista
se caracteriza por um movimento circular em que a apropriação do
mais-de-gozar não está obstaculizada por nenhuma barreira. Tal
discurso rech�ça a castração.

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discurso do amo discurso do capitalista

O discurso capitalista perverte o dis curso do mestre por


efetuar uma reapropriação do gozo que faz com que a realidade
advenha como fantasia. Tal discurso pretende transformar o real,
embaraçando-o ao ''gadget". É por es te embaraço, por saberem
com o quê e como gozam que o toxicômano e o alcoolista não
fazem sintoma, e não são a mesma coisa. No sintoma, a satis fação
que se realiza é inconsciente e é o que o faz interpretável. Que fique
claro que CJ.Uando falamos da perversão do dis curso do mes�re
efetuada pelo discurso capitalista estamos nos referindo a uma não
orientação ao pai, pois: ''um pai só tem direito ao amor e ao respeito,

23
O Biilho da InFe/icidade

se o dito amor e o dito respeito forem pere-vers-amente orientado, ou


seja, se ele fizer de uma mulher o objeto a, que causa seu desejo"
(Brousse, 1997, p. 77). Vers quer dizer em direção a, rumo ao pai.
Trata-se da transmissão da lei no semi-dizer do sentido. Ser de algu ­
ma forma a lei sem identificar-se com ela, o que dele faz alguém
que reconhece a castração e pode transmiti-la ao fazer de uma mu­
lhe.r seu sintoma.
Os fenômenos toxicômanos exemplificam como a não
' 'pereversion", a não orientação ao pai tem como efeito sustentar o
gozo no corpo e romper com o Nome-do-Pai sem ser uma psico­
se, desmentir a mulher sem ser uma perversão e manter o recalcado
sem sintomatizar como na neurose. O Nome-do-Pai não garante
mais uma função de amarração, ou seja, a divisão, a não identidade
consigo mesmo, cede a vez a um ser-metre, um m 'être, que Lacan designa­
va como uma "degenerescência catastrófica". Como fenômeno, tem a
função de velar a esttutura. Na cultura da droga, pode sobreviver ao
mal-estar do desejo, ou seja, gozar em detrimento do desejar. Por que
não é uma perversão? O perverso, este goza com a fantasia e de for­
ma específica (É. Laurent, 1994) e o toxicômano não.
Se pensarmos o sintoma no âmbito proposto em ''A Ter­
ceira" (1 974), podemos pensar a toxicomania como uma nova for­
ma de sintoma para o mestre moderno, uma vez que, como pro­
duto da ciência, retorna como uma espécie de mito, organizando,
ordenando, classificando o mal-estar na civilização.
O gozo da droga está no corpo que o toxicômano julga
ter. Quer se unir ao Outro real por negar que este esteja fora de
alcance. É esta ilusão que a ruptura com o falo produz, posto que o
gozo sexual faz obstáculo a isso, é defesa contra o gozo do Outro
ou do corpo como totalidade. A determinação fálica faz malograr
tanto o gozo do corpo_ como Outro, como o gozo do corpo do
Outro. Trata-se do "had Um" corpo que ninguém possui. Na ilusão

24
Núcleo de Pe1q11isa e,11 Toxicoma11ias e Alcoolismo

de tê-lo, pode criar fora do tempo lógico sensações cronológicas,


programadas. Mais uma dose por isto ou por aquilo, no momento
em que tudo for insuportável. Onde faltam as palavras "had Um"
corpo que é um "pró [pó]-grama" da felicidade.
Ign orar que não se tem o corpo e o inconsciente é tentar
dar, via indução, via substância, consistência a este Outro como
corpo do qual se goza de uma hipotética infinitude, de uma ruptura
que, por não passar pelo simbólico, fica tudo a dever ao gozo femi­
nino que não desconsidera o falo. Não se trata do gozo do Outro
sexo, mesmo que excluído, mas do gozo do Outro corpo.
O gozo da droga não faz "ex-sistir" o lugar central em sua
função de referência; faz consistir o gozo do Outro ao preencher a
hiância que ele indica por não ser limitado pelo gozo fálico. Aqui, o
alcoolista, por colocar o vinho no lugar da mulher, embora não
rompendo com o falo, mesmo do alto de seu heroísmo viril, tam­
bém a exclui, ao potencializar um Outro que não ele próprio. Tal­
vez haja aqui um entre toque entre ambos: o toxicômano e o alcoolista.
Do que se trata, poderíamos nos perguntar? Com certeza,
não é de tirar o sujeito da droga, mas sim de extrair do ser o sujeito.
Para tal, é preciso ter claro que é o discurso analítico o que mais
além da censura tenta manter o sujeito na via do desejo, único dis­
curso que pode trazer à luz o gozo que repousa na obscuridade de
um ganho ilimitado.
Dizer que o s'!ieito sobre quem operamos em psicanálise só pode ser o
s'!ieito da ciência talvezpasse por um paradoxo. É aí, no entanto, que se
deve faZ!r uma deman:ação sem o que tudo se mistura e começa uma
desonestidade que em outros lugares é chamada de oijetiva: mas que éfalta
de audácia efalta de haver situado o oijeto que malogra. Por nossa posição
de s'!ieito, sempre somos responsáveis. Que chamem a isso como quiserem,
terrorismo. Tenho o direito de sorrir, pois não era num meio em que a
doutrina é abertamente matéria de negociatas que eu temia chocar quem
quer que fosse, ao formular que o erro de boa fé é dentre todos o mais
imperdoável (Lacan, 1 965, p. 873 ).

25
O Brilho da lnFelicidade

Se naquela época Freud tentou responder a pergunta "Por


que a guerra?", é lícito, na modernidade, nos perguntarmos "Por
que a droga?" É quando Freud concorda com Einstein a respeito
da existência no sujeito de uma pulsão de destruição - "o ego teria
se tornado masoquista por influência do supereu s ádico" (1 932,
p. 252) -, que Lacan, ao retornar ao conceito freudiano de
puls ão de morte ou de destruição, des taca o gozo como algo
q u e n ã o p o d e s er p l e n a m e n te a b s o rvido p el a i n s t â n c i a
significante do falo. S u a tese é a d e que o desej o e o falo não
podem dar conta da dimensão do gozo. É nesse sentido que, na
seção cons agrada aos paradoxo s do gozo, Lacan o tratará a
partir da perspectiva da transgressão: frente ao desej o e ao falo,
o gozo é uma transgressão, escapando sempre à determinação
significante.
A partir desse momento de seu ensino, Lacan afirma a teo­
ria da pulsão de morte em sua vertente residual: há sempre um
resíduo de gozo. No Seminário, livro 1 7 (1 969-70), depreendemos o
avanço de sua tarefa na formalização do gozo. O gozo é situado
em três eixos : a) retifica o es tatuto do gozo, que antes abordara
pelo viés da transgress ão; neste Seminário, ele aparece a partir
da es crita do obj eto a como mais-de-gozar, resíduo da opera­
ção significante; b) logifica o obj eto a em uma relação com ou­
tros três elementos S I ' S 2 e '/. constituindo a fórmula dos quatro
discursos; c) faz do gozo uma instância primária, fundamental,
a partir da qual podem ser situados tanto o significante como o
sujeito.
No Seminário, livro 22: RS.I. (1 974-5), Lacan propõe dois
gozos: o jouis-sens (na interseção do imaginário e do simbólico) e o
gozo do Outro, na interseção do imaginário com o corpo real. O
gozo do Outro está fora do simbólico, porém não do corpo,
embora o gozo fálico es teja fora do corpo, porém não fora do
simbólico.

26
Núcleo de Pesq11iia e111 Toxi,omanias e Akoolis1110

Sentido

Significante
(alcoolista)

Fenômeno toxicomaníaco
Fenômeno alcoolista

Nesta articulação, do mesmo modo que o sintoma fixa o


gozo fálico em uma letra que "ex-siste" ao inconsciente, o gozo do
Outro constitui o gozo fálico que constitui o corpo Outro.
Uma questão. Em que classe de gozo se encontram as toxi­
comanias? E mais, se estas não podem ser consideradas um sinto­
ma, visto que têm um gozo distinto do gozo do s intoma, têm o
gozo segundo o saber da ciência (destituído tanto do desejo quanto
da singularidade do sujeito), o gozo no corpo como Outro, não do
corpo pulsional decorrente da afetação pela linguagem. Seu corpo
é seu cadáver, um corpo sobre o qual trabalha, conhece a anatomia,
os caminhos, as eficácias, os melhores tempos para alcançar a produ­
ção de gozo, a produção do fenômeno pela ruptura com a estrutura.
Tentam por meio de um objeto que escapa as determina­
ções da função fálica, em termos de semblante, dar consistência ao
gozo do Outro, como gozo no corpo, em um infinito que não
podendo ser limitado pela função fálica, o é pela morte. A propos­
ta da psicanálise aqui é a de que o sujeito se dirija do fenômeno à
estrutura, de onde se fez escapar, recusando-se a nela se encontrar.

27
O Brilho da l11Felicidade

Diferentemente , o alcoolista não está fora da cadeia


sign ificante e de suas leis. Não rompe com o Outro, antes dirige-se
a ele para que denuncie o gozo de sua posição fantasística, fazendo
emergir a vergonha, a divisão e a culpa. Entretanto por estar na
cadeia sign ificante de forma particular, ao mesmo tempo que pro­
voca o Outro à denúncia, a desativa. Quando Freud referia-se ao
"casamento feliz", denunciava a não necessidade da interdição so­
bre o objeto para alcançá-lo, o que sugere a evitação do supereu via
desvanecimento subjetivo. Oferecer-se à interpretação injuriosa do
Outro pode ou não propiciar a produção de sintomas e a divisão
que torna presente a identificação ao desejo do Outro. Podemos
aqui também afirmar a existência de um gozo que não curto-circuita
a fantasia. Ao colocar-se como objeto para o Outro, faz entrar em
jogo fantasias de triunfo e heroísmo que antecedem um gozo que,
embora transgressor, faz laço social.
Nas toxicomanias a ausência dessa identificação faz da nome­
ação do gozo uma forma de representar-se: "Sou toxicômano".
Trata-se de um sujeito desaparecido, amnésico, com poucas chances
de ser encontrado senão pelo fato de que ao ir ao an_alista, possa
demandar encontrar outra identificação.
O "Eu sou toxicômano'.', esta ficção do mestre moderno
da morte, faz "Aufhebung' do gozo fálico. Diferente do mestre anti­
go que renunciando, em ato decisivo, ao gozo para se fazer sujeito
da morte, se institui. A chave da passagem do discurso do mestre
antigo está em Sócrates, ilustre histérico: "Por paradoxal que seja a
asserção, a ciência toma seus impulsos do discurso histérico [...] o
histérico é o sujeito dividido, dito de outra maneira, é o inconsciente
em exercício que põe o mestre contra a parede para produzir um
saber. Tal foi a ambição induzida no mestre grego sob o nome de
Episteme. Aí onde a 'doxa' o guiava no essencial de sua conduta,
foi intimado - e em especial por um Sócrates histérico confesso
que disse não entender senão de assuntos de desejo, patente em seus

28
Nticleo de Pe.rq«i.ra e111 Toxico111ania.r e Alcooli.r1110

sígnos patognomônicos - a fazer festa de algu ma coisa que valesse


como a 'techne" do escravo e justificasse seus poderes de mestre"
(Lacan, 1 977, p. 6 1 ) . O ficcional esvazia o Outro, trans forma-o em
pó, em inexistente, para que desta maneira a falta, a castração como
real, não ocorra. É um puro agir segundo sua consciência. Sem um
nome próprio, do sintoma neurótico, e sem ter como fazer-se um
nome, como J oyce, o toxicômano ou alcoolista leva o nome do
Outro, do produto.

Retomando Lacan em "Radiofonia",


A mais-valia é a cama do desefo da qual u111a economia.fez seu princípio:
aquele da produção extensiva, portanto insadáve� da/alta de gozar. Ela se
acumulaporum ladopara munentaros meios destaprodução a título do capital Por
outro, estende o mnsumo, sem o qual esta produção seria vã, justamente de ma
inépcia empromo/Jf!f" umgozo do qual elepudesse desaalerar-se (1 970, p. 87).

Em "Por que a guerra?", Freud respondeu que é sempre


com violência que o suj eito vai reagir ao ser desalojado do poder
(imaginário) que ocupa, quer via opressão, quer por uma via mais
romanesca, a religião. Neste sentido, Marx, Freud e Lacan formam
uma série perfeitamente coerente com a ética frente ao saber. Outra
resposta de Freud foi a existência de uma pulsão de ódio e destrui­
ção que coopera com os esforços dos mercadores da gu erra. O que
diferenciaria os mercadores da guerra dos mercadores do capital?

Para concluir: se existe a pulsão de destruição para a qual


Freud encontrou duas s aídas , o vínculo amoroso e o vínculo
identificatório, recomendando contrapor a ela o seu antagonista Eros,
então não há porque nos envergonharmos de falar de ámor, nos
diz ele, e nunca se fala de outra coisa, diz Lacan.

E por que a droga? Ou, com É. Laurent (1 995) , qual é a


situação do gozo em nosso mundo? Ou por que a crença ou neces­
sidade da ciência moderna de ter apostado na clonagem química da
felicidade? E a que preço?

29
O Brilho da InFelicidade

Referêndas bibliográficas:

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freudiano". Em: Arquivos da Biblioteca, n. 1. Rio de Janiero, Escola Brasileira
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SOLER, C. "O retorno sobre a questão do sintoma e o FPS", OpfàO Lacaniana,
n. 17, 1997.

30
CLÍNICA DO SUPEREU E AS TOXICOMANIAS

Daniel Sillitti
Membro da Escuela de la Orientación Lacar,.iana

Na obra de Freud, o supereu nasce como uma ins tância


normativizadora ligada à ins tauração da proibição do inces to e à
repressão das tendências agressivas. Sob o nome de consciência
moral, toma a forma de "percepção interna da repulsa de determi­
nados desej os" com a caracterís tica de não ter neces sidade de invo­
car razões (Freud, 1 9 1 2) . Ou seja, ao mesmo tempo que introduz o
suj eito nas normas que são o próprio sus ten to das civilizações, o
supereu se apresenta como uma ins tância caprichosa, tirana, que
prescinde de justificativas e razões para gerar esta repulsa. Neste
sentido, é uma instância relacionada com o sentimento de culpa.

Assim, se vincula ao Outro, exercendo de modo crítico sua


representação. Freud inclusive chega a dizer que "a consciência moral
foi primeiro uma encarnação da crítica parental" - exercida de
viva voz pelos pais (1 9 1 4) . Viva voz que, na paranóia, retorna como
alucinação na injúria ao suj eito.

Como ins tância, se define então como aquilo que, pela via
da repressão, ins tala o sujeito na cultura ao articular a proibição do
incesto na representação do pai ligado à cas tração. Aqui o supereu é
herdeiro do Complexo de Édipo no que repres enta a relação do
suj eito com seus progenitores (Freud, 1 923) e sua forma depende
diretamente dele: "o supereu conserva o caráter do pai e quanto
O Biilho da InFeliddade

maiores forem a intensidade do Complexo de Édipo e a rapidez


de sua repress ão, mais severamente reinará depois sobre o eu como
consciência moral ou como sentimento inconsciente de culpa"(ibid.).

Não obs tante esta instância tem a possibilidade de adoecer. é


o modo como Freud descreve em "Luto e Melancolia" (1 9 1 7) o
particular en furecimento do supereu visto que o eu permaneceu
identificado ao obj eto perdido.

Na melancolia, o supereu se faz "ouvir" no tormento que


in fringe ao eu. Todavia há também uma forma de adoecer que
emudece o supereu, uma forma opos ta à melancolia e que não é a
mania: é o enamoramento. Ali toda crítica possível ao objeto se
desvanece, o eu carece de toda vontade e fica à mercê das disposi­
ções do objeto amado, até chegar - por aplacação desta ins tância
- ao crime sem remorso.
Vem o s a s sim o s up ereu funcionar s o b o imp ério da
normativização, por um lado, ligado à cas tração e, por outro, em
sua face patológica, tornar-se independente de sua função e adquirir
um matiz martirizante para o suj eito. Neste ponto o supereu funci­
ona a serviço da pulsão de morte: sua hipermoralidade, a crueldade
com que Freud o descreve na melancolia, o faz representante da
pulsão de morte dirigida contra o eu e que, nos casos extremos,
alcança a morte do sujeito.

Entretanto não devemos equiparar a pulsão de morte com


a morte. Para Freud, trata-se dos efeitos de des truição, mas ainda é
pela relação com o sadismo e fundamentalmente com o masoquis­
mo que se pode definir o valor da pulsão de morte.

Em "O Mal-es tar na civilização" ( 1 9 30) , o supereu adquire


seu caráter paradoxal: já não só representa uma instância que vigia o
cumprimento das normas morais, como também, além de exigi­
las, quanto mais se as cumpre, mais severo se torna e maior é a
exigência.

32
Daniel Sillilli

Neste texto em que Freud dá sua definição mais acabada


da função dos tóxicos, como instrumentos que permitem aliviar o
peso do encontro com a impossibilidade da felicidade, instrumen­
tos que, em sua rápida ação sobre o corpo, asseguram um efeito de
satisfação e também "a ilusão de independência do mundo exteri­
or" (ibid.), ele atribui ao supereu a função do que proíbe a satisfa­
ção pulsional ao mesmo tempo que se satisfaz desta mesma proibi­
ção. Instaura então um paradoxo e um impossível: para aplacar o
supereu é preciso desobedecê-lo, mas ao mesmo tempo, ao acatar
sua ordem, é impossível aplacá-lo.
Entende-se a definição de Lacan quando este dá ao supereu
o caráter de um imperativo de gozo e o define como uma figura
obscena e feroz; este empuxo a um gozo impossível constitui um
dos eixos a respeito do supereu.

Em sua conferência "Clínica do supereu" (1981), Jacques­


Alain Miller articula esta figu ra do supereu ao desejo materno, tal
como Lacan o define no interior da metáfora paterna, um desejo
sem lei, caprichoso, antes de ser interpretado pelo si gn ificante do
Nome-do-Pai, significante que, na estabilização das significações entre
o sign ificante e o sign ificado, abre à instância fálica como esta outra
coisa que deseja a mãe.
Neste ponto se produz o giro da dialética de ser o que satis­
faz o desejo do Outro para ter o que poderia satisfazê-lo. É no não
introduzido pela instância paterna no discurso da mãe que o falo se
impõe como o que se tem ou não. Não obstante Lacan, no Seminá­
rio, livro 2 1 : ús non dupes e"ent (1973-4), introduz uma variante a esta
fórmula: nesta o desejo da mãe situaria o sujeito em uma dimensão,
a do ser nomeado para, que substituiria o Nome-do-Pai e o colocaria
em um projeto ligado à demanda do Outro. Ali define esta fórmula
como significando existências, provocando catástrofes, sobretudo no
ponto em que o socialganha relevo e se apropria deste nomear para.

33
O Brilho da I11Felicidade

Em outros trabalhos (Sillitti, 1995) , consideramos a im­


portância que tem o Outro que nomeia para a configuração da
categoria da toxicomania, no que este faz consistir uma categoria (o
toxicômano) à qual vemos se identificar fil\1 certo número de sujeitos.
A formalização feita por Éric Laurent em seu trabalho "Tres
observaciones sobre la toxicomania" (1995) , no qual propõe o
materna <j> para escrever a ruptura com o falo implicada na fór­
0

mula que Lacan dá em 1975, nos abre uma perspectiva para enten­
der a incidência do supereu na toxicomania. Se aceitamos a mesma
escritura proposta por Miller para o supereu em sua conferência de
1 98 1 , vemos a incidência desta ins tância operando pela via de um
empuxo ao gozo, um gozo que, prescindindo da passagem pelo
corpo do Outro, evitando a castração, retorna sobre o corpo do
sujeito "na ilusão de independência do mundo exterior".
Assim, a alienação no ser nomeado para se nos apresenta como
uma via de sujeição à demanda do Outro, consentimento do sujeito
que, desde o ponto de vista da ética, faz uma eleição de goz? que
suprime a palavra, obtura a falta, e só aceita e crê no gozo possível
de ser obtido no próprio corpo, assegurado pelo efeito tóxico.
Gozo cínico (Sinatra, 1995) .
Podemos pensar o gozo implicado nas adicções como es­
tando ligado ao supereu; o que está em jogo aí é o "Goza!" -
estado puro da demanda.
Assim, a função do tóxico se situa no impasse que produz
em relação ao desejo do Outro. A droga opera no sentido da recu­
peração de gozo eludindo o semblante fálico, que implica a castra­
ção, isto é, a falta no Outro.
É necessário precisar que neste ponto o que entra em jogo
em relação ao desejo da mãe não é o "amor de mãe"; ali opera a
relação à sexualidade feminina; é a mãe como mulher, no sentido
de um sujeito em relação à falta estrutural (Miller, s/ d).

34
Da11iel Sillilli

O catastrófico é a colocação do sujeito no lugar do que


falta à mãe como mulher. O sujeito identificado a este lugar não
deixa brechas para que o inconsciente possa operar. É então no
fracasso da droga ou na quebra desta identificação que se abre a
perspectiva para uma análise que conduza o sujeito na via de seu
desejo "vivido por fora do registro da culpa" (Laurent, 1994) .

* Tradução: Sara Fux

Referências bibliográficas:

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Editora Biblioteca Nueva, 1 983.
___. "lntroducción dei narcisismo (1 9 1 4). Em: Obras completas,
Tomo II. Op. cit.
-----· "Duelo y melancolia" (1 9 1 7) . · Em: Obras completas, Tomo II.
Op. cit.
-----· "El yo y el ello" (1 923). Obras completas, Tomo III. Op. cit.
_____ . "O malestar en la cultura" (1 930) . Em: Obras completas, Tomo
III. Op. cit.
LACAN, J. O Seminário, lillT'O 2 1 : les non dupes errent (1 973-4). Inédito.
LAURENT, É. "Tres observaciones sobre la toxicomanía". Em: Sl!feto, !fJZ.º
e modernidade II. Buenos Aires, Editora A tuel-TyA, 1 9 95.
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1 994.
MILLER, J-A. "lntroducción a la lógica de la cura dei Pequeiio Hans". Con­
ferência de Abertura às II Jornadas Anuais da EOL, Buenos Aires, s/d.
_____. Seminário "Clínica do supereu", 1 981 .
SILLITTI, D. "La eficacia dei nombre: los llamados adictos". Em: Sl!feito,
!PZ.º y modernidade I. Buenos Aires, Atuel-Tya, 1 995.
SINATRA, E. "Variantes dei argumento ontológico en la modernidad".
Em: Sl!feto, gozo y modernidad I. Op. cit.

35
OS NOVOS OBJETOS DE GOZO

G leuza Maria M. Sa lomon


Membro da Escola Brasileira de Psicanálise

Hoje nos surpreende que o ensaio freudiano sobre a sexu­


alidade infantil tenha causado certo horror na comunidade científi­
ca. A disposição polimorfa infantil subsiste sob o recalcamento da
vida adulta. Esse conceito é formulado de outro modo por Jacque s
Lacan: ''A criança nasce como objeto".
O avanço do discurso da ciência produz o fenômeno da
"infância generalizada", caracterizado em 1 967 p or Lacan como as
respostas segregativas relativas ao tempo do "Outro que não exis­
te", tema do curso de Jacques-Alain Miller e Éric Laurent.
Trata-se do real, tendo em vis ta que, segundo Lacan, ele
não tem sentido: "Tudo implica uma noção de real, que devemos
distinguir do simbólico e do imaginário. O único aborrecimento é
o real fazer sentido neste assunto, j á que o real s e funda no próprio
fato de não ter sentido, que exclui o sentido, ou precisamente por s e
dispor a ser excluído".
O real contemporâneo se verifica na forma do gozo; goza­
se diretamente do objeto.
Ainda em 1 967, Lacan, em seu "Discurso de encerramento
das Jornadas sobre as psicoses na infância", anunciava que a criança
es taria, num futuro próximo, literalmente no lugar de objeto de
gozo. Alertava-nos Lacan: ''Pelo fato da ignorância com que este
O Brilho da lnFeli&idade

corpo é tomado como sujeito da ciência, vai se chegar justamente a


recortá-lo para troca".
Hoje, suspeita-se que o tráfico de órgãos es.teja ligado com
o desaparecimento de crianças. Por outro lado, vemos a exploração
da disposição polimorfa infantil, crianças-mercadoria submetidas à
extração de um gozo anônimo, tanto pelos pais como pelos trafi­
cantes na exploração do trabalho e da prostituição infantis. O modo
contemporâneo de gozo vem situar a criança como um novo ob­
jeto de gozo.
Pedaços de real, novos sintomas que encontramos princi­
palmente nas toxicomanias - o uso freqüente da cola, que atual­
mente subs titui o uso do cra,-k. É um sintoma social, sem dúvida.
Seria, porém, um sintoma na criança?
O gozo obtido pela criança no objeto droga é um gozo
autista, sustentado por sua recusa em es tabelecer laço social, man­
tendo-se fechada em si mesma. Encontramos a possibilidade do
gozo autista no exemplo pulsional freudiano: a boca que se beija a si
mesma, particularidade da pulsão que propicia a exis tência de um
gozo autista.
Penso no relato de um educador de rua. Após horas a fio
fumando ,rack alternadamente, dois jovens se deparam com uma
nova quantidade da droga no mocó. Essa quantidade é suficiente
para os dois, porém qual deles fará uso primeiro?
A não possibilidade de escolha - ou um ou outro - leva
a um es faqueamento. O que comete o ato de violência sai correndo
em busca de socorro, chama a ambulância e acompanha de longe o
atendimento do colega. Quando aquele se res tabele, continuam
amigos.
Só podemos pensar esse Outro, se nos remetermos ao en­
smo de Jacques Lacan, não só sobre o objeto a como também
sobre a geometria do sintoma: o nó borromeano.

38
G/e11za Maria M. Salomon

corp o
(Im,gin;,icobôl i co


Aproximamo-nos do conceito de "furo estrutural" das úl­
timas elaborações de Lacan, no qual ele nos mostra que o simbólico
comporta um furo que corresponde ao recalcamento originário
freudiano.
Conseqüentemente, deparamo-nos com o conceito de
"foraclusão generalizada" proposto por J acques-Alain Miller,
paradigma do furo estrutural lacaniano.
No dia 2 de dezembro de 1975, em con ferência no
Massachusetts Institute of Technology, Lacan, respondendo a Roman
Jakobson sobre e a inibição e sua localização no nó borromeano,
diz: ''A inibição: o imaginário se formaria de inibição mental. O
significante não é o fenômeno. O sign ificante é a letra. Não há senão
a letra que faz buraco" (1976, p. 60).
Queremos nós romper a inibição? Sim, certamente. Então
é o que tentamos fazer ao nos aproximarmos do Lacan lógico,
para quem não existe o espaço em si: é em função dos nós que
pensamos o espaço. Para ele, os nós representam a coisa que do
espírito é a mais rebelde.
Vemos, em ''A Terceira" (1 975), como Lacan situa o objeto
a: como nó que se agarra à fixação do simbólico, do imaginário e
do real. É do lugar de objeto a que o analista responde àquilo que é
sua função: oferecê-lo como causa de desejo aos seus analisantes.

39
O Brilho da InFelicidade

Esse objeto a, Lacan o cria relacionando-o à lógica. Isso


significa que assim o torna operante no real. Se o torna operante n o
real, o que é o real? A definição primeira d o real efetuada p o r Lacan
é: "o que retorna sempre ao mesmo lugar". A ênfase nessa frase
recai sobre "retorna". Como comenta Miller, é o lugar do s em­
blante. Num segundo tempo, o real é relacionado à lógica modal,
remete-se ao impossível. Por outro lado, é somente pela psicanálise
que o obj eto a constrói o cerne elaborável de gozo. Porém só se
sustenta com a existência do nó, com três de círculos de barbante
que o constituem (ver figu ra) .
Em seu Seminário "O Outro que não existe e seus comitês
de ética", Miller pergunta o que se inscreve no real, no lugar do real,
pois, como vimos, isso não é o saber, mas talvez seja um significante
"um". E é por isso que Lacan define o sintoma como aquilo que
do inconsciente se traduz por uma letra.
Eventualmente o S 1 no real é o que Freud chamaria de fixa­
ção, fixação de gozo. Na psicanálise lacaniana o que faz junção entre
o sen tido e o real é precisamente esta fixação de gozo.
Lacan aponta para uma disjunção entre Real, Simbólico e
Imaginário, que se mostra claramente no nó borromeano, ao mes­
mo tempo em que os pensa como três, pois apenas dois não se
anelam. A seguir, considera uma variante: se três não se enlaçam,
talvez quatro o façam. Junta então o sintoma como quarto nó.
Podemos pensar a toxicomania na infância a partir da droga
como objeto a, que fixaria um gozo, o da própria exclusão estrutu­
ral? Terá o objeto droga a função de sintoma que virá então amar­
rar os três registros, Imaginário, Simbólico e Real?
Por outro lado, a criança, dada a recusa ao Outro, no tem­
po do Outro que não existe, está posta como objeto de gozo. Essa
posição de objeto será reforçada através da universalização do gozo
ao ser design ada como toxicômana. O tratamento que assim no-
Gle11za Maria M. Salomon

meia a criança e que a ela se oferece só viria a fixá-la ainda mais na


posição de exclusão e de gozo, como no exemplo citado.
É a alienação à droga que faz surgir a separação sob a for­
ma de "acting-ouf' em que o gozo fálico está ausente. Resta a aposta
no discurso analítico a partir do ensino de Lacan, oferecendo a
possibilidade de um vazio, um lugar para o surgimento de um sujei­
to que antes identificava-se ao objeto de consumo.

Referências bibliográficas

FREUD, S. "Três ensaios para uma teoria sexual" (1905). Em: Obras Comple­
tas, Tomo II. Madrid, Biblioteca Nueva, 1973.
LACAN, J. ''Verdades primeiras". Em: O Seminário, livro 23: o sinthoma. Inédi­
to. Aula de 13 de janeiro de 1976.
____. "Discurso de encerramento das Jornadas sobre as psicoses na
infància" (1967). Inédito.
____. "Conférences et entretiens dans des universités nord-américaines"
Em: Sei/icei, n. 6/7. Paris, Seuil, 1976.
____. O Seminário, livro 22: RS.J. (1974-5) . Inédito.
____. "La troisiême" (197 5). Em: Lettres de I' École Freudienne, . n. 16,
1975.
MILLER, J-A & LAURENT, É. "O Outro que não existe e seus comitês de
ética" (1996-7). Inédito.
SOBRE A SEGREGAÇÃ0 1

Co lette Soler
Membro de la Érole de la Cause Freudienne e da Esrola Brasileira de Psicanálise

Boa tarde. Penso que não tenho nada de especial para �nsi­
nar a respeito do tema da segregação. Então, apresentarei algumas
cons iderações. Nada para ensinar, mas talvez algo a dizer-lhes.
É um fato que hoje o tema da segregação esteja na moda.
Não somente no que diz respeito aos psicanalistas, mas em todas as
partes. E não era esse o caso há vinte e cinco anos atrás quando, em
1 967, Lacan fez sua predição a respeito daquilo que chamava de
"uma extensão sempre mais intensa dos fenômenos de segrega­
ção". Nessa época, o tema não estava na moda por uma simples
razão. Especialmente na França, na 'época da revolta estudantil de
maio de 1 968, funcionava a ilusão, a espera de que talvez houvesse
uma possibilidade de subverter o capitalismo. Parece-me que agora
ninguém, ao menos em nossos países ditos civilizados, acredita nisso.
Temos uma tese: a tese de Lacan de 1 967, que faz da segre­
gação, de seu desenvolvimento recente, um efeito, ou melhor, uma
conseqüência inevitável daquilo que caracterizamos como sendo a
universalização introduzida na civilização pela ciência. É uma tese
simples, forte: segregação, efeito de, conseqüência da universalização.
Deter-me-ei um momento sobre a universalização. De que
se trata? Evidentemente trata-se de fazer funcionar um "para to­
dos", ou seja, como se depreende imediatamente, supressão das
diferenças. E é claro que as diferenças que nos importam são, em
O Brilho da InFelicidade

última ins tância, as diferenças ao nível do desejo e do gozo. Tam­


bém é um fato que a universalização que denominamos de "cientifica"
consiste em uma redução, em uma homogeneização dos modos de
gozar da civilização.
Bem, não é de hoje que podemos afirmar que a civilização
manda no gozo; desde sempre. Mas é verdade que existiram civili­
zações nas quais o arranjo dos modos de gozo passava por outras
vias. Podemos dizer que passava pelas vias do que Lacan chamou
de significante mestre. A civilização científica inaugurou a crise do
significante mestre, a crise deste significante único e unificador, em
p rove i t o da fragm en tação, p o deria q u a s e dizer, d e u m a
esquizo frenização d o sign ificante mestre, e isto muda muitas coisas.
Podemos nos perguntar como se tratavam as diferenças
antes ou fora da civilização da ciência. Observo que, ao contrário
do que se diz, às vezes rapidamente, segregação e discriminação
não são sinônimos. Podemos encontrar civilizações discriminatórias
mas não segregativas. Sem entrar em detalhes, se pensamos na soci­
edade do Antigo Regime do Ocidente, vemos uma sociedade per­
feitamente discriminatória, ou seja, que definia lugares, espaços di­
ferenciados ou tipos de indivíduos; por exemplo, os nobres e os
demais, cada um com seus direitos, seus deveres e seus privilégios.
Se digo cada um com seus privilégios, então era uma sociedade
com uma discriminação potente, inclusive supostamente fundada em
um Direito Divino. O Direito Divino não pode se sustentar senão no
significante mestre, mas não era uma sociedade segregativa. Todos
juntos, vivendo juntos, inclusive nas mesmas casas. Não somente no
mesmo país, no mesmo bairro, como também nas mesmas casas.
Podemos evocar ainda a sociedade escrayista da Antigüida­
de, discriminatória, mas não segregativa. Assim como a sociedade
da Í ndia, as castas na Í ndia, mescladas e discriminadas. Então ve­
mos que quando o significante mestre se encontra potente, permite
em última instância tratar as diferenças dos gozos (porque as dife-

44
Colette Soler

renças dos gozos claramente implicam muitas outras diferenças),


permite tratar as diferenças dos gozos sem a segregação.
E por que na civilização científica a única via para tratar as
diferenças parece ser a segregação? Podemos entendê-lo, pois a
universalização é uma universalização que não passa pelo significante
mestre; é uma universalização que passa pelo que denominamos,
um pouco apressadamente, de o mercado. Ou seja, que passa por um
dever que não o da proliferação dos valores dos ideais, mas um
dever real do manejo dos meios econômicos e, em nossos dias, nos
deparamos finalmente com zonas cada vez mais extensas nas quais
a gente, como se diz, vive como os demais (mesmas casas, mesmos
vestidos, mesmos objetos, mesmos carros etc.). Então, quando se
manifestam diferenças resistentes, diferenças que não são passíveis
de redução, ou seja, sujeitos que não entram na distribuição dos
bens da civilização atual, qual o meio para tratar tais diferenças? É
um meio que quase podemos denominar de espacial: cada um em
seu devido lugar, ou seja, uma solução que poderíamos caracterizar
como sendo pela via da repartição territorial.
Como podemos acompanhar pelas reportagens, em Zuri­
que, por exemplo, foi demarcada uma zona para os toxicômanos
em que eles podem fazer o que quiserem, se picarem, ingerirem sejá
lá o que for, enfün, uma zona em que não há nenhuma proibição e
na qual os toxicômanos são deixados em paz. Evidentemente é
aterrorizante ver o que se passa nestas zonas quando as câmeras de
televisão mostram o lugar. Por isso é qµe Lacan pode dizer essa
palavra, tão impactante em 1967, ao abordar o nazismo e seus cam­
pos de concentração: precursores. Uma palavra em geral tão posi­
tiva usada para eles: precursores. E, anos depois, veremos o que
vemos. Efetivamente, começamos a ver.
Agora, -quero lhes fazer observar outra coisa. Tomamos a
segregação em geral como um fenômeno negativo. Mas cuidado;
existe a segregação voluntária. Podem tentar, a fim de se divertirem,

45
O Brilho da InFelicidade

fazer uma coleção de algu ns modos de segregação voluntária. Não


a segregação suportada apesar de si, mas a segregação eleita.
Consideremos, por exemplo, a prática que existe em al­
guns países, na França certamente, talvez também na Argentina,
daquilo que se chama country-dubs. De que se trata senão de um
modo tranqüilo de segregar-se de uma massa qualquer, certamente
em nome da idéia da elite.
Podemos evocar também uma segregação desapercebida,
a dos es tudantes nos Estados Unidos, sob a maneira de constituir
parques, parques nacionais de es tudantes: os mesmos, com a mes­
ma idade, no mesmo lugar. Podemos evocar ainda as reservas indí­
genas na América, es ta, é claro, um caso de segregação imposta.
Portanto, deve-se observar que a segregação se apresenta
como uma via de tratar o insuportável, o impossível de suportar.
E talvez a pergunta que se imponha seja a de saber se todo
discurso, digo todo discurso, não seria uma fonte de segregação,
uma vez que todo discurso é, esta é a tese de Lacan, racista. Lacan
fala do racismo dos discursos em ação, e temos que entender o que
ele quer dizer. É 1 ógico que cada discurso é uma ordenação, uma
ordem de gozo. Todos, inclusive o discurso analítico. Cada discurso
então procura se instituir, fazer funcionar, captar indivíduos em sua
ordem, de modo que entre eles há uma rivalidade, uma polêmica,
uma intolerância. Vê-se muito bem o racismo dos discursos, não sei
se do discurso analítico. Mas, em todo caso, é evidente no que se
refere ao discurso do Mestre, ao discurso universitário e ao dís cur­
so da ciência. Falamos verdadeiramente de uma maneira às vezes
pouco recomendável, devo dizer.
A pergu nta de saber se o discurso analítico pode ser não
s egregativo se impõe a mim nos seguintes termos. Ele é, como os
demais discursos, um discurso discriminatório. Então como esse
discurso pode evitar a segregação?
Colei/e Soler

Quero evocar também, teria sido melhor evocá-lo antes,


um tratamento da diferença segregativa e positiva. O que é a cultura
do pitoresco? O que se visa, quando se busca o pitoresco? Busca-se
um Outro, um Outro com letra maiúscula que não tenha o mesmo
modo de gozo. E cada uma pega sua câmera e tira fotografias ou
faz safaris na África. Darei uma volta no lugar do gozo do Outro,
para assegurar-me de que ele talvez exista sempre. Depois cada um
sonha com o outro lado do planeta, onde há uma goz.o mais pací­
fico e frutífero. A civilização atual comercia com o pitoresco, há
todo um comércio que inclusive chega a conservar artificialmente
as insígn ias do gozo Outro para os turistas. Entre a cultura do pito­
resco e a segregação eleita ou imposta não há tantas vias para tratar
as diferenças. E também hi em nossos dias uma crise do pitoresco.
Não se sabe aonde ir para encontrar um Outro que seja verdadeira­
mente o Outro.
Devemos investigar também um correlato desapercebido
da segregação: a ascensão da religião. Lacan afirmou em Televisão
(1 97 4) que não podemos continuar mais o que ele chama de
"humanismo obrigado" nos países do Outro, entre aspas, pois daí
Deus recobrará suas forças. O que isto sign ifica? Significa que Deus
cada vez mais resta como a única figu ra, o único nome do lugar do
gozo Outro. Outro distinto do nosso fragmentado e que se conso­
me nos pequenos mais-de-gozar que conhecemos. O que fazer en­
tão com os processos de segregação?
Começamos a perceber que protestar não muda muito as
coisas. Pode inclusive reforçá-las. Não protestar tampouco parece
ser muito satisfatório; seria uma forma de resignação. Observo que
a universalização produz, ao lado dos processos de segregação, ide­
ologias próprias, correlativas da universalização. E à qual cada um
de nós adere.
A ideologia dos Direitos Humanos é uma secreção dos
processos de segregação, um protesto em um mundo no qual cada

47
O Brilho da lnFe/icidade

indivíduo começou a ser um instrumento do mercado; neste ponto,


podemos sempre nos referir a Karl Marx. O muro de Berlim caiu,
o comunismo foi um fracasso, mas a análise de Karl Marx não esta
totalmente invalidada por isso. Não só a instrumentalização genera­
lizada dos indivíduos de nossa civilização parece hoje patente, como
a distribuição não igu alitária dos benefícios do progresso - supos­
to progresso da ciência-também o é. Dessa forma, temos não só
mais segregação como também um discurso de igualdade dos di­
reitos e a reivindicação pela justiça distributiva. Todos podem apro­
veitar do pouco de satisfação, podem desfrutar do que a civilização
permite. Não tento explicar-lhes que devemos pensar de outro
modo, mas lhes faço observar que essas ideologias de justiça
distributiva poderiam ser descritas como uma função, se escrevo a
função com um P, não para evocar o pai, porém para evocar o que
mais ou menos se chamou desde o século XVIII de progresso, para
evocar todos os bens que a civilização tem que distribuir a cada um.
A ideologia comum para todos é P função do progresso.
Como o discurso psicanalítico poderia ser não segregativo
uma vez que, como todo discurso, institui uma ordem do gozo e
da falta de gozo? E uma vez que de todos os discursos que conhe­
cemos, ele o único que não preconiza a justiça distributiva? Não
sei . . . devemos entender bem o que Lacan diz quando sustenta que o
analista não é o Cervantes da justiça distributiva, ou seja, da justiça
que distribui de maneira igual para cada um. Há aqui um pequeno
problema teórico para ser resolvido.
Temos a civilização que certa vez chamei de unissex. Ou
seja, que todos são parecidos e o 'todos' inclui homens e mulheres.
Uma civilização unissex e que funciona. É divertido ver até que
ponto funciona o unissex em todas as partes. Homens e mulheres
podem agora fazer as mesmas coisas. Evidentemente, quase tudo.
Vamos deixar de lado a zona de exceção que faz -1 ao todo: a zona
da relação sexual. Mas o espaço que do todo não pertence à relação

48
Colette Soler

sexual é aparentemente o da igualdade. Por exemplo, acabamos de


ver pela televisão Isabel Ortiz ganhar sozinha pela primeira vez a
corrida da volta ao mundo com uma diferença de vinte e quatro
horas sobre o segundo colocado. Em todos os campos vemos que
as performances, que outrora pertenciam à parte da população cha­
mada de masculina, aparentemente se misturam.
Então, como situar a civilização unissex e o discurso analíti­
co? Fazemo-lo evidentemente dedicando-nos ao "quase", daquilo
que chamava de "quase todos são iguais". O discurso analítico se
dedica a curar os sintomas renegados da esfera sexual. Dessa for­
ma, tem a peculiaridade de resistir mais que os demais discursos à
ideologia igualitária. O discurso analítico pretende escapar à segre­
gação pela via do um por um, o que é astuto. Ou seja, é um discur­
so que aparentemente não segrega ninguém, salvo o fato de que
todos não entram, que todos não podem entrar. Assim, o psicana­
lista sabe que o pitoresco, cada vez mais raro no planeta, agora se
encontra unicamente em casa, no domicilio, ou seja, entre os sexos.
Lacan afirmou que Deus se sustentará novamente sob o
fundo dos processes de segregação. E também evocou a mulher
como uma figura de Deus... Então talvez não seja do outro lado do
planeta que para o discurso analítico ocorra a discriminação maior.
Esta encontra-se em casa, mais precisamente na cama.
Há tentativas de tratar no mundo esta discriminação que a
psicanálise cultiva, a discriminação sexual. Discriminação quer dizer:
diferença afirmada e mantida. Portanto temos que seguir o que os
termos querem dizer, quando Lacan escreve as fórmulas da sexuação;
ele escreve fórmulas de discriminação, no sentido de diferença, pre­
cisarrl:ente situadas e definidas. Digo que esta discriminação sexual é
talvez um dos últimos pontos que o discurso universalizante da
ciência não logra reduzir; ele tenta, mas não o consegue completa­
mente. Devemos observar que em algumas partes se tenta tratar
esta discriminação em termos de segregação. Os "lobl?J gcry'' nos

49
O Brilho da InFeliddade

Estados Unidos são tentativas de segregar os sexos discriminados.


E certo que es ta não é a linha da psicanálise. E ainda que não possa
muito sobre esse ponto, ela não vai nesta direção.
Até agora, não falei dos toxicômanos. Por que se segregam
os toxicômanos? Na realidade, teríamos que pensar sobre a toxico­
mania e seus correlatos, as condutas correlativas que não são toxi­
cômanas, mas em geral de delinqüência. o fato de que o toxicôma­
no, para obter a droga, deve ter dinheiro, já que, como toxicômano,
não é um grande trabalhador, não é rico - se fosse rico, isto seria
uma solução para ele - e cai na delinqüência quase automatica­
mente. E por isso que agora começa com intensidade, ao menos na
França, não sei se aqui, o tema das drogas substitutivas. Todo o
tema da Metadona ou da venda livre das drogas está em discussão,
mas podemos tratar o elemento delinqüência separadamente, per­
manecendo o problema do toxicômano.
É verdade que se trata de uma pergunta saber se podemos
tratar a toxicomania como um sintoma. Podemos fazê-lo, se toma­
mos o sintoma no sentido mais amplo da palavra. Ou seja, um
tratamento de gozo. Quando dizemos o toxicômano, falamos de
uma figura de gozo. Há muitas figuras de gozo, entre elas o cínico.
Lacan evocou que se tratava de uma figura completamente diferen­
te. Direi, sem maiores explicações, qual é a minha idéia. O toxicômano
é um insubmiuo ao gozo universalizado da civilização. Quer ele o saiba ou não.
Ele não o sabe, ou seja, é alguém que se recusa a entrar no que
chamamos de o gozo fálico, visto que o gozo fálico não é apenas o
gozo do órgão, mas também o gozo que sustenta toda competição
social, toda a circulação da competição no mundo social. Ele se
põe de lado, não entra, não aceita correr como todos os demais
para fazer uma carreira, para afirmar-se e alcançar algo na vida, ou
seja, tudo o que em geral algu ém sonha para s eus filhos: uma reali­
zação social. O toxicômano se recusa a entrar na carreira. Curiosa­
mente é a mesma palavra que se encontra em "carreira universitá­
ria"; é um equivoco excelente." E, evidentemente, inclusive se subtra-

50
Colette Soler

únos as conseqüências da delinqüência que a toxicomania implica


em si mesma; como insubmissão ao gozo fálico competitivo (o que
alguns chamam, em publicidade, de agressividade comercial neces­
sária aos chefes para seguir carreira), ele é um perigo para a civiliza­
ção da ciência, para o mercado etc. A toxicomania é um perigo
porque se ela é reduzida, é possível criar mais áreas como as de
Zurique. Mas se ela começa a se multiplicar . . . Ou seja, o toxicôma­
no faz greve, a greve dofalo. Neste sentido, eu me perguntava acerca do
que ele tem em comum com o cínico.
O cínico moderno é uma figura bas tante difícil de situar. O
cinismo de Diógenes era um cinismo de exceção. Diógenes é a
figu ra emblemática da filosofia que se chamou Cinismo. Em minha
opiniã�. o cinismo de Diógenes era completamente diferente do
cinismo moderno; era um cinismo que tinha um interlocutor: o
mestre antigo, Alexandre. Podemos dizer que Diógenes não se con­
tentava somente com gozar de seu órgão em seu tonel; ele contes­
tava Alexandre, ou seja, era uma figura de protesto e de opos ição
ao mestre antigo.
O cinismo moderno é definido por um cada um cultiva
seu pequeno gozo pessoal. Este nada tem de subversivo. Trata-se
de um todos como os demais e talvez . . . cada um esperando ter um
pouco mais que o vizinho. E por isso crê que o vizinho tem o
pequeno "mais", porque ele próprio quer tê-lo.
O cinismo moderno não tem qualquer virtude subversiva.
Em minha opinião, é uma figura do homem moderno que não tem
mais significantes ideais consistentes. É ao mesmo tempo divertido
e bastante triste ver o que se passa hoj e com os escândalos na Itália,
na França e suponho que também aqui. Escândalos, escândalos,
escândalos . . . e no fim a gente pede alguém que sirva de exceção.
Vamos buscar finalmente alguém que seria íntegro. Buscamos, bus­
camos, como dizia Diógenes com sua lanterna: "Busco um ho­
mem" . Nós buscamos um que não seria um cínico abusivo.

51
O Biilho do InFe/icidade

Temos uma crise dos canalhas. Há uma crise ao nível dos


canalhas na civilização da ciência. Porém cuidado: o cínico e o cana­
lha não são a mesma coisa. São duas figuras opostas, ao menos na
definição de Lacan. Lacan tem uma definição muito precisa do
canalha, que não é uma figura do gozo. Ele chama de canalha a
posição de algu ém que tenta se fazer de Outro, que tenta dividir o
desejo e mandar no gozo do Outro. Por isso chama os filósofos,
por exemplo, de canalhas. Parece um pouco surpreendente, figuras
tão nobres. Lacan fala da canalhice filosófica e, às vezes, também
do mestre como canalha. Ou seja, aquele que tenta mandar no desejo,
aquele que diz fazer-se de Outro para - algu ém.
Há uma crise agora a respeito da sustentação dos canalhas;
eles necessitam do significante mestre para dirigir, para assegurar
seu poder de direção. E . uma vez que os ideais já não são consisten­
tes, há uma crise neste nível. Quando todos se tornam cínicos, é
difícil para os canalhas dominarem. Porque o cínico não se domina,
o cínico é dominado pelo seu próprio gozo.

Então o toxicômano tem em comum com o cínico sua


oposição ao regime generalizado do gozo fálico; ele é o elemento
de oposição, de objeção. O que mais há de comum entre o cínico e
o toxicômano? Não é o tipo de gozo. E é verdade que o horizonte
do toxicômano, o mestre último do toxicômano, é a morte. Um
gozo mortífero. Às vezes é possível descrever os estados produzi­
dos pela droga como paraísos. Seja ou não o inferno, de todo modo
inferno com algumas drogas ou paraíso com outras, o horizonte é
sempre a morte. Então é uma figura não somente destrutiva, como
também ameaçadora para o conjunto social.
Que posição pode tomar o psicanalista frente ao toxicô­
mano? Primeiro, não podemos dar uma resposta generalizada, posto
que o p sicanalista, a cada vez que a ele se pede uma resposta geral,
contes ta: "Oh!, vejo caso por caso, um por um". Assim, um por
um. . .

52
Co/ette So/er

No âmbito geral, não s�i se a civilização poderia esperar


muito do psican�lista no que diz respeito ao toxicômano. Isto por­
que a primeira idéia dos toxicômanos não é a de vir à análise quan­
do são toxicômanos decididos. Não é o caso de todos, seguramen­
te há casos de toxicomanias transitórias. Mas também porque a
análise consiste em analisar e não retificar o gozo em sua orientação
fundamental. O que torna complexa esta afirmação é que o analisante,
isso se modifica. É um fato. Então analisando-o, se o modifica. Só
que se o modifica sem que se saiba antecipadamente em que dire­
ção se vai modificar e o que acontecerá na saída, ou seja, não há
previsão possível. Por isso digo que a civilização não pode esperar
muito do dis curso analítico. E se vê que esta não conta muito com
o psicanalista. Conta antes com a Metadona, para que possa ter um
resultado. Detenho-me com estas observações.

N OTAS

1 . Conferência pronunciada em 25 de outubro de 1 994 no Seminário


do TyA "Psicanálise: uma clínica não-segregacionista".

* Tradução: Cláudia Henschel de Lima


O MAL-ESTAR NA CIDADE:
SEGREGAÇÃO E TOXICOMANIA

Cláudia Henschel de Lima


Correspondente da Escola Brasileira de Psicanálise, Rio de Janeiro

Antonio José Alves Junior

''Qu 'eit-ce quiJait qui cet Autre eit Autre? Qu 'eit-ce quifait qu 'on
/e hait dani ion être? C'eit la haine de lajouiliance de l'Autre -
qui eit même la forme la plui génerale que l'on puim donner de ce
raciime moderne te/ que noui /e vérifioni -, la haine de la façon
particuliêre dont l'Autrejouit [...] . La queition de la tolérance ou de
l'intolérance ne vüe pai du tout /e iujet de la icience ou dei droiti de
l'homme. Elle ie place à un autre ni1,eau, qui eit celui de la tolérance
ou de l'intolérance à lajoui11ance de l'Autre, de l'Autre en tant qu 'il
est foncicrement ce/ui qui me dérobe la mienne " Qacques-Alain
Miller, Extimité, apud. Zizek, 1 99J) .

