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UNIVERSIDADE FEDERAL DO AMAPÁ - UNIFAP

LICENCIATURA EM ARTES VISUAIS

AMADEU LEÔNCIO DE PELEGRIN NETO

JARLENE XIMENDES PARDIM

WELLITON QUARESMA DE LIMA

NARRATIVAS VISUAIS NO COTIDIANO ESCOLAR: EXPERIÊNCIAS SENSÍVEIS


E AS REDES DE COMUNICAÇÃO ENTRE ALUNOS SURDOS E OUVINTES.

Macapá
2017
AMADEU LEÔNCIO DE PELEGRIN NETO

JARLENE XIMENDES PARDIM

WELLITON QUARESMA DE LIMA

NARRATIVAS VISUAIS NO COTIDIANO ESCOLAR: EXPERIÊNCIAS SENSÍVEIS


E AS REDES DE COMUNICAÇÃO ENTRE ALUNOS SURDOS E OUVINTES.

Trabalho de Conclusão de Curso – TCC


apresentado do Curso de Licenciatura
Plena em Artes Visuais da Universidade
Federal do Amapá – UNIFAP (Campus
Marco Zero).
Orientador: Profº Ms. Mauricio Remígio
Viana

Macapá
2017
Universidade Federal do Amapá - UNIFAP
Licenciatura em Artes Visuais

Título do Trabalho: Narrativas visuais no cotidiano escolar: experiências


sensíveis e as redes de comunicação entre alunos surdos e ouvintes.

Autores(as): Amadeu Leôncio de Pelegrin Neto


Jarlene Ximendes Pardim
Welliton Quaresma de Lima

Defesa em: ___ / ___ / ___ Conceito obtido: __________

Banca Examinadora

______________________________
Profº Ms. Mauricio Remígio Viana (Orientador)

______________________________ ______________________________
Profº Dr. Ronaldo Manassés R. Campos Profª Dra. Silva Carla M. Costa
(Examinador) (Examinadora)
AGRADECIMENTOS

Ao Eterno, pelo dom da vida.


Aos nossos familiares e amigos.
A contribuição dos professores que participaram deste percurso.
Aos colaboradores que contribuíram para a construção desta pesquisa.
RESUMO

Este trabalho pretende compartilhar e refletir acerca de relatos etnográficos


amparados pela pesquisa qualitativa realizada na Escola Estadual Tiradentes. Onde
se intentou responder questionamentos a respeito das possibilidades do ensino de
Artes Visuais para construir pontes, criar possibilidades para a democratização,
autonomia ao acesso dos saberes entre surdos e ouvintes. Os sujeitos da pesquisa
foram educandos surdos e ouvintes do terceiro ano do Ensino Médio. A relevância
deste estudo está no fato de ser uma proposta que visa o aproveitamento e
valoração dos trânsitos dos alunos, suas subjetividades, visualidades, assim como a
utilização dos recursos tecnológicos para o ensino de Artes. Durante a realização da
pesquisa constatou-se algumas barreiras nos processos de comunicação onde nem
os alunos ouvintes e nem a professora regente dominavam a Língua de Sinais,
ocasionando por vezes o isolamento dos surdos na ausência do intérprete de
LIBRAS. Observando o transito dos discentes durante o intervalo nos corredores da
escola percebemos que estas barreiras comunicacionais eram ultrapassadas com o
auxilio de mídias visuais e os artefatos tecnológicos. No transcurso deste trabalho
serão explicitadas as estratégias utilizadas na mediação do conteúdo, e os
resultados obtidos dos experimentos realizados a partir dos caminhos apontados
pelo campo.

Palavras-Chave: Experiências Visuais. Etnografia. Subjetividade. Surdos.


Experimentos.
ABSTRACT

This present work has as intention the sharing and reflection about ethnographic
reports sustained by a qualitative research conducted at Tiradentes High School.
There, we aimed to answer questions regarding the possibilities for the Arts teaching
so as to have bridges built, creating opportunities for democratization, authonomy to
the access to the knowledges among deaf and listener students. The subjects of this
present study were both deaf and listeners senior high school students. The
relevance of this study is on the fact that it contains a proposal whose goal is the
educational achievement and the appraisement of the students´ transit, their
subjectivities, visualities, just like the technological resources for the Arts teaching.
During the conduction of the research, it has been verified a few obstacles in the
communication processes where neither listeners nor the regent teacher had the
mastery of the Brazilian language of signs, what occasionally caused the isolation of
the deaf students, once they do not have the monitoring of an appropriate interpreter.
While observing the transit of the students at the break time along the aisles, we
noticed these communicative boundaries were broken with the utilization of visual
media and technological tools. Along this paper, it will be possible to perceive the
strategies used on the intermediation of the contents of the school subjects, as well
as the results obtained of the experiments carried out from the paths pointed by the
study field.

KEY-WORDS: Visual Experiences. Ethnography. Subjectivity. Deaf. Experiments.


LISTA DE IMAGENS

Imagem 1 – In Visível......................................................................................................................... 13
Imagem 2– Contenção ...................................................................................................................... 16
Imagem 3-Comunicação ................................................................................................................... 17
Imagem 4- Observador ...................................................................................................................... 20
Imagem 5 – Comunicação Virtual .................................................................................................... 22
Imagem 6 – bagagens ....................................................................................................................... 23
Imagem 7 - Confinados ..................................................................................................................... 25
Imagem 9– Rotas Alternativas ......................................................................................................... 28
Imagem 10-Afetos .............................................................................................................................. 29
Imagem 11 -Expressões visuais ...................................................................................................... 31
Imagem 12 – Propostas curriculares............................................................................................... 35
Imagem 13 – Transito livre ............................................................................................................... 37
Imagem 14 - Pistas ............................................................................................................................ 40
Imagem 15- Representatividade......................................................................................................44
Imagem 16 – O que é Cultura? ........................................................................................................ 47
Imagem 17 – Outras interpretações 1 ............................................................................................. 53
Imagem 18– Outras interpretações 2 .............................................................................................. 53
Imagem 19– Outras interpretações 3 .............................................................................................. 53
Imagem 20 – Outras interpretações 4 ............................................................................................. 55
Imagem 21– Outras interpretações 5 .............................................................................................. 55
Imagem 22– Outras interpretações 6 .............................................................................................. 55
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ............................................................................................................ 9
CAPÍTULO I .............................................................................................................. 12
A APROXIMAÇÃO COM O CAMPO, DESCONFORTOS, MEDOS, ANSIEDADES,
INCERTEZAS E DESEJOS....................................................................................... 12
1. 1 EM BUSCA DE OUTRAS COMPREENSÕES POR CAMINHOS
INSTÁVEIS. ........................................................................................................... 19
1. 2 OBSERVAÇÕES, REFLEXÕES E IMPRESSÕES DO UNIVERSO
SURDO.... .............................................................................................................. 25
CAPITULO II ............................................................................................................. 34
VIVÊNCIAS DOS ALUNOS, SUAS DIFERENÇAS, VISUALIDADES E SABERES
COMO POTÊNCIA DE AULA. ............................................................................... 34
2. 1 ESTÚDIOSOS 323: INVESTIGAÇÕES DO DESEJO EM ESPAÇOS
ALTERNATIVOS. ................................................................................................... 37
CAPÍTULO III ............................................................................................................ 41
DIÁLOGOS ENTRE CURRÍCULO OFICIAL, VIDA E COTIDIANO........................ 41
CAPITULO IV ............................................................................................................ 47
EXPERIMENTAÇÕES DE OUTRAS FORMAS DE APRENDER:
DESCONFINADOS. ............................................................................................... 47
4. 1 DIVERSÃO, EXPERIMENTAÇÃO E CRIAÇÃO.............................................. 50
ALGUMAS CONSIDERAÇÕES ................................................................................ 57
REFERÊNCIAS ......................................................................................................... 59
INTRODUÇÃO

O presente trabalho gira em torno da construção de narrativas visuais


elaboradas por meio de pesquisa de campo na Escola Estadual Tiradentes, onde
sensibilizados com as questões observadas nas atividades de estágio
supervisionado I e II, construímos a presente pesquisa. Primeiramente nosso
interesse pela investigação na área em foco da pesquisa se deu a partir de vivências
compartilhadas no cotidiano acadêmico onde a presença de um acadêmico surdo 1,
integrante deste grupo de pesquisa, suscitou o desejo de mergulharmos no universo
dos não ouvintes a fim de compreender como se desenvolviam as relações de
outros alunos surdos com os sujeitos ouvintes2 na escola publica em salas de aula
regular no contexto das aulas de artes.
A investigação foi norteada a partir das perspectivas da pesquisa
qualitativa variando nos seus diversos instrumentos metodológicos. Buscando nos
estudos da cultura visual o aporte teórico que conduziu a equipe rumo à construção
e compartilhamento dos relatos que foram produzidos no decorrer de cada etapa da
pesquisa.
Para melhor compreender, o trabalho foi estruturado em quatro capítulos
compostos por anotações de observação participante (relatos etnográfico),
cartografia sentimental, conversas informais com os alunos, histórias de vida,
registros fotográficos, recortes de conversas pelo aplicativo de mensagens
Whatsapp.
No primeiro capítulo denominado de “A aproximação com o campo,
desconforto, medos, ansiedades e incertezas”, buscou-se descrever os sentimentos
iniciais que tocaram a equipe ao adentrarmos no espaço escolar e os primeiros
contatos com os sujeitos do campo.
A princípio as indagações que nos impulsionaram a ir em busca de
respostas foram: como lidarmos com a diversidade que constitui a sociedade que
ocupa o espaço escolar? Como o ensino das artes visuais pode construir pontes,
criar possibilidades para a democratização e autonomia ao acesso dos saberes
1
Segundo EIJI (2012, p. 03) “Ser Surdo” passa a ser percebido como um modo de existir, como outros vários,
fundado na experiência visual e no uso das línguas de modalidade viso-motora (as línguas gestuais) – e
legitima-se mais como um atributo cultural construído historicamente que como uma experiência unívoca e
inexorável de um corpo mutilado.”
2
Para EIJI (2012, p. 02) “Ouvintes”, nesse universo semântico, são todas as pessoas que “ouvem” e que
experimentam o mundo também por meio do som.
9
entre surdos e ouvintes com o auxílio dos artefatos tecnológicos do cotidiano dos
alunos nas aulas de arte, de modo que possam ampliar as possibilidades de
aprendizado e interação? Além de tornar as aulas de artes mais significativas para a
vida dos educandos? Para isso buscou-se apoiar-se em aportes teóricos aliados a
observação dos sujeitos dessa pesquisa.
O segundo capítulo descreve de maneira sucinta a segunda visita a
escola. Após o mapeamento da escola, retornamos para definir o conteúdo a ser
trabalhado na aula experimental. O grande desafio foi pensar em como desenvolver
as experimentações em sala de aula a partir das vivências dos alunos, valorizando
suas diferenças, suas diversas visualidades, saberes, abarcando não somente os
conteúdos oficiais, mas também os conteúdos de interesse dos jovens estudantes.
No terceiro capítulo intitulado de “Diálogo entre o currículo oficial, vida e
cotidiano”, discutimos todo o processo de elaboração da estratégia de intervenção,
que vai desde a delimitação dos conteúdos até as táticas estabelecidas para
conhecer o interesse dos educandos pelas coisas do cotidiano. O diálogo entre o
currículo oficial, vida e cotidiano possibilitou experimentar outros caminhos
diferentes dos habituais e problematizar as experiências estéticas do cotidiano.
O último capítulo nomeado de “Experimentações de outras formas de
aprender: desconfinados” trata-se de narrativas de aula experimental desenvolvida
virtualmente num ambiente alternativo de comunicação utilizado pelos alunos onde
se buscou explorar outras perspectivas para o ensino de artes, resignificando o
conteúdo a partir das práticas do cotidiano dos educandos. Por meio das
intervenções das imagens a equipe juntamente com os educandos surdos e ouvintes
buscamos estabelecer conexões entre os diferentes saberes sobre o conceito de
cultura, vislumbrando o pluralismo que constitui a escola e as representações de
mundo.
Este é um trabalho nada neutro, nossas relações com o campo foram
viscerais, intensas, através dos sentidos que eram estimulados a todo instante pelas
experiências investigativas, onde nos relacionamos afetivamente com os sujeitos e
com o próprio espaço físico do campo e nos posicionamos interpretando tudo o que
víamos, ouvíamos e sentíamos. Deixamos transparecer nossos sentimentos,
reflexões, interpretações, conflitos, sentidos atribuídos em contato com as
subjetividades dos alunos, compreendendo que para trabalhar e pesquisar em

10
educação é necessário envolver-se e mergulhar nas profundezas complexas dos
significados que constituem as multifaces das relações de poder. Os critérios
utilizados nesta pesquisa para construir as narrativas e analises são tremendamente
influenciados por nossas praticas e convenções subjetivas, que por sua vez também
foram tocadas e transpassadas pelas questões do campo, espantando assim,
qualquer tipo de neutralidade.
Adentramos no processo de pesquisa munidos de algumas indagações
que nos rodeavam, despertadas por nossa experiência de observação e bagagem
teórico-conceituais decorrente da nossa vivencia universitária. Os questionamentos
registrados por Martins, A. (2013) nos ajudam a iniciar esse processo quando ela
pergunta:

O que move o pesquisador a observar seu contexto, registrar


informações, compreender e produzir sentidos para as dinâmicas
sócias em que está inserido? Como esses processos de pesquisa
são afetados pelo pressuposto teórico-conceitual que o pesquisador
porta consigo? Como funcionam os filtros, ou lentes, por meio dos
quais observa os caminhos e as paisagens abrindo-se diante de si?
Produzem o efeito de lunetas que permitem vislumbrar mais longe,
ao preço de reduzir o campo de visão? Como lupas com as quais
percebe melhor detalhes próximos? Ou atuam como equipamentos
que ajudam a ver? Mesmo quando seja mínima a incidência de luz? (
p. 182)

Sabendo das potencialidades das imagens, procuramos explora-las,


devido seu caráter polissêmico e subjetivo. As imagens aqui expostas foram
produzidas pelos pesquisadores no decorrer do processo de observação em campo,
fazendo recortes do tempo e espaço, de visualidades que nos tocaram e
despertaram reflexões. Ainda em relação às imagens, na edição usamos o filtro
“Mapeamento de calor” que evidencia aquilo que os olhos não conseguem perceber
naturalmente, criando mapeamentos do calor presente nos registros fotográficos.
Buscamos tocar no subjetivo e através destas visualidades e relatos, tecer reflexões
dialogando com diversos autores a cerca do universo educacional, do fazer docente
em artes visuais e das concepções de ensino e conhecimento, assim como o
processo de inclusão de sujeitos surdos e a relação destes com os ouvintes e o
espaço escolar.

11
CAPÍTULO I
A APROXIMAÇÃO COM O CAMPO, DESCONFORTOS, MEDOS, ANSIEDADES E
INCERTEZAS.

Após leituras, reflexões e discussões no ambiente acadêmico sobre o


processo de pesquisa e de questões que envolviam a docência em artes visuais na
atualidade, partimos para a escola campo. Ainda inseguros sobre como produzir
dados etnográficos através da “cartografia sentimental” 3, sabíamos que essa prática
possibilita ao pesquisador atentar às estratégias do desejo. De acordo com a
pesquisadora Suely Rolnik (1989, p. 66) “pouco importam as referências teóricas do
cartógrafo. O que importa é que, para ele, teoria é sempre cartografia - e, sendo
assim, ela se faz juntamente com as paisagens cuja formação ele acompanha”.
Assim, centramos nossa atenção nas subjetividades que transitam no campo de
pesquisa escolhido por nós, não delimitando as fontes de produção de dados e as
matérias que iriam ser absorvidas, pois:

[...] o cartógrafo absorve matérias de qualquer procedência. Não tem


o menor racismo de frequência, linguagem ou estilo. Tudo o que der
língua para os movimentos do desejo, tudo o que servir para cunhar
matéria de expressão e criar sentido, para ele é bem-vindo. Todas as
entradas são boas, desde que as saídas sejam múltiplas. Por isso o
cartógrafo serve-se de fontes as mais variadas, incluindo fontes não
só escritas e nem só teóricas. Seus operadores conceituais podem
surgir tanto de um filme quanto de uma conversa ou de um tratado
de filosofia. (ROLNIK, 1989, p. 66)

Nos lançamos no escuro e com os olhos vendados para o que é aparente


para que pudéssemos, através de um olhar sensível e desprendido de verdades
absolutas, perceber as coisas que estão ocultadas em meio aos espaços de
penumbra que constituem a cultura escolar. Tentamos catar, nas nossas
subjetividades e nas dos alunos, possibilidades de reflexões sobre as ações
educativas nas aulas de artes. Queríamos compreender de forma crítica e reflexiva
as relações que ali se tecem em redes que ultrapassam os limites físicos das

3
ROLNIK (1989) em seu livro “Cartografia sentimental, transformações contemporâneas do desejo”
diz que a prática da cartografia sentimental é fundamentalmente, às estratégias das formações do
desejo no campo social. (p. 66)

12
paredes das salas de aula, dos muros e grades que cercam a escola, como o
evidenciado por Agamben (2009, p. 63) e destacado por Martins, A. (2013):

[...] a labuta crítica e reflexiva requer que se busque perceber não as


luzes, mas as sombras daquilo que se pretende conhecer.
Vislumbrar onde não há luz, perceber o escuro exige uma habilidade
particular que equivale a neutralizar as luzes que provêm da época
para descobrir as suas trevas, o seu escuro especial, que não é, no
entanto, separável daquelas luzes. (AGAMBEN apud MARTINS, A.,
2013 p.182).

Imagem 1 – In Visível

Fonte: Acervo da equipe de estágio (2016)

A imagem intitulada “in visível” representa para nós os primeiros instantes


de contato com o campo. Instituição escolhida por conta do atendimento
especializado a alunos surdos e deficientes auditivos que no total somam-se em 12
(doze).
Observaram-se os corredores da escola que pareciam estar cobertos por
uma densa manta de penumbra que era transpassada por seus frequentadores com
se vê na imagem 1. Os alunos transitavam livremente, cada corpo se movia
carregado de subjetividades que eram para nós como potentes fontes de luz.
Enquanto vagueávamos pelos ambientes da escola na busca de conhecer, alojava-
se em nossos corpos uma mistura de sentimentos, a ansiedade, o medo por ser
uma experiência e um ambiente novo, as incertezas do que iriamos encontrar nas
mais diversas zonas de luminosidade e como iriamos constituir as interações com os
sujeitos no campo.

13
Este foi um processo que nos causou certo desconforto, medo, ansiedade
e insegurança. Primeiro por não termos experiências com pesquisa e não
conhecermos a escola estadual Tiradentes. Segundo pelas incertezas e
complexidade de procedimentos que exige muito mais do que uma simples
observação do que é visível e perceptível aos olhos. Observação, a qual exige que
estejamos com os sentidos aguçados para perceber as sensações que os grandes e
pequenos acontecimentos no ambiente escolar nos provoca. Sobre a ideia de
grandes e pequenos acontecimentos, Agier (2015) nos fala que:

As dores, as alegrias, as interrogações das pessoas que ele encontra


e, sobretudo, suas respostas aos problemas, às vezes, as
desgraças, que se apresentam a elas, constituem a base e a
“matéria” de sua reflexão (p. 10)

Durante todas as ações buscamos deixar nossos corpos vibrar com as


mais variadas frequências como diz Rolnik (1989), onde fomos sendo tocados pelas
experiências no campo. A autora referindo-se ao posicionamento do pesquisador
que vivencia o processo de pesquisa etnográfica a partir da cartografia sentimental
destaca que é importante deixar o “corpo vibrar todas as frequências possíveis e
ficar inventando posições a partir das quais essas vibrações encontram sons, canais
de passagem, carona para a existencialização. Ele aceita a vida e se entrega. De
corpo-e-língua” (ROLNIK, 1989, p.68).
Durante o processo de observação nos despertou interesse em conhecer
e aprofundar nossas observações com o grupo de estudantes surdos que frequenta
a escola no turno da tarde. Nosso interesse por observar este grupo se deu a partir
de vivências compartilhadas no cotidiano acadêmico no decorrer de nossa
formação, onde a presença de um discente surdo, integrante desse trabalho de
conclusão de curso (TCC), Amadeu Pelegrin, suscitou o desejo de mergulharmos no
universo das pessoas surdas e suas interações no ambiente escolar. Nesse sentido,
nos interessamos em compreender como se desenvolviam as relações de alunos
surdos com os sujeitos ouvintes na escola publica nas aulas de artes.
Durante o período de formação, na licenciatura em artes visuais,
observávamos as dificuldades enfrentadas pelos nossos professores em sala de
14
aula com a presença de um aluno que necessitava de um atendimento diferenciado
por comunicar-se através de canais diferentes dos legitimados como “normal”. As
experiências vivenciadas na academia com a inclusão de aluno surdo em uma turma
majoritariamente ouvinte nos levavam a ter diversas reflexões sobre nossas futuras
atuações como professores de artes. Como iriamos lidar com a diversidade que
constitui a sociedade e que ocupam os espaços da escola?
Compreendemos que a escola faz parte de uma rede complexa de
instituições e práticas culturais, a qual exige deslocamentos, transformações,
mutações das formas de ação e concepções (NÒVOA apud MARTINS, A., 2013,
p.183).
As investigações foram impulsionadas pela curiosidade em compreender
as relações dos surdos com os outros alunos ouvintes que frequentam a instituição
escolar, assim como as relações desses grupos entre si e o papel que as imagens
têm nessas relações. Assim, tentávamos ficar atentos para cada gesto e ação dos
sujeitos que ali transitavam nos primeiros dias de observação na escola Estadual de
Ensino Médio Tiradentes.
Na escola, nos primeiros contatos, fomos construindo aproximações e
estabelecendo relações com os estudantes funcionários e professores da escola. A
aproximação com o grupo dos surdos foi facilitada pela presença do pesquisador
surdo, que naturalmente se comunicavam através da língua de sinais 4 . Isso
possibilitou maior mobilidade no espaço da escola e no contato com os sujeitos não
ouvintes que aos poucos já não nos tinham mais como corpos estranhos ali naquele
local.
Assim, tentamos manter o corpo aberto, perceber como os alunos se
comportavam dentro e fora da sala de aula, suas falas, seus trejeitos, as conversas
compartilhadas pelos corredores, os arredores da escola, as relações de poder que
constituíam territórios invisíveis, uma vez que, “cabe ao pesquisador cuidar dos
modos como organizar sua entrada no território de pesquisa, para construir os
percursos de acesso às informações de seu interesse, aquelas que respondam às
suas indagações”. (MARTINS, A., 2013, p.184).

4
Segundo Strobel ( 2015 p. 55) A língua de sinais é uma língua prioritariamente do povo surdo que é
expressa através da modalidade espaçovisual. [...] no mundo todo, há, pelo menos uma língua de
sinais com suas variações regionais usadas amplamente na comunidade surda de cada país.
15
Observamos por alguns dias os acontecimentos do campo, nos sentíamos por
vezes deslocados daquele ambiente eufórico e cheio de energia, como se
estivéssemos em uma cidade já visitada por nós, mas que hoje já não nos pertença
mais. Sentíamos vistos como estrangeiros, nesse local onde corpos juvenis tecem
seus afetos, constroem relações e saberes que evidenciam seus desejos, seus
interesses. Nesse processo fomos tomados e transpassados por uma mescla e uma
movimentação de afetos, de energia e de intensidades que fluíam e mudavam no
decorrer de cada novo contato com o campo. Percebíamos que saberes transitavam
nos espaços da escola, e, como o exposto por Rolnik desejávamos ali “[...]
participar, embarcar na constituição de territórios existenciais, constituição de
realidade” ( 1989, p.67).

Imagem 2– Contenção

Fonte: Acervo da equipe de estágio (2016)

A “contenção” registrada também nos despertou interesse, observa-se na


imagem a presença de uma figura humana trancafiada em uma sala de aula, e que
olha para o lado de fora da sala através da porta como se estivesse à procura de um
ponto de fuga que lhe fosse mais aprazível do que o que lhe era apresentado no
recinto. A sensação que tivemos é a de um corpo inquieto que deseja experimentar
o que está além das quatro paredes e que anseia abrir a porta e ir para onde lhe
interessa estar. Percebemos que em sala de aula os alunos enfileirados são mais
contidos e passivos, diferentemente de quando ocupam os corredores e se
comunicam entre si. Nos corredores riem, conversam, se abraçam, demonstram
16
afetos e ocupam os espaços que lhes interessam. Nos corredores, também chamou-
nos a atenção o fato dos alunos ouvintes, em interação com os alunos surdos,
encontrarem espaço para se comunicar e compartilhar saberes do seu cotidiano por
meio do uso de mensagens no celular e mensagens escritas em papel.
Estávamos ansiosos para adentrar a sala de aula e entender como os
alunos surdos e ouvintes se relacionam com esse ambiente de confinamento5.

Imagem 3-Comunicação

Fonte: Acervo da equipe de estágio (2016)

Após alguns contatos de observação buscamos conversar com todos os


12 alunos surdos da escola que através da Língua de sinais e com a ajuda de
intérprete, compartilhavam suas histórias de vida, suas dificuldades enfrentadas no
ambiente escolar, familiar e demais locais de sociabilidade.
Na imagem 3, “comunicação”, se pode observar o registro fotográfico de
quatro alunos surdos que apesar de compartilharem de uma mesma língua
(LIBRAS) são completamente diferentes. Suas subjetividades são percebidas não
apenas através do uso da língua de sinais, mas através de suas vestimentas,
acessórios, suas afinidades e grupos de amigos, os níveis socioeconômicos,
orientações religiosas e sexuais. Diferentes comportamentos nas redes de

5
Sobre as instituições de confinamento o filósofo Gilles Deleuze (1992) anunciou, em seu “Post-
scriptum sobre a Sociedade de Controle” que “encontramo-nos numa crise generalizada de todos os
meios de confinamento, prisão, hospital, fábrica, escola, família” (Deleuze, 1992, p. 220).
17
comunicação virtuais, uns publicavam mais frases, saudações e outros optavam por
compartilhar fotos, entre outras diversas formas de se perceber a pluralidade que os
constitui, distanciando das errôneas representações imaginarias dos sujeitos surdos.
Em acordo com Sá (2002, p. 103) percebemos que “os surdos e a comunidade
surda são plurais, como é todo agrupamento humano”.
Na sala de aula, nossas atividades de observação ocorreram na turma
323, do terceiro ano do ensino médio do turno da tarde, o qual faz parte quatro
alunos surdos. Escolhemos essa turma porque tínhamos a intenção de observar a
participação desses alunos surdos nas aulas de artes. Na sala, percebemos o grupo
dos ouvintes e o grupo dos alunos surdos que interagiam com aqueles que
compartilhavam da mesma forma de comunicação, os surdos usavam a LIBRAS e
os ouvintes oralizavam. Em determinados momentos observamos a ausência da
intérprete na sala de aula e somente a professora de artes tentava se comunicar
com os alunos surdos e ouvintes. Percebemos que a professora de arte não era
preparada para lidar com as especificidades dos alunos surdos, e que isso dificulta o
processo de ensino/ aprendizagem.
Em conversa com uma aluna surda da turma, a qual, denominaremos
aqui de surda A (informações em LIBRAS), indagamos como ela se sentia nesse
tipo de situação nas aulas de arte. A aluna comentou que:

O principal problema que enfrentamos em sala de aula é a falta de


comunicação entre nós os alunos surdos e o professor, percebo que
a falta de conhecimento da Libras impõem barreiras entre os alunos
surdos que comparado aos colegas ouvintes é bem diferente. Há
uma dependência muito grande do intérprete por parte desse
professor, isso gera atrasos em nossa aprendizagem, nos desmotiva
na aquisição dos conteúdos. Todo processo comunicativo entre a
gente e o professor tem ser intermediado pelo intérprete. (SURDA A,
entrevista aberta, 2016)

Essa observação é coerente com o parecer de SKLIAR (1998a, p. 36)


citada por Strobel (2015, p. 126) quando diz que “os depoimentos de alunos surdos
que passaram pelo ensino regular sem uma metodologia específica mostram como
eles se sentem estrangeiros e marginalizados nessa situação [...]”. Este depoimento
da aluna surda despertou em nós o interesse de aprofundamento investigativo ao
perceber que as formas de comunicação entre professor e aluno surdo são
18
limitadas. Também nos chamou atenção o fato de nos momentos de diversão e
descontração, sem a presença do intérprete, os surdos criam meios de comunicação
com os outros alunos, fazendo gestos, mimica, escrevendo mensagens de texto no
celular, compartilhando vídeos e imagens.

1. 1 EM BUSCA DE OUTRAS COMPREENSÕES POR CAMINHOS INSTÁVEIS.

A cada visita ao campo buscamos por outras compreensões de


aprendizado sem esquecer de que “o cartógrafo é um verdadeiro antropófago: vive
de expropriar, se apropriar, devorar e desovar, transvalorado” (ROLNIK, 1989, p.
67). Em busca de aprofundarmos nosso entendimento, andamos por caminhos
instáveis, imprevisíveis e incertos, e nos lançamos à deriva pelos espaços físicos da
escola em busca de compreender as estratégias do jogo que constitui a docência
em arte e a pesquisa. Assim, partimos com a intensão de acessar as subjetividades
que constituem os sujeitos que frequentam a instituição escolar, em particular o
publico alvo que temos como objeto principal de pesquisa, os alunos surdos,
catando nas incertezas possibilidades para o ensino de artes. Tendo em vista que:

A “competência do pesquisador”, e do docente, embora vá se


formando com a experiência, não chega a um estado final, ideal, que
garanta êxito dobre a qualquer assunto a ser estudado e ensinado ou
que impeça o surgimento de “titânicas interrogações” e desejo de
ousadia. Assim, a competência do pesquisador. (TOURINHO, 2013,
p.65)

Nossas interrogações permaneciam latentes e ao observamos os


espaços externos da escola percebemos em dados momentos ouvintes e surdos
transitavam pelos corredores e compartilhavam informações oriundas de suas
vivencias escolares e de seu cotidiano fora da escola. Nesse sentido, buscamos
compreender a escola como parte de uma rede complexa de instituições e práticas
culturais, como alerta Martins, A.(2013, p.183) ao citar Nóvoa (2005, p. 11). Os
autores ainda, em relação a escola, destacam que essa instituição “não vale mais,
nem menos, do que a sociedade em que está inserida”.
Nesta experiência de pesquisa onde, por meio de estratégias, como uso
de celular para mandar mensagens, imagens, vídeos dos mais variados conteúdos

19
como vídeos de comedia, pegadinhas, filmes eróticos, fotos pessoais e de outros
colegas, desenhos, imagens de suas redes sociais, entre outras imagens que
facilitavam e propiciavam a comunicação entre os dois grupos de alunos. Buscamos
aprender com o processo que é inconclusivo e variante, que exige de nós
pesquisadores um constante inventar e reinventar de métodos. Nas palavras de
Tourinho (2013):

[...] O pesquisador/docente se constrói e se (re) constrói neste


processo. Não apaziguar nossas interrogações implica não deixar
que nossas concepções de ciência, método, ensino, arte e pesquisa
se enrijeçam e na presunção de uma compreensão definitiva e
totalizadora sobre quem somos e como fazemos pesquisa e
docência. (TOURINHO, 2013, p.65)

Imagem 4 - Observador

Fonte: Acervo da equipe de estágio (2016)

Ao mesmo tempo em que observávamos os comportamentos dos alunos


também éramos observados por eles como o expressado na imagem 4, intitulada
por nós como “observador”. O olho fotografado é de um sujeito surdo que colaborou
ativamente em todo processo de pesquisa, os olhos atentos a cada atividade
também eram voltados para nós, diversos olhares podiam ser percebidos como o
olhar de desconfiança, de excitação, timidez, euforia, alegria, olhares atentos
despertados nos alunos que assim como nós também tinham interesse em saber
quem éramos e o que queríamos ali no seu território. Foi através da observação
participante que buscamos conhecer os alunos surdos para acessar suas
subjetividades através de informações sobre suas vivencias e historias de vida, para
20
poder compreendê-los com maior amplitude e criando assim laços afetivos com
essas pessoas do campo, como na fala de AGIER (2015) em suas pesquisas
etnográficas em cidades desconhecidas:

“[...] O que o etnólogo transmite caminha lentamente da observação


à interpretação, da prática, á teoria. Iniciação, lição, aprendizagem,
exercícios: são palavras de um saber que nasce numa longa relação
com as pessoas de seu “campo””. (AGIER, 2015, p. 9)

Em conversas com os alunos surdos e com a professora regente


perceberam-se a partir dos relatos que as dificuldades de entendimentos, durante a
aula de arte, são vivenciadas por ambas as partes. A professora de arte que não
possui conhecimento de LIBRAS e precisa do auxilio do intérprete para estabelecer
comunicação com os alunos surