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Teoria e prática da burocracia estatal*

Flavio Tojal**
Wagner Carvalho***

"Sill duda, aquí se encuelllra ellllícleo fillldamelltal dei


problema de la 'reforma administrativa', ya que ai intentar
prol/loverse la separacióII entre política y administración y
la efectiva subordinación dei aparato 1I0rl/l(/(il'O dei Estado,
no se hace sin inducir infinitos mecanismos de conducta
adaptativa que illlentan resolver las frecuelltes
contradiciones entre los criterios de racionalidad política e
racionalidad técnica que, altemalÍl'amellte, guían las
decisiones burocráticas. ..
Oscar Oszlak

Sumário: I. Correntes teóricas sobre burocracia; 2. O caso brasileiro.


Palavras-chave: burocracia; Estado moderno; reforma do Estado.

Este artigo apresenta os principais marcos teóricos que pretendem explicar a dinâmica
da burocracia, caracterizando sua participação nos diversos processos de dominação
que se veriticam no surgimento e desenvolvimento do Estado moderno. O artigo dis-
cute o papel contraditório desempenhado pela burocracia ao adotar uma lógica racional
e analisa a evolução da burocracia no Brasil a partir dos anos 30. Os autores destacam
algumas questões referentes ao papel do Estado e ao crescimento do seu quadro buro-
crático, relacionando-as ao debate atual sobre a reforma do Estado.

Theory and practice Df state bureaucracy


This article presents the most important theoretical landmarks that have intended to
explain the dynamics fo bureaucracy, characterizing its role in different domination
processes that took place during the birth and development of the modern State. The
authors discuss the contradictory role played by bureaucracy when it adopts a rational
logic, and analyze the evolution of bureaucracy in Brazil since the 30's. They bring out
a few questions about the State's role and the growth of its bureaucratic staft". relating
these issues to the current debate about State reformo

1. Correntes teóricas sobre burocracia

Conceituação

A burocracia continua sendo, apesar do muito que se escreveu e que ainda se


produz sobre o tema, uma categoria mal-definida. Ainda que seja muito discutida
* Artigo recebido em maio e aceito em seI. 1996, tendo sido desenvolvido para o Programa de Pes-
quisa em Reforma do Estado e Governança da EBAPIFGV, sob a coordenação da prof-! Sonia F1eury.
** Mestre em administração pública pela EBAP/FGY.
*** Analista do Banco Central do Brasil e mestrando em administração pública pela EBAPIFGV.

RAP RIO DE JANEIRO )1(1):50-68, JAN.lFEV. 1997


no nível popular, segundo uma concepção bastante negativa, significando reino
do papelório, da morosidade, da ineficiência, os diversos estudiosos que aborda-
ram seus múltiplos aspectos têm dificuldades em propor ou reconhecer um con-
ceito ou uma classificação que abarque todas essas características.
Segundo Girglioli (1986: 124), o termo "burocracia" foi empregado pela pri-
meira vez em meados do século XVIII pelo economista fisiocrático Vincent de
Gournay, visando a identificar o segm.ento de funcionários da administração do
Estado absolutista francês, sob a tutela e dependência do soberano. De origem fi-
siocrática, o termo não poderia deixar de, desde o início, incluir uma forte
conotação negativa.
A partir daí, a expressão se difunde e se populariza, chegando até os nossos
dias para indicar, criticamente, a proliferação de normas, de ritualismo, de forma-
lismos, tanto em instituições governamentais quanto nas privadas.
Esta seção procurará, a partir de uma atualização bibliográfica, descrever e
analisar os diversos enfoques que os autores utilizaram para explicar e entender o
fenômeno burocrático. Utilizando basicamente a linha de raciocínio seguida por
Lefort, distingue duas correntes teóricas. A primeira reconhece o fenômeno como
uma categoria desprovida de autonomia, e que, apesar de sua legitimidade social
e política, é estruturalmente dependente de outras categorias da sociedade. Neste
sentido, a burocracia não constitui uma classe. Dentro desta vertente, podemos es-
tudar a contribuição de Hegel, Marx, Lênin, Trotski, e o desenvolvimento do pen-
samento marxista atual. Em outra direção, mas inclusos na mesma acepção, estão
os estudos de Max Weber, que se destacam tanto no contexto da sociologia do po-
der-dominação, quanto por sua marcante influência sobre o pensamento adminis-
trativo ocidental, focado na eficiência e eficácia do processo produtivo manifesto
nas diversas abordagens da teoria organizacional.
A segunda linha teórica vê a burocracia dotada de autonomia, de poder, cons-
tituindo uma classe: seja na forma como se costumava reconhecer no regime da
antiga União Soviética, onde a burocracia do partido passou a dominar todos os
meios e níveis de vida, como uma verdadeira classe dominante, seja pelo fenôme-
no que se passou a tratar como burocratização do modo de vida, caracterizado no
trabalho, pela hierarquia e estabilidade do emprego, e na dinâmica social, pela ho-
mogeneização dos procedimentos. De qualquer forma, esta percepção assinala
que o fenômeno burocrático possui uma dinâmica e lógica próprias, capazes de se
estender sobre toda a sociedade.
Ao cruzarmos este caminho com a caracterização proposta por Oszlak
(1984:251-307), que distingue uma concepção teórica histórico-estrutural, que
abrange tanto a análise marxista quanto a weberiana, e uma concepção organiza-
tiva, onde localiza as contribuições das diversas abordagens administrativas, não
pretendemos utilizar simplesmente um esquema didático, mas sim uma forma ex-
plicativo-analítica, que propicie o alcance de nossos objetivos.
Não é mero didatismo que faz tanto Lefort como Oszlak aproximarem Weber
dos teóricos marxistas. Se o trabalho de Weber foi aproveitado pelas correntes

BUROCRACIA ESTATAL 51
teóricas que privilegiaram uma abordagem organizacional que passa ao largo da
luta de classes, não é menos verdade que Weber reconhecera a administração
como o cenário adequado para a apropriação da dominação. A releitura weberiana
somada à análise marxista pode certamente fornecer-nos elementos para um en-
tendimento mais abrangente do nosso objeto.

o Estado moderno e o surgimento do fenômeno burocrático


Ao propormos uma caracterização para o Estado moderno recorreremos a
uma comparação que, se não é original nem própria, continua sendo válida: para
a democracia grega o Estado representava algo concreto, como um lugar de con-
vívio e do exercício pleno da vida política dos cidadãos. O que caracteriza o Es-
tado moderno é justamente o contrário: é algo abstrato e, segundo Hegel (Torres
1989:25), pode existir, inclusive a despeito da vontade dos indivíduos: "pode for-
mar-se um Estado mesmo se os indivíduos que o vierem a integrar não tiverem
qualquer ligação do ponto de vista dos costumes, da cultura, da língua ou mesmo
da religião".
A todo esse processo Hegel denomina exteriorização, ou seja, o Estado des-
liga-se da sociedade, separa-se dela, e é este o significado do termo "abstração do
Estado": entendido como a separação, autonomia e especialização de um centro
de poder com relação ao corpo de cidadãos, com o Estado surgindo agora de ma-
neira exterior e até mesmo contra a vontade dos indivíduos, adquirindo uma ca-
racterística coativa que tanto se lhe observa.
Ademais, tal mudança mostra que: a) a liberdade passa a ser entendida como
individual, sendo praticada na área reservada às atividades privadas de caráter so-
cial; b) a cidadania se rarefez, "limitando-se à participação esporádica na eleição
de parlamentares e governantes, de sorte que, perdido na multidão, o indivíduo já
quase não percebe a influência que exerce" (Torres, 1989:30), ou seja, a cidadania
torna-se abstrata.
Considerando-se a cidadania dessa forma, bem como a irreversibilidade do
processo, qualquer que seja a engenharia de institucionalização do Estado, este
vem para tentar diminuir o gap que se formou a partir da sepação "público-priva-
do" e "político-econômico".
É também a partir das dicotomias político-econômico e público-privado, que
localizamos em nossa análise o surgimento do fenômeno burocrático. Antes de
procedermos a uma análise mais profunda dessa afirmação, procuraremos carac-
terizar melhor a questão do surgimento do Estado. Torres (1989:46) reconhece
três razões que possibilitaram o advento do Estado moderno:

a) nascimento da idéia de "soberania", significando aqui o afastamento do prín-


cipe das redes de vassalagem medieval, a fixação de fronteiras geográficas, o
centralismo governamental e a consolidação e crescente afirmação do poder do
rei frente à nobreza e à Igreja; a conseqüência imediata e importante da soberania

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real foi o ressurgimento de um espaço público, notoriamente abolido durante a
Idade Média, mesmo que tal fato não tenha provocado o ressurgimento da cida-
dania; neste caso, o vassalo perde terreno para o súdito;

b) "despatrimonialização" do poder, significando a substituição das rendas


senhoriais por impostos, que passam a ser a base da despesa governamental; isto
ocorre nos três planos da vida civil, ou seja, no jurídico, pela separação entre o
direito público e o direito privado; no plano administrativo, pelo surgimento da
burocracia racional, e no plano financeiro, pela demarcação entre os recursos e
bens estatais e aqueles de propriedade do governante;

c) surgimento da "despersonalização" do poder real, mediado pela consolidação


do princípio da sucessão dinástica, segundo o qual a lei é o fundamento da suces-
são real; o soberano é feito para obedecer às leis, ou seja, o poder perde o caráter
divino, intrínseco à pessoa do rei.

A partir dessas constatações, Torres (1989) sustenta que a contraface da abs-


tração do Estado é o surgimento da democracia representativa, justamente apoia-
da nas três razões acima.

o fenômeno burocrático e a crítica marxista


Retomando nossa perspectiva analítica, passamos a estudar o fenômeno buro-
crático de acordo com os diversos teóricos da tradição marxista. A concepção uni-
versalista que Hegel l tinha do Estado naturalmente foi determinante na forma
como visualizava a burocracia. Esta, na sua perspectiva idealista, encarnava o "in-
teresse geral". A burocracia, na concepção hegeliana, era aquela instância que fa-
zia parte de uma estrutura tripartite e servia de elo entre a sociedade civil e o
Estado. A função básica era de conciliação: mediar o interesse geral do Estado (in-
teresse desde já universal) e os interesses particulares das corporações privadas.
Hegel, coerentemente, da mesma forma que via a realidade do Estado como estru-
tura perfeita e superior à sociedade civil, visualizava a burocracia como uma clas-
se social universal, desprovida de poder político.
Se para Hegel o Estado era eterno, não histórico, e envolvia uma relação justa
e ética entre os elementos da sociedade, para Marx o Estado só poderia ser vi sua-
Iizado em um contexto histórico e dentro de uma concepção materialista: "Não é
o Estado que molda a sociedade mas a sociedade que molda o Estado. A socieda-
de, por sua vez, se molda pelo modo dominante de produção e das relações de pro-
dução inerentes a esse modo" (Carnoy, 1988:6).

J "Para Hegel, o Estado realidade moral, como síntese do substancial e do particular, contém o inte-

resse enquanto tal, que é sua substância, deduzindo-se, então, ser o Estado a instância suprema que
elimina todas as particularidades no seio de sua unidade" (Tragtemberg, 1977:22).

BUROCRACIA ESTATAL 53
Além disto, e em contraste com Hegel, para Marx o Estado, emergindo das
relações de produção, era a expressão da luta de classes, sendo um instrumento de
dominação de classes na sociedade capitalista, mais exatamente um instrumento
da classe mais poderosa, a classe dominante.
Mais tarde, ao analisar a burocracia francesa da época de Luís Bonaparte,
Marx (Oszlak, 1984:302)2 a descreve como um "exército de funcionários tota-
lizando meio milhão", e a caracteriza como "tremendo corpo de parasitas capaz
de envolver com sua teia o corpo da sociedade", já vislumbrando sua capaci-
dade de voltar-se contra o Estado, ameaçar o poder parlamentar e a própria bur-
guesia.
As posteriores contribuições de Lênin e Trotski (Lefort, 1984:51) seguiram as
mesmas linhas: para Lênin a burocracia é um corpo parasita sobre a sociedade
burguesa, origina-se na contradição interna que divide a sociedade e é recrutada
nas camadas médias e inferiores da sociedade, recrutamento este separa uma parte
de seus membros do restante do povo, ligando-o à classe dominante. Ao mesmo
tempo, Lênin sustentava que em uma sociedade socialista a extinção do Estado
conduziria a uma extinção do seu aparelho burocrático.
Trotski sustentava que a existência da burocracia não altera a natureza das re-
lações de produção e, por isso, não pode se constituir em classe, sendo, na situação
da União Soviética, uma formação eminentemente parasitária, que o povo poderia
expulsar no momento em que ela se revelasse ineficiente, como se expulsa um ge-
rente incompetente.
A principal crítica que se faz à teoria marxista clássica em relação à burocra-
cia decorre da própria concepção de Estado que têm seus teóricos. Sendo o Estado
um aparelho de dominação a serviço da classe dominante, numa sociedade socia-
lista, onde inexista a propriedade privada e desapareça a dominação, o Estado não
terá mais razão de existência. Esta lógica conduziu a que não se prestasse a devida
atenção ao Estado ou que não se produzisse uma teoria de Estado marxista. Da
mesma forma, a burocracia não foi devidamente estudada, ficando sem resposta
questões como (Lefort, 1984:23):

a) Sendo a burocracia um corpo social estratificado, em que nível se situa o


poder dos burocratas?

b) Ela é, neste aspecto, uma espécie de vertedouro dos partidos políticos?

c) Ela possui um "princípio próprio de proliferação"?

2 Esta análise liga-se à situação da França de Luís Bonaparte, onde o Executivo sustentava-se em
dupla base: Assembléia Nacional e burocracia. Com o enfrentamento dessas duas instâncias, o
Executivo sai fortalecido juntamente com sua burocracia, em detrimento da burguesia e do Parla-
mento. Ver, também, Marx.

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d) Ao converter-se em burocrata, ao ser recrutado, a pessoa continua a pertencer
à sua classe originária?

e) Essas pessoas mudam de mentalidade, sem mudar de classe?

Tais questões não são objeto de estudo dos autores clássicos. É através da aná-
lise do Estado de estudiosos do marxismo moderno, como Gramsci e Poulantzas,
que chegamos a um conceito ampliado de Estado, e questões como essas podem
ser consideradas à luz da teoria marxista atual.

A contribuição de Max Weber ao estudo sobre fenômeno burocrático

A burocracia constitui aquela instância administrativa que apresenta grande


afinidade com o tipo legal-racional de dominação, devidamente problematizado e
evidenciado por Max Weber.
Este distingue o fenômeno "poder" de "dominação": "Poder significa toda
probabilidade de impor a própria vontade numa relação social, mesmo contra re-
sistências, seja qual for o fundamento dessa probabilidade. Dominação é a proba-
bilidade de encontrar obediência a uma ordem de determinado conteúdo, entre
determinadas pessoas indicáveis" (Weber, 1991 :33).
O significado fornecido e entendido para "poder" é bem mais abrangente que o
de "dominação", mas a preocupação de Weber estava focada no aspecto do "man-
do" e da obediência. No Estado feudal e absolutista, o soberano ou senhor detinha
o poder indiscriminado sobre os seus vassalos. Os aspectos já abordados sobre o ad-
vento da "soberania", da "despersonificação" do poder e da "despatrimonialização"
fornecem a chave para o entendimento dessa preocupação weberiana relacionada ao
aspecto de dominação. A partir desse momento histórico, foi necessário criar outros
mecanismos que garantissem a obediência ao rei, já que este não mais dispunha do
poder absoluto e também ele próprio estava sob o mando da lei.
Os tipos puros ideais propostos por Weber - dominações de caráter carismá-
tico, tradicional e racional - acompanham a mesma linha de raciocínio e têm
como eixo fundamental a presença do Estado e o advento de um espaço público e
da cidadania. Mesmo não estando explícito este relacionamento, podemos referi-
lo: "o senhor legal típico, o 'superior', enquanto ordena e, com isso, manda, obe-
dece por sua parte à ordem impessoal pela qual orienta suas disposições; isto se
aplica também ao senhor legal que não é 'funcionário público', por exemplo, o
presidente eleito de um Estado. ( ... ) que - como se costuma expressá-lo - quem
obedece só o faz como membro da associação e só obedece 'ao direito'; como
membro de uma união, comunidade, igreja; no Estado: como cidadão" (Weber,
1991:142).
Em outra situação, Weber sincroniza e relaciona diretamente as duas situa-
ções, ao afirmar que o desenvolvimento e crescimento da burocracia constituíam
a "célula germinativa do moderno Estado ocidental" (Weber, 199 I: 146). Ele ex-

BUROCRACIA ESTATAL 55
pressou desde cedo sua preocupação com o processo de burocratização, entendido
como a exarcerbação das práticas democráticas, ou seja: quem é que exerce a do-
minação sobre a burocracia? Segundo Weber (1991: 146), é o saber, o conheci-
mento, a hierarquia dos saberes adquiridos formalmente, que garantiria essa
dominação.
A burocracia tende sempre a reforçar seu status quo, a crescer, a ramificar-se:
seja na complexidade e na assunção de novas tarefas, seja na perspectiva perma-
nente de fazer desenvolver a empresa ou instituição. De acordo com Lefort
(1984: 143), " a identificação do burocrata com a empresa a que está ligado é uma
mediação natural na consciência que o grupo adquire de sua própria identidade".
Em outras palavras, se a burocracia não possui uma atividade econômica própria,
sua lógica é, então, assumir como seus os objetivos da organização.
Weber assevera que o desenvolvimento pleno da burocracia ocorre quando os
setores da economia natural são eliminados, ou seja, na plena dominância capita-
lista. Além disto, o desenvolvimento da democracia permite a administração ra-
cional através de funcionários anônimos - consagrados a tarefas de alcance
universal - , substituindo uma administração patriarcal e a sincronização entre a
burocracia e o processo de racionalização capitalista. Baseado nessas assertivas,
Weber (1991: 147) afirma que a administração racional-burocrática é mais ade-
quada para o modo de produção capitalista, já que a subordinação de todas as ati-
vidades a uma determinada finalidade racional objetiva coincide com a
racionalidade econômica do capitalismo industrial. Ou seja, existe uma dupla re-
lação: se o capitalismo exige uma administração racional, a burocracia, por sua
vez, necessita dos recursos do capitalismo para se manter e desenvolver.

A burocracia como classe

Nas duas acepções anteriores (pensamento marxista tradicional e pensamento


weberiano), o traço marcante da burocracia era sua não-autonomia própria. A
questão oferece uma face analítica bastante distinta quando passamos a analisar a
forma que o fenômeno burocrático apresentou na ex-União Soviética. Lá, segun-
do Lefort (1984:44), mesmo com o desaparecimento da propriedade privada, os
operários continuaram sendo classe explorada, já que não detinham a gestão da
produção, sendo meros executores. Desta forma, persistiu a oposição capital/tra-
balho, o que configura, por si, pelo menos a presença de duas classes sociais: uma
dominante, exploradora, e outra dominada, explorada.
Uma característica básica da burocracia como classe dominante é que ela não
exerce uma atividade profissional e econômica privada, como o faz a burguesia.
Ela é dominante porque depende do Estado, que mantém a hierarquia social. Nes-
ta condição, ela se esforça por conseguir um domínio ampliado de todos os setores
da sociedade, nos fazendo lembrar um sistema de dominação total.
A grande dificuldade teórica, segundo Lefort (1984:47), é que a burocracia só
se torna uma classe quando se faz dominante e ao se fazer dominante continua a

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depender do Estado, já que não dispõe de uma determinação ou lugar de classe,
como o possuem a burguesia e a classe operária. Mesmo dominante, a burocracia
continua a depender de uma atividade política de unificação. Ela não constitui
uma categoria econômica, mas sim um sistema de dominação, sendo esta indeter-
minação o principal obstáculo teórico para sua definição.

A divisão social do trabalho e a autonomia burocrática

A determinação do que entendemos por divisão social do trabalho remonta à


delimitação, por Marx, da classe operária, a qual se caracteriza por ser despos-
suída dos meios de produção: "Todo trabalhador produtivo é trabalhador assala-
riado, o que não significa que todo trabalhador assalariado seja um trabalhador
produtivo" (Poulantzas, 1975:228).
A dificuldade de entendimento desta definição pode ser amenizada se com-
preendermos o que seja "trabalho produtivo". Poulantzas esclarece que o "traba-
lho produtivo" varia de uma situação histórica para outra, só podendo ser
devidamente entendido no contexto de condições sociais determinadas. Está, pois,
relacionado a um determinado modo de produção (escravista, feudal, capitalista
etc.) e às relações de exploração impostas e subentendidas por tal modo de produ-
ção.
Não se deve entender daí que o "trabalho produtivo" seja um resultado con-
creto ou material do trabalho, nem está ligado à natureza do produto nem ao ren-
dimento próprio do trabalho. O que caracteriza o "trabalho produtivo", em um
determinado "modo de produção", é a geração de um excedente que origina a re-
lação de exploração dominante neste modo. No capitalismo, o trabalho produtivo
é aquele que produz diretamente a mais-valia, que valoriza o capital (Poulantzas,
1975:229).
Neste sentido, o trabalho decorrente do comércio, dos escritórios, e dos ban-
cos não é produtivo: ele não produz a mais-valia, e, portanto, seus trabalhadores
não pertencem à classe operária. Este seria um capital circulatório: o comerciante
não produz qualquer valor, mas usufrui e participa do lucro decorrente da mais-
valia produzida pelo capital produtivo. Seus trabalhadores são explorados, aju-
dam na redução dos custos para a realização da mais-valia, mas nem por isso são
produtivos.
Esta questão é importante para definirmos a participação dos agentes do Es-
tado e seus funcionários na divisão social do trabalho. Por esse ângulo de análise,
tal camada social não seria produtiva. Ela é paga pelos impostos que, por sua vez,
são a expressão própria da distribuição da mais-valia.
Outro fator relevante é a crescente importância da ciência e tecnologia no
mundo moderno, principalmente da informática, gerando afirmações de que a ci-
ência se tornou força produtiva central da sociedade (Poulantzas, 1975:240). Mas
apesar da importância do trabalho científico ser enorme, isto não é suficiente para
torná-lo produtivo: o trabalho da ciência não intervém diretamente no processo de

BUROCRACIA ESTATAL 57
produção material, mas sim nas aplicações tecnológicas, desta forma diferencian-
do e afastando-se do trabalho direto (Poulantzas, 1975:241).
Basicamente, o processo de trabalho pode ser entendido como trabalho ma-
nual e trabalho intelectual. Esta divisão, que perpassará a análise, daqui por dian-
te, do fenômeno burocrático, está assentada basicamente nas relações ideológicas
influentes na divisão social do trabalho.
Uma primeira questão a ser esclarecida é a respeito do que se entende por "in-
telectual". Para Gramsci (Poulantzas, 1975:274), os intelectuais são "funcionários
da ideologia". Não constituem classe, mas guardam uma pertinência de c1asse-
os intelectuais da classe operária, da classe burguesa. Da análise gramsciana de-
corre o alargamento do conceito de intelectual, do mesmo modo que o seu concei-
to de aparelho ideológico e de hegemonia alargou o entendimento a respeito do
Estado.
Poulantzas (1975:274) amplia ainda mais esse conceito: "Não são somente os
intelectuais, como categoria social, que cumprem o trabalho intelectual, ou, antes,
que se situam do lado do trabalho intelectual: os intelectuais como categoria social
específica são somente um produto da divisão trabalho intelectual/ trabalho ma-
nual que os ultrapassa de longe ".
Evidentemente, não podemos nos contentar com uma divisão do tipo "traba-
lho manual é trabalho feito com as mãos e trabalho intelectual é o realizado com
o cérebro".
Esta divisão denota o elemento político-ideológico posto a serviço da domi-
nação, que deseja fazer crer que os operários são bestializados e incapazes de
atuar intelectualmente - ideologia esta que impregnou todo um ramo da teoria
organizacional - , impondo e legitimando uma superioridade do "saber" sobre
toda uma classe trabalhadora. Gramsci (Poulantzas, 1975:275) esclarece: "não
existe atividade humana em que se possa excluir toda intervenção intelectual e se-
parar 0/701110 faber do /701110 sapiens". Em seguida, afirma lapidarmente: "Todos
os homens são intelectuais, mas nem todos os homens têm, na sociedade, a função
de intelectual".
A divisão trabalho intelectual/trabalho manual assenta-se em um investi-
mento ideológico em favor de uma divisão entre os que detêm o conhecimento vá-
lido e os que não o possuem e são impedidos de acessá-lo. Neste sentido, esta
divisão do processo de trabalho é uma técnica de exclusão social, bastante estabe-
lecida e ampliada nos dias atuais.
O fenômeno burocrático, em especial a burocracia estatal, retira parte consi-
derável de sua autonomia e de seu poder relativo do conteúdo dessa valorização
político-ideológica do seu trabalho. Como tal, o trabalho burocrático é considera-
do superior ao trabalho produtivo do operário, porque possui o monopólio e o se-
gredo do saber. Para efetivar essa dominação burocrática, lança-se mão de um
conjunto de símbolos ideológicos (forma de falar, de escrever, de postar-se etc.)
que são utilizados para assentar e legitimar a separação e a hierarquização dentro
da própria burocracia e sobre a classe operária. O trabalho manual, por outro lado,

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é considerado simples trabalho manual, que requer menos investimentos, menos
conhecimentos, menos aptidões.

A moderna contribuição da teoria marxista

A atual análise marxista não reconhece o caráter de classe nem de setor de


classe para a burocracia, mas procura entender que ela pode vir a adquirir uma cer-
ta autonomia e um agir em seu próprio interesse, contra alguns dos interesses da
classe dominante, adquirindo uma autonomia relativa.
Lefort (1984: 18) vê a burocracia como "um corpo especial na sociedade",
porque sua função é manter a ordem estabelecida e seu fim significa o fim da do-
minação burguesa e porque não é uma classe nem setor de classe, ou seja, depen-
de, para sua ação, dos verdadeiros agentes históricos, as classes sociais em luta.
Passamos a estudar então o processo de burocratização a partir do advento do
capitalismo monopolista, que, segundo Poulantzas (1975), provoca a perda do Po-
der Legislativo e o aumento das prerrogativas do Poder Executivo e do aparato bu-
rocrático-administrativo.
O lugar e o papel do Parlamento eram concebidos como voltados para a edi-
ção de leis e normas gerais e universais, já que ele representava o símbolo da von-
tade geral. Poulantzas nota que a crescente multiplicidade de problemas
econômicos, sociais e políticos que o Estado passou a acumular exigiu modifica-
ções nesse relacionamento. Vemos, então, o Executivo cada vez normalizando
mais, editando mais leis, em detrimento do Legislativo. De uma legitimação ba-
seada na crença da vontade geral que representava o Parlamento, atingimos uma
legitimação assentada em uma racionalidade instrumental da eficácia, da presteza
e da neutralidade, representada agora, em nome do Executivo, pelo quadro admi-
nistrativo burocrático.
Ao longo do tempo ocorreu uma cristalização dos poderes e influências hege-
mônicas dos diversos setores do capital monopolista no seio da burocracia estatal.
Ela então se constituiu em representante legítima dos interesses monopolistas.
Nesta rede de relacionamentos consegue transmutar, de forma ideológica, os in-
teresses monopolistas em "interesse geral", "interesse do povo" e "interesse na-
cional". Logicamente, todos os setores não-hegemônicos da sociedade também
fazem parte e afirmam suas posições na própria burocracia estatal, influenciando
no processo político. É nessa dinâmica de disputa entre as diversas classes (e mes-
mo no seu interior) e atores políticos, que a burocracia assume sua autonomia re-
lativa, e, dependendo da correlação de forças que participam do enfrentamento
entre tais classes e atores, a autonomia ou poder pode ser maior ou menor.
Sob esta forma de dominação do Executivo e condensação das forças sociais
no aparelho burocrático, emergem os procedimentos administrativos baseados no
sigilo, no segredo profissional, nas obrigações de discrição profissional. Este
comportamento, analisado como disfunção administrativa por uma corrente de
teóricos ligados à administração pública, esconde o papel mais importante que de-

BUROCRACIA ESTATAL 59
sempenha a segredo burocrático: "a emergência, como dispositivo dominante do
Estado como centro privilegiado de elaboração de decisões políticas, da burocra-
cia administrativa e governamental que, por sua própria formação, corporifica por
excelência a distância entre dirigentes e dirigidos e a estanquização do poder dian-
te de um controle democrático" (Lefort, 1984:262).
Essa tendência conduz, no pensamento de Poulantzas (1975:268-9), a uma sé-
rie de evoluções que provocam consideráveis modificações no processo da demo-
cracia representativa, originando um estatismo autoritário. Este estatismo
autoritário, cuja figura mítica é a personalização do poder em um presidente da
República, coloca os cidadãos contra a administração, já que o canal de participa-
ção propiciado pelos partidos já não mais funciona, já que também os partidos es-
tão presos à mesma lógica de dominação: ou se submetem à administração ou
devem renunciar a todo acesso a ela.
Procuramos, ao longo dessa análise, caracterizar os principais marcos teóricos
que procuraram explicar a dinâmica da burocracia e de sua participação nos diver-
sos processos de dominação que ocorreram durante o surgimento e desenvolvi-
mento do Estado moderno. Verificamos que, a partir de um entendimento do
caráter histórico do Estado, também a burocracia reveste-se desta mesma caracte-
rística: não existe assim "uma burocracia" com traços bem delimitados, mas sim
burocracias com traços e características que variam de acordo com o grau de de-
senvolvimento e as necessidades do Estado do qual participam e servem.
A maior questão teórica foi a caracterização da burocracia a partir do enten-
dimento dela constituir ou não uma classe. Essa preocupação dominou a discussão
até o final dos anos 80. Com o desaparecimento da União Soviética e das grandes
mudanças políticas, tecnológicas e sociais que se impuseram para o final de sécu-
lo, gerou-se um vazio na discussão teórica. Neste cenário de mudanças e de inde-
finições, onde os caminhos, funções e determinações políticas para o Estado ainda
se acham em construção, parece-nos pouco relevante realimentar a discussão so-
bre o caráter de classe da burocracia.
Interessa-nos mais apontar para o papel contraditório desempenhado por ela:
ao mesmo tempo em que está ligada ao Estado e ao processo de dominação, sendo
parte do processo de dominação capitalista, adota procedimentos, formas e méto-
dos bastante diversos àquele tipo de dominação. E se aceitarmos que uma das fon-
tes de legitimação do poder do Estado continuará a ser voto popular secreto, e a
forma de sua concretização a democracia representativa, poderemos vislumbrar,
na segunda assertiva da contradição citada, uma função primordial para a burocra-
cia: na sua racionalidade, imparcialidade, hierarquia, ela propiciaria o ideal da ge-
neralidade e da abstração desse Estado, sendo a contraface dessa função a garantia
dos processos políticos e sociais voltados para a manutenção e desenvolvimento
da cidadania ocidental.
Tendo a burocracia este caráter histórico, variando sua lógica de atuação de
acordo com o desenvolvimento do Estado, com o modo de produção adotado e em
um mesmo modo de produção, dentro de seus diversos estágios, procuraremos, na

60 RAPl/97
próxima seção, contribuir para tal debate, retratando a burocracia brasileira: sua
formação, desenvolvimento, lógica de atuação e perspectivas futuras.

2. Ocaso brasileiro

Evolução

No Brasil, o desenvolvimento da burocracia se dá segundo uma dinâmica que


não foge muito das construções teóricas que trataram do assunto em outros países,
porém algumas peculiaridades se fazem notar. O papel do Estado e dos seus qua-
dros administrativos sofre uma grande transformação, assumindo real significado
e caráter de ator político a partir dos anos 30. Até aquele período, o país era con-
duzido por uma restrita elite que detinha o poder político - então privilégio da-
queles que detinham o poder econômico - , apoiada, basicamente, na cultura e
comércio do café. Apesar de o governo ser definido através de eleições, as mes-
mas não podiam ser consideradas exatamente como eleições livres. Prevalecia o
chamado voto de cabresto, onde a opção do eleitor era ditada pela preferência do
patrão, seu empregador ou dono da terra. Além do direito de voto ser restrito, não
sendo, portanto, de todos, as apurações também não eram confiáveis e, assim,
confundiam-se os interesses particulares da elite agrária com os do Estado. O que
significava dizer que o Estado era, então, propriedade de alguns poucos e que a
noção de público não tinha qualquer significado para a maior parte da população.
Da mesma forma, o pessoal que compunha os quadros de funcionários públicos,
os burocratas, sendo escolhido segundo critérios e interesses restritos, não alcan-
çava um perfeito entendimento da separação entre as dimensões de público e pri-
vado, adotando como lógica de ação servir àqueles senhores que lhe haviam
propiciado a condição de funcionário do Estado.
Portanto, se não havia público, não havia separação entre público e privado,
não havia cidadão, mas servidor de algum patrão. Assim, o conceito de nação per-
manecia bastante limitado e, na realidade, confundido com o Estado territorial.
Como conseqüência, também era limitada a idéia de direito, cidadania e interesse
comum. Na prática, o que havia eram alguns poucos senhores e seus próprios in-
teresses comuns, as terras destes mesmos senhores e seus empregados. A dimen-
são "povo" não tinha muito significado, o mesmo ocorrendo com relação às suas
aspirações e necessidades, não sendo, portanto, preciso um aparelho de Estado
que atendesse às suas demandas. O que havia era um Estado bastante restrito, ca-
bendo aos oligarcas o suprimento da maior parte das necessidades da população,
como também o seu controle.
Sendo as eleições simbólicas, o que valia realmente eram os acordos realiza-
dos pela elite agrária. Dominavam o cenário político, principalmente, os estados
de Minas Gerais e São Paulo, cabendo aos dois alternarem-se na ocupação da pre-
sidência da República a cada período de governo, caracterizando um sistema que

BUROCRACIA ESTATAL 61
era federativo apenas no nome e café com leite na prática. Utilizando os conceitos
de Weber (1991) sobre dominação, o que existia no país era uma sociedade estru-
turada através de um sistema de dominação patrimonialista com um reduzido apa-
relho burocrático, de maneira geral escolhido de dentro das relações de parentesco
ou amizade dos herdeiros do poder. Mesmo após o período do Império, permane-
cia atravessada na lógica de ação do Estado a cultura clientelista de se relacionar,
favorecendo os chamados amigos do rei.
Do restrito quadro de funcionários, apenas os militares, responsáveis pela ins-
talação da própria República, destoavam, ao menos em parte, deste esquema po-
lítico que determinava o funcionamento do Estado, sendo eles também os
promotores dos movimentos que se iniciaram a partir dos primeiros anos da déca-
da de 20 e que culminaram com a profunda transformação do Estado deflagrada
com a Revolução de 30. Assim, após décadas de controle hegemônico, a oligar-
quia agroexportadora, fracionada e debilitada pela redução do seu poder econômi-
co, conseqüência da crise que atingia o mundo capitalista, é defenestrada de
grande parte do seu poder político.
Com o fim da República Velha, instaurava-se um novo tipo de Estado que pa-
rece se aproximar da idéia de Re~ publica, agora no sentido de coisa pública. Este
Estado, singularizado pela autonomia que desenvolve a partir da mediação das
questões de interesse das frações dominantes que já não possuem hegemonia, co-
loca-se acima do conjunto da sociedade e encontra sua fonte de legitimidade nas
massas populares urbanas. O Estado que, anteriormente, era mediado na sua rela-
ção com a população através do patrão, agora se apresenta diretamente ao povo,
construindo e promovendo uma democracia das massas e um conjunto de profun-
das mudanças estruturais (Draibe, 1985:21-2).
No conjunto das transformações que ocorrem a partir da Revolução de 30,
tem início a construção da nação, da igualdade e dos direitos do cidadão, do inte-
resse comum, do aparelho social e das políticas dirigidas ao interesse do trabalha-
dor urbano e da indústria. O Estado que se transformava, utilizando novamente os
conceitos de Weber, mostrava traços de um sistema racional-legal com aparato
burocrático. Seguia-se à sua implantação a montagem de aparelhos para a elabo-
ração e implementação de políticas, a criação de carreiras técnicas e a classifica-
ção de cargos para o exercício das atividades do serviço público. Porém, a velha
oligarquia agrária, mesmo enfraquecida e sem consenso, ainda se mostrava pre-
sente como importante ator político e principal fornecedora do apoio político e
dos recursos materiais necessários à reestruturação do Estado. Assim, permane-
ciam, ainda, as relações cliente listas como traço importante do sistema político
que vinha sendo implementado pelos novos governantes dentro do novo Estado
(Gouvêa, 1994:79-80). Dessa forma, reproduzia-se a relação de clientelas que
permanecia atravessada na cultura política do Estado e da nação que se formava.
O novo Estado assumia, ainda, o papel de promotor do processo de indus-
trialização do país, conduzindo um projeto de desenvolvimento que deveria per-
mitir sua reinserção no ambiente externo em outras bases. Promovia-se o

62 RAPI/97
caminho da transformação do Brasil agroexportador em Brasil potência indus-
trial. Com isso, desenvolveu-se dentro do Estado, apoiado nos interesses da na-
ção, a montagem de um aparato técnico centralizado para regulação econômica
e ação direta na produção, determinando a formação de uma burocracia deten-
tora de um conhecimento técnico e especializado dirigido para a realização do
projeto industrializante.
O custo político para a aceitação, por parte das elites, da hegemonia de idéias
que colocavam o Estado como organizador da sociedade e construtor da economia
nacional não se restringia apenas ao clientelismo, mas incluía uma forma de pacto
sociopolítico que lhe garantia poder suficiente para assumir a sua condição auto-
ritária (Fiori, 1993:7-8). Dessa maneira, mesmo durante o período autoritário -
1937-45 - em que o novo Estado se toma o Estado Novo, como também na dé-
cada de 50, em meio ao grande movimento de expansão e diferenciação da indús-
tria promovido pelo Estado através do Plano de Metas do governo Juscelino
Kubitschek, ainda vigia uma política clientelista que caracterizava o sistema po-
lítico democrático brasileiro (Fiori, 1993:9).

Segmentações dentro do Estado

Com a dinâmica desenvolvimentista, formava-se no interior do Estado uma


burocracia profissionalizada, com conhecimento técnico e capacitação para dar
seqüência ao projeto industrializante, que ganhou impulso a partir da década de
50 até se completar no início dos anos 80. A expansão do Estado nesse período
adquire características singulares, principalmente a partir de 1964, quando se ini-
cia mais um período de regime autoritário. Observava-se, então, um crescimento
significativo do setor público, que, apenas durante o regime militar, implantou
302 novas empresas estatais. Além disso, vigorava um sistema jurídico precário
sobre as instituições e relações sociais emergentes e sobre a estrutura administra-
tiva do Estado, que se dividia em administração direta e indireta, central e descen-
tralizada (Martins, 1985:43).
Da mesma forma que ocoreu com os grupos executivos ào período Juscelino,
desenvolvia-se no Estado uma burocracia paralela que era dirigida para os seg-
mentos econômico e produtivo, os quais estavam, em parte, situados na esfera da
administração indireta, onde podiam conduzir a estratégia de governo de expan-
são industrial menos sujeitos às pressões políticas que recaíam sobre a adminis-
tração direta.
Entre as revoluções de 30 e de 64, foi conduzida a construção institucional do
sistema financeiro nacional e formada uma nova burocracia que ocuparia posição
de destaque nos processos de elaboração e execução das políticas econômicas dos
diversos governos do período, na condução das finanças públicas e na sua reestru-
turação institucional, que incluía: o Banco do Brasil; a seção de estudos econômi-
cos do Ministério da Fazenda, criada em 1934; o Departamento de Administração
do Serviço Público - Dasp, criado em 1937; a Superintendência da Moeda e do

BUROCRACIA ESTATAL 63
Crédito - Sumoc, criada em 1945; a Assessoria Econômica da Presidência da
República, criada em 1951; o Banco Nacional de Desenvolvimento - BNDE,
criado em 1952; a Superintendência para o Desenvolvimento do Nordeste - Su-
dene, criada em 1959. Entre os principais nomes que surgiam com a nova elite bu-
rocrática e que, apesar de algumas diferenças de pensamento, começariam a
determinar os rumos da economia do país, figuravam: Eugênio Gudin, Luiz Si-
mões Lopes, Octavio Gouvêa de Bulhões e Celso Furtado, além de um conjunto
de seguidores que, em boa parte, continuariam influindo na política econômica
mesmo após 1964 (Gouvêa, 1994:85-7).
Ao mesmo tempo, era formado e desenvolvido um outro segmento, o setor
produtivo do Estado e sua diferenciada burocracia, para alguns autores o "execu-
tivo das empresas públicas" (Gouvêa, 1994). A meio caminho da lógica de ação
da administração direta e da lógica empresarial, este conjunto mantinha um certo
distanciamento do Estado e uma identidade híbrida de, simultaneamente, promo-
tor e ator do processo de desenvolvimento, caracterizando as vinculações entre os
projetos político e desenvolvimentista do Estado. Promovia-se o crescimento in-
dustrial ao mesmo tempo em que se legitimava, através desta ação, a expansão da
face empresarial do Estado de desenvolvimento capitalista, condição necessária
considerando-se que os recursos para isto eram oriundos de poupança forçada da
sociedade (Martins, 1985:60).
Em conseqüência, o setor produtivo estatal se submetia à adoção de certos
procedimentos fundamentais para a viabilização do projeto em curso, obtendo
maior autonomia e se colocando próximo do modelo de empresa privada capita-
lista, o que acabou facilitando sua ação na mediação das relações entre os capitais
nacional e estrangeiro. Assim, a partir do início da sua formação, com a criação
da Companhia Siderúrgica Nacional e da VaIe do Rio Doce, ainda no primeiro pe-
ríodo de governo de Vargas, o aparelho de produção vai se expandir significativa-
mente até o final da década de 70, sendo um dos maiores destaques a criação da
Petrobras, em 1953, bem como a polarização política que se gerou em tomo da
questão do petróleo.
Essa situação de imbricamento entre estatal e empresarial favorecia as or-
ganizações do setor produtivo estatal que, pela condição de órgãos do Estado,
se capacitavam a receber substanciais aportes de recursos públicos necessários
ao desempenho das suas atribuições. Por outro lado, a proximidade do setor
privado, necessária à ação de mediação dos capitais nacional e estrangeiro fun-
damentais para conduzir o país ao estágio de capitalismo industrial, fazia com
que as empresas do setor e suas burocracias fossem adquirindo parte da racio-
nalidade predominante nas organizações privadas e entre seus executivos. Se-
ria mesmo esta bifacialidade do setor produtivo estatal que lhe permitiria
permanecer quase invulnerável "à erosão da imagem convencional de parasi-
tismo e ineficiência, freqüentemente argüida a respeito das agências estatais
provedoras de serviços, em especial serviços públicos de natureza social" (AI-
veal, 1994:43-4).

64 RAPl/97
A burocracia e a questão da reforma de Estado

Durante meio século - de 1930 a 1980 - , tempo em que se promoveu a in-


dustrialização do Brasil, o Estado esteve presente como o principal ator do pro-
cesso de construção, conseguindo sempre ampliar sua autonomia e participação
na economia. Enquanto existiram disponibilidade de recursos e crédito externo, o
Estado financiou e sustentou seu projeto político, obtendo o apoio das elites em
troca da estatização dos custos privados da industrialização, configurando uma si-
tuação onde, cada vez mais, eram reduzidos os espaços para a adoção de uma es-
tratégia autônoma por parte do Estado que pudesse dar conta das crises
econômicas que foram sendo produzidas ao longo desse período. Como observou
Fiori (1993: 14), " só coube ao Estado a saída de 'fugir para a frente' ( ... )".
Com relação à sua burocracia e aos anéis burocráticos que conectavam a
ação estatal aos interesses privados através de uma rede de cumplicidades pes-
soais, que permitia que parte da burocracia pudesse ser capturada pelo sistema de
interesses das empresas privadas, desenvolvia-se umjogo político em tomo de in-
teresses objetivos - econômicos e de poder - , porém limitados, na medida em
que a fragmentação no nível do bloco no poder deve também ser limitada, de for-
ma a garantir a sua hegemonia. Desse modo, o grau de liberdade para que os seg-
mentos burocráticos pudessem desenvolver projetos políticos autônomos variava
em função da possibilidade de coincidência destes mesmos projetos com os obje-
tivos do Estado desenvolvimentista. Ou seja, os acordos e alianças pessoais eram
possíveis, desde que dentro dos objetivos pactuados, pelo Estado e os capitais pri-
vado e estrangeiro, que caracterizavam o Estado de desenvolvimento capitalista
(Cardoso, 1975: 182-3).
Com a crise financeira internacional do início da década de 80, verificaram-
se os primeiros sinais de enfraquecimento do pacto desenvolvimentista, que pou-
co antes havia sido retomado vigorosamente pelo governo Geisel, refletindo-se na
falência fiscal do Estado e em perda do apoio do empresariado. Naquele momento
ficava, ainda, demonstrada a fragilidade da gigantesca estrutura industrial desen-
volvida pelo projeto estatal, a qual, apesar do porte e da diversificação, não pos-
suía sustentação financeira nem tecnológica.
Por um lado, a debilidade do pacto reduzia mais ainda o poder necessário por
parte do Estado para a promoção de uma política de estabilização, haja vista que
a aceitação por parte do empresariado do intervencionismo estatal só ocorria em
função de "uma 'proteção' que teve como efeito, no plano institucional, o que al-
guns chamaram de 'cartorialização' e outros de 'privatização' do Estado e da 'or-
dem' (... )" (Fiori, 1993:23). Por outro lado, agravava-se mais ainda a situação do
país, que aliava a sua crise financeira a uma crise política que, disfarçada pelo pro-
cesso que se chamou de transição democrática, transformava o esgotamento do
regime autoritário em ingovernabilidade crônica, dando termo a uma forma de re-
gime político, porém sem destituir seus atores. Portanto, como não houvera um
rompimento do pacto entre Estado e capitais, apenas o seu enfraquecimento, con-

BUROCRACIA ESTATAL 65
tinuara os mesmos atores ocupando a arena política, porém a ideologia do desen-
volvimentismo de Estado precisava ceder lugar a um ideário que reduzisse a
participação estatal na economia, ou seja, um pensamento mais liberalizante que
deveria considerar, inclusive, uma reorganização da estrutura estatal e, conse-
qüentemente, uma transformação nos seus segmentos burocráticos.
Assim, devido à incapacidade do período Sarney, que sucedeu o último go-
verno do ciclo autoritário de 1964 a 1985, mas ainda não fora eleito pela via direta,
não se obteve condições para o desenvolvimento de uma saída político-econômica
para o país, sendo postergada para as gestões dos presidentes Collor e Itamar,
onde se inicia um processo de reforma nos aparelhos de Estado, incluindo um pro-
grama de privatização, e nos quadros burocráticos, determinando demissões de
funcionários e movimentações entre integrantes da elite burocrática.
Encerrada a gestão Itamar e empossado o atual presidente, Fernando Henri-
que Cardoso, prossegue o processo de reestruturação do Estado e aprofundamento
das proposições de redução do intervencionismo estatal. Em linhas gerais, a rees-
truturação que vem sendo conduzida pelo governo, sob a orientação do ministro
Bresser Pereira, mantém como eixo a defesa da coisa pública - Res publica -
procurando marcar a separação entre público e privado, entre Estado e mercado.
Como fundamentos, tem-se que tal defesa deve ser conduzida de maneira buro-
crática e democrática e que a administração pública deve evoluir do modo patri-
monialista para o burocrático e, finalmente, para o gerencial.
Ainda sobre a proposta do governo, este último estágio de evolução, buro-
crático para gerencial, teria como principais efeitos o estabelecimento de con-
troles a posteriori, o aumento da autonomia da administração e a visualização
do cidadão como cliente e não mais como contribuinte. Dessa forma, entre os
setores fundamentais do Estad0 3 os núcleos estratégicos e as atividades funda-
mentais seguiriam um tipo de administração pública misto burocrático e geren-
ciaI, enquanto os demais setores passariam a adotar uma forma de administração

3 Segundo o Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado, versão 3, de 10 seI. 1995, o Estado
estaria dividido em setores fundamentais. da seguinte forma:
a) núcleos estratégicos - são o setor que edita leis, define as políticas públicas e cobra o seu cum-
primento; são exemplos a presidência, os ministérios, o Judiciário e o Legislativo;
b) atividades fundamentais - são o setor em que são prestados serviços que só o Estado pode rea-
lizar; são os serviços em que se exerce o poder extroverso do Estado, o poder de regulamentar, fis-
calizar, subsidiar; são exemplos a previdência social e serviço de desemprego e o serviço unificado
de saúde;
c) serviços competitivos - correspodem ao setor onde o Estado atua simultaneamente com outras
organizações públicas não-estatais e privadas; as instituições desse setor não possuem o poder de
Estado; são exemplos as universidades, hospitais, centros de pesquisa e museus;
d) produção de bens e serviços para o mercado - corresponde à área de atuação das empresas,
sendo este setor caracterizado pelas atividades econômicas voltadas para o lucro que ainda perma-
necem no aparelho do Estado; são exemplos as estatais do setor de infra-estrutura.

66 RAP 1/97
pública predominantemente gerencial, caracterizando formas de propriedades
públicas não-estatais.
Mesmo seguindo um ritmo não muito acelerado e enfrentando algumas bar-
reiras políticas, a reestruturação do Estado prossegue no seu desenvolvimento.
Apesar de ainda estar presente no cenário político a maior parte dos atores do pe-
ríodo autoritário, exceto os próprios militares, consegue-se produzir, finalmente,
ao menos na aparência e com algum custo para a classe média e para a balança
comercial, uma certa estabilidade político-econômica. Em paralelo, no conjunto
dessas mudanças, transformam-se de maneira diversa e ainda não explicada os
segmentos burocráticos, uma vez que a reestruturação do Estado e o redimensio-
namento da sua capacidade de influência não se produzem de maneira homogênea
em todos os aparelhos, o que dificulta a compreensão da lógica de ação da buro-
cracia enquanto ela própria opera como sujeito e objeto no processo de sua rees-
truturação e de reorganização da sua área de atuação.

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