1. Introdução

A escandalosa atualidade do texto de Jacques-Alain Miller


situa-se no fato de revelar a estrutura de um acontecimento próprio
de nossos dias e já antecipado por Lacan no final dos anos 1 960.
Trata-se da segregação. A tese que Lacan sustenta a respeito desse
fenômeno é a de que a segregação é o e feito do processo de unifi­
cação do gozo operado pelo saber científico, tal como ele compa­
rece no interior do discurso capitalista. Uma escrita mais precisa
desse discurso nos é oferecida pela fórmula que Lacan escreve uma
única vez, entre os anos de 1 972 e 1 977, nas Conferencia.r ltalianal".
O Brilho da InFeliddade

A partir da enunciação dessa tese e interrogando-nos acerca


do laço social con temporâneo - marcado pelo avanço do proces­
s o de globalização, como ponta-de-lança do capitalismo - é pos­
sível formular duas indagações: Como se apresenta, no s eio de nos­
sos dias, essa unificação? Em que medida a unificação do gozo
opera s obre o laço social con temporâneo? E em que sentido essa
operação se articula com o fenômeno da toxicomania que, em nos­
sos dias, já se trans formou em tema de relações internacionais?

A definição dominante, hegemónica e de cunho liberal, da


globalização defende a utopia universalizan te. De acordo com tal
perspectiva, a globalização traria em si mesma a pos sibilidade do
melting pot, ou seja, do bom convívio com a diferença. Assim, no
mundo globalizado, terminologias como united colors ef the world ou
1vor/d music manifestariam o otimismo que cerca o melting pot. Mas
que isso não nos engane. Um exemplo que denuncia a impossibili­
dade do meltingpot e, conseqüentemente, o laço entre a uniformiza­
ção e a segregação, encontra- se presente no conteúdo de uma notí­
cia extraída de um importante j ornal americano. Na primavera de
1 994, o periódico The Washington Post noticiou a eclosão de uma
atitude s egregacionista no espaço universitário norte-americano. O s
estudantes universitários reivindicaram uma repartição d o território,
através da cons trução de um alojamento sep arado para cada co­
munidade. Assim, negros, hispanos, asiáticos, gays, lésbicas, wasp e
muçulmanos, defendiam o agrupamento em aldeias distintas e se­
paradas (Guillebaud, 1 997) .

O motivo que fundamentou tal reivindicação foi bas tante


preciso: havia um pro fundo sentimento de repugnância por parte
dos estudantes de cruzar com os diferentes grupos p elo anfiteatro

56
C/áll({ia Henschel de Lima & A 11to11io José Alves ]1111ior

ou pelo estádio da Universidade. Essa reivindicação não foi realiza­


da através do uso da violência, ou através de discursos inflamados
ou politicamente incorretos. Ao contrário, foi marcada pelo pacifis­
mo. Trata-se de um ato de segregação voluntária, cuja aparição não
foi justificada por qualquer explosão de violência direcionada aos
diferentes grupos que habitavam o espaço universitário. Como uma
tentativa de revelar e res olver a pre s ença, no s eio da u topia
universalizante de nossos dias, do insuportável que ronda a relação
com o próxi.tno, os estudantes recusavam pacificamente o melting
pot, ou s ej a, o princípio fundador d o s o n h o americano da
globalização. O registro jornalístico desse acontecimento revela o
novo status que o apartheid assume no interior de nossa época. Ele
não se constitui como uma exceção à utopia universalizante da
globalização. Comparecendo em todas as partes em que ardem as
chamas da globalização, o apartheid é a forma de se tratar as diferen­
ças relativas aos modos de gozar. Renascimento dos paa:iotismos
de principado, de micro-nações ou províncias, recrudescimento do
fundamentalismo no seio das grandes cidades são acontecimentos
que se encontram na ordem do dia da globalização.
Diferentemente da interpretação hegemônica, que apresen­
ta a globalização como uma solução derradeira para o problema
das explosões segregacionis tas, os acontecimen tos citados acima
demonstram a pertinência da manutenção da tese lacaniana - a de
que a segregação é um fenômeno articulado ao discurso capitalista
- e que, neste trabalho, fundamentá nossa primeira hipótese. Sen­
do o capitalismo, em nossos dias, definido pela utopia universalizante
da globalização, defende-se que o laço social que o acompanha é a
segregação. Esta hipótese é importante para · o presente trabalho
precisamente porque, ao se apoiar na tese lacaniana, traz à luz de
nossos dias um ponto crucial do texto freudiano "O mal-es tar na
civilização" (1 930) . Trata-se da função que o estupefaciente assume
diante da mais inevitável fonte de sofrimento humano: a relação

57
O Brilho da I11Felicidade

com o próximo. A droga seria uma resposta ao mal-estar oriundo


da impossibilidade de realizar o mandamento cristão do amor ao
próximo. Sendo assim, a segunda hipótese deste trabalho é que a
toxicomania é um fenômeno segregacionista, cuja formalização é a
segregafãO do outro.

2. Globalização e Segregação

Nos anos 1 980, com a ascensão de Thatcher e Reagan e a


implementação de políticas liberais, os EUA e a Inglaterra deram
um forte impuls o ao proces so de globalização. A interpretação
hegemônica sustenta que a revolução tecnológica - em especial
nas comunicações e processamento de infórmações - encontra-se
no cerne deste processo. Segundo esta perspectiva, ela induziu a
aceleração dos fluxos de mercadorias e de capitais em escala mun­
dial, aumentando a integração entre os países e gerando progressi­
vamente uma economia cada vez mais interdependente. Este pro­
cesso, marcado por uma absoluta impessoalidade, teria como agente
as empresas multinacionais, cujos interesses crescentemente passari­
am a diferir e até mesmo conflitar com os interesses estatais - que
em tese subordinariam objetivos econômicos ao fortalecimento do
Estado-nacional.
Ainda na linha argumentativa da concepção hegemônica,
esse conflito é inviável frente ao poder das grandes corporações,
precisamente em função das implacáveis forças de mercado que
provocariam o esvaziamento progressivo do poder dos Estados­
nacionais. Nessa perspectiva, o papel dos governos estaria muito
mais próximo dos assuntos internacionais, devendo restringir-se
basicamente à provisão das condições necessárias ao funcionamen­
to pleno de mercados livres e competitivos. O que inclui a defesa de
uma ordem internacional - como é o caso recente da proposta
americana de repressão ao tráfico de drogas -, a proteção dos

58
Cláudia Henschel de Uma & Antonio José Alves Junior

direitos de propriedade, a limitação da formação de grupos eco­


nômicos com excessivo poder de mercado e a garantia de estabili­
dade da economia como um todo. Essa redefinição do papel do
Es tado, em direção a um modelo liberal, garantiria, em última ins­
tância, que os benefícios de uma economia de livre competição se
difundissem para todos os povos. Dito de outro modo: "If uni­
versal free trade were to exist, all countries would enj oy the highest
level of utility and there would be no economic basis for internacional
conflict and war" (Frieden & Lake, 1 997, p. 1 1) .

A concepção hegemônica d a globalização reforça o impé­


rio da lógica do mercado no discurso capitalis ta. É a época das
cifras, da especulação financeira - da síndrome das loterias e do
livro dos recordes - que apresentadas em seu estado bruto mani­
fes tam o espírito de nossos dias : o espírito da magia dos números,
da utopia universalizante que ign ora a diferença dos modos de
gozo. Registros que res saltam a exorbitância dos salários dos exe­
cutivos e dos lucros em determinados setores econômicos são o
glamour de nossos dias.

Mas ao lado das façanhas financeiras - que se apresentam


como uma promessa de realização para todos os que aderirem às
regras do jogo da gl<;>balização - há o anúncio humilhante do número
de desempregados em função da crise no setor automobilístico, a ex­
pansão dos bolsões da fome, como é o caso do Nordeste brasileiro, o
aumento do número de homeles.r nos Estados Unidos. Estes são apenas
algun s dos contrastes que podemos citar como sendo paradigmáticos
da segregação, no interior de uma época reificada em torno do impe­
rativo universalizante do mercado. Diante dessa exposição de contras­
tes, uma pergunta se impõe: como é possível que a utopia universalizante
- e, quem sabe, unissex (Soller, 1 995) - dos mercados auto-regula­
dos e a produção de miséria e de segregação caminhem lado a lado? O
campo lacaniano, definido como sendo o campo do gozo (Lacan,
1 969-70), possibilita o estabelecimento de uma relação en/:te a utopia
uniformizante própria à globalização e a segregação.

59
O Brilho da InFelicidade

Testemunhamos, através da interpretação hegemônica da


globalização, o triunfo e o reinado do discurso capitalista em nossa
época. Verdadeira perversão do discurso do mestre, ele demonstra
seu império através da produção de objetos, de bens de consumo,
que se expandem pelo mercado, para além de qualquer fronteira ou
nacionalidade.
Entre 1972 e 1977, nas Conferências Italianas, Lacan escreve a
fórmula do discurso capitalista, operando uma torção da fração
esquerda da fórmula do discurso do mestre. Essa torção expressa
uma mudança no estatuto do gozo. Se no discurso do mestre há
uma relação de impossibilidade entre o sujeito e o objeto, no dis­
curso capitalista essa impossibilidade simplesmente desapareceu, con­
forme podemos depreender de sua escrita:

A pergunta que podemos formular a partir da situação do


gozo no discurso capitalista é a seguinte: haverá uma relação direta,
imediata entre o sujeito e o objeto? Encontrar um caminho que
possibilite a construção de uma resposta exige o próprio esclareci­
mento da função que o saber científico assume no interior do dis­
curso capitalista, já que, segundo a escrita da fórmula, ele é o res­
ponsável pela produção dos objetos técnicos.
No discurso capitalista, o sign ificante-mestre (S 1 ), está situa­
do no lugar da verdade, abaixo do lugar de agente, ocupado pelo
sujeito (J,) . No lugar da verdade, S 1 assume o caráter de valor, de
dinheiro. Nesta época da globalização - marcada pela hegemonia
da especulação financeira - a cifra, o dinheiro, sustenta por si só a
lógica do mercado. Situado abaixo do sujeito, ele manifesta a utopia
universalizante, imanente ao mercado, que ign ora a diferença entre

60
Clá11dio Hen.rchel de Uma & Anto11io José Alves ]1111ior

os modos de gozo. Assim, quando se direciona ao sujeito a pergun­


ta Quem é você?, obtém-se como resposta, uma cifra, ou seja, o seu
valor de mercado. Mas S 1 também incide diretamente sobre o lugar
do outro, ocupado, por sua vez pelo saber (Si). Essa incidência que
a fórmula escreve manifesta a relação entre o dinheiro em sua posi­
ção de verdade e o saber científico. Lecoeur (1995) caracteriza essa
incidência do dinheiro sobre o saber através da conjunção entre os
seguintes termos: (Saber)-Fazer-Dinheiro. Assim, trata-se de um saber
cuja via de sobrevivência no discurso capitalista não poderia deixar
de ser outra: ele está fundamentalmente voltado para a produção
de objetos, de gadgets que cumprem a função de assegu rar um gozo
para todos e, conseqüentemente, de assegurar a manutenção de zonas
nas quais o sujeito viva como todos os demais: todos consumindo
grifes, carros importados, notebooks e celulares. Nesta perspectiva,
cabe ainda indagarmo-nos pelo status do sujeito contemporâneo:
será que podemos sustentar sua divisão?
A promessa imanente à ideologia da globalização é a reali­
zação do se!f. a transparência do indivíduo que consome os gadgets
contemporâneos: objetos de brilho efêmero que se enfileiram nas
prateleiras do mercado como uma rede de existência, ofertando ao
sujeito a consistência de um indivíduo. Dessa forma, os gadgets reve­
lam a própria estrutura da globalização. Trata-se de produzir obje­
tos que saturem o mercado. Com efeito, sustentados na utopia
uniformizante, esses objetos visam realizar o impossível e, conse­
qüentemente, resolver a divisão subjetiva: o acesso ao gozo, ao bri­
lho do efêmero, a todos e por igual.
No império do mercado e da monotonia imanente à
homogeneização dos modos de gozo, a segregação não se constitui
como um fenômeno raro. E certamente devemos fazer retornar os
ecos da tese de Lacan (1967) que sustentava a expansão crescente
do processo de segregação. Acontecimento imanente - talvez, a
outra face da moeda da globalização - a segregação se apresenta

61
O Brilho da InFelicidade

como o furo, a dimensão do impossível, que condena a utopia


universalizante dos tempos do capitalismo. Se, por um lado, o fun­
damental da globalização é que o intercâmbio no mercado é me­
lhor do que a eclosão de uma guerra em nome de ideais, se a
globalização é a forma que o discurso capitalista encontrou para
prevenir a explosão de guerras, se ela é a resposta que o capitalismo
oferece aos impasses, obstáculos e sofrimentos oriundos da relação
com o próximo, por outro, a reivindicação - ainda que pacífica -
dos universitários em nome de alojamentos separados, o
renascimento de províncias ou as explosões de violência étnica e a
aparição dos homeless revelam a impossibilidade da realização da
utopia universalizante do capitalismo contemporâneo. Até o mo­
mento, pretendemos mostrar que a verdade crua e dura desta uto­
pia é a manutenção da miséria, o renascimento do nacionalismo, o
acirramento dos massacres étnicos, a divisão territorial de acordo
com a multiplicação de diferentes grupos e, enfon, o recrudesci­
mento de todas as modalidades de segregação que conhecemos no
capitalismo de nossos dias. Violenta ou pacífica, imposta ou volun­
tária, a . segregação define o laço social característico do funciona­
mento do capitalismo hoje. De acordo com o que afirmamos aci­
ma, ela é a outra face da moeda da globalização. Ora, o que o
campo lacaniano pode formular a respeito dessa conjunção? O
preço pago pela realização da utopia universalizante é a estratificação,
a ordenação, a hierarquização do campo social em guetos e grupos,
tendo como critério único e soberano um traço de gozo a mais.

3. Segregação e Toxicomania

A vida, tal como a encontramos, é árdua demais para nós;proporcio­


na-nos muitos sefrimentos, decepções e tarefas impossíveis. A fim de
suportá-la, não podemos dispensar as medidas paliativas. Não pode­
mos passar sem construções auxiliares, diz-nos Theodor Fontaine "
(S. Freud, O mal-estar na civilização).

62
Cláudia Hensch,I de Lima & Antonio José Alves Junior

Quando Freud, em "O mal-estar na civilização" (1 930) ,


afirma que o sofrimento é uma experiência mais comum d o que a
felicidade, e aponta que, das três fontes de sofrimento, a relação
com o próximo é a mais diflcil de ser suportada, ele nos indica que
devemos buscar aí a expressão de um gozo, em si mesmo, ign ora­
do. Gozo cujo estatuto é o de ser o princípio de malignidade imanente
ao homem. Gozo malign o do qual nada se quer saber. Gozo que
ronda inexoravelmente o mundo capitalista enraizado na utopia da
universalização da felicidade. Mesmo diante desse estado de coisas,
é possível apostar no risco da relação com o próximo. Mas é pos­
sível também decidir pelo brilho das medidas paliativas. É nesse
segundo caminho que situamos a toxicomania.
A toxicomania apresenta-se como um fenômeno singular
no interior do discurso capitalista. Trata-se de uma figura do gozo,
que de um lado se coloca como uma via de obj eção à utopia
universalizante de nossos dias. E neste sentido caracteriza-se como
uma recusa a ingressar no gozo fálico que, em nossa época, compa­
rece na forma da competição social (Soller, 1 995) . Como êxtimo
em relação à lógica competitiva do mercado - que se manifesta
no imperativo de ser viril, de alçar uma carreira universitária a fim
de ter uma profissão, de ter cada vez mais dinheiro - o toxicôma­
no se recusa a assumir esses emblemas sociais. Mas, de outro, o
toxicômano é, a princípio, o consumidor ideal e permanente. Aquele
para o qual a especificidade da droga já não tem mais importância.
Em nome do acesso direto ao gozo, paga-se por qualquer coisa -
cocaína, pó de mármore com anfetamina ou, simplesmente, águ a
injetada. Nesse circuito, da ruptura artificial com o gozo fálico, da
segregação do outro, vale apenas o gozo que se obtém no corpo:
1 ve gotyou under my skin em detrimento de 1 can get no sati.rfattion ... but 1
try. E, diferentemente de uma concepção comum - que considera
que qualquer coisapode vidar: sefa o sexo, ofeijão ou a droga - o gozo que
se obtém no corpo não é o mesmo gozo que se extrai do consumo
dos bens do capitalismo, como é o cas o das griffes, automóveis,

63
O Brilho da InFelicidade

notebooks e celulares, cujo consumo ainda se sustenta no gozo fálico.


A partir do campo lacaniano, ou seja, a partir da herança que Lacan
nos deixou a respeito da teoria do gozo, é possível estabelecermos
a modalidade de gozo que está em jogo no fenômeno da toxico­
mania e sua especificidade no interior das estruturas clínicas.

Referências Bibliográficas

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Atuei, 1993.
CARN EIRO RIBEIRO, M. A. "Mesa redonda: A política da psicanálise".
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XXI. Rio de Janeiro, Imago, 1983.
FRIED EN, J.A. & LAKE, D. A. International Política/ Economy. London,
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1997.
LACAN, J. O Seminário, livro 1 7: o avesso da psicanálise (1969-1970). Rio de
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____ . Conferências Italianas (1972 - 1977). Inédito.
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TARRAB, M. "La segregación dei Otro". Em Tya, S,yeto, gocey modernidad, III.
Op. cit.
ZI ZEK, S. L 'Intraitable: psychana(yse, politique et culture de masse. Paris,
Anthropos-Economica, 1993.

64
A NOMEAÇÃO E O RECURSO ÀS DRO GAS
OU A OPERAÇÃO DE NOMEAR NO
DISCURSO ANALÍTICO

Ernesto Sinatra
Membro da Escuela de la Orientación Lacaniana

1. Uma mãe carinhosa

O que acontece quando é o analista quem utiliza seu nome


de gozo para dirigir uma cura? O caso Ferenczi parece suficiente­
mente instrutivo a este respeito 1. Em sua biografia de Sigmund Freud,
Jones diz que Ferenczi, com sua técnica ativa, havia se trans formado
em um terapeuta que reduziu a psicanálise "a um agradável j ogo
entre mãe-filho" (1 953, p. 1 80) a tal ponto que freqüentemente os
papéis se intercambiavam em sua tentativa de "compensar a infeli­
cidade de seus pacientes" (ibid. , p. 1 79) .
A resposta de Freud não se fez esperar, foi epistolar:
'Já que lhe agrada desempenhar o papel de mãe carinhosa com os demais,
talvez vocêpossafazê-lo consigo mesmo. Neste caso, seu único remédio será
escutar uma brutal advertência paterna ... Não me acompanha a esperança
de causar-lhe nenhuma impressão. Em nossas refaçõesfalta a base necessá­
em
ria para taL . . Porém de minha parte, ao menos, fiz tudo o que pude
meu papel paterno. Agora cabe a você seguir a diante (Carta de 1 3 de
dezembro de 1 93 1 , ibid., p. 1 7 1 ) .
O Brilho da I11Felicidade

Na "Proposição de 9 de outubro de 1967", Jacques Lacan


alertou sobre a aberração de reduzir o final da análise à função da
identificação paterna, esta relacionada com "a constituição que Freud
deu às sociedades" (1967, p. 26) . Logo acrescentando que: "o pai
ideal, quer dizer, o pai morto, condiciona os limites nos quais perma­
necerá o desenrolar do processo analítico. Ele coagula a prática em
uma finalidade desde então impossível de articular e que obscurece
em um princípio o que se deve obter de uma psicanálise didática"
(ibid.)
A questão do pai com freqüência conduz os analistas a se
. confundirem com seus nomes de gozo. Pois, embora o nome de
gozo de "mãe carinhosa" que Freud "empresta" a Ferenczi tenha
toda sua pertinência, não é Ferenczi quem chega a construí-lo sob
transferência; trata-se de uma construção de Freud lançada fora do
discurso e que ele próprio considerava de antemão inútil: "Não me
acompanha a esperança de causar-lhe nenhuma impressão. Em nossas
relações falta a base necessária para tal".
Sua intervenção se acha fora do discurso analítico não por­
que este nome tenha sido proferido "fora da sessão"2, mas porque
o próprio Freud se nomeia com um nome de gozo singular (uma
advertência brutalmente paterna) que se torna complementar ao de
Ferenczi: fazendo existir por um instante. . . a relação sexual entre
uma "mãe carinhosa" e um "pai brutalmente admoestador".
Interpondo uma observação no melhor estilo dos condici­
onais contrafactuais, talvez tivesse sido diferente se, em uma sessão
de análise, Freud tivesse feito passar para o lado de Ferenczi o gozo
de "mãe carinhosa". Por exemplo, fazendo semb/ant disso e lhe di­
zendo algo corno: "Pobrezinho, está com frio? Deve se agasalhar
bem ao sair, para não adoecer" 3 •
Freud responde aqui com o semb/ant do pai denunciando
um nome de seu gozo, o do próprio Freud, no lugar de fazê-lo
com o semb/ant de gozo de seu analisante. Neste ultimo caso, o

66
Ernesto Sinatra

analista como função emprestaria sua pessoa à investidura do sinthoma,


com o que Freud 'se deu conta', ainda que tardiamente, que Ferenczi
estava prestes a identificar-se 'no final'.
Ressaltamos que se trata de uma ficção argumentativa a partir
do caso Freud-Ferenczi, já que Ferenczi não concluiu sua análise e
que a elaboração do nome de gozo com o que é suposto identifi­
car-se correu por conta do analista e não do analisante.
Recordamos assim que o sinthoma é o produto da análise na
orientação que um analisante empreendeu rumo ao Real, na junção
com o simbólico4 • Esta operação corresponde à nomeação analítica e
consis te no resultado final do procedimento.
Nos fragmentos de casos a seguir evidenciaremos tentati­
vas, êxitos e fracassos de alguns analisantes em nomear o gozo com
o qual se identificam, com a 'ajuda' de substâncias tóxicas.

2. 'Don Juan ': um nome transitório de gozo

A busca das drogas como veículo de sabedoria tinha leva­


do Juan ao precipício, literalmente. Um dia, bêbado, logo após ter
fumado maconha e cheirado, uma vez mais, quase uma lata inteira
de cola, decidiu chegar à janela "para enfrentar de vez a morte
invulnerável". Só a providencial presença de um amigo e compa­
nheiro de viagens evitou que caísse no vazio: ele o abraçou quando
já tinha perdido o equilíbrio.
Sua presença em · meu consultório não anunciava nada de
animador. Quase não falava, só o fazia por obrigação porque en­
tendia a desesperança de seus pais e estava ali frente a mim com sua
boca aberta e com suas frases monotemáticas já sabid�s. Estava claro
que as coisas eram assim: ele era seu próprio "crocodilo" e nós dois
sabíamos que se tivesse chance de fazê-lo, eu teria que bancar o "toco
apaziguador" (Lacan, 1 969-70, p. 1 1 8) 5 . Mas não havia muito tempo.

67
O Brilho da InFelicidade

A entrada foi através da literatura, Castaõeda e Os ensinamentos de


Don Juan, na verdade seu único livro de referência, livro no qual a droga
toma um valor iniciático ao ser introduzida pelo xamã, Don Juan.

O problema é localizado: o curto-circuito de gozo no cor­


po que o toxicômano procura na substância estava, neste caso, asse­
gurado por um sujeito suposto saber ... gozar. Para Juan, todo seu
consumo era filtrado através dali, pela transcendência que obteria
com esse caminho. Compreendi então que esse era também meu
único acesso a sua intimidade; por isso, com extrema paciência,
escutei seus relatos, aqueles que começou a soltar algu m tempo de­
pois que me dispus a escutá-lo.

Sua história familiar começou a tecer-se em torno de Don


Juan, do mesmo modo que suas relações com seus amigos e suas
desventuras com as mulheres. Este Don Juan moderno, para seguir
a lógica dos tempos, não estava certo de não ser homossexual e
temia tanto as mulheres que quase não podia se aproximar delas.
Havia tentado inicialmente, fazendo uso de álcool e de maconha,
algumas vezes também com cocaína. Logo, já resign ado, se meteu
com a cola, quase levando-o ao ostracismo. Já quase não via seu s
amigos, não estudava, não trabalhava, apenas esperava algo de Don
Juan; mas cada vez mais eram menores suas expectativas de alcan ­
çar a viagem que o redimiria. Começou a trazer-me escritos que
denunciavam as dificuldades em suas "viagens": suas cheiradas eram
cada vez piores - sua forma preferida de gozo - já que o tormento
de seus pensamentos ameaçava arrasar sua frágil estabilidade psíquica.

No decorrer de muitas ·entrevistas surgiu, para sua surpresa


- e também para minha -, um sonho que permitiu localizar uma
lembrança. Neste sonho, sua mãe, mulher rígida e distante, era bo­
nita e o convidava para fumar maconha, quando "de repente entra­
vam dois homens e a violavam". Tudo ocorria diante de Juan, de
seu desespero. Inclusive pareceu-lhe ver seu pai e seus dois irmãos
maiores chorando na cena.

68
Ernesto Sinatro

Há vários anos havia presenciado uma cena na qual seu pai,


veterano marido da garrafa, estava uma vez mais alcoolizado. Mas
desta vez, diferente das outras, não estava triste nem violento como
de costume. Além disso ·a mãe de Juan não estava com ele; seu pai
estava acompanhado de duas estranhas mulheres e um homem. Só­
depois, Juan qualificou o encontro como a "festa de meu velho
com duas putas e seu cafetão".
Na verdade, e sem que tenha notado, sua carreira tóxica
havia começado logo após aquela cena de ''pére-version", a partir da
qual começou seu interesse por Don Juan.
Só então começou a desmanchar-se sua relação tóxica com
o gozo, interpondo-se encadeâmentos simbólicos associativos que
Juan consumia lentamente, substituindo-os às substâncias. De mi­
nha parte, com silêncio e algumas pontuações, que sempre questio­
navam a certeza de gozo que queria me demonstrar, havia me trans­
formado em seu xamã.
Foram necessárias outras tantas sessões para localizar um
sonho que havia precedido exatamente sua passagem ao ato (a qual,
somente na elaboração onírica a que se dedicou, denominou de
"minha tentativa de suicídio''). Ele tinha "violentas" relações sexuais
com uma belíssima mulher que no sonho se chamava "a bruxa".
Ela gozava sem parar e ele, com ela. Ele estava assustado, mas
assim mesmo continuava gozando.
Sem querer saber nada mais, no dia segu inte atirou-se no
vazio, perseguido por uma voz que - só então lembrou - lhe
dizia: ''Mata-te... caso tu não mereças viver". Muito angustiado, pôde
observar que, antes de precipitar-se, ele tinha contado a seu amigo
drogado o sonho que havia tido e este lhe recordara, zombando,
que "bruxa" era o nome com o qual Juan tinha batizado a sua
própria mãe. Já quase solto no ar, embora o "parapeito" 6 fosse
insuficiente para segurá-lo, a arriscada manobra de seu amigo evi­
tou o desenlace mortal; só então pôde gritar: " Papai!... Papai!".

69
O Brilho da InFelicidade

Tendo alcançado este ponto, Juan se "descolou" da culpa


pelo gozo incestuos o (com "a bruxa") do tormento do pai do
gozo (o que o empurrava a morte) . Assim, Juan foi paulatinamente
perdendo o interes se tanto nas drogas - seu recurso inefável e
místico - como por aquele Don Juan - seu mito do pai, em
nome do qual "autorizava" seu consumo - até deixar que os dois
caíssem definitivamente.
A queda des ta figura do pai ideal que perturbou o gozo que
obtinha com a droga (em especial com a cola) ao mesmo tempo
des fez a identificação do sujeito com o traço de impotência -
alcoólica - do pai, figura do gozo do Outro que, trans formada
em "pai morto", o e1npurrava ao vazio.
Só então ele descobriu as ressonâncias "sexuais" que habi­
tavam seu nome de gozo eleito e se interrogou sobre o que era a
sua verdadeira preocupação: a relação com as mulheres 7 .Para Juan,
a partir de então, a análise se transformou em assunto sério.

3. As mutações de Gulliver

a) A substância do conrnmo. Um homem de meia idade veio a


consulta pelo que ele chamou de "suas adicções". Desde jovem,
tinha visto sua vida correr perigo em numerosos encontros com o
que chamou de seu "destino". Ao interrogá-lo, surge com clareza a
força de um eufemismo: dizia "des tino" em vez de "polícia". Após
um destes encontros em que escapara correndo pelos trilhos da
estrada de ferro, bêbado e drogado, após um ato delituoso, trope­
çou e caiu, salvando-se por acaso.
Sua vida de delitos iniciara-se aos 1 6 anos, época em que
começou a consumir freqüentemente todo tipo de subs tâncias tóxi­
cas : anfetaminas, cocaína, maconha, álcool... Dizia ter sido um
transgressor, e que se salvou casualmente de morrer arrebentado
pelas drogas. Finalmente confes sou que veio consultar-se por

70
Emesto Sinatra

imposição de sua esposa, que o ameaçara com a separação se não


recorresse ao tratamento.
b) O "esquecido ': sintoma. Nem bem iniciaram as entrevistas,
começou a localizar um problema que deslocou o motivo da con­
sulta: seus freqüentes esquecimentos. Ante perguntas que eu lhe for­
mulava - por sinal, óbvias - sobre datas e acontecimentos fami­
liares, nunca sabia o que responder. No extremo da angústia, um
dia manifestou-se surpreso com suas próprias palavras:· "Não lem­
bro nada, não tenho his tória!"
Depois de várias entrevistas voltou a essas perguntas, para
começar a situar, muito vagamente, os acontecimentos que marca­
ram sua vida.
Pas sado es te longo perí odo de entrevis tas em que as
rememorações surgiram de um modo prolífico, concluiu com uma
afirmação inesperada: "Não posso crer que tenha esquecido tantas
coisas que eu sabia!"
c) Um pregador do bem comum. No início de suas entrevistas
falava de seu pai como de um desconhecido; o acusava de não lhe
ter pres tado jamais atenção e de ser o verdadeiro responsável por
sua precoce· adicção às drogas. Pedro dizia ter necessitado dele, mas
que cada vez que o esperava, ele não estava; seu pai parecia ter
estado demasiado ocupado em predicar s obre o bem a seus seme­
lhantes. Era um líder de bairro, muito apreciado na comunidade,
que predicava especialmente não fumar e não tomar álcool; tentava
argumentar que o bem comum estaria garantido se as pessoas se
esforçassem em não cometer nenhum excesso.
Ainda que Pedro tratasse de lhe mostrar que fazia exata­
mente o contrário do que recomendava em suas prédicas, seu pai se
fazia de desentendido.
d) Não pensar em nada para que nada aconteça. O Outro, sem­
pre malign o, era representado por Pedro como um pai hipócrita

71
O Brilho da lnFelicidade

que, além disso, tinha um filho vagabundo (o próprio Pedro) que


constituía claramente seu avesso identificatório.
Entre idas e vindas, surgem nestas entrevistas, restos de re­
petidos sonhos de angústia, acompanhados por incompreensíveis
medos dos quais padecia desde criança. Até que, com extrema difi­
culdade, Pedro localiza uma frase pronunciada, e repetida, por seu
pai como resposta a tal insistência de seus padeceres: "Concentra-te
e pensa só nisto: que tens que pensar em nada. Assim nada irá acon­
tecer". Ele se abala. face à presença desta frase paradoxal, a qual
havia sido seu amuleto desde a infância. Cada vez que seus medos e
angústias de morte o perseguiam, ele apelava a este recurso paterno
para neutralizá-los. Este remédio o levava ao esquecimento, já que
tinha que pensar... em nada para que nada (lhe) sucedesse.
e) A fantasia do homem da faca. Foi então que uma fantasia
esquecida e que constituía o centro de seus terrores noturnos apare­
ceu em seu relato: um homem podia entrar em sua casa, especial­
mente à noite, e assassiná-lo com uma faca. Suas tentativas para
evitar esta morte (que antecipavam seus pesadelos e que mostravam
suas fantasias entre a vigília e o dormir), haviam se transformado
em uma terrível obsessão que o levou a efetuação de complicados
rituais, defesas secundárias contra a agressão tão temida.
f) A loucura de um pai mutante. Imediatamente, seguindo o
tênue fio de sua memória, surgiu uma lembrança fundamental: ti­
nha cinco anos e o pai, carinhoso e compreensivo com ele (de quem
era até este preciso dia o filho preferido), tornou-se um completo
estranho, um sujeito despótico que podia bater-lhe sem razão algu ­
ma. Neste momento não pode precisar por quê. Foram necessárias
ainda muitas entrevistas para chegar a situar outro acontecimento,
também absolutamente esquecido, e que precedeu a tal modifica­
ção de caráter: quando ele era pequeno seu pai tinha sido internado
num manicômio.

72
Ernesto Sinatra

A partir desse momento se apresentaram em sua memória


uma enorme série de lembranças que davam conta de seu descon­
certo frente à presença monstruosa de seu pai . Ele não sabia o que
tinha acontecido a seu pai, para mudar tão abruptamente seu modo
de ser: de bonachão e carinhoso a despótico e agressivo: "Ele se
transformou em um mutante". Teria sido a partir deste momento
(sem sabê-lo) que sua vida mudou: nunca mais seria o mesmo. O
medo da loucura ficou assim vinculado ao medo da morte.
g) O homem do cemitério. Neste momento surgiu uma nova
lembrança. Este homem, que parecia, segundo suas próprias pala­
vras, não ter história própria, tinha todavia um gosto muito singular.
Desde criança, quando podia, fugia e percorria os cemitérios: ali
contava as lápides segundo um ritual muito característico, finalizan­
do sua missão só quando encontrava uma tumba (sempre de um
desconhecido) que deveria ter inscrita uma data que superasse a
mais antiga que até esse momento tivesse encontrado em suas pere­
grinações anteriores. O adolescente que não tinha que o recordar,
exorcizava a morte deste modo.
h) Os nomes da droga. Finalmente foi possível precisar o se­
gredo de sua relação com as substâncias tóxicas. Ele pode situar a
correlação en tre o medo de sua loucura e o esquecimento da
internação de seu pai no manicômio. Os pesadelos que o assola­
vam desde criança, e que não cessavam, se iniciaram a partir do que
nem ele nem seu pai sabiam: a causa da loucura de seu pai 'exposta
dolorosamente'. Durante muito tempo guardou um saber sem sabê­
lo: sua crença de que a loucura do pai lhe havia sido transmitida
geneticamente. A frase aprendida ("Concentra-te e pensa só nisto:
que tens que pensar em nada. Assim nada irá acontecer") funcio­
nou, durante algum tempo, como uma defesa frente ao temido
gozo do Outro (condensado na fantasia do homem da faca). Foi
possível localizar duas versões antinômicas do pai. Enquanto uma
o aterroriza, a outra o tranqüiliza. Com uma responde (como defe­
sa) ante a ameaça da outra (que o invade).

73
O Brilho da I11Felicidade

Curiosamente, recordou então que, quando anos mais tar­


de recorreu aos tóxicos, os sonhos ameaçadores se detinham. Ou
seja, "drogar-se" e "embebedar-se" funcionavam também como
antídotos - paradoxais - da loucura. Com eles adormecia (mes­
mo que depois s e exaltasse) porque deste modo não pensava, outra
vez mais . . . em nada.
O medo da loucura também se lhe apresentou, desde cri­
ança, sob a forma de uma alucinação, que nunca antes havia conta­
do, precisamente pelo medo de ser encarcerado. . . como seu pai: via
os obj etos se distanciarem e diminuírem lentamente.
O tratamento que deu a esta nova forma de retorno "vin­
gativo" da identificação ao pai pode ser precisado no trabalho ana­
lítico a partir de um j ogo infantil, repetido até a exaustão) : ele era
Gulliver no país dos anões e fazia com que eles o respeitassem. Por meio
desta fantasia chegava a "dominar" as alucinações, mas ao cometer
certas crueldades c o n tra o s a n õ e s , o cas tigo lhe re torn av a
potencializado uma vez mais e m seus pesadelos e alucinações, en­
gordando o círculo vicioso do medo da loucura.
Res ta dizer o nome que ele dava as suas pequenas figura­
ções visuais: chamava-as de "alucinetas". Neste ponto se dá conta
do nome usual de uma das drogas que consumia: as "anfetas". Só
assim lernbra que começou a tomar an fetaminas para "ser mais
homem", ou seja, para manter-se desperto e lutar contra os pesade­
los que persistiam em sua adolescência. Quer dizer, para manter-se
no sonho da inação, no circuito marginal do dormir, assegurando
sua identidade sexual.
As lembranças permitiram então retornar sobre aquela cena
de s eus cinco anos, quando pela primeira vez teve a imagem des­
con trolada de seu pai, na ocasião - que só então pode deduzir ­
da primeira de suas internações. O pai estava em sua casa, tinha
tomado chá com uns amigos e de repente se dirigiu a ele e, sem
dizer-lhe nada, desferiu-lhe um soco. Ao interrogá-lo, respondeu

74
Ernesto Si11atra

sem hesitar: "O que bebeu o deixou louco", para pross eguir dizen­
do: "Eu devo ter pensado que no que tomou havia uma droga".

Finalmente, Pedro recordou que ele gozava de forma s e­


creta de um favor que supunha lhe ser concedido por sua condição
de homem: ser o preferido de sua mãe. Mãe que precisamente
gostava de denegrir o pai ante seus filhos.

O "tradicional" horror da ca s tração que cabe a todo filho


em relação a cada mãe, horror produzido pelo saber extraído de
seu posicionamento es trutural como s eu obj eto - impossível -
de satis fação, encontrou desta vez como resposta uma di-versão (di­
versión) do pai. Um pai que não pensa em nada e propõe não s aber
nada, "outro" pai que goza de seu filho, cas tigando-o de um modo
incompreensível.

Porém é n e c e s s ário des tacar que es tas versões foram


cons truídas a partir das fantasias de Pedro, o qual respondeu de
diferentes maneiras para tentar escapar de s eu "des tino" mortal.
Aqui se enlaçam a loucura e a morte em sua junção com a cas tração.

A labilidade simbólica de um indivíduo foi tratada sem mais


mediação pela direta incorporação de obj e tos da tecnologia. Por
es te meio, o valor de verdade das di ferentes identificações ao pai
eram ao mesmo tempo recusadas e mostradas.

Aparecia o papel que certas subs tâncias tóxicas cumprem


no preciso lugar do fracasso da identificação significante ao pai, ao
mesmo tempo que sus tentam a substância do esquecimento - aqui,
do gozo - com a qual protegem de um modo paradoxal o sujeito
das cons eqüências de seus atos. Tal é sua verdadeira condição de
homem moderno.

A carreira das drogas des envolveu- s e nes ta seqüência:


primeiro álcool, logo tranqüiliz ant e s , depois "an fe tas " e final­
mente cocaín a . D e s s e mo do se e s tabelece um circuito dividido
em duas fases aparentemente opos tas, embora complemen tares.

75
O Brilho da InFelit:idade

Com o álcool e os comprimidos para dormir tentou des fazer-se


do gozo do pensamento, ao pas so que com as an fetaminas e a
cocaína, tentou tratar sua - lábil - posição sexual.
O pensamento dele goza fazendo existir um pai-assassino,
enquan to com o pensamento tenta não pensar em nada, em que lhe
vai acontecer. . . nada.
Precisamente isso foi o que havia feito com sua vida: tentar
seguir a vida como um homem "normal", sem sobressaltos. Po­
rém foram os tormentos de seu pensamento que se infiltravam
entre o s interstícios de sua "adaptação ao meio" (adaptação exigida
por sua mulher) que verdadeiramente o conduziram a encontrar-se
com um analista.

4. As bandeiras do kamikaze
Um homem chega à consulta dizendo "encarnar as forças
do mal" além de se apresentar com evidentes contusões e feridas.
Seu motivo de consulta é bastante razoável: quer seguir vivendo,
mas não está certo de poder fazê-lo. Afirma que não pode deixar
de fazer certas "coisas" que lhe causam cada vez mais dificuldades.
Seu pacto com a morte adquiria renovadas formas: com as
subs tâncias tóxicas que empregava, até extremos de freqüentes
overdoses; com a angústia que provocava em suas parceiras, amea­
çando-as até o ápice de suas resistências; oferecendo-se para ser
espancado de forma selvagem, vez por outra, até extremos nos
quais sua vida sempre dependia do acaso de sua resistência física.
Não pode deixar de tomar álcool para ter a coragem que
necessita, nem abandonar as drogas que consome, sobretudo a co­
caína e que habitualmente combina com seus "drinques". Seu discur­
so é elíptico, de dificil alcance e pleno de alusões, enquanto espera de
mim uma cumplicidade de sentido, a qual naturalmente recuso. Eu
lhe formulo então sucessivas perguntas, demons trando minha ig­
norância a respeito dos sintagmas fixos, com os quais pretende

76
Ernesto Sinatra

sustentar o diálogo, a maioria deles extraído da cultura analítica. Ao


colocar-me nesta posição, começa a falar não sem resistências, de
sua "consumição", significante que se encontrará a posteriori ligado
à uma seqüência que circunscreverá sua � condições de gozo em seus
encontros com as mulheres, a partir de oito momentos repetidos
de modo sucessivo sem alteração de seu caráter ordinal. Eu os
enumerarei: 1 . Sedução; 2. Enamoramento; 3. Desprezo; 4. Coerção;
5. Terror; 6. Arrependimento; 7. Entrega; 8. Humilhação.
Mas, uma vez isolado o circuito no qual o dito sujeito
condensava sua satisfação, e precisamente quando parecia encontrar-se
em posição de reconhecer-se nele a partir do significante "consumição"
( que ligava à coação exercida sobre o outro, ao sofrimento de sua
existência com as ingestas tóxicas), o entrevistado adotou um último
recurso: tentar coagir uma mulher que o havia abandonado por sua
crueldade - uma vez mais - para que ela retomasse para ele através
de uma criança a qual havia instruído para "adulá-la". Esta mulher era
estéril e ele sabia o impacto que exercia sobre ela este recurso.
Foi neste momento que decidi suspender as entrevistas, fa­
zendo-lhe saber porque razões não lhe daria entrada em análise: ele
pretendia mais uma vez rechaçar sua responsabilidade com respeito
aos atos que realizava em sua vida, utilizando qualquer recurso para
conseguí-lo. Na posição analítica não podia - nem devia - revalidar
essa falta de ética.
Consumir ou ser consumido, tal é o véu com o qual se desenro­
lava, neste sujeito, uma fantasia de vampirismo. Por este viés, era
comum que, ao oferecer-se como instrumento do gozo do Outro,
ele passasse a se trans formar no Outro propriamente dito. Querer ser
o Outro e deixar que o outro, seu semelhante, finalmente se sacrifi­
que por ele, denuncia, por este viés, sua canalhice: um "bem apete­
cível", também do perverso. Por fim, quer dizer, assim que lhe foi
comunicada a interrupção das entrevistas entregou a "verdade" de
seu nome de gozo: "Eu sou as bandeiras do kamikaze; o problema
é como entregar esse produto a outro".

77
O Brilho da lnFelicidade

NOTAS

1 . Retomo neste ponto considerações desenvolvidas no artigo "Sobre o


autor e a nominação" (1990) .
2. Lembremos que já fa zia um bom tempo que Ferenczi não estava em
análise com Freud.
3. Luminosa observação de Susana Toté.
4. Re tomo aqui um desenvolvimento do último capítulo do livro A
racio11alidade da pncanálise (1996), ''.A Escola de Jacques Lacan e suas garantias".
5. N. do T. No original, "paio apaziguador'. Para os comentários de Lacan a
respeito, cf. p. 1 05 da edição brasileira do Seminário, livro 1 7.
6. N. do T. No original, "paio de piedrd'. Referência também ao "paio apazigua­
dor'; cf. nota 5. Observamos que em castelhano, "paio" pode significar um
dano ou injúria que se faz por desconhecimento ou por precipitação, como
também forma a tradução do provérbio de origem francesa "de tal paio, tal
astilla", "de tal pai, tal filho".
7. Preocupação que, com o apelativo de Don Juan, ao mesmo tempo mostra­
va e dissimulava.

*Tradução: Lenita Bentes

Referências bibliográficas:

JONES, E. Vida y obra de Sigmund Freud; Tomo 3 ( 1 953) . Buenos Aires,


Paidós, 1986.
LACAN, J. "Proposición dei 9 de octobre de 1967 (1 '. Versión)", Ornicar?, 1987.
----· Semi11ano XVH: EI reverso dei psicoanálisis. Buenos Aires, Paidós, 1990.
SINATRA, E. La racionalidad dei psicoa11álins. La Paz, Plural Editores, 1 996.
-----· "Sobre el autor y la nominación", Descartes, n. 8/9, 1990.

78
O ATO DE CONSUMIR DROGAS E
A REALIDADE VIRTUAL

Célio Garcia
Membro da Escola Brasileira de Psicanálise

Un deal est une transaction commerr:iale portant s11r des v�leurs


prohibées ou strictement contrôlées, et qui se cone/ui, dans des espaces
neutres, indéfinis et non prévus à cet usage, entre pourvqyeurs et
quémandeurs, par entente tacite, signes ,·onventio11nels 011 conversation
à double sens (Koltes, 1 986).

A · Filosofia

A filosofia se ocupa habitualmente com o pensamento; a


psicanálise por seu turno se mostrará interessada no pensamento
como sucedâneo do ato. Para a psicanálise, não há antinomia entre
pensamento e ação.
Coube à filosofia discutir sobre a anterioridade do ato frente
à potência, sobre o ser potencial e o ser atual. Para Aristóteles, o
movimento vem a ser atividade do ser como potência; o movi:­
mento é uma mediação entre a potência e o ato, graças a ele se
realiza o que se encontra em estado virtual no ser.
Contemporâneo nosso, Austin (1 962) introduziu a catego­
ria dos enunciados performativos. Dizer um desses enunciados é
ao mesmo tempo realizar um ato sem outro tipo de ação ou movi­
mento além de dizê-lo. "Eu prometo. . . " implica prometer pelo sim­
ples fato de dizê-lo.
Veremos logo abaixo um tratamento especial que o pró­
prio deu à mesma questão.
O Brilho da lnFeliddade

A Psicologia

A psicologia moderna entende o ato como sendo um re­


sultado, conseqüência de uma escolha racional, por exemplo. A teo­
ria organizacional prevê uma série de ações, eventualmente encadeadas
em função de um fluxo, de um organograma. Ao final da cadeia,
temos um "out puf'.
É bem verdade que há um "starf'; operação normalmente
dissimulada, ela dá impulso ao sistema. Veremos que ela é uma
promessa de satisfação, repartição de prazer, anúncio de recom­
pensa: se você for até o final da cadeia, encontrará o que procura.
As ações parcializadas raramente podem estar sob a responsabili­
dade de algu ém; a rigor, o bom administrador delega.
Curioso e paradoxal: para a psicanálise, o responsável pelo
ato é o sujeito, ele mesmo, por sua vez, efeito do ato. Para a psico­
logia, antes do ato o sujeito pode se considerar culpado, mas não
responsável. Responsável é aquele que responde pelo ato que reali­
zou, não pelo que ele imaginou.
Freud e Lacan, no entanto, apontaram para o crime quan­
do cometido por força de consciência de culpabilidade. Aqui culpa
e responsabilidade estão confundidas.
Austin nos deu igualmente uma teoria do que chamou
"infeliciry'' do ato, ou seja, quando o ato performativo é malogrado
ou resulta em abuso. Traduziremos "infeliciry'' por "infortúnio". Logo,
tiraremos partido da tradução quando percebermos que o termo
"infortúnio" contém fortuna, ou ainda o termo grego "tukt'. lnfortú-
· nio corresponde a desencontro, ou encontro marcado/de�marcado.
Chamamos de "infortúnio" do ato em psicanálise o efeito
produzido no real, produção esta sem qualquer significação que a
ela devesse ser atribuída; só sabemos que algo não anda bem. O
"acting-out' é o mais instrutivo dos infortúnios do ato para a psica-
Célio Gordo

nálise, verdadeira advertência para o analista, evidência de um resto


que o analista há de encarnar, devando-o à função de causa do desejo.
No "acting-ou!' o que se diz não é sujeito, mas verdade, dirá Lacan.

Escolha racional e escolha forçada

O termo escolha racional é encontrado na atual "teoria da


ação" elaborada pela filosofia analítica (Elster, 1983), orientação
mais freqüentemente encontrada na literatura de língua inglesa. Já o
termo escolha forçada é proveniente de referências psicanalíticas.
Haveria lugar para aproximação entre resultados e posições prove­
nientes de uma e outra orientações, considerando-se que temos na
referência aqui trazida contribuições e campos de trabalho inicial­
mente distantes?
O problema da escolha é encontrado ao longo da história
da filosofia; ele nos interessa especialmente quando temos em cena
dois argumentos para a escolha, a saber, a causalidade fisica e a
causalidade psíquica. Nem sempre os dois tipos de causalidade es­
tiveram separadas; terá sido Kant (1781) quem estabeleceu o caráter
segregativo assumido em nossa modernidade por essa questão.
Garantida essa repartição, estabelecia-se a ciência tal como a conhe­
cemos: para fazer valer o princípio de razão, mostrava-se ela ciosa
em restringir o mecanismo entre causa e efeito ao que fosse atinente
à realidade fisica.
Em Aristóteles a separação não fica estabelecida; a questão
trazida em termos de "automaton" e "tukê' não separa a causalidade
natural física de uma causalidade ligada à psique ou à liberdade.
Não há distinção entre uma causalidade necessária e uma causalida­
de livre. Todavia encontramos claramente posto em Aristóteles o
problema que nos interessa ao examinarmos escolha forçada x es­
colha racional: como seria possível agir contra melhorjuízo?

81
O Brilho da lnFelicidade

A "akrasia" (termo de Aristóteles) coloca um problema


para uma teoria da escolha racional. Frente a este problema, de um
lado, encontramos a orientação intelectualista; de outro, as teorias
fundadas sobre o desejo, anti-intectualistas por conseguinte. Já se
anuncia o lugar onde terá a filosofia analítica reencontrado, eventu­
almente mencionado, a psicanálise. I gualmente veremos mais adian­
te como a referência a Aristóteles pode nos ajudar a explicitar o que
está em jogo na atual teoria da ação.
Podemos encontrar atualmente uma teoria da racionalidade
que não exige unidade do sujeito, quase sempre por demais ideali­
zada, nem integração da experiência individual. Essa teoria da
racionalidade diz: "Nem tudo o que as pessoas fazem coincide com
crenças e desejos esposados, nem tudo o que as pessoas concebem
ou executam tem resultado apropriado". Não fica estipu,lado que
todas as ações e crenças devem ser racionais no sentido de resulta­
do apropriado para o interessado, ou seja, quando o agente pensa
que seus desejos serão satisfeitos.
Resumindo, tanto uma racionalidade ideal quanto uma
racionalidade nula parecem pouco prováveis. Os casos de violação
estarão contidos na expressão "no! too ma,ry", critério para essa
racionalidade mínima. Por conseguinte, trata-se de uma tese a ser
verificada ao nível de cada um, e não ao nível do universal. A esco­
lha racional mobiliza, pois, crenças trazidas pelas percepções, dese­
jos ligados a fins e necessidades, tudo isso resultando no comporta­
mento. Há finalmente uma estrutura semântica que dá conta de ex­
pressar a escolha em questão.
A condição de segregação por parte da ciência - já encon­
trada por nós, quando marcamos o divisor de águas a partir Kant -
será instaurada e mantida em se tratando da psique, quando as ciências
da cognição, por demais comprometidas com as · neurociências, blo­
quearem a aproximação que tentamos nesta nota. A partir de então, a
causalidade fisica se impõe como mecanismo necessário e suficiente.

82
Célio Garcia

Tomaremos um caso de atualidade. Como seria possível


ao drogadito agir contra melhor juízo, perseverando no consumo
da droga? Como considerar 'O ato de consumir drogas?

Psicanálise e toxicomania
A psicanálise tem a ver com o sujeito uma vez que _ este se
inscreve na função fálica. No tratamento de toxicômanos, é habitual
falarmos de privação e não de cas tração. Se o suj eito de que fala a
psicanálise está articulado com o falo, e ainda assim preferimos falar
em privação, temos que jus tificar o critério adotado na abordagem
da toxicomania (Miller, 1 983) .
A respos ta seria: o uso e abuso d a substancia tóxica obstrui
o passagem para que se tenha acesso ao problema sexual. A toxico­
mania apresenta, pois, caracterís ticas sobre as quais os efeitos de
verdade não têm vez. Pretender convencer um usuário de que ele
pode abandonar a droga, convencê-lo pela palavra que diz a verda­
de sobre a cas tração, parece colocar o carro na frente dos bois; o
abandono da droga ou o uso como símbolo privilegiado seriam
condição para a cura analítica (Zafiropoulos & Delrieu, 1 996) . No
entanto, temos que entender que o uso da droga pode levar a uma
experiência, autêntica experiência para o sujeito.
Por seu lado, a psicanálise assinala que alguma coisa se opõe
à entrada em analise por parte do usuário de droga; trata-se pois de
uma afirmação que nega, trata-se de um saber negativo. Em psica­
nálise, sabemos, estamos interessados na questão da relação da dro­
ga (ou da coisa) com o sujeito.

A droga e o corpo do drogadito


Aqui o procedimento segregativo da ciência tem efeito no­
tável; como sabemos, não nos diz a ciência como distinguir entre o
tóxico, droga de _que faz uso o drogadito e o caráter tóxico de uma

83
O Brilho da lnFelicidade

substância. O corpo do drogadito onde se dá o prazer e o corpo


sobre o qual age a droga química ficam confundidos. A abolição de
uma dimensão resulta numa descontinuidade evidenciada por oca­
sião de posicionamento frente ao grande Outro, nos seguintes ter­
mos: o usuário da droga se reporta ao Outro, alteridade marcada
pela descontinuidade, com a qual ele só mantém algum comércio se
mediado pela ciência segregativa. Interessante lembrar que Freud
teria incorrido no mesmo gesto quando esperava que o conteúdo
tóxico da libido fosse um dia estabelecido; estariam assim confun­
didos o corpo libidinoso e o corpo onde atuaria a química da libi­
do. O uso da droga associado ao ambiente "belle époque", o en­
cantamento laudatório de drogas e os produtos disponíveis no
mercado como o vinho Mariani à base de coca fizeram com que
Freud, de início, não mantivesse no caso da cocaína a mesma dis­
tância frente ao objeto de estudo e à observação, como foi notori­
amente o caso em outras ocasiões.
Em 188 7, quando Freud, ao reavaliar os efeitos da cocaína,
admite voltar atrás e não insiste na inocuidade da droga, estava ele
se alinhando a postura recém-adotada pelas últimas publicações ci­
entíficas, uma delas em tom nitidamente de antecipação, quase pro­
fético, 1nencionava o "terceiro flagelo da humanidade".
No entanto Freud nos deixa um testemunho extraordiná­
rio de participação e presença em aspectos de sua época. Longe do
"furor sanandt" da medicina, teve ele outra postura frente ao que já
era objeto de interpretação fóbica por parte dos médicos. Cientista,
teria ele descoberto os efeitos da droga para fins de anestesia local;
de fato, teve que atribuir a façanha a Koller. "Drogmarl ' (Eigu esyer,
1983), isto é, intérprete de produções oníricas e presságios, sentido
em que Eyguesier usa o termo, o sonho de Irma (datado de 1895,
data em que Freud utilizou cocaína) fez que com a psicanálise en­
contrasse sua lingu agem, seus códigos. Afinal, terá sido a questão da
droga como artifício do que lança o homem na decifração de seu
destino, inspiradora de dispositivo que viria a ser a psicanálise!

84
Célio Garcia

Afinal, esta a questão que trazemos: de fato, o uso de droga


tem sido apresentado como experiência autêntica por parte de ini­
ciados (Leary, 1979). No caso, a autenticidade certamente resulta no
reencontro da dimensão abolida pela ciência segregativa. Sabemos
que a referida autenticidade não isenta o usuário dos efeitos do
discurso da ciência em que o drogadito reconstrói abusivamente a
dimensão (abolida) e que diz respeito ao corpo do sujeito. O cor­
po do drogadito é ao mesmo tempo o laboratório onde ele realiza
as experiências "científicas" e o corpo onde se dá o prazer; basta
atentar para a segurança com que falam sobre as próprias experi­
ências. Só ele sabe o que acontece!
Tudo isso na tentativa de sup rir a descontinuidade
segregativa operada pela ciência; ele dá continuidade ao que havia
sido interrompido pelo discurso da ciência. A estrutura semântica a
que fizemos alusão em se tratando da teoria da ação encontra aqui
guarida; basta que a ela se dê o tratamento adequado, ou seja, uma
teoria do sentido que não esteja na dependência da segregação im­
posta pelo procedimento da ciência. Há escolha por parte do usu­
ário, escolha racional até certo ponto ("not too maf!i' foi a expressão
encontrada na literatura de língua inglesa); há escolha forçada diria a
psicanálise, j á que a droga substitui o sintoma habitual (veja-se efeito
de liberação quanto a inibições, tantas vezes ocasião de testemu­
nhos). A toxicomania acode a fim de se evitarem os efeitos da volta
do recalcado, já que o sintoma representa esse recalcado.
Eis a liberdade humana, ela se manifesta quando não visa­
mos tão somente a causalidade física mantida pela ciência segregativa.
A liberdade é a escolha forçada da Psicapálise, na própria medida
em que esta escolha pode ser considerada uma escolha racional,
desde que seja restabelecida a dimensão abolida pela ciência. Esco­
lha, ela envolve causa, mas igualmente consentimento.

85
O Biilho da lnFelicidade

Novas formas do sintoma

"Novas formas do sintoma" é um termo freqüente em


nossa atualidade. "Um certo tipo de paciente" é mencionado quan­
do constatamos um desaparecimento da supremacia do simbólico; o
referido processo teria como conseqüência, entre outras, uma mo­
dificação da noção de estrutura clínica, o que nos leva a uma redefinição
do sintoma. Há nos 'termos grifados disponibilidade para encarar o
consumo de drogas sem que o saber adquirido nos impeça uma
abordagem inovadora.
Abordaremos a última parte da presente nota, ao propor
uma saída, senão uma solução para os pontos apontados.

Realidade virtual

Em paralelo com o uso do tóxico, a realidade virtual tem


sido considerada como uma situação propiciadora de prazer de
alcance incalculável e efeitos ainda não bem avaliados (Burdea &
Coiffet, 1 993).
Certas patologias atuais, entre elas a toxicomania e/ ou ou­
tras modalidades de subjetivação, parecem manipular im agens que
dão acesso ao gozo diretamente ancorado em cada movimento ou
escansão, sem que qualquer pretensão ao sentido sintomático venha
a se cristalizar. Ess.a observação me levou a pesquisar a produção
de imagens sintéticas, a profusão de imagens e a extraordinária ex­
perimentação propiciadas pelo cinema, pela Tv, pelo vídeo, mon­
tagens cada vez mais liberadas de códigos consagrados, ao que pa­
rece criando novas condições de modelização do sujeito e do mun­
do. A tal ponto que a linguagem do vídeo pôde ser identificada
como uma nova modalidade para a qual a realidade não é mais
problema. Chegamos finalmente à chamada realidade virtual a qual,
nos é dito, não se opõe ao real, mas sim aos ideais de verdade. A

86
Célio Garcia

realidade virtual abala nossa relação tradicional com o mundo das


imagens; a era das imagens e da representação cede lugar para o
"tempo do visual" e o tátil. Seria o caso de apontarmos para uma
ruptura nos modos de representação do mundo? O que seria o
"tempo do visual"?
Nova forma de escrita, a realidade virtual faz com que as
imagens precedam o real ao fazer existir o que nunca foi, ao dar
corpo ao que poderá ser. Já que não podemos reduzir a realidade
virtual a um espetáculo (reprodução), ela será dita "escrita do real"
(Quéau, 1994).
O virtual, não sendo tampouco o contrário do real, o si­
mulacro, não bastaria como parâmetro para dis cutir a questão. Nem
podemos nos contentar em denunciar o simulacro, pretendendo
com isso haver solucionado o problema.
Cientistas e industriais já se apoderam do novo artefato,
colocando-o a serviço de métodos de simulação, técnicas para a
formação e treinamento em cirurgia, criação de lugares de encon­
tro (sexual) e comunicação entre humanos. O ciberespaço é citado
como um substituto positivo da droga, ainda que também possa
levar numerosos adeptos a se tornarem dependentes dessa nova
droga.

Por outro lado, como o prazer sexual é fundamentalmente


ligado aos sentidos, é evidente que os investimentos industriais na
área buscam a "mídia" que possa atingir o corpo por inteiro, dando
ao participante a ilusão de estar num mundo real em companhia de
parceiros até então somente sonhados. Por exemplo, já existe o ter­
mo "cibersexo".

O sujei.to que "opera" e a construção de imagens sintéticas

A construção de imagens graças à chamada síntese numéri­


ca opera ponto por ponto, a cada ponto sendo atribuído um valor

87
O Brilho do InFelicidode

numérico logo traduzido na linguagem binária do computador; ten­


do-se como referência o eixo das coordenadas cartesianas, a cons­
trução se faz a partir da bi-climensionalidade. As imagens sintéticas
subvertem a teoria da percepção como modelo técnico de conhe­
cimento ou como visão obj etiva do ser: Com efeito, a imagem
sintética já não imita a coisa em si; a determinação de um cálculo
s endo o bas tante, as imperfeições já não são deformações com
relação ao modelo. Um tal dispositivo já não exige uma co-presen­
ça da coi sa, do olho e da imagem, no espaço de tempo ideal conce­
dido para a tomada de vista. A síntese numérica já não reduz o
sujeito ao ponto geométrico do olho, nem permite ao utilizador
identificar-se com o ponto de vista transcendental do Criador.
Se não há lugar para o · sujeito, o qual desde sempre estava
manifesto no ponto geométrico do olho, no enquadramento do
utilizador numa faixa apropriada para que a percepção operasse,
no chamado ponto de vista transcendental, se não estamos traba­
lhando com este caso, vale dizer que a imagem sintética se impõe
sem deixar margem para que o sujeito opere. Neste caso, a imagem
opera s em abrir qualquer margem em que associaríamos operação
e percepção. Lacan chegou a criar um neologismo para dizer que o
suj eito "operçoit', misto de operação e percepção.
A elaboração aqui trazida visa patologias contemporâneas
para as quais foi usado o termo "novas formas do sintoma" já que
apresentavam form�s assintomáticas em que o caráter estrutural
encontrava-se oculto ou havia desaparecido. Incluímos entre esses
pacien tes manifestações do tipo toxicomania em que imagens
prevalentes es tão coladas ao real, sem deixar margem para que o
sujeito s e sinta algum dia autorizado a intervir na leitura a que chega­
ria graças a um dispositivo do tipo simbólico, escrita que permite
reinscrição. Na. fenomenologia da toxicomania, encontramos de­
poimentos com menções numerosas às imagens que se destacam
sobre um fundo, que dão prazer, que p ovoariam a "viagem" do
usuário. "Bad trip" foi desde sempre uma maneira de dizer que ao

88
Célio Garcia

consumidor não restou outra saída senão a de se entregar às manobras


impostas por certas imagens, perdendo o controle das operações.

Conclusão -

As "novas formas do sintoma" apresentando-se de prefe­


rência com uma envoltura social, teremos no nível dos laços sociais
ocasião de evidência da patologia em questão. Mais que na cura
analítica, será no nível dessa fenomenologia social que tais manifes­
tações terão que ser entendidas. A revolta de jovens frente aos mo­
delos familiares, os comportamentos e rótulos -"Sou um toxicô­
mano" - que identificam o próprio sujeito, em vez de passarem
os interessados pelas identificações dirigidas a figuras mais velhas
habitualmente encontradas na familia, afastamento do convívio fa­
miliar, tudo isso compõe o quadro a que nos referimos. Tais pato­
logias atendem maciçamente demandas que provêm do Outro so­
cial; o gozo é garantido graças a resíduos do discurso da ciência. O
sujeito já não se faz uma pergunta, nem o sintoma pode ser tomado
em termos de discurso em que a verdade finalmente se manifestaria.
Se as tatuagens· e as insígnias marcam no corpo um lugar no
grupo, nenhuma menção é feita a um Outro simbólico; assim tam­
bém as inscrições nos muros (pichações ) são na maioria das vezes
desprovidas de toda sign ificação, sem menção a um "tesouro de
significantes" a que se recorre, ou "lugar da Lei" que a nós se im­
põe.
Atendendo a esta sugestão de "nova escrita do real", ao
desaparecimento da supremacia do simbólico, à modificação da
noção de estrutura clínica, e à redefinição do sintoma, pensamos
em modelo provido de autonomia imaginária em detrimento de base
simbólica, ou ainda, como poderia ter dito Freud em se tratando de
imagens, à maneira de um "holograma", sem passar pelo modelo
ótico. Para resumir, tomo como exemplo o labirinto.

89
O Biilho do InFelir:idode

No interior do labirinto, Teseu tratou de desenrolar o fio


fornecido por Ariadne, marcando assim seu caminho, retificando
(intervenção do simbólico) de alguma maneira o tortuoso e extravagante
labirinto; só assim conseguiria sair do labirinto e derrotar o Minotauro.
Labirinto de Teseu, labirinto da realidade virtua� labirinto
da "viagem", o consumidor de drogas entra no labirinto sem pen­
sar dele sair; quer conhecer os tortuosos caminhos, as bifurcações
todas elas, à direita e à esquerda. Vai e volta a cada bifurcação,
atravessando enganos, engodas, descaminhos, locahnente envolvi­
do com a verdade a cada canto (autonomia do imaginário) , maravilha­
do que está pela hiper-realidade virtuahnente dada.
Os consumidores de drogas parecem ter se antecipado tão
somente ao que chamamos atuahnente de "realidade virtual no
ciberespaço", "hiper-texto no espaço literário".

Referêndas bibliográficas

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ZAFIROPOULOS, M. & DELRIEU, A. Le toxicomane n 'exifte pa1. Paris,
Anthropos, 1 996.
O SOCIAL E AS NOVAS FORMAS DO
SINTOMA: AS TOXICOMANIAS

Fernando Teixeira Grossi (relator)


Membro da Escola Brasileira de Psicanálise
Cristina Sandra Pinelli Nogueira
Membro aderente da Escola Brasileira de Psicanálise

Introdução

A descoberta analítica se deu a partir do encontro do psica­


nalista · com o s i ntoma . Em 1933, Freud nas Conferências
introdutórias sobre a psicanálise, em "A dissecção da personalidade
psíquica", situa assim esse momento inaugural:
Não foi uma coisa sem importância, para o curso do desenvolvimento da
psicanálise ou para a acolhida que ela encontrou, ofato de ter começado seu
trabalho sobre aquilo que é, dentre todos os conteúdos da mente, o mais
estranho ao eu - sobre os sintomas. [. . .] Os sintomas são derivados do
recalcado, são por assim dizyr, seus representantes perante o eu; mas o
recalcado é estrangeiro para o eu. [... ] A trajetória conduziu dos sintomas
ao inconsciente, à vida das pulsões, à sexualidade '�

Essa trajetória sublinhada por Freud demonstra que o inte­


ress·e central da psicanálise, como prática do discurso, se atém à
experiência do sujeito, acentuada por Lacan como ponto em que
devemos nos fiar, já que o próprio sujeito é a matéria única do trabalho
psicanalítico (1966, p. 61).
O Brilho da InFelicidade

Portanto o essencial da prática psicanalítica se dirige às es­


tratégias do sujeito para aliviá-lo do encontro com o real. Sabemos
que uma dessas estratégias cabe ao sintoma. Em "A Terceira" (1975b)
Lacan define o sintoma corno sendo aquilo que vem do real. Defi­
nição muito próxima da estabelecida por Freud em "Inibição Sin­
toma e Angústia": o sintoma é um dizer do isso no eu, o que, por
sua vez, faz consonância à afirmação de Lacan em sua conferência
de Yale : o isso é o real (1976, p. 40).

As novas formas do sintoma

O fundamental a ser destacado é o fato dessa estratégia


realizada pelo sintoma manter estreitos laços com sua época. O
significante laço nos remete à definição de discurso como laço social
(Lacan, 1975, p. 43).
Nesse sentido, nossa época está marcada pelas incidências
do discurso da ciência no discurso do mestre, no qual o agente é o
significante com sua potência.
Essa modificação, produzida pelo discurso da ciência, é de­
nominada por Lacan como discurso capitalista, no qual se observa
uma mudança no agente do discurso, de S 1 para f,, clara alusão à
perda da eficácia do poder do significante como agente do discur­
so, e uma moderna máquina de saber produzindo objeto: S/ a.

si S2 g S2

'1 Xai
············· -- · �

� // a si

Discurso do Mestre Discurso do Capitalista

92
Fernando Teixeira Grossi & Cristina Nogueira

O que nos interessa como psicanalistas é sabermos: 1nc1-


dência dessa conjunção discursiva no sujeito do inconsciente?
A época vitoriana de Freud é compatível com a eficácia do
mecanismo do recalque nas formações do sintoma, época áurea do
reinado dos sign ificantes mestres, determinando incidências nos la­
ços sociais e no porvir dos sintomas - época dos sintomas histéri­
cos de conversão.
Podemos inferir que o sentido do sintoma era plenamente
compatível com a associação significante, e que pudesse ser plena­
mente interpretado na diacronia significante. "Foi como uma bofeta­
da", sentença significante de uma neuralgia facial - no caso Frau Cecilie
(Freud, 1893-5, p. 227) nos dá um exemplo desse poder significante.
Em nosso tempo é possível reproduzirmos sintomas histé­
ricos como nos tempos de Charcot?
Uma coisa é certa: tanto a ciência quanto o discurso do
capitalismo, cada um à sua maneira, pregam a revogação do in­
consciente. A ciência, pela vertente significante, evacua a responsabi­
lidade do sujeito. É o caso atual das depressões; ao serem formula­
das como doença, como um déficit de neuro-hormônios transmis­
sores, a ciência retira a responsabilidade do sujeito, apagando sua
subjetividade, ign orando sua singularidade e determinando um
mesmo tratamento para todos.
O sujeito do inconsciente é desconsiderado, acarretando
incidências sobre o estatuto da divisão subjetiva. A ciência realiza
sobre os sintomas um apagamento da incidência simbólica. Por
exemplo, a noção de estranheza, que acompanhou a noção freudiana
de sintoma, abrindo o chamamento ao Outro, sofre uma torção
diferente daquela feita pela obsessão, que implica a participação do
eu e de seus mecanismos, transformando-os numa familiaridade.
No sintoma obsessivo constatamos uma força pulsional substitutiva,
responsável por seu caráter de compulsão e repetição. Não estaríamos

93
O Brilho da ln.Felicidade

nessas novas formas de sintomas diante de uma nova modalidade


de torção, que se daria pela própria subversão do mecanismo do
recalque na gênese de suas determinações?
A metáfora não está no posto de comando dessas novas
formações sintomáticas, isto é certo. Isso posto, trará como efeito
uma formação sintomática, ao avesso das formações sintomáticas
do inconsciente, inclus ive do suj eito suposto saber, denominado
por Lacan como uma formação sintomática do inconsciente (1988,
p. 1 32) . Um sintoma com um saber negativo, que impede a suposi­
ção do saber ao Outro, pivô da trans ferência, imaginarizando o real
veiculado, coloca questões sobre o lugar da interpretação, assun
como o consentimento com o inconsciente.
Esta é a bas e da cultura da medicalização que tem compli­
cado singularmente o campo da demanda, como já situou Lacan:

A ciência está produzindo cettos e:feitos que deixam de implicar cenas


apostas. Materializemo-lo sob aforma dos diversosprodutos que vão desde
os tranqüilizantes até os alucinógenos. Isso complica singularmente o
problema do que até agora se qualificou, ele modo puramente policial, como
toxicomania. Se um e/ia estivéssemos de posse de um produto que nos
permita recolher ieformações sobre o mundo exterior, não vqo como uma
contenfãO policialpoderia exercer-se (1 966b, p. 93 ) .

Por outro lado, o discurso do capitalismo realiza sua opera­


ção de minimizar a divisão subjetiva pelo lado do objeto. O reino
do consumo é uma operação complexa em que o suj eito é reduzi­
do ao consumidor, remanej ando a divisão subjetiva no sentido de
uma circunstância de um encontro com os objetos do consumo.
Não há afânise do suj eito entre um si gnificante e outro, como é
demonstrado pelo dis curso do inconsciente.
Es tamos num tempo de um fort-da moderno, agenciado
por obj etos de consumo. Não gos taríamos de passar uma visão

94
Fernando Teixeira Grossi & Cristina Nog11eira

nos tálgica da efetividade da noção de representação. O próprio


Lacan nos aponta a hipótese de uma esperança em uma vida mais
satis fatória, uma vez que passássemos por debaixo da noção de
representação" (1 974, p. 42) . Aí ele se referia aos gadgets. A saber que
os gadgets capturam algo do desej o humano por se inserirem na
cadeia metonímica dos produtos, abrindo a dimensão do resto,
operador fundamental da causa do desejo.
O problema reside no apelo de fazer Um com os produ­
tos, busca que Lacan comparou à observação de se tomar o auto­
móvel como uma mulher - uma falsa mulher (ibid.), fazendo alu­
são obviamente ao falo e com a ressalva de que o sujeito, tomando
o automóvel como uma falsa mulher, estaria livre das interpelações
do Outro sexo, modalidade de driblar a castração.
O que está em j ogo nessa adesividade do sujeito com os
obj etos de consumo é a subversão da noção de obj eto a como
causa do desej o. É o que podemos observar: um empobrecimento
da função do fantasma nessa clínica. Aqui não há surpresa, a satis­
fação não é regrada pela lógica do fantasma; há um curto circuito
na gramática pulsional. Não observamos uma decalagem no gozo; a
satisfação esperada é obtida: "Beber mais uma". A lógica é a da
soma, na qual se perfila a consumação do mais de gozar, sem novi­
dade, se1npre o mesmo: mesma droga, mesmo copo.
A escrita que Lacan propõe para o discurso do Capitalismo é
a de um trajeto fechado sobre si mesmo, sem ponto de fuga. Não há
furo no tonel. Nesse discurso podemos ler que o sujeito, estando na
posição dominante, tem acesso ao gozo sem passar pelo fantasma. O
saber produz objeto para circular no mercado do gozo, sofrendo uin
efeito de atração pela produção dos objetos, mais-de-gozar. Por isso
Lacan fez a observação de que se nos encontrássemos na posse de um
produto que nos permitisse recolher informações sobre o mundo,
dificilmente abriríamos mão dele. É a operação de reduzir o saber a
um fazer, a um manejo com o objeto de consumo.

95
O Brilho da lnFelitidade

Esse aspecto é muito elucidativo no filme Trainspotting.


Referimo-nos aqui ao argumento do p ersonagem principal, no
momento em que fala da escolha da droga:

Escolher uma vida, escolher um emprego, escolher uma carreira, umafamí­


lia. Escolher uma televisão grande, máquina de lavar, carros, toca-discos,
abridor de lata elétnco. Escolher sa,íde, colesterol baixo, seguro dentário.
Escolherpre.rtaçàl1.ffixas para pagar. Escolher uma casa. Escolher amigps.
Escolher roll/)as e acessórios. Escolher um ternofeito do melhor tecido. Se
masturbar domingo de manhã pensando na vida. Sentar no sofá e ficar
vendo televisão. Comer um monte de porcarias. . . acabar apodrecendo no
final Escolher umafamília e se envergonhar dosfilhos egoístas que pôs no
mundo para substitui-lo. Escolherfuturo, escolher uma vida. Por que eu
iria querer isto ? Preferi não ter uma vida. Preferi ter outra coisa. E
motivos. . . Não há motivos. Para que motivos, se tem heroína?''.

Essa redução do saber a um saber fazer traz como conse­


qüência um sujeito sem sintoma, sem divisão subj etiva, sem vacila­
ção do gozo, provocado pela tela fantasmática, implicando que o
gozo es teja à mão, podendo ser � corporado.

O soda[ e a nomeação

Verificamos na clinica das toxicomanias que ao operarmos


um deslocamento em que a droga sai de cena, há o surgimento de
questões tais como fenômenos psicossomáticos e depressões, indi­
.cando a problemática do real que a identificação ao "ser toxicôma­
no" tenta esconder. Esse aspecto remete à função paterna cuja
efetividade pode evitar a cristalização des ta orgia imaginária sob a
forma de um real prematuro (Santiago, 1 995) .

A problemática lacaniana da droga se insere nessa mudança


de perspectiva do lugar do pai na civilização, trazendo conseqüênci­
as na constituição do sintoma. Faz-se necessário o es tabelecimento
Fernando Teixeira Grossi & Cristina Nogueira

de uma estrutura psíquica para possibilitar a passagem da natureza à


cultura; é a montagem do Complexo de Édipo: a lei-do-pai que
proporciona ao sujeito o acesso à linguagem e, conseqüentemente,
à cultura.
Lacan desde 1 938 destaca o papel primordial da familia na
transmissão da cultura como sendo aquilo que "preside os proces­
sos fundamentais do desenvolvimento psíquico" (Lacan, 1 990) . Neste
processo a maior importância cabe aos lugares e funções ocupados
pelas personagens da novela familiar. Os lugares de pai e de mãe
são operantes e efetivos já que eles se referem a uma relação lógica
a uma terceira instância (Garcia, 1 997) . Portanto a familia tem como
função refrear o gozo, função da castração.
É pelo exercício desta função, que aquele que advém na sua condição de
vivente enquanto produto sexual, será admitido a um lugar simbólico, que
lhe assinala um laço de parentesco, uma posição nas gerações e uma identi­
dade civil Desse produto sexual, afamília tem a tarefa defazer advir um
.r,yeito do de.rifo, assegurando uma subscrição ao inconsciente " (Suárez,
1 992, p. 1 3).

Nesse final de século constatamos uma crise do lugar do


p ai e de sua função de nomeação. Nesse declínio da função paterna,
estranhamente o social vem fazer suplência a essa falha da nomea­
ção paterna: "Ser nomeado de alguma coisa eis o que coloca uma
ordem que se encontra efetivamente, em sê substituir ao nome do
pai" (Lacan, 1 976).
Esta maneira de utilização do social é revelada na apresen­
tação: '.'Eu sou toxicômano", que advém no lugar do nome pró­
prio, num discurso sem falhas. O sujeito aí se encontra sem perda
em seu ser. O efeito deste tipo de identificação é o de congelar o
discurso (Viganó & Verdicchio, 1 995) .
O toxicômano padece das conseqüências da desvaloriza­
ção da função paterna. Se o sintoma comporta um gozo como

97
O Brilho da InFeliddade

opacidade subjetiva, a droga indica um gozo que não é oculto; o


toxicômano só quer um gozo: o do seu próprio corpo e esse é todo.
O gozo do toxicômano não responde a esta operação do
simbólico, mas efetivamente ao que vem no lugar da falha do nome
do pai. É uma solução encontrada: a partir de um gozo se obtém uma
nomeação, utilizando significantes produzidos pelo Outro social.

Referências bibliográficas

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VIGANÓ, C & VERDICCHIO, O. "La clínica de Jacques Lacan en un Centro
para toxicomanos y alcoholicos" . Em: Sl!J'"eilo, gocey modernidad III. Op. cit.

98
ECLIPSE DO DESEJO

Clara Lucia Inem


Membro-aderente da Escola Brasileira de Psicanálise

Eclipse é o fenômeno em que um astro deixa de ser visível


totalinente ou em parte. Eclipsar quer dizer esconder, encobrir,
ocultar-se, desaparecer. Uma vez que esta estra�égia de eclipse assi­
nala um nada querer saber e visto que aquilo que conduz um sujeito à
análise é o endereçamento a um suj eito suposto saber, o que esse
sujeito dito toxicômano demanda? Sabe-se que toda demanda é
demanda de amor; entretanto o sujeito, preso a esse Outro absolu­
to do qual é complemento, serve-se da droga para encobrir a
incompletude e dirige um apelo ao Outro para que intervenha nes­
sa relação narcísica com o objeto. É isso que de início o toxicôma­
no vai buscar ao procurar ajuda: uma dose de pai real que interve­
nha em sua relação com um objeto que o consome; algu ém que
faça cessar os efeitos da castração quando cessam os efeitos da
droga. A falta de uma substância e não uma falta a ter ou falta a ser;
isto não tem a ver com o inconsciente mas com sua recusa. Ao se
definir como sujeito por uma prática codificada pelo Outro, ele nos
oculta a estrutura e seu sintoma. Deste modo, o acesso ao tratamen­
to pelo enunciado "Eu sou toxicômano" é uma tentativa de eclip­
sar seu sintoma, ocultá-lo, encobri-lo. Ele faz da droga a razão de
sua demanda a fim de eclipsar a causa que provoca a droga como
resposta (Soler & Freda, 1 986).
O Brilho da lnFelicidode

A droga aparece aí para colocar na s ombra o que surge:


prática de escape, ocultação de algo, es tratégia de fuga. O toxicô­
mano tenta persuadir a todos de seu encon tro com o impos sível de
suportar e só tem uma resposta - drogar-se e/ ou desaparecer -,
mas e s s e fenômeno eclipsar se dá através de um gozo. "É a clínica
do eclipse face ao impossível suportar" (idem, p. 48) .

A demanda de felicidade e a promessa do mercado

Freud em s eu artigo "O mal-es tar na civilização" (1 930)


aborda a ques tão da felicidade e do sofrimento, distinguindo três
fontes de sofrimento: nosso próprio corpo, condenado à decadên­
cia e à dissolução e abrigando o sofrimento e a angústia; as forças
des truidoras do mundo exterior; e, finalmente, a ameaça que cons­
titui nossos relacionamentos com os outros. O sofrimento que pro­
vém do nosso relacionamento com o outro é mais penoso do que
qualquer outro. S egundo Freud,

Há vários métodos para evitar o sofrimento, contudo os métodos mais


interessantes são os que procuram influenciar nosso próprio organismo. O
mais eficaz é a intoxicação. O serviço prestado pelos veículos intoxicantes
na luta pelafelicidade e no afastamento da desgraça é tão altamente apre­
ciado como um benefício, que tantos indivíduos quanto povos lhes concede­
ram um lugar permanente na economia da libido. Com o auxílio desses
amortecedores de preocupações, épossível, em qualquer ocasião, afastar-se da
pressão da realidade e encontrar refúgio num mundo próprio " (1 930, p. 85).

Podemos então situar a droga como tentativa de resposta


àquilo que os homens mos tram ser o propósito e a intenção de suas
vidas : a felicidade. A busca de felicidade s e cons titui numa eterna
demanda e a resposta de Freud é a de que não há felicidade porém
satis fação, e esta satis fação revela um paradoxo estrutural, pois con­
tém no seu boj o a pulsão de morte e vai contra o bem-estar do
sujeito.

100
Clara L,1cia ]nem

O mal-estar na civilização, tratado por Freud a partir do


paradoxo do supereu, exige cada vez mais renúncias pulsionais. Para
dar conta deste mal-estar, existem atualmente várias drogas que
conjugam de um modo mais ou menos eficaz a relação custo-be­
neficio que rege o mercado capitalista. Como afirma Joel Birman:
Antes de mais nada, as drogas se transformaram numa indústria poderosa
e num comércio efluente. As drogas criaram um dos maiores negócios, no
registro da economia política, na segunda metade deste século. Existem,
assim, intereues imensos e incalculáveis inscritos nos circuitos da produ­
ção, da circulação, da distribuição e do consumo de drogas. No entanto as
drogas não são mercadorias como as outras, pois inscrevem em si uma marca
de magia que não se pode subestimar. Este traço mágico é justamente
aquilo que confere às drogas o seu valor espec(!ico, no sentido estrito de seu
valor de uso e de troca " (1 988, p. 1 O).

Sendo a droga uma mercadoria regida pelas leis do merca­


do, a toxicomania aparece na cena social como o paradigm a do
discurso capitalista ou mesmo como um paradigm a do sintoma
moderno, aquele que, organizando o consumo, anula o sujeito. As­
sim, toxicómano é um sign ificante que nomeia não somente uma prá­
tica de consumo como "con-some" o sujeito. É a prática do "Sou
onde não penso" como recusa ao inconsciente. Ou seja, uma práti­
ca de ruptura entre o sujeito e o sign ificante fálico, aquele que intro­
duz a castração.
É preciso que se indague sobre o estatuto desse sujeito dito
toxicômano, que, em seu apego e devoção a um produto, ratifica o
discurso capitalista visto que, assim como o proletário, não tem
outra escolha senão trabalhar para o Outro, para o gozo do Outro.
Nesse sentido a droga dá acesso a um gozo que não passa pelo
corpo do Outro como sexual e sim pelo próprio corpo, um gozo
auto-erótico, tendo em comum com a pulsão a anulação do outro.
Nomear-se como toxicômano é também um modo de consentir
com uma forma de exclusão e de ser design ado por uma forma de
gozar (Soler, 1995).

101
O Brilho da InFelicidade

A experiência clínica indica que esse sujeito dito toxicôma­


no encontra-se unificado por um modo particular de gozo. O so­
frimento a que este se refere não tem a ver com o sujeito dividido
por um conflito entre os ideais do eu e as exigências pulsionais. A
droga assim como a produção extensa e insaciável de objetos de
consumo se propõem a suturar a divisão do suj eito. Como sinaliza
Colette Soler, o corpo mortificado em seu gozo passa a fazer parte
de um capital cuja expressão é a suspensão do gozo: a mais-valia.
Lacan nos diz que a mais-valia é um "plus-de-gozo" que adquire o
estatuto de causa de desej o, "a causa da produção extensiva e, por
conseguinte, insaciável de objetos de consumo" (1 974, p. 59).
Se, por um lado, a toxicomania aparece no cenário social
como paradigma do discurso capitalista, por outro, as ins tituições
nomeadas para tratar os toxicômanos ratificam a generalização, a
promoção e a consistência dos sign ificantes toxicómano e toxicomania,
uma vez que a dita categoria atende a um mercado promissor (Álvarez
& Picario, 1 994) .
Frente a algu ns dispositivos de atenção que perpetuam a
monotonia e a cronicidade da "intoxicação", o dispositivo analítico
in troduz a diversidade, pois ao contrário do discurso capitalista, a
psicanálise questiona as sutilezas do coletivo em cada suj eito, abrin­
do espaço através de sua experiência ao desej o de cada ·um.

Uma dor lancinante

Luiz veio nos procurar após várias tentativas de tratamen­


to; havia freqüentado as "salas" e/ ou "grupos de mútua ajuda",
tendo se submetido ao que ele chamou de "lavagem cerebral". Na
ocasião da entrevista, "es tava limpo", quer dizer, não fazia uso de
drogas há aproximadamente quatro meses. Há cerca de um ano
havia feito conosco algumas entrevis tas preliminares e interrompido.

102
Clara Luâa lne111

Nesta ocasião, Luiz consumia, além de cocaína, álcool e anfetaminas.


Seu envolvimento com as drogas teve início na adolescência e per­
durou até a idade adulta. Aos 43 anos, ele se considera um "depen­
dente químico" e um "romântico irrecuperável".
Após vários anos de consumo e tentativas de parar, Luiz de­
cidiu procurar ajuda. Na primeira vez que nos procurou, pedia-nos
para ajudá-lo a recuperar o controle sobre as drogas , particular­
mente a cocaína. Segundo ele, durante vinte anos conseguiu admi­
nistrar o consumo, mas agora perdera "o controle". "Não posso
parar! Eu não posso mais com ela!", "Me ajude a me livrar dela!".
Esta era a maneira pela qual Luiz sinalizava seu mal-es tar, no qual
pela primeira vez a simulação de controle do objeto começou a
falhar, dando vazão ao imperativo do gozo.
Ao cabo de algumas entrevistas, Luiz teve o que ele deno­
minou "uma recaída"; após esta re-caída na angústia, interrompeu as
entrevistas. Ao nos procurar novamente, após um ano, justifica-se:
''A última vez que estive aqui no seu consultório saí meio confuso e
com algumas dúvidas que me fizeram pensar; talvez agora, você
possa me ajudar". E acrescenta: "Desta vez eu preciso falar de coi­
sas que não pos so revelar nas salas, diante de várias pes soas, e que
são difíceis de falar até mesmo para uma analis ta".
O fato de não estar mais se drogando o colocou frente a
uma "angústia insuportável". Diz não saber o que está ocorrendo
com a sua "virilidade"; indaga se o fato de ter feito uso abusivo de
drogas durante muitos anos poderia torná-lo "impotente"; questio­
na sua condição de toxicômano e pergunta o porquê de não conse­
guir "consumir o ato sexual"; dá-se conta do lapso e corrige: "con­
sumar o ato".
Vivendo atualmente com uma companheira "mais jovem e
bonita", não consegue "ter desejo sexual". Relata que anteriormen­
te, sob o efeito da cocaína, tinha uma "vida sexual ativa". Às vezes

103
O B,ilho da lnFelicidade

pensa em se separar da mulher, pois sente-se muito angustiado por


deixá-la "em falta". Esta situação o levou a procurar um médico
"especialista" para tratar do que chamou de "sua impotência". Sub­
meteu-se a vários exames e nada foi constatado. A partir daí resol­
veu procurar um analista.
Nas entrevistas subseqüentes, relata-nos uma experiência
homossexual na puberdade, fato que ficou marcado devido a "dor
lancinante que sentiu no momento da penetração". A partir desta
experiência só conseguia ter relações sexuais com mulheres e
"penetrá-las", se tivesse feito uso de cocaína.
Pode-se depreender que para Luiz a droga permitia diluir a
angústia sexual e liberá-lo de seu compromisso frente ao seu ser
sexual. A droga era uma resposta aos impasses recorrentes do con­
fronto com o outro sexo, encontro faltoso por excelência. Desse
modo, seu encontro com a mulher só era possível pelo recurso à
droga, pelo desvio do gozo fálico.
As palavras de Hugo Freda acerca do sign ificante toxicô­
mano são elucidativas:
Pela antecipação de um sinal - uso de drogas - o Sff/eito oculta seu
sintoma. Por exemplo: como ser um homem para uma mulher? Resposta:
ser toxicómano. Se a verdadeira questão para esse stfieito é apropriar-se de
um significante a fim de poder estar com uma mulher, não é sustentando
sua toxicomania que poderá resolvê-la, visto que éjustamente o ser toxicó­
mano que lhe permitiu se afastar da questão " (1988, p. 1 8).

Se antes a droga se colocava como resposta para esse sujei­


to e o gozo não passava pelo corpo do Outro mas pelo próprio
corpo, se a droga até então era o seu parceiro, a exper1ência psicana­
lítica permitirá ao sujeito confrontar-se com o seu desejo, fazendo
emergir o inconsciente. ,

104
Clara Lr,cia Inem

N OTA

1. A expressão "eclipse do desejo" é utilizada como metáfora, a droga enco­


brindo o desejo do sujeito, o gozo em detrimento do desejo. Não se trata do
conceito de afânise e/ ou fading.

Referências bibliográficas

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SOLER, C. & FREDA , H. "Toxicomanie, toxicomanes", LÁne, n. 27, 1986,
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105
TOXICOMANIA - UM GOZO CÍNICO?

Ana Martha Wilson Maia


Membro aderente da Escola Brasileira de Psicanálise

O mal-estar e a droga
A falicidade, no reduzido .rentido em que a reconhecemo.r como po.r.ri­
vel, con.rtitui um problema da economia da libido do individuo. Não
exi.rte uma regra de ouro que .re aplique a todo.r: todo homem tem de
de.rcobnr por .ri me.rmo de que modo e.rpec!fico ele pode .rer .ralvo "
(Freud, 1 930, p. 1 03) .

Sobre os pilares da teoria pulsional, construída ao longo de


sua obra, Freud sustenta que a felicidade consiste na ilusão do en­
contro com o objeto da pulsão. Ser feliz é uma imposição do prin­
cípio do prazer que jamais será plenamente realizada, mesmo que o
sujeito utilize todos os seus es forços. A felicidade consiste num
momento efêmero de satis fação pulsional, sendo "possível apenas
como uma manifestação episódica" (1 930, p. 95 ). Passando do tex­
to freudiano ao Seminário em que Lacan (1973) descreve o caráter
circular do circuito pulsional, podemos pensar que é quando a pulsão
se encontra numa tênue distância daquilo que tampona o objeto a,
que se dá essa ilusão de encontro, a felicidade. E o eterno movi­
mento de vaivém pulsional, o que Freud (1920) chama de "curto­
circuito", é a pulsão insistindo, persistindo nessa busca. Freud (1930)
nos mostra como é singular o caminho da felicidade. Uma vez que
não existe "uma regra de ouro", cada sujeito precisa descobrir como
O Brilho da lnFelicidade

"pode ser salvo", ou seja, cada qual escolherá, dentro de sua estru­
tura clínica, o que fazer com seu gozo ao se deparar com a castra­
ção e com o mal-estar ( Unbehagen) resultante do antagonismo irre­
mediável que existe entre a pulsão e a cultura (Kultur).
O aforismo lacaniano "a relação sexual não existe" se refe­
re a toda e qualquer relação entre sujeitos, não apenas . a parceiros
sexuais. Numa conferência sobre a feminilidade, Freud fala da im­
possibilidade da plenitude no amor, como ilustra a seguinte citação:
"Tem-se a impressão de que o amor do homem e o amor da
mulher psicologicamente sofrem de uma diferença de fase" (1932,
p. 164). Há um descompasso presente em todas as relações -
entre homem e mulher, mãe e filho, pai e filho etc. - que podemos
deduzir a partir da teoria freudiana acerca da sexualidade feminina
(Maia, 1996). Neste sentido, os parceiros sexuais não podem ler
juntos uma partitura, como na música. Não existe uma partitura
amorosa. Cada um lê e toca sozinho a sua parte no amor.

Toxicomania
''..figo pelas mesmas trilhas do pensamento. No enta'!to elas parecem
agora semeadas de rosas " (Benjamin, 1 984, p. 48) .

Há duas importantes referências psicanalíticas que tratam


da relação do sujeito com a droga. No artigo ''A tendência universal
à depreciação na esfera do amor" (1912), Freud apresenta o que
seria para ele um modelo de casamento feliz, a saber, a relação do
sujeito com o vinho, e então indaga: "Por que a relação do amante
com seu objeto sexual será tão profundamente diferente?" (ibid., p.
171). Leio assim sua pergunta: que lugar ocupa o vinho na vida do
sujeito e o que pode o vinho lhe oferecer que ele não encontra no
objeto sexual?

108
Ana Martha Wilson Maia

A outra referência é a seguinte frase de Lacan, dita na sessão


de abertura das Jornadas de Estudos dos Cartéis, na Escola Freudiana
de Paris, em 1 975, quando definiu a droga como aquilo que "per­
mite romper o casamento com a coisa de fazer pipi" (1975, p. 9) .
Romper o casamento com o gozo fálico leva o suj eito necessaria­
mente ao desencontro da relação s exual: no amor, a mulher se ofe­
rece como falo para o homem, ela se faz de falo, ela representa para
seu parceiro o falo inexis tente da mãe, ela faz máscara de ser, mas ela
não o é, assim como o homem é para ela aquele que porta o falo
em seu corpo, sob a forma imaginária do pênis, ele faz máscara de
ter, mas ele não possui o falo (Maia, 1 996) . Não tendo e não sendo
verdadeiramente o falo, o homem e a mulher vivem no amor um
descompasso. Neste sentido, a função da droga é apagar a questão
do desej o do Outro que o gozo fálico impõe. A droga é um par­
ceiro privilegiado que permite ao sujeito fazer o curto-circuito do
enigm a do O utro sexo e do Outro da linguagem.

Freud já havia observado a importância da oralidade nos


suj eitos que, fixados numa satis fação pulsional oral, teriam uma pre­
disposição, um "poderoso motivo para beber e fumar" (1905, p.
1 87) . No matrimônio com a garrafa, trata-se de um gozo fálico. O
alcoólatra não rompeu com a oralidade e por isso permanece fiel à
garrafa. Porém na toxicomania o sujeito não está casado com a
droga. Se no início ele a escolhe, entre outras, num momento poste­
rior ele perde a sutileza dessa escolha e, infiel, utiliza a que estiver à mão.

A experiência clínica e a vida cotidiana mostram que, diante


da falta es trutural, para compens ar a p erda do obj eto, o suj eito
pode escolher o matrimônio com a garrafa ou selecionar uma dro­
ga específica para o seu gozo - a cocaína, a maconha, o crack, o
haxixe, obj etos procurados para velar a falta e tamponar a angústia.
"Che vuoz?", o que o Outro quer de mim? Não há como responder essa
questão, a não ser com a fantasia. E no entanto o sujeito nunca o saberá
e sempre precisará estar dirigido ao Outro para saber de seu desej o.

109
O Brilho da InFelicidade

Para Miller (1995), o consumo de drogas é uma tentativa


de romper com o gozo fálico e obter um gozo sem passar pelo
Outro. Ele conclui que o objeto droga concerne mais ao sujeito do
gozo do que ao sujeito da palavra. Nesse mais-de-gozar, a droga
materializa o gozo permitindo ao sujeito fugir da castração. Na
toxicomania não há foraclusão como a sombra que recai sobre o
objeto na melancolia, ou nas vozes na paranóia, ou ainda no corpo
na esquizofrenia. Anulando o Outro, a droga promete uma saída
para a angústia, uma "foraclusão química" (Ribeiro, 1997), um alí­
vio para o mal-estar, o que podemos deduzir dos diversos estudos
e publicações que relatam experiências com drogas, como Paraísos
Artificiais de Baudelaire, Confissões de um comedor de ópio de Thomas de
Quincey, A vida material de Marguerite Duras, Ópio de Jean Cocteau
e Ao mofo nu de William Borroughs.
Haxixe é uma coletânea de artigos e de relatórios de Walter
Benjamin sobre embriaguez e experiências com drogas. Para com­
preender "a enigmática felicidade proporcionada pelo haxixe", diz
Benjamin, é preciso "evocar o fio de Ariadne. Quanto prazer pode
caber no simples ato de desenrolar um novelo! Profundo parentes­
co entre esse prazer e o da droga, assim como o da criação"(l 972,
p. 33). Para ajudar Teseu a sair do labirinto depois de matar o
Minotauro, Ariadne, filha de Minos e Pasífae, entregou-lhe um no­
velo que ele desenrolou ao andar pelo labirinto, marcando · assi,m o
caminho de volta. Esse novelo de fio nos remete a "Infância em
Berlim por volta de 1900", narrativa autobiográfica em que Benja­
min relata suas idas ao armário, "uma aventura atraente" porque
dentro desse espaço secreto e misterioso, ele conseguia encontrar,
entre o amontoado de roupas, as meias que eram guardadas enro­
ladas como uma bolsa. A "empolgante revelação" consistia na se­
gunda etapa da brincadeira, momento em que ele desembrulhava o
par de meias, "tradição" enrolada que assim deixava de existir. "Não
me cansava de provar aquela verdade enigmática que a forma e o

110
Ana Martha Wilson Maia

conteúdo, que o invólucro e o interior, que a 'tradição' e a bolsa,


eram uma única coisa. Uma única coisa - e, sem dúvida, uma
terceira: aquela meia em que ambos haviam se convertido" (1 987,
p. 1 22). Benjamin compara essa experiência "aos contos de fadas,
que, do mesmo modo, me convidavam para o mundo dos espíri­
tos ou da magia para afinal me devolver pronta e infalivelmente à
realidade crua, que me acolhia com tanto consolo quanto um par
de meias" (ibid., p. 123). Não é à toa que Benjamin associa o prazer
à droga, à criação e às brincadeiras e histórias infantis. O novelo de
fio e o par de meias proporcionam, num jogo simbólico, o prazer
de ver o objeto se afastar e se aproximar, des�parecer e aparecer,
como no Fort-Da descrito por Freud (1920). Também na criação se
contorna o vazio do objeto, fazendo surgir um outro. Esse é o
destino da pulsão. Deste modo, Benjamin fala de um vaivém, o
circuito da pulsão que ele experimentou com o haxixe. Ele conse­
guia provar a "verdade enigm ática" da droga e depois retornar à
"realidade crua".

Um gozo cínico ?

Há alguns anos atrás, uma mãe procurou ajuda para seu


filho adolescente, conforme a indicação do psiquiatra. No decorrer
das entrevistas, a analista descobriu que, por trás do medicamento
para psicose, a "loucura" também estava associada ao uso de cocaína.
Rodrigo, como vou chamá-lo, não estava mais estudando, não se
adaptava ao trabalho na empresa do pai e só saía de casa para as
consultas psiquiátricas acompanhado da mãe porque, sempre que
possível, escapava para comprar a droga. Isolado em seu mundo, o
quarto, ele recebia poucos amigos, os que passavam pelo crivo
materno. No entanto, dizendo-se mais esperto do que a mãe, conse­
guia enganá-la com uma namorada que tinha permissão para visitá-lo,
quando fazia a mediação entre ele e o traficante.

111
O Brilho da InFeliridatk

No momento em que a analista pretendia fazer contato


com o psiquiatra, Rodrigo não quis mais ser atendido por ele. N o
início, além d a medicação havia uma proposta psicoterápica, até
que ele não quis mais conversar com o psiquiatra, que sugeriu à mãe
um atendimento psicológico. Rodrigo era amigo de um paciente da
analis ta e foi ele mesmo que lhe pediu seu telefone.
Para dar prossegu imento ao atendimento psiquiátrico, a
analis ta indicou um psiquiatra, porém a mãe de Rodrigo hesitou em
levá-lo, talvez devido ao vínculo com o ex-psiquiatra dele. Ela tele­
fonou para a analista dizendo que havia descoberto que, quando ele
ia para as entrevistas, subia com a namorada o morro situado no
bairro onde s e localizava seu consultório. Disse que ele não iria con­
tinuar, pelo menos não naquele momento.
Um fato se repetiu diversas vezes durante o período das
entrevistas : Rodrigo, num determinado momento, pedia para ir ao
banheiro. Voltava com o mesmo ar de deboche que tinha no rosto, o
nariz escorrendo, a fala lenta e descontínua, por onde contava suas
aventuras pelos morros, o medo de morrer na mão de um traficante,
e as vozes que ouvia. Numa mistura de horror e prazer, relatava suas
aventuras com a cocaína. Diante do comentário da analista sobre suas
constantes idas ao banheiro do consultório, ele ria. Certa vez a analista
lhe perguntou o que fazia lá, por que demorava. "Nada", respondeu
rindo. Que segredo ele guardava? Por que ria? O que ele estava queren­
do dar-a-ver, sem dar-a-ver? Seja lá o que fosse, o que me mostrava
com s eu riso cínico era um "Olha como eu gozo".
Miller descreve o sujeito da toxicomania como um cínico
extremo: "Digamos que é um gozo cínico que rechaça o Outro,
que recusa que o gozo do corpo próprio seja metaforizado pelo
gozo do corpo do Outro - e que cai na história, liga do à figura de
Diógenes - que opera esse curto-circuito levado à cabo no ato da
masturbação, que precisamente assegura ao sujeito seu casamento
com o pequeno pipi" (1 995, p. 1 8).

112
Ana Marlha Wilson Maia

Nos dicionários de filosofia, o cinismo é definido a partir


da figura de Antístenes de Atenas, que fundou a chamada escola
cínica. Antístenes pregav_a uma vida tranqüila, alcançada somente
através do domínio sobre . si rnesmo, da auto-suficiência. Despreza­
va o prazer, razão para eJe de to?a infelicidade, em prol da virtude
que, ao contrário do prazer, podia ser ensinada e trazia felicidade
porque colocava o sujefro "rio caminho de saber o que lhe con­
vém" (Mora, p. 1 84). É iriter�ssante observar que o autodomínio
de Antístenes não era um aufo-suplicio. Embora dissesse dele fugir,
era puro prazer. Mais do que uma filosofia, o cinismo é um modo
de viver que adquiriu o sentido pejorativo devido ao desprezo dos
cínicos pelas convenções .sociais. Diógenes de Sínope, discípulo de
Antístenes, foi na . verdade ó tnais popular dos cínicos, aquele que,
segundo Sloterdijk, trouxe . para "a filosofia ocidental a conexão
.
original entre felicidade, carê ritia de necessidades e inteligência" (1989,
p. 215 ), como mostraram os.hippies nos anos 1970. Diógenes recu­
sava as leis que orientavam à. pólis grega. Costumava urinar, evacuar
e masturbar-se na ágora ateniense e ensinava a masturbação enten­
dida como processo cultural. Ele encarnou sua doutrina e desafiava
a cultura com o seu gozo cínico: "Olhem como eu gozo!". Sua
figura é uma boa representação da relação entre o gozo cínico e a
toxicomania.
Três anos depois, Ro_drigo ligou para a analista, cujo novo
consultório ficava bem mais :distante de sua casa do que o do ende­
reço anterior. Disse que estava podendo sair e que iria sozinho, diri­
gindo. Estava gordo, · inchado, . más com o mesmo sorriso cínico.
Apesar de se apresentar com um discurso mais organizado e dizer
que queria se livrar da cocaí�a, neste segundo momento de entrevis­
tas, voltou a utilizar sistematicamente o banheiro do consultório.
Como antes, a analista. lhe perguntou o que fazia. Risos, nenhuma
resposta. Em que medida: ele queria mesmo se livrar da cocaína?
Estaria ele disposto a saber à causa de seu sofrimento? Havia sofri­
mento? Que lugar ele oferecia à analista, uma mera espectadora de

113
O Brilho da InFelitidade

um espetáculo que acontecia por trás de uma porta, a porta do banhei­


ro que os separava? No término de uma entrevista, quando já se dirigi­
am para a porta de saída do consultório, Rodrigo disse que iria ao
banheiro. A analista o esperou voltar e falou: "Não se vai a um consul­
tório de psicanálise para ir ao banheiro, se vai para se fazer análise. Até
quinta-feira". Eles se despediram e Rodrigo não retornou mais.
Em Televisão, Lacan se refere a uma posição ética do analista:
''No descaminho de nosso gozo só há o Outro para situá-lo, mas é
na medida em que dele estamos separados. [. . .] Deixar a esse Outro
seu modo de gozo, eis o que só se poderia fazer não impondo o
nosso, não o considerando como um subdesenvolvido" (1974, p.
58). Rodrigo falava de suas tentativas de dominar a droga, contro­
lar seus efeitos, mas no momento em que a analista colocou à prova
o seu interesse em saber por que utilizava cocaína, qual o seu desejo,
ele desapareceu. A questão não era "normalizar" o seu gozo, mas
responsabilizá-lo por ele.

As experiências de Benjamin constituem um importante


registro dos efeitos do consumo de drogas. Em seu relato, o filóso­
fo compara o ir e vir da droga com o fio, com a meia enrolada e
com a criação porque para ele a droga é uma forma do sujeito
poder experimentar a aproximação e o afastamento do objeto. Essa
é a conclusão que ele tira a partir do haxixe que ele mesmo experi­
mentou. É justamente neste ponto que a psicanálise traz sua contri­
buição à questão: a relação do sujeito com a droga deve ser obser­
vada no "um a um", tomando-se cada caso como um caso singu­
lar. Tanto é, que a relação com o objeto foi experimentada por
Teseu de forma diferente: Teseu matou o Minotauro, foi embora e
abandonou Ariadne, embora ela estivesse crente que ele retornaria
para os seus braços. No caso de meu analisante é pos sível dizer que
em vez de colocar a analista no lugar de semblante do objeto causa
de desejo, no lugar do ir e vir do jogo transferencial, ele colocou a
relação com a droga. No vaivém com a cocaína, Rodrigo escolheu
um caminho sem volta e perdeu, junto ao fio, Ariadne.

114
Ana Martha Wilson Maia

Referências bibliográficas

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SLOTERDIJ K, P. Crítica de la raz.ón cínica (1983). Madrid, Taurus, 1989.

115
O INFERNO DO DESEJO E O
DESERTO DO GOZO

Maria Anita Carneiro Ribeiro


Membro da Escola Brasileira de Psicanálise

"Não des9ar o iefemo é uma.forma de widerstand, é a resistência '�


Jacan Lacan

O olhar de uma adolescente abre ao poeta as portas do


Inferno e o acesso ao Paraíso, ao preço de perdê-la. A Divina Comé­
dia, obra-prima da literatura universal, foi escrita no início do século
XIV, tendo como inspiração maior este olhar de Beatriz. O amor
que surge do desejo causado pelo olhar no poeta o levará a cantar
sua dama em várias obras, antes de imortalizá-la na glória divina.
Amor ideal, feito de um único olhar, na vida de um homem que
não era propriamente um asceta.
Dante Alighieri foi um homem de seu tempo. N ascido em
1265, em Florença, participou ativamente das lutas fratricidas entre
os reinos divididos da Itália medieval. Foi preso, condenado e exila­
do, antes de vir a morrer em 1321,em Ravenna, sob a proteção de
Guido da Polenta, sobrinho de Francesca da Rimini. Em Ravenna,
morava sua filha, também chamada Beatriz, que havia se tornado
freira, dedicando sua vida ao Senhor. Em Ravenna, entre as som­
bras de Beatriz, a santa, e de Francesca, a pecadora, Dante entrega
sua alma a Deus.
O Brilho da InFelicidade

É no Canto V, no segundo círculo do Inferno, que Dante


coloca a infeliz Francesca, vítima de amores adúlteros, tia de seu
patrono. Francesca da Rimini, nobre dama, casou-se por procura­
ção com Lanciotto, senhor de aparência repulsiva e dis forme. Para
representá-lo nas núpcias, Lanciotto envia seu belo irmão Paolo. O
amor pecaminoso surge entre os dois jovens e Dante, colocando­
os juntos para sempre no Inferno, interroga Francesca: "Mas dizei­
me, no tempo dos doces suspiros, como o amor vos revelou vos­
sos dúbios desejos?" (195 2 [1310 aprox.] , p. 8)1 • Francesca revela
que foi um livro, o romance do amor cavalheiresco, também con­
denado, de sir Lancelot por sua rainha, que os havia conduzido ao
primeiro beijo. O marido traído surpreendera um dia os amantes e
os trespassara com o fio da mesma espada. Condenada a vagar nas
sombras por toda a eternidade ao lado de seu amado, Francesca
confidencia ao poeta: "O amor, que não absolve o amado de amar,
tomou-me com tal firmeza que, bem vedes, nem agora me aban­
dona" (ibid. ).
O segundo círculo do Inferno é habitado por pecadores
da carne, aqueles que "submeteram a razão ao apetite" (ibid., p. 7).
Helena de Tróia, Cleópatra, Páris, Tristão. .. os grandes amantes da
história desfilam, açoitados pelo negro sopro do ar infernal. "Como
pombas, chamadas pelo desejo, com asas abertas e firmes, vêm
pelo ar trazidas por sua vontade ao doce ninho" (ibid. ). O Inferno
é habitado pelo desejo e não é à toa, nos diz Lacan, "que ningu ém
se interessa por outra coisa" na obra de Dante, "embora o que ele
conte sobre o Paraíso seja também muito interessante" (1975, p. 19).
Mais do que isto, Lacan nos diz que "o desejo do homem é
o inferno" (ibid., p. 18), o próprio inferno do impossível encontro
com o objeto. Francesca da Rimini, Helena de Tróia, Cleópatra,
Beatriz . . . figuras de mulher que falam do encontro malogrado em
his tórias que atribuem o desencontro forçoso às várias figura s do
destino: guerras, intrigas, traições.

118
Maria Anita Carneiro Ribeiro

Talvez Beatriz deva ser dentre elas destacada, uma vez que
do desencontro inevitável, marcado pela queda de um olhar, o po­
eta construiu uma obra-prima e não apenas uma infeliz história de
amor. Pois Dante sabia que o objeto não está lá, onde o sujeito
procura: "Por que vos siderar no es forço de ver algo que não tem
lugar aqui?" (1952 (1310 aprox.], p. 145).
Cego2 , o poeta vê além, para-além de Beatriz, a Mulher,
cujo lugar vazio é demarcado pelos versos que cantam o Inferno e
o Paraíso. O poeta vê em Beatriz a beleza: ''A beleza [. . .] que trans­
cende toda a medida, para além do nosso alcance, e até mesmo
acredito que só seu Criador pode gozá-la toda" (ibid., p. 152).
A beleza de Beatriz, a Mulher que não existe, está para-além
do que pode ser gozado por um homem em uma mulher, e o
poeta deve dela desistir: "Desde o primeiro dia em que nesta vida
vi sua face até esta última visão, a seqüência de meu canto não foi
cortada, mas agora devo desistir de perseguir sua belezà com meus
versos" (ibid. ).
A relação que um homem pode estabelecer com uma mu­
lher e vice-versa, o que cada um pode gozar do outro, está mediada
por um terceiro elemento - o Falo - "terceiro irredutível" (Lacan,
1975, p. 14), que torna todo pretenso encontro a dois um irremediável
ménage-à-trois.
Em 1975, Lacan pronuncia sua terceira conferência em
Roma, anunciando-a com uma paródia aos versos de Gérard de
Nerval: ''A terceira volta, é sempre a primeira [ ...]" [ibid., p. 73] . A
primeira que volta em ''A Terceira" é o Discurso de Roma, "Fun­
ção e campo da palavra e da linguagem", primeira conferência pro­
ferida por Lacan na Cidade Eterna, em 1953. Mais de vinte anos
depois, em ''A Terceira", na qual expõe o nó borromeano e os três
registros, é a esta primeira conferência que retorna para dar ênfase à
ação do significante sobre o sujeito.

119
O Brilho da InFelicidade

O significante mortifica o corpo do sujeito, tornando-o


corpo s imbólico, deserto de gozo. Deserto de gozo quer dizer que,
a partir da incidência do sign ificante, "o corpo se introduz na eco­
nomia do gozo pela imagem" (ibid., p. 91). Há que se compreender
o corpo, nos diz Lacan, como desatado do real, "que por mais que
exista nele na medida em que faz seu gozo, lhe segue sendo opaco"
(ibid., p. 89). Assim, a incidência da linguagem civiliza o gozo e ao
corpo resta gozar pela intermediação da imagem. O gozo estabele­
cido como fálico, referido ao "terceiro irredutível" introduzido pela
linguagem, é anômalo em relação ao corpo, é gozo "fora do corpo"
(ibid. , p. 91).
Francesca da Rimini e Paolo, jovens, belos e sexualmente
atraentes, descobrem seus "dúbios desejos" através de um livro,
história de cavalaria, em que o nome do herói, Lancelot, ecoava o
nome do vilão traído, Lanciotto, revelando que o amor não é nunca
um caso entre dois, típico exemplo de ménage-à-trois. Lacan cita, a
propósito deste gozo fora do corpo, o caso do escritor japonês
Mishima, que dizia que sua primeira ejaculação havia sido causada
por São Sebastião. "Deve tê-lo deixado bem pasmo, essa ejaculação!",
observa Lacan (ibid.).
É o fora-do-corpo do gozo fálico que faz com que "a
relação como tal entre os dois parceiros sexualmente diferenciados
esteja marcada pelo fato de que sua relação ao sexo seja uma rela­
ção para-sexuada". Segundo Lacan, é o que Freud aponta ao falar
de bissexualidade, ou seja, que é justamente pelo fato de ser falante
que a identificação de um sujeito a um dos sexos só vai ocorrer
"secundariamente e por acaso" [1975b, p. 14].
O inferno do desejo e o impossível do encontro entre os
sexos, justamente por ser impossível, incidem de forma diferencia­
da em cada um dos sexos. Se Francescá da Rimini e seu amado
Paolo estão juntos para sempre no Inferno, cada um deles deve
bem saber que o inferno de que um padece não é o inferno do

120
Maria Anita Carneiro Ribeiro

outro. Pois se Sartre aí se equivocou, foi por não ver que a imagem
do outro - i(a) - esconde e vela justamente este pequeno a, "ob­
jeto insensato" [Lacan, 1 975, p. 80] , "cagada ou olhar, voz ou ma­
milo que divide o sujeito e o dis farça em dejeto, dej eto este que lhe
ex-siste ao corpo"(ibid., p. 83) . R. S. I: o Imaginário vela o Real e o
Simbólico nomeia - "Tu és minha mulher" - ou ainda, como diz
Lacan: "Tu és o meu sintoma".
Uma mulher pode ser o sintoma para um homem, pois
uma vez que este se inscreve no todo fálico ('efx <l>x) , ela pode vir a
nomear a modalidade oculta do seu gozo. Mas, nos diz Lacan,
"não creio que o sintoma Homem tenha absolutamente o mesmo
lugar para uma mulher" [1 975b, p. 1 5] . Uma mulher, não-toda fálica
('efx <l>x), pode ter e freqüentemente tem relações sintomáticas com
os homens, ou com um homem em particular, porém é jus tamente
por ser não-toda que não poderá ter em um homem seu nome de
gozo, seu sintoma.
A total impossibilidade de qualquer correspondência lógica
entre um homem e uma mulher é o determinante do inferno do
desejo. E é para este ponto que a psicanálise conduz o sujeito. "Não
desejar o inferno", nos diz Lacan, "é a resistência" (ibid., p. 1 9) . Po­
rém quais os limites desta descida aos Infernos que é uma análise?
Quais os limites que nos apontam os sujeitos que consomem dro­
gas? Em que medida e com que oferta pode o analis ta contrabalan­
çar o brilho da felicidade reac!J-made? E em que medida toda pro­
messa não contraria a ética infernal que preside uma análise? Se a
resistência é a resistência do analista, é por que, ao presentificar o
objeto que falta, é ele próprio - analista - que introduz na análise
a dimensão infernal do desejo e causa também a resistência.
Paulo tem p ouco mais de trinta anos quando procura a
análise. Já havia s e submetido a uma internação para livrar- se do
vício - cocaína e álcool - binômio sinis tro que o havia levado
à degradação. Bonito, in teligente e obses sivo, sem a droga se

121
O Brilho da InFelicidade

confrontava com a angústia.- o pai devedor era um fraco; a mãe,


dele só esperava o pior: "Tudo é motivo de briga, é um inferno!",
diz. Submetido à demanda materna, que toma como seu desejo,
não pode "dar certo". Sob transferência, o confronto constante
com a analista: uma análise feita na contramão, em que o amor de
transferência quase que só pode apresentar sua face odienta. Aos
trancos e barrancos, um percurso se dá: retoma o trabalho,
reaproxima-se dos amigos, reapruma-se na vida, até que, por fim,
se apaixona. Com o novo amor, reaparece o brilho da droga e o
impasse se produz: amar ou se drogar?
Amar é o verbo transitivo que reabre para o sujeito a ques­
tão do desejo do Outro, seu inferno. O inferno de Paulo, tal como
o de Dante, pendia do olhar de sua Beatriz: ela olhava para os
outros, seria uma namoradeira? Olhava muito para outras mulhe­
res, seria lésbica? Não era muito ativa na cama, seria frígida? O pior:
era amiga, companheira, solidária e ele a desejava. É possível um
homem amar e desejar uma mulher que lhe abre tantas questões?
A cada pergunta, nova recaída. Paulo não era um novato:
da droga conhecia todos os caminhos, da satisfação ao desespero.
Aprendemos, a partir das poucas citações de Freud e Lacan sobre a
toxicomania, a distinguir toscamente entre o matrimônio do sujeito
com o álcool e a ruptura, o divórcio com o gozo fálico trazido por
outras drogas, inclusive a cocaína. Para Paulo, o álcool estava a ser­
viço do gozo autista da cocaína: bebia para cheirar e o pó lhe exigia
mais bebida, para mais uma "cheirada". Ali onde o olhar de uma
mulher abria para o sujeito sua questão fantasmática, o brilho da
droga a calava, levando-o a gozar fora do enquadre da fantasia.
Lasciate ogni speranza, deixai toda esperança, Dante escreve
nas portas do Inferno. Não que a esperança, uma das três virtudes
teologais (fé, esperança e caridade), seja de todo má. Lacan nos diz
que estas três virtudes, representadas nos murais italianos por três
senhoras bem fornidas de carnes, são sintomas, como costumam

122
Maria Anilo Carneiro Ribeiro

ser as mulheres. Sintomas que promovem "o melhor da neurose


universal, ou seja, que no final das contas as coisas não andem tão
mal e que estejamos todos submetidos ao princípio da realidade,
isto é, à fantasia" [1975, p. 94] .
Deixai toda esperança está escrito no portal de cada análise,
cuja direção é marcada pela ética do inferno do desejo. Não há
conciliação possível, se o sujeito quer chegar ao âmago de sua ver­
dade. Atravessar a fantasia é abrir mão "do melhor da neurose
universal", do consolo ilusório das gordas virtudes teologais. É uma
escolha ética que cabe a cada um fazer só, frente à causa de seu
desejo. No final de uma análise, ao abandonar toda esperança para
atravessar o quadro _ fantasmático que delimita o inferno de seu de­
sejo, o sujeito abre mão da culpa para responder - tornar-se res­
ponsável - por seu destino. O Outro não existe e o sujeito é res­
ponsável por sua vida, seu amor e seu desejo.
O amor sem limites advém daí, do ponto preciso em que o
sujeito não recua frente a sua verdade.
Dante fez de sua verdade um poema, imortalizando Beatriz,
seu sintoma, na Divina Comédia. ''Não sou poeta", nos diz Lacan,
"sou poema. E que se escreve, mesmo que tenha ares de ser sujei­
to" [1976, p. 61]. Ser um poema que se escreve em sua própria
vida; não ser o poeta, mas ser a escrita de um poema, mesmo tendo
ares de ser sujeito. . . Este é o desafio que é lançado ao analista, para
que do lugar de semblante de objeto causa de desejo possa condu­
zir um sujeito ao encontro de sua verdade.
A droga pode também ser uma escolha diante da qual o
sujeito abre mão de toda esperança. É a escolha pelo gozo que não
passa pelo Outro do simbólico, pelo gozo que abole o falo e sua
mediação no encontro com o Outro sexo. É a escolha do gozo
contra o amor e o desejo. Ao optar pela droga, o sujeito reintroduz
no corpo o gozo que o significante domestica e retira. O corpo não

123
O Brilho do InFe/icidode

. é mais deserto de gozo, mas é o próprio gozo que - vazio do


significante - é o deserto do sujeito.
Ao fazer o curto-circuito do simbólico pelo uso da droga,
· o sujeito na verdade não abre mão do Outro, não se responsabiliza,
não responde por sua vida. Aloja-se no significante que o Outro
- ·social lhe fornece e atribui ao Outro do acaso a responsabilidade de
· decidir a partida. Esta foi a escolha de Paulo. Definindo-se como
i:oxicômano, escolheu o brilho da droga ao olhar do desejo, e saiu
dizendo deixar nas mãos do destino a sua sorte: dia mais dia me­
. nos, tudo acabará numa overdose. Ao inferno do desejo preferiu o
deserto do gozo, pavimentado pela brancura do pó. Que o cami­
nho escolhido possa ter volta é um voto - desejo de analista.

NOTA S

'. 1 . A tradução, livre, é d e nossa autoria.


2 .. Alusão à passagem do Canto XX.V em que o herói é cegado pelo clarão da
·presença, em corpo e alma, de São João - cegado pelo brilho do impossível
de se ver.

Referêndas Bibliográficas

AUG HIERI, D. Great Books of Western 111orld, n. 2 1 . Chicago, Encyclopaedia


. Britannica Inc., 1 952.
' LACAN, J. "La Tercera" ( 1 975). Em: Intervenciones y textos 2, Buenos Aires,
Manancial, 1 988.
____ . "Respuesta a una pregunta de Marcel Ritter" ( 1 975b) . Em: Estudios
de Psicosomática, vol. 2. Buenos Aires, Actuel- Cap, 1 994.
____ . "Prefácio a la edición inglesa dei Seminário II" ( 1 976). Em:
Intervenr:iones y textos 2. Op. cit.

124
..

ADOLESCÊNCIA E DRO GA: UM CASO

Sonia Alberti
Membro da Escola Brasileira de Psicanálise

. Entram os três no consultório: o pai, a mãe e Sérgio. Na .


realidade, não foi fácil cons eguir que vies sem todos. A mã�·,
preocupadíssima com Sérgio (1 7 anos) , não tem condições finan- ·
ceiras para um tratamento dele e é por isso, me dissera, que · era· .
necess ária a presença do pai; Mas não_ tem muitas esperanças . . . poí.s'
ele não acredita que um tratamento possa resolver o problema . do
filho. O problema do filho, segundo ele, é uma fraqueza moral;· el� ·
j á lhe diss e várias vezes que s eguisse seus passos exemplares cuja l ei,
resumindo, é a lei de Gérson - a de tirar vantagem em tudo. Aliás,
foi assim que ficou rico numa empresa que criou. Durante a entre -:
vis ta com a analis ta não só atende a chamadas no telefone celulàr
como também faz ligações, s em nenhuma justificativa. Está per,
dendo dinheiro no consultório da analista e, ainda por cima, têrá
que lhe pagar. "Não há problemas com dinheiro, pago qualqu'ei:
coisa, o que for pedido, mas duvido que meu filho dará contihuidà-.
de: ele é fraco, não sus tenta o que quer, aliás, nem quer vir, não. é�
Sérgio?".

· Sérgio mora com a mãe, mas a mãe também trabalha e.,


quando sai, Sérgio não faz nada. O pai s aiu de casa há algu ns anos ,
hoj e mora com outra mulher, tem outra familia. A mãe d e Sérgio .
faz análise e recém iniciou nova relação amorosa. Sérgio ficou em .
casa, não faz nada. Quando tem que · fazer de conta de ir par� ·a.
escola, vai para a rua. Conhece muito bem a rua e todos do bairtq .
O Brilho da lnFelicidade

o conhecem. Gostam dele e, poderíamos dizer, Sérgio quer ser


adotado pelo bairro. É um bairro grande do Rio de Janeiro. Isso,
evidentemente, ele conta quando sozinho com a analista. Conta tam­
bém que toda preocupação da mãe com a droga é hoje total.mente
desnecessária, mas isso ela não sabe.
Durante a entrevista com a família, entre uma ligação e ou­
tra do celular, os pais brigavam porque Sérgio usa drogas quando
vai para o prédio do pai. É lá, no plcry do prédio do pai, que a droga
é não só negociada como consumida. Monstração: tal a jovem ho­
mossexual (cf. Freud, 1920) que insiste em passear com a Dama
sob a janela do escritório do pai, Sérgio usa drogas no play do
prédio do pai, não correndo, no entanto, nenhum risco de ser pego
pelo pai, mais ocupado com seu objeto - o celular.
O risco veio de alhures e foi por causa dele que Sérgio
largou as drogas. Há três meses, com drogas no bolso, tarde da
noite nas proximidades de uma favela, uma blitz. Sérgio correu muito,
corria com a angústia da morte: viu-se diante da morte e foi por
isso que topou vir à analista; no fundo, tentava escolher a vida. Já não
usava drogas a partir desse episódio, pois não queria, nunca mais,
confrontar-se com a morte como naquela noite. E sabia, a droga o
faria reviver isso de novo.
"Essa angústia, Sérgio, ela te faz lembrar de alguma outra
coisa?" A resposta é imediata: "A separação de meus pais". E de­
pois de um "Fale-me mais sobre isso", a associação: "Fui eu a causa
da separação de meus pais. Me sinto culpado pela separação de
meus pais, até hoje brigam por minha causa".
Sérgio não pode sustentar o tratamento, "não é, Sérgio?",
mas sem dúvida algumas considerações hão de ser feitas, pois, de
saída, se Sérgio não o sustentou é por que, antes de mais nada, seu
pai nunca o pagou. E ficou a possibilidade de Sérgio vir a pagá-lo,
ele próprio, um dia.

126
Sonia Alberti

Da pai versão ou pere-version.

Duas acepções da droga no caso. A já mencionada e perce­


bida na monstração - a droga como apelo ao pai. Apelo à função
paterna em que a droga é instrumento de transgressão com a fun­
ção de fazer existir a lei. Mas o pai não vê essa vertente. Ele não se
importa que seu filho use drogas, desde que saiba fazê-lo e não caia
na mão da polícia. Pois isso é coisa da idade, depois passa. O pro­
blema dele é que seu filho é um fraco. Se o pai de Sérgio não vê essa
vertente, não podemos nos furtar de observar aqui uma perda da
realidade, conforme Freud, efeito de uma Verle11gn11ng, um desmen­
tido particular da perversão.
E segunda acepção da droga no caso: identificação ao pai.
Tal como o pai tem seu obj eto fetiche - cuja versão "celular"
pudemos observar -, o filho também encontra na droga um moto
de vida. Só que aqui não se trata de perversão mas de um desespe­
rado apelo à identificação com o pai, frente à divisão do suj eito que
desaparece sob a terrível acusação de ter s eparado os pais e que se
fundamenta no mui neurótico complexo de É dipo ao qual procura
apegar-se a todo custo: o custo de ser culpado pela separação dos
pais.
Com vestimenta moderna, o tema clássico: todo neurótico
tem um pai que é perverso. Eis como proponho hoje interpretar o
tema da pere-version. E para isso tomo emprestado um parágrafo de
François Regnault, que traduzo: "O inferno é a miragem do neuró­
tico: a perversão da qual sua neuros e é o fracass o (1 985, p. 1 04).
Donde o fato do Pai (Pere), nome do nó, se difundir em direção
(vers) às instâncias de sua trindade, e ter a perversão como alvo ou
como limite: 'Deus é pere-verl (Ornicar? n. 5, p. 43)". Concluo:
1) A droga não está ligada a uma estrutura. Com Sérgio,
confirmamos sua utilização na miragem do neurótico. A que divide
o suj eito de forma dantesca, o que, no caso, é confirmado pela

127
O Brilho da lnFelicidade

noção de expiação. Como todo neurótico, também Sérgio prefere


a sua divisão àquela do Outro, aqui imaginarizado pelos pais.

2) Que Freud tinha mesmo certa razão quando supunha


um pai perverso às his téricas : o neurótico supõe a existência de um
pai que não fracassa e que pode sustentar sua perversão, identifican­
do, por exemplo, a mulher com o falo. Poderíamos dizer que esse é
um sentido possível p ara a neurose como negativo da perversão.
No caso, no entanto, não é bem disso que se trata.

No caso, do quê se trata?

O sujeito como tal nunca está exatamente lá onde pensa,


nem ali onde é, pois o suj eito, como Freud nos ensinou, é dividido.
Sérgio, sem dúvida, está no lugar do suj eito, entre alienação e sepa­
ração. Donde a vertente do apelo que se faz presente no discurso
de Sérgio, um apelo ao Outro que, como em todo adolescente em
dificuldade, se acirra à proporção que o Outro se dess olidariza. O
Outro parental, no caso.

Já pude dizer em outras ocasiões que o suj eito adolescente


somente irá deparar-se com a falha da função paterna s e, até então,
a metáfora paterna exerceu toda sua função. Que ele s omente po­
derá caminhar na direção de prescindir do pai, s e des te pode s e
servir. Quando i s s o n ã o ocorre, váril!.s serão as cons eqüências. Mas
a mais comum é o apelo. Nós também podemos acompanhá-lo
em S érgio, por exemplo quando se diz culpado da separação dos
pais. Porém se interpretássemos o uso da droga como simples ex­
piação dessa culpa, já es taríamos incorrendo em erro frente ao lu­
gar que ocupa como resposta ao desejo do Outro: é um fraco.

Lugar ao qual é designado na própria fala do pai que, em


vez de calar frente à p ergunta do Che vuoi?, não lhe deixa nem tem­
po, nem chance de perguntar. Design a. E o ponto aonde o levam

128
Sonia Alberti

esses desígn ios o colocam frente a frente com a despossessão. Ao


contrário da possessão, que pudemos dis cutir no texto de Latusa 2
(1 998) , na qual o sujeito se encontra entre o ter um Outro e o não
existir, Sérgio é literalmente despossuído de qualquer atributo que
lhe poderia valer uma atenção. Ele é o objeto jogado fora, na com­
pra da droga, no dinheiro que aí vai. Ele é o objeto que cai da
interseção entre alienação e separação.

A castração

Quando dizemos com Freud (1 926) que toda angústia do


neurótico é s empre angústia de castração, referimo-nos ao fato de que
o sujeito neurótico sempre acaba por dar uma significação ao encon­
tro com o real. E a significação, como sabemos, é sempre do falo
(Lacan, 1 958). Freud já o estabelecera quando, com o caso Hans, apontou
o falo como marca da diferença. Para o pequeno Hans, antes mesmo
de se perguntar sobre a diferença sexual, todo ser que possuísse um
"faz pipi" era ser animado, e todo ser que não tivesse um "faz pipi"
era um ser inanimado. Dizia que dava para ver que uma pedra, por
exemplo, era um ser inanimado porque não tinha "faz pipi". Dá
para vermos, a partir disso, que o falo é o diferenciador. Só que
esse falo não é o órgão por excelência, mas a própria marca, ou seja,
o significante da diferença, e é pela diferença que se adquire uma signi­
ficação que se dá num único campo: o da fala e . da linguagem.
Mas nem tudo no homem é da ordem do significante, pois
esse mesmo campo, o da fala e da linguagem, implica o que está
fora do significante. Quando se fala e quando se conceitua, sempre
há algo que fica não dito e, mesmo, impossível de dizer. Algo é
impossível de dizer somente porque há o dito, do qual é in/ ex­
cluído. Esse é o real, o impossível de ser simbolizado. Isso já é da
ordem da castração, ou seja, a impossibilidade. Freud a imaginariza,
em 1 937, como um rochedo, intransponível ao suj eito humano.

129
O Brilho da I11Felicidade

Atribuir uma significação à angústia permite ao sujeito velar


de alguma forma o horror do encontro com o real que o reduziria
a mero objeto da impossibilidade. É esse horror o que resulta no
final da análise, quando nada mais é velado. Por isso se dizer tam­
bém que o final da análise proposto por Lacan é ao mesmo tempo
aquele proposto por Freud como sendo o do encontro com o
rochedo da castração e um passo a mais, pois o encontro, quando
um pouco mais trabalhado, lança o horror para fora da sign ifica­
ção, um além do encontro com o rochedo da castração.
Para suportá-lo, todo um longo trabalho em análise que
solidificou, como também diz Freud em 1 937, os diques (Alberti,
1 998b), ou seja, os trilhamentos do recalque, o que também quer
dizer a possibilidade de se servir do pai na estrutura.
Mas há momentos, na vida de alguns sujeitos, em que o
encontro com o rochedo pode lançá-lo no horror da falta de signi­
ficação sem que antes este mesmo sujeito tenha podido solidificar
as es tacas simbólicas da estrutura (penso aqui na passagem trabalha­
da do caso Tõrless (cf. Alberti, 1 996, p. 243) em que o adolescente
se refere justamente à solidez necessária da referência simbólica) . A
angústia aqui não tem a significação fálica da angústia de castração
de todo suj eito neurótico; trata-se da castração como mortificação.
Daí a angústia de morte, aquela que Lacan examina justamente no
5eminário, livro 1 1: os quatro conceitosfundamentais dapsicanálise (1 964) ao
falar da alienação/ separação remetidas à pulsão que, no fundo, como
dizia Freud, é sempre de morte.
É a falta do olhar do pai no evidente apelo durante a
monstração no play que curto-circuita o objeto olhar em que Sérgio
se deixa cair na ausência da ligação pulsional que, ao neurótico, dá
um sentido. A mortificação nasce aí, ali onde Freud inscreve a
Triebentmischung - a desintrincação pulsional - que deixa a céu
aberto o que toda pulsão implica: a pulsão de morte. Puro gozo
desintrincado do desejo cujo vislumbre se toma patente para Sérgio

130
Sonia Alberli

no risco corrido junto à polícia e o faz fazer um movimento na


tentativa de construir diques frente ao gozo, ou seja, o faz vir ao
analista.
O pequeno trabalho feito, e que o levou a dar uma signifi­
cação à sua angús tia, culpabilizando-o pela separação dos pais, pode
ter introduzido uma diferença. Quem sabe? Afinal das contas, ao
poder evocar a culpabilidade, Sérgio pôde reerguer o Outro ali onde
ele já não se mostrava mais existir. Quando ele se culpa, não é o Outro
que o abandona; ele o largou primeiro. Diria que Sérgio fica aqui entre
o supereu freudiano e o lacaniano, tais como retomados por Miller
em "L'Autre qui n'existe pas et ses comités d ' éthique": "O supereu
freudiano produziu coisas como o proibido, o dever, a culpabilidade.
Tantos termos que fazem existir o Outro. São faz de conta de Outro.
Supõem o Outro. [...] O supereu lacaniano, aquele que Lacan especifi­
cou em Encore, produz, ele, um imperativo totalmente diferente -
Goze. Esse supereu aí é o supereu de nossa civilização" (1 997, p. 14).
Sérgio parece pois encontrar-se entre esses dois supereus.
Quando usa a droga, encontra-se na vertente do "Goze'' e quando
se culpa, na vertente do supereu freudiano, que implica o pai como
semblante.
Há que se saber se finalmente pôde fazer alguma coisa, ou
se continuou na cama, sem fazer nada, seguindo o caminho daquela
mortificação. Pois nesse último caso, já não se trata nem de um nem
de outro supereu, mas de depressão. E sobre a depressão Colette
Soler soube dizer: "o deprimido inquieta porque, p elo simples fato
de sua existência, ele ameaça o laço social" (1 997, p. 1 7 1 ).

Laço social e gozo

Talvez seja isso o que nos dá finalmente o sentido do traba­


lho de Sérgio, pois, com efeito, o que mais poderia deixar seu pai

131
O Brilho da lnFelicidade

maluco, a última possibilidade de ameaçar seu pai na tentativa de


dividi-lo, até então tantas vezes frustrada, é esta da qual fala Colette
Soler. Ela evidenciaria o engodo do "Goze", neutralizando-o como
laço social, produto do capitalismo selvagem no qual esse pai pare­
aa tmergtr.
Enquanto Sérgio usava droga, era conhecido na rua, no
bairro. . . À diferença de ficar na cama sem fazer nada, o uso da
droga implica um prazer. É promessa de felicidade no auto-erotis­
mo. Na adolescência, ao contrário da maioria dos casos, o uso da
droga faz laço social, a exemplo do alcoolismo no adulto. Pode-se
usar droga "socialmente", assim como se bebe "socialmente". Usa­
se a droga na vertente identificatória com o Outro grupal. A droga
é aqui instrumento que suporta a metaforização do Outro parental
a partir da eleição de novos ideais, que funcionam, fundamental­
mente, como maneira de dialetizar os ideais antigos, "herdados"
dos pais. O que novamente nos lança na vertente da alienação. Usa­
se a droga na adolescência, na identificação a esses novos ideais, no
engano de com isso separar-se do Outro, pois, no fundo, o fato
dela ser proposta pelo grupo já a implica como instrume!'-to de
alienação.
A alienação/ separação é o campo do laço social; nele o
sujeÍto vagueia entre os quatro discursos enquanto não se identifica
com o que dele cai na interseção da alienação com a separação.
Como o gozo é produto do supereu em nossa civilização, como
dizia Miller, é perfeitamente factível o uso da droga no laço social
em que se insere o adolescente. É não usá-la e não usar mais ne­
nhum de todos os produtos e gadgets dessa nossa civilização que a
denuncia, que a macula, que aponta seu furo, como diz Colette
Soler ao falar da depressão; é aí que Sérgio entra.
Se a droga é hoje tida como instrumento do que não faz
laço social é por que, como efeito da alienação, o sujeito pode ter­
minar como produto do discurso do capitalismo, rebotalho da so-

132
Sonia Albe,ti

ciedade, "lixo do bem-estar da sociedade" - como em início de


março o presidente da Nestlé alemã referia-se aos desempregados,
o que lhe valeu uma passeata em Frankfurt. Como diz Miller na
passagem assinalada, o Gozo como tal está incluído no laço social
do capitalismo e é nesse sentido que aliás Aldous Huxley já imagina­
va o Admirável mundo novo. Be happy, don 't worry é também o texto de
uma de nossas músicas modernas. No fim das contas, o que Sérgio
faz, é recusar-se a isso.

Referências bibliográficas

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formas clínicas: tristeza, depressão e mela11co/ia. Rio de Janeiro, Contra Capa Livraria,
1 997.

133
O LUGAR VARIÁVEL DO OBJETO DROGA

Carlos Genaro Gauto Fernández


Membro da Escola Brasileira de Psicanálise

[O homem] qwpois criaropamíso� àfarmácia, às beb«kufermenladas,


talcomo um maníaco que .IHbstituísse móveis sólidos eJardin.r verdadeiros
por cenários pintados em tela e montados em armações.
Charles Baudelaire, Poema do haxixe.

Como muitas vezes constatamos na clínica, o efeito mais


evidente do objeto droga é a felicidade. A felicidade ao alcance da
mão, ao alcance do dinheiro. Infalível, encontra-se aí o paraíso. Ar­
tificial, como o descreveu Baudelaire (1 971).
Este filósofo, em seu ''Poema do haxixe", após descrever os
efeitos desta droga e a natureza do goz0 que ela produz, reflete sobre
o valor ético de seu consumo. Assim conclui: "É a própria infalibilida­
de do meio que constitui a imoralidade". Ou seja, a objeção ética não
é o próprio produto, mas a trapaça que se faz quanto ao modo leal de ·
obter a satisfação, que deve incluir o Outro, com seu jogo de incertezas
e de surpresas sem reruar frente ao desejo enigmático que pode emergir.
Baudelaire condena o auto-erotismo que implica o gozo da
droga. Neste sentido, há um infantilismo primordial quando se pensa
na satisfação que seu uso produz.
Freud, em "O mal-estar na civilização" (1 930), escreve·que
a felicidade individual não estava prevista no plano da criação e que
o desígnio de sermos felizes, que o princípio do prazer sugere, é
irrealizável. Portanto, a felicidade possível na civilização, que está
O Brilho da lnFelicidade

organizada pela renúncia ao gozo pulsional, depende exclusivamen­


te da forma como cada um resolva, do ponto de vista econômico,
seu balanço libidinal.
A renúncia ao gozo pulsional implica uma separação do
auto-erotismo para permitir que o sujeito possa se lançar numa dialética
com o Outro. O Outro da linguagem, da Lei e da significação.
Conhecemos os caminhos do Complexo de Édipo e de
Castração como os caminhos lógicos por onde a Lei da castração é
ins_tituída. É assim que no pequeno romance familiar de cada um o
discurso toma sua eficácia. É a entrada num universo de discurso,
possível porque o sujeito consentiu com seu assujeitamento _a o
significante, que o separa de seu corpo míticamente biológico do
qual poderia gozar à vontade.
A entrada no universo discursivo não se faz sem proble­
mas. A partir de Freud e Lacan sabemos, por exemplo, como o
Pequeno Hans, um menino de cinco anos, desenvolve uma fobia quan­
do não consegue conciliar três coisas: o gozo sexual que obtém
com a ereção do seu pênis, a confluência entre seu pênis e seu corpo
próprio (que o coloca frente ao ilimitado da mãe) e a interdição
paterna. O processo civilizatório consiste precisamente na passa­
gem desse gozo ilimitado para o gozo limitado pelo falo, que deixa
um resto fora da sua dialética.
Lacan (1956-7) acentua a necessidade do casamento com o
falo, que é a via pela qual o gozo será possível para o ser falante. O
gozo fálico - ou satisfação fálica - compreende a participação na
dialética da significação organizada pelos sign ificantes da cultura,
isto é, o fato de que a cada encontro se repete o desencontro, pois
o falo se define exatamente por não estar lá onde deveria; daí a
coalescência entre a satisfação e o ato falho, que constituem o que
chamamos de encontro faltoso.
Para o menino, o pênis se constitui como lugar de satisfa­
ção. Seu gozo se localiza aí. É um avanço, mas pode permanecer na

136
Carlos Genaro Ga11to Fernóndez

masturbação. É somente mais tarde que se dará o encontro com o


Outro sexo e com o enigm a que este propõe, já que a satisfação do
feminino não é perfeitamente congruente com o gozo fálico.
''A análise presume, do desejo, que ele se inscreve por uma
contingência corporal", diz Lacan (1 972-3, p. 1 26) . Ou seja, a con­
tingência fálica é · a via pela qual podemos ter notícia da causa do
desej o. É por essa via que uma mulher pode ocupar esse lugar.
Dito de outro modo, a civilização deixa o sujeito numa
deriva quanto à questão libidinal, mas lhe propõe a mulher como
objeto capaz de lhe satisfazer, sem dizer como. Frente a este enigma
muitos recuam. Neste contexto, o objeto droga aparece como que
de contrabando para fazer um curto-circuito com relação à satisfa­
ção. Lacan escreveu des ta forma: "o objeto droga é o que permite
romper o casamento do sujeito com o pequeno pipi" (1 975) .
Feitas estas considerações d e caráter geral, o u estrutural,
verificaremos a partir da clínica, que implica necessariamente o sin­
gular de cada paciente, o lugar da droga. Conseqüentemente, não
pensamos em classificar alguém como toxicómano ou alcoólatra pelo
caráter empobrecido destes rótulos, que, além do mais, escondem
o verdadeiro âmago da questão.
Para o analista, trata-se de cernir o lugar que a droga ocupa
na economia psíquica de um analisante em particular. Deste modo,
por exemplo, a direção do tratamento dependerá de que a possibi­
lidade do casamento com o pequeno pipi possa ser encontrada.
Num sujeito psicótico, esse casamento fica impossibilitado pela au­
sência da metáfora paterna. Sem Nome-do-Pai não há significação
fálica. Entretanto a droga ou o álcool podem se cons tituir como
recursos, como suplências ao Nome-do-Pai que não funciona. Po­
deremos ter então o rompimento com o gozo fálico num paciente
neurótico ou o gozo fálico não se apresentando pela ausência da
metáfora paterna, como Éric Laurent lembra em "Três observa­
ções sobre a toxicomania" (1 995) .

13 7
O Brilho da I11Felicidade

Trata-se .de um paciente masculino com aproximadamente


quarenta anos de idade, professor universitário, pesquisador. Há anos
procurou um analis ta por causa de problemas de impotência sexual.
É homossexual, contudo este traço não lhe faz questão. Já conviveu
maritalmente com uma mulher mas sempre com muita dificuldade.
Atualmente tem por companheiro um homem bem mais jovem.
Com este suas relações são também complicadas, inclusive no cam­
po do sexual. Raras vezes consegue o orgasmo.
Ingere bebida alcoólica desde os 1 5 anos de idade. Já fez
uso de maconha mas hoje não mais. Seu companheiro desaprova o
consumo de bebida alcoólica.
Não é um caso de fácil diagnóstico, pois muitas vezes pare­
ce um sujeito neurótico com algumas esquisitices, mas outras vezes
se mostra como francamente psicótico. Inclino-me por este último
diagnóstico por vários motivos: a) presença de alucinações verbais;
em certos momentos diz ter ouvidos vozes que lhe acusavam de
algo sujo; b) presença de delírios de auto-referência e de interpreta­
ção: são comentários que as pessoas que passam na rua fazem a seu
respeito; por exemplo, de que sua casa foi vendida. Isto o deixa
terrivelmente angustiado; c) sua enorme dificuldade em lidar ade­
quadamente com a função simbólica de professor: tem dificuldade
em a tribuir notas e, conseqüen temente, reprovar; circula na
marginalidade, na periferia da Universidade, não estabelecendo la­
ços sociais com seus colegas.
A periferia da Universidade inclui principalmente o bar pró­
ximo, que é o lugar onde professores e alunos se encontram após as
aulas para beber. Freqüentador assíduo, ali tem inserção social. "To­
dos os professores desta universidade bebem", é sua frase. Sendo
também ele um bebedor, pode se inserir na comunidade, coisa que
não realiza por outros meios.
A bebida realiza aí uma função: a de permitir fazer o ponto de
capiton com a normalidade e com o universal: todos bebem.

138
Carlor Gmaro Gauto Fer11á11dez

Assim também quando reúne seus amigos, cada vez mais


escassos, para alinoçar ou jantar por causa de alguma efeméride, a
bebida alcoólica comparece como o principal cardápio.
A bebida o tranqüiliza. A interpretação delirante desaparece
ou diminui de intensidade quando está moderadamente alcoolizado.
A alternativa à bebida seria o aumento considerável da dose de Haldol
que toma, mas isto o deixaria "chapado", coisa que ele não aceita.
O jogo com seu psiquiatra é interessante. É intimado a pa­
rar de beber para que possa haver um melhor controle sobre a
medicação, mas ele não a cumpre. O psiquiatra é levado a admi­
nistrar doses mínimas do fármaco. Isto se mantém há muitos anos.
O álcool aqui é uma profilaxia contra a incidência abusiva da ciência
médica que pretende normalizá-lo e integrá-lo ao mercado produtivo.
Bebendo se manteve na Universidade. Bebendo escreveu e
defendeu com sucesso sua dissertação de Mestrado. Quais beneficias
ele obteria da retirada da bebida, com seu acréscimo de desagrega­
ção e de aumento das doses de Haldol?
Assumindo um certo risco, posso dizer que o álcool faz
aqui suplência ao Nome-do-Pai que não existe. Do pai o que ele
tem é apenas o gozo no real. O pai era alcoólatra e faleceu de
cirrose hepática. Algo importante em sua história familiar é o fato
de que o nome do pai, pouco antes de seu falecimento, foi apagado
da razão social da empresa que construiu. Esta empresa ficou com o
irmão, através de artificias escusos, diz o paciente. Ficou uma empresa
sem história, pois tudo nela começou a ser contado novamente do
zero. Há aí um pai apagado do simbólico, o que deixou um buraco.
Este buraco aparece num sonho: a casa do pai está erguida
sobre um riacho imundo, onde circulam fezes. Ela está apoiada em
ambas as margens do riacho que passa no meio. O sonho não foi
interpretado, há um "não sei o que isso sign ifica" difícil de ultrapas­
sar. Entretanto aparece como uma porção de real que pode ser
capturado pelo simbólico.

139
O Brilho da lnFelicidade

O alcoolismo, que poderia ser tomado como traço identificatório,


se constitui como um modo de gozo contínuo que não pode ser inter­
rompido por causa do perigo de desagregação que carrega.
A sua "desconfiança" no Simbólico se traduz em pensamen­
tos supostamente delirantes de que sua casa já foi vendida por algu ém,
freqüentemente por seu companheiro. A escritura do imóvel, que está
em seu poder, não lhe garante nada. O complô do qual muitas vezes se
diz objeto é a tentativa de dar sentido ao vazio da significação que as
palavras portam. O acompanhamento alcoólico apazigua esta situação.
O rio de merda que é o frágil alicerce de sua casa é ameaçador.
O álcool aqui não aparece como um recurso cínico frente à
dívida simbólica que o suj eito se recusa a pagar, mas é o que lhe
permite ter um certo laço com aqueles "todos" que bebem.
No entanto, tragicamente, ele sabe que seu destino é o de
ser des cartado como um pária social; bêbado e desempregado
poderá cair nesse riacho que corrói a casa paterna.
Penso que a análise tem aumentado esse caminho e dilatado
esse prazo, evitando a precipitação catas trófica nesse lugar dos
ejetados do mundo.

Referências bibliográficas

BAUDELAIRE, C. Os paraísos artificiais. Lisboa, Estampa, 1971.


FREUD, S. "O mal-estar na civilização" (1930). Em: Obras completas, vol.
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LAURENT, E. "Tres observaciones sobre la toxicomania". Em: S19eto, gocey
111odernidad Il. Buenos Aires, Atuel-TyA, 1995.

140
TOXICOMANIAS: ONDE OPERA O ANALISTA?

Maria Luiza Mota Miranda


Membro da Escola Brasileira de Psicanálise

É uma constatação clínica o fato de muitos indivíduos se


apresentarem nos Centros de Tratamento para toxicômanos com a
frase: "Eu sou toxicômano" 1 • É possível a partir dessa constatação
propor como primeiro ponto de análise a seguinte afirmação: o
toxicômano é um indivíduo que faz uso intensivo de drogas e que
pode ter o seu discurso reduzido à frase: "Eu sou toxicômano".
Lacan define a droga como o que permite romper o casa­
mento com o pequeno pipi. O modo como este rompimento com
o pipi, com o falo imaginário se dá, permite à droga adquirir um
valor tóxico, de objeto da necessidade. Assim, não se trata de cas­
tração, pois o objeto do desejo é subtraído já que a droga é elevada
à condição de objeto da necessidade. Pode-se nesse caso utilizar a
noção de privação, que vem para dar conta do que se chama de um
"furo no real", ou seja, a falta de objeto se dá no real e é por isso
que se fala em abstinência da droga. Só que aí o objeto é simbólico,
pois a privação é a "simples ordem simbólica", é a simbolização do
objeto no real, como diz Lacan no Seminário, livro 4: a relação de oijeto.
O que faz com que algu ém se sustente numa frase do tipo
"Eu sou toxicômano", qual a causa? Que conseqüências clínicas
podem daí advir? Como opera o analista?
O Brilho da InFelicidade

A catacrese

"Eu sou toxicômano" é uma apresentação, uma frase que apa­


rentemente substitui o Nome Próprio, localizando-se no anonimato e
em uma s érie. Há também outras apresentações como "X, o
alcoolista" ou "Y, o alcoolista".
"Eu sou toxicômano" ganha na toxicomania valor de me­
canismo de defesa, de figura de estilo: é uma catacrese.
A metonímia e a metáfora são mecanismos que permitem
ao sujeito do inconsciente se manifestar por seus efeitos; são figuras
de estilo, ornamentam o discurso; "são mecanismos de defesa utili­
zados pelo eu para acobertar o sujeito, se concentram contra a men­
sagem do inconsciente" (Lacan, 1 953).
A catacrese é uma redução, uma trans formação da metáfo­
ra quando esta perde o seu valor estilístico, tornando-se expressão
comum. Modernamente forma-se graças à semelhança de forma
existente entre os seres: há uma causa formal no sentido de 'idéia ou
modelo à qual o objeto corresponde' (Durozoi & Roussel, 1990) .
São tiradas do mundo, do uso comum e são formadas dentro do
idioma com o passar dos anos.
É no mundo moderno e também no discurso da ciência
que o toxicômano apanha a frase que lhe dá sentido e sustentação,
fazendo-a eqüivaler ao seu ser. Quem assistiu o filmeJogos de Adultos
pode lembrar da seguinte fala: "Basta dizermos aos drogados que
eles precisam de uma instituição de tratamento para se curarem, que
eles acreditam". A ciência procura cada vez mais colocar o seu dis­
curso acessível a todos , ao uso comum. É no discurso da ciência
que os toxicômanos vão buscar sua classificação e nesse discurso se
constituem.

142
Maria L,1iza Mota Miranda

A afirmação

O toxicômano se reconhece na afirmação, se apresenta


numa auto-referência ao se dar o atributo de si próprio. É no en­
tanto uma afirmativa que não se situa no mesmo nível da lógica do
inconsciente. O "sim" do inconsciente, parafraseando Miller (1991 ),
é o "sim" que não possui contrário, que não conhece a contradição
e tem valor de escrito. O "sim" do toxicômano tem valor de meca­
nismo de defesa, de figura de linguagem, do mesmo modo que o
"não" da denegação. O "não" não procede do inconsciente, mas é
o reconhecimento do inconsciente pelo eu, que se expressa através
de uma fórmula negativa, ao passo que "Eu sou toxicômano" é
uma fórmula afirmativa. Se a denegação, a metáfora e a metonímia
são mecanismos de defesa do inconsciente, a afirmativa nas toxico­
manias é um mecanismo que alimenta o s er. "Sou, não sou" é uma
questão de oposição e não de contradição, e o toxicômano não
produz essa margem de pensamento, essa aparição do s er sob a
forma do não-ser que se produz com a denegação.
O sujeito se constitui na qualidade que são as negações. Lacan
no Seminário, livro 19: ... ou pior trará quatro modalidades de negação:
a foraclusão do dizer, a discordância, a exceção e a inexistência.
Para Freud a função do juízo só é possível pela criação do
símbolo da negação que permite o pensar se liberar das limitações
do recalque e se enriquecer de conteúdos; é a atitude fundamental
da simbolicidade explicitada, segundo Hyp polite. Assim se constitui
o sujeito do inconsciente.
Na sua constituição de sujeito o toxicômano prescinde da
denegação. No Seminário, livro 14: a lógica da fantasia Lacan dirá que
tudo é permitido ao inconsciente, salvo articular "Então eu sou".

143
O Brilho do lnFelicidade

Daí podemos deduzir que no enunciado do toxicômano não há


sujeito do inconsciente, podemos pensar que há sujeito acéfalo da
pulsão.
Lacan marca que a criação do sún