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Teoria e Pratica Burocracia Estatal PDF
Teoria e Pratica Burocracia Estatal PDF
Flavio Tojal**
Wagner Carvalho***
Este artigo apresenta os principais marcos teóricos que pretendem explicar a dinâmica
da burocracia, caracterizando sua participação nos diversos processos de dominação
que se veriticam no surgimento e desenvolvimento do Estado moderno. O artigo dis-
cute o papel contraditório desempenhado pela burocracia ao adotar uma lógica racional
e analisa a evolução da burocracia no Brasil a partir dos anos 30. Os autores destacam
algumas questões referentes ao papel do Estado e ao crescimento do seu quadro buro-
crático, relacionando-as ao debate atual sobre a reforma do Estado.
Conceituação
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teóricas que privilegiaram uma abordagem organizacional que passa ao largo da
luta de classes, não é menos verdade que Weber reconhecera a administração
como o cenário adequado para a apropriação da dominação. A releitura weberiana
somada à análise marxista pode certamente fornecer-nos elementos para um en-
tendimento mais abrangente do nosso objeto.
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real foi o ressurgimento de um espaço público, notoriamente abolido durante a
Idade Média, mesmo que tal fato não tenha provocado o ressurgimento da cida-
dania; neste caso, o vassalo perde terreno para o súdito;
J "Para Hegel, o Estado realidade moral, como síntese do substancial e do particular, contém o inte-
resse enquanto tal, que é sua substância, deduzindo-se, então, ser o Estado a instância suprema que
elimina todas as particularidades no seio de sua unidade" (Tragtemberg, 1977:22).
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Além disto, e em contraste com Hegel, para Marx o Estado, emergindo das
relações de produção, era a expressão da luta de classes, sendo um instrumento de
dominação de classes na sociedade capitalista, mais exatamente um instrumento
da classe mais poderosa, a classe dominante.
Mais tarde, ao analisar a burocracia francesa da época de Luís Bonaparte,
Marx (Oszlak, 1984:302)2 a descreve como um "exército de funcionários tota-
lizando meio milhão", e a caracteriza como "tremendo corpo de parasitas capaz
de envolver com sua teia o corpo da sociedade", já vislumbrando sua capaci-
dade de voltar-se contra o Estado, ameaçar o poder parlamentar e a própria bur-
guesia.
As posteriores contribuições de Lênin e Trotski (Lefort, 1984:51) seguiram as
mesmas linhas: para Lênin a burocracia é um corpo parasita sobre a sociedade
burguesa, origina-se na contradição interna que divide a sociedade e é recrutada
nas camadas médias e inferiores da sociedade, recrutamento este separa uma parte
de seus membros do restante do povo, ligando-o à classe dominante. Ao mesmo
tempo, Lênin sustentava que em uma sociedade socialista a extinção do Estado
conduziria a uma extinção do seu aparelho burocrático.
Trotski sustentava que a existência da burocracia não altera a natureza das re-
lações de produção e, por isso, não pode se constituir em classe, sendo, na situação
da União Soviética, uma formação eminentemente parasitária, que o povo poderia
expulsar no momento em que ela se revelasse ineficiente, como se expulsa um ge-
rente incompetente.
A principal crítica que se faz à teoria marxista clássica em relação à burocra-
cia decorre da própria concepção de Estado que têm seus teóricos. Sendo o Estado
um aparelho de dominação a serviço da classe dominante, numa sociedade socia-
lista, onde inexista a propriedade privada e desapareça a dominação, o Estado não
terá mais razão de existência. Esta lógica conduziu a que não se prestasse a devida
atenção ao Estado ou que não se produzisse uma teoria de Estado marxista. Da
mesma forma, a burocracia não foi devidamente estudada, ficando sem resposta
questões como (Lefort, 1984:23):
2 Esta análise liga-se à situação da França de Luís Bonaparte, onde o Executivo sustentava-se em
dupla base: Assembléia Nacional e burocracia. Com o enfrentamento dessas duas instâncias, o
Executivo sai fortalecido juntamente com sua burocracia, em detrimento da burguesia e do Parla-
mento. Ver, também, Marx.
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d) Ao converter-se em burocrata, ao ser recrutado, a pessoa continua a pertencer
à sua classe originária?
Tais questões não são objeto de estudo dos autores clássicos. É através da aná-
lise do Estado de estudiosos do marxismo moderno, como Gramsci e Poulantzas,
que chegamos a um conceito ampliado de Estado, e questões como essas podem
ser consideradas à luz da teoria marxista atual.
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pressou desde cedo sua preocupação com o processo de burocratização, entendido
como a exarcerbação das práticas democráticas, ou seja: quem é que exerce a do-
minação sobre a burocracia? Segundo Weber (1991: 146), é o saber, o conheci-
mento, a hierarquia dos saberes adquiridos formalmente, que garantiria essa
dominação.
A burocracia tende sempre a reforçar seu status quo, a crescer, a ramificar-se:
seja na complexidade e na assunção de novas tarefas, seja na perspectiva perma-
nente de fazer desenvolver a empresa ou instituição. De acordo com Lefort
(1984: 143), " a identificação do burocrata com a empresa a que está ligado é uma
mediação natural na consciência que o grupo adquire de sua própria identidade".
Em outras palavras, se a burocracia não possui uma atividade econômica própria,
sua lógica é, então, assumir como seus os objetivos da organização.
Weber assevera que o desenvolvimento pleno da burocracia ocorre quando os
setores da economia natural são eliminados, ou seja, na plena dominância capita-
lista. Além disto, o desenvolvimento da democracia permite a administração ra-
cional através de funcionários anônimos - consagrados a tarefas de alcance
universal - , substituindo uma administração patriarcal e a sincronização entre a
burocracia e o processo de racionalização capitalista. Baseado nessas assertivas,
Weber (1991: 147) afirma que a administração racional-burocrática é mais ade-
quada para o modo de produção capitalista, já que a subordinação de todas as ati-
vidades a uma determinada finalidade racional objetiva coincide com a
racionalidade econômica do capitalismo industrial. Ou seja, existe uma dupla re-
lação: se o capitalismo exige uma administração racional, a burocracia, por sua
vez, necessita dos recursos do capitalismo para se manter e desenvolver.
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depender do Estado, já que não dispõe de uma determinação ou lugar de classe,
como o possuem a burguesia e a classe operária. Mesmo dominante, a burocracia
continua a depender de uma atividade política de unificação. Ela não constitui
uma categoria econômica, mas sim um sistema de dominação, sendo esta indeter-
minação o principal obstáculo teórico para sua definição.
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produção material, mas sim nas aplicações tecnológicas, desta forma diferencian-
do e afastando-se do trabalho direto (Poulantzas, 1975:241).
Basicamente, o processo de trabalho pode ser entendido como trabalho ma-
nual e trabalho intelectual. Esta divisão, que perpassará a análise, daqui por dian-
te, do fenômeno burocrático, está assentada basicamente nas relações ideológicas
influentes na divisão social do trabalho.
Uma primeira questão a ser esclarecida é a respeito do que se entende por "in-
telectual". Para Gramsci (Poulantzas, 1975:274), os intelectuais são "funcionários
da ideologia". Não constituem classe, mas guardam uma pertinência de c1asse-
os intelectuais da classe operária, da classe burguesa. Da análise gramsciana de-
corre o alargamento do conceito de intelectual, do mesmo modo que o seu concei-
to de aparelho ideológico e de hegemonia alargou o entendimento a respeito do
Estado.
Poulantzas (1975:274) amplia ainda mais esse conceito: "Não são somente os
intelectuais, como categoria social, que cumprem o trabalho intelectual, ou, antes,
que se situam do lado do trabalho intelectual: os intelectuais como categoria social
específica são somente um produto da divisão trabalho intelectual/ trabalho ma-
nual que os ultrapassa de longe ".
Evidentemente, não podemos nos contentar com uma divisão do tipo "traba-
lho manual é trabalho feito com as mãos e trabalho intelectual é o realizado com
o cérebro".
Esta divisão denota o elemento político-ideológico posto a serviço da domi-
nação, que deseja fazer crer que os operários são bestializados e incapazes de
atuar intelectualmente - ideologia esta que impregnou todo um ramo da teoria
organizacional - , impondo e legitimando uma superioridade do "saber" sobre
toda uma classe trabalhadora. Gramsci (Poulantzas, 1975:275) esclarece: "não
existe atividade humana em que se possa excluir toda intervenção intelectual e se-
parar 0/701110 faber do /701110 sapiens". Em seguida, afirma lapidarmente: "Todos
os homens são intelectuais, mas nem todos os homens têm, na sociedade, a função
de intelectual".
A divisão trabalho intelectual/trabalho manual assenta-se em um investi-
mento ideológico em favor de uma divisão entre os que detêm o conhecimento vá-
lido e os que não o possuem e são impedidos de acessá-lo. Neste sentido, esta
divisão do processo de trabalho é uma técnica de exclusão social, bastante estabe-
lecida e ampliada nos dias atuais.
O fenômeno burocrático, em especial a burocracia estatal, retira parte consi-
derável de sua autonomia e de seu poder relativo do conteúdo dessa valorização
político-ideológica do seu trabalho. Como tal, o trabalho burocrático é considera-
do superior ao trabalho produtivo do operário, porque possui o monopólio e o se-
gredo do saber. Para efetivar essa dominação burocrática, lança-se mão de um
conjunto de símbolos ideológicos (forma de falar, de escrever, de postar-se etc.)
que são utilizados para assentar e legitimar a separação e a hierarquização dentro
da própria burocracia e sobre a classe operária. O trabalho manual, por outro lado,
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é considerado simples trabalho manual, que requer menos investimentos, menos
conhecimentos, menos aptidões.
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sempenha a segredo burocrático: "a emergência, como dispositivo dominante do
Estado como centro privilegiado de elaboração de decisões políticas, da burocra-
cia administrativa e governamental que, por sua própria formação, corporifica por
excelência a distância entre dirigentes e dirigidos e a estanquização do poder dian-
te de um controle democrático" (Lefort, 1984:262).
Essa tendência conduz, no pensamento de Poulantzas (1975:268-9), a uma sé-
rie de evoluções que provocam consideráveis modificações no processo da demo-
cracia representativa, originando um estatismo autoritário. Este estatismo
autoritário, cuja figura mítica é a personalização do poder em um presidente da
República, coloca os cidadãos contra a administração, já que o canal de participa-
ção propiciado pelos partidos já não mais funciona, já que também os partidos es-
tão presos à mesma lógica de dominação: ou se submetem à administração ou
devem renunciar a todo acesso a ela.
Procuramos, ao longo dessa análise, caracterizar os principais marcos teóricos
que procuraram explicar a dinâmica da burocracia e de sua participação nos diver-
sos processos de dominação que ocorreram durante o surgimento e desenvolvi-
mento do Estado moderno. Verificamos que, a partir de um entendimento do
caráter histórico do Estado, também a burocracia reveste-se desta mesma caracte-
rística: não existe assim "uma burocracia" com traços bem delimitados, mas sim
burocracias com traços e características que variam de acordo com o grau de de-
senvolvimento e as necessidades do Estado do qual participam e servem.
A maior questão teórica foi a caracterização da burocracia a partir do enten-
dimento dela constituir ou não uma classe. Essa preocupação dominou a discussão
até o final dos anos 80. Com o desaparecimento da União Soviética e das grandes
mudanças políticas, tecnológicas e sociais que se impuseram para o final de sécu-
lo, gerou-se um vazio na discussão teórica. Neste cenário de mudanças e de inde-
finições, onde os caminhos, funções e determinações políticas para o Estado ainda
se acham em construção, parece-nos pouco relevante realimentar a discussão so-
bre o caráter de classe da burocracia.
Interessa-nos mais apontar para o papel contraditório desempenhado por ela:
ao mesmo tempo em que está ligada ao Estado e ao processo de dominação, sendo
parte do processo de dominação capitalista, adota procedimentos, formas e méto-
dos bastante diversos àquele tipo de dominação. E se aceitarmos que uma das fon-
tes de legitimação do poder do Estado continuará a ser voto popular secreto, e a
forma de sua concretização a democracia representativa, poderemos vislumbrar,
na segunda assertiva da contradição citada, uma função primordial para a burocra-
cia: na sua racionalidade, imparcialidade, hierarquia, ela propiciaria o ideal da ge-
neralidade e da abstração desse Estado, sendo a contraface dessa função a garantia
dos processos políticos e sociais voltados para a manutenção e desenvolvimento
da cidadania ocidental.
Tendo a burocracia este caráter histórico, variando sua lógica de atuação de
acordo com o desenvolvimento do Estado, com o modo de produção adotado e em
um mesmo modo de produção, dentro de seus diversos estágios, procuraremos, na
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próxima seção, contribuir para tal debate, retratando a burocracia brasileira: sua
formação, desenvolvimento, lógica de atuação e perspectivas futuras.
2. Ocaso brasileiro
Evolução
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era federativo apenas no nome e café com leite na prática. Utilizando os conceitos
de Weber (1991) sobre dominação, o que existia no país era uma sociedade estru-
turada através de um sistema de dominação patrimonialista com um reduzido apa-
relho burocrático, de maneira geral escolhido de dentro das relações de parentesco
ou amizade dos herdeiros do poder. Mesmo após o período do Império, permane-
cia atravessada na lógica de ação do Estado a cultura clientelista de se relacionar,
favorecendo os chamados amigos do rei.
Do restrito quadro de funcionários, apenas os militares, responsáveis pela ins-
talação da própria República, destoavam, ao menos em parte, deste esquema po-
lítico que determinava o funcionamento do Estado, sendo eles também os
promotores dos movimentos que se iniciaram a partir dos primeiros anos da déca-
da de 20 e que culminaram com a profunda transformação do Estado deflagrada
com a Revolução de 30. Assim, após décadas de controle hegemônico, a oligar-
quia agroexportadora, fracionada e debilitada pela redução do seu poder econômi-
co, conseqüência da crise que atingia o mundo capitalista, é defenestrada de
grande parte do seu poder político.
Com o fim da República Velha, instaurava-se um novo tipo de Estado que pa-
rece se aproximar da idéia de Re~ publica, agora no sentido de coisa pública. Este
Estado, singularizado pela autonomia que desenvolve a partir da mediação das
questões de interesse das frações dominantes que já não possuem hegemonia, co-
loca-se acima do conjunto da sociedade e encontra sua fonte de legitimidade nas
massas populares urbanas. O Estado que, anteriormente, era mediado na sua rela-
ção com a população através do patrão, agora se apresenta diretamente ao povo,
construindo e promovendo uma democracia das massas e um conjunto de profun-
das mudanças estruturais (Draibe, 1985:21-2).
No conjunto das transformações que ocorrem a partir da Revolução de 30,
tem início a construção da nação, da igualdade e dos direitos do cidadão, do inte-
resse comum, do aparelho social e das políticas dirigidas ao interesse do trabalha-
dor urbano e da indústria. O Estado que se transformava, utilizando novamente os
conceitos de Weber, mostrava traços de um sistema racional-legal com aparato
burocrático. Seguia-se à sua implantação a montagem de aparelhos para a elabo-
ração e implementação de políticas, a criação de carreiras técnicas e a classifica-
ção de cargos para o exercício das atividades do serviço público. Porém, a velha
oligarquia agrária, mesmo enfraquecida e sem consenso, ainda se mostrava pre-
sente como importante ator político e principal fornecedora do apoio político e
dos recursos materiais necessários à reestruturação do Estado. Assim, permane-
ciam, ainda, as relações cliente listas como traço importante do sistema político
que vinha sendo implementado pelos novos governantes dentro do novo Estado
(Gouvêa, 1994:79-80). Dessa forma, reproduzia-se a relação de clientelas que
permanecia atravessada na cultura política do Estado e da nação que se formava.
O novo Estado assumia, ainda, o papel de promotor do processo de indus-
trialização do país, conduzindo um projeto de desenvolvimento que deveria per-
mitir sua reinserção no ambiente externo em outras bases. Promovia-se o
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caminho da transformação do Brasil agroexportador em Brasil potência indus-
trial. Com isso, desenvolveu-se dentro do Estado, apoiado nos interesses da na-
ção, a montagem de um aparato técnico centralizado para regulação econômica
e ação direta na produção, determinando a formação de uma burocracia deten-
tora de um conhecimento técnico e especializado dirigido para a realização do
projeto industrializante.
O custo político para a aceitação, por parte das elites, da hegemonia de idéias
que colocavam o Estado como organizador da sociedade e construtor da economia
nacional não se restringia apenas ao clientelismo, mas incluía uma forma de pacto
sociopolítico que lhe garantia poder suficiente para assumir a sua condição auto-
ritária (Fiori, 1993:7-8). Dessa maneira, mesmo durante o período autoritário -
1937-45 - em que o novo Estado se toma o Estado Novo, como também na dé-
cada de 50, em meio ao grande movimento de expansão e diferenciação da indús-
tria promovido pelo Estado através do Plano de Metas do governo Juscelino
Kubitschek, ainda vigia uma política clientelista que caracterizava o sistema po-
lítico democrático brasileiro (Fiori, 1993:9).
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Crédito - Sumoc, criada em 1945; a Assessoria Econômica da Presidência da
República, criada em 1951; o Banco Nacional de Desenvolvimento - BNDE,
criado em 1952; a Superintendência para o Desenvolvimento do Nordeste - Su-
dene, criada em 1959. Entre os principais nomes que surgiam com a nova elite bu-
rocrática e que, apesar de algumas diferenças de pensamento, começariam a
determinar os rumos da economia do país, figuravam: Eugênio Gudin, Luiz Si-
mões Lopes, Octavio Gouvêa de Bulhões e Celso Furtado, além de um conjunto
de seguidores que, em boa parte, continuariam influindo na política econômica
mesmo após 1964 (Gouvêa, 1994:85-7).
Ao mesmo tempo, era formado e desenvolvido um outro segmento, o setor
produtivo do Estado e sua diferenciada burocracia, para alguns autores o "execu-
tivo das empresas públicas" (Gouvêa, 1994). A meio caminho da lógica de ação
da administração direta e da lógica empresarial, este conjunto mantinha um certo
distanciamento do Estado e uma identidade híbrida de, simultaneamente, promo-
tor e ator do processo de desenvolvimento, caracterizando as vinculações entre os
projetos político e desenvolvimentista do Estado. Promovia-se o crescimento in-
dustrial ao mesmo tempo em que se legitimava, através desta ação, a expansão da
face empresarial do Estado de desenvolvimento capitalista, condição necessária
considerando-se que os recursos para isto eram oriundos de poupança forçada da
sociedade (Martins, 1985:60).
Em conseqüência, o setor produtivo estatal se submetia à adoção de certos
procedimentos fundamentais para a viabilização do projeto em curso, obtendo
maior autonomia e se colocando próximo do modelo de empresa privada capita-
lista, o que acabou facilitando sua ação na mediação das relações entre os capitais
nacional e estrangeiro. Assim, a partir do início da sua formação, com a criação
da Companhia Siderúrgica Nacional e da VaIe do Rio Doce, ainda no primeiro pe-
ríodo de governo de Vargas, o aparelho de produção vai se expandir significativa-
mente até o final da década de 70, sendo um dos maiores destaques a criação da
Petrobras, em 1953, bem como a polarização política que se gerou em tomo da
questão do petróleo.
Essa situação de imbricamento entre estatal e empresarial favorecia as or-
ganizações do setor produtivo estatal que, pela condição de órgãos do Estado,
se capacitavam a receber substanciais aportes de recursos públicos necessários
ao desempenho das suas atribuições. Por outro lado, a proximidade do setor
privado, necessária à ação de mediação dos capitais nacional e estrangeiro fun-
damentais para conduzir o país ao estágio de capitalismo industrial, fazia com
que as empresas do setor e suas burocracias fossem adquirindo parte da racio-
nalidade predominante nas organizações privadas e entre seus executivos. Se-
ria mesmo esta bifacialidade do setor produtivo estatal que lhe permitiria
permanecer quase invulnerável "à erosão da imagem convencional de parasi-
tismo e ineficiência, freqüentemente argüida a respeito das agências estatais
provedoras de serviços, em especial serviços públicos de natureza social" (AI-
veal, 1994:43-4).
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A burocracia e a questão da reforma de Estado
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tinuara os mesmos atores ocupando a arena política, porém a ideologia do desen-
volvimentismo de Estado precisava ceder lugar a um ideário que reduzisse a
participação estatal na economia, ou seja, um pensamento mais liberalizante que
deveria considerar, inclusive, uma reorganização da estrutura estatal e, conse-
qüentemente, uma transformação nos seus segmentos burocráticos.
Assim, devido à incapacidade do período Sarney, que sucedeu o último go-
verno do ciclo autoritário de 1964 a 1985, mas ainda não fora eleito pela via direta,
não se obteve condições para o desenvolvimento de uma saída político-econômica
para o país, sendo postergada para as gestões dos presidentes Collor e Itamar,
onde se inicia um processo de reforma nos aparelhos de Estado, incluindo um pro-
grama de privatização, e nos quadros burocráticos, determinando demissões de
funcionários e movimentações entre integrantes da elite burocrática.
Encerrada a gestão Itamar e empossado o atual presidente, Fernando Henri-
que Cardoso, prossegue o processo de reestruturação do Estado e aprofundamento
das proposições de redução do intervencionismo estatal. Em linhas gerais, a rees-
truturação que vem sendo conduzida pelo governo, sob a orientação do ministro
Bresser Pereira, mantém como eixo a defesa da coisa pública - Res publica -
procurando marcar a separação entre público e privado, entre Estado e mercado.
Como fundamentos, tem-se que tal defesa deve ser conduzida de maneira buro-
crática e democrática e que a administração pública deve evoluir do modo patri-
monialista para o burocrático e, finalmente, para o gerencial.
Ainda sobre a proposta do governo, este último estágio de evolução, buro-
crático para gerencial, teria como principais efeitos o estabelecimento de con-
troles a posteriori, o aumento da autonomia da administração e a visualização
do cidadão como cliente e não mais como contribuinte. Dessa forma, entre os
setores fundamentais do Estad0 3 os núcleos estratégicos e as atividades funda-
mentais seguiriam um tipo de administração pública misto burocrático e geren-
ciaI, enquanto os demais setores passariam a adotar uma forma de administração
3 Segundo o Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado, versão 3, de 10 seI. 1995, o Estado
estaria dividido em setores fundamentais. da seguinte forma:
a) núcleos estratégicos - são o setor que edita leis, define as políticas públicas e cobra o seu cum-
primento; são exemplos a presidência, os ministérios, o Judiciário e o Legislativo;
b) atividades fundamentais - são o setor em que são prestados serviços que só o Estado pode rea-
lizar; são os serviços em que se exerce o poder extroverso do Estado, o poder de regulamentar, fis-
calizar, subsidiar; são exemplos a previdência social e serviço de desemprego e o serviço unificado
de saúde;
c) serviços competitivos - correspodem ao setor onde o Estado atua simultaneamente com outras
organizações públicas não-estatais e privadas; as instituições desse setor não possuem o poder de
Estado; são exemplos as universidades, hospitais, centros de pesquisa e museus;
d) produção de bens e serviços para o mercado - corresponde à área de atuação das empresas,
sendo este setor caracterizado pelas atividades econômicas voltadas para o lucro que ainda perma-
necem no aparelho do Estado; são exemplos as estatais do setor de infra-estrutura.
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pública predominantemente gerencial, caracterizando formas de propriedades
públicas não-estatais.
Mesmo seguindo um ritmo não muito acelerado e enfrentando algumas bar-
reiras políticas, a reestruturação do Estado prossegue no seu desenvolvimento.
Apesar de ainda estar presente no cenário político a maior parte dos atores do pe-
ríodo autoritário, exceto os próprios militares, consegue-se produzir, finalmente,
ao menos na aparência e com algum custo para a classe média e para a balança
comercial, uma certa estabilidade político-econômica. Em paralelo, no conjunto
dessas mudanças, transformam-se de maneira diversa e ainda não explicada os
segmentos burocráticos, uma vez que a reestruturação do Estado e o redimensio-
namento da sua capacidade de influência não se produzem de maneira homogênea
em todos os aparelhos, o que dificulta a compreensão da lógica de ação da buro-
cracia enquanto ela própria opera como sujeito e objeto no processo de sua rees-
truturação e de reorganização da sua área de atuação.
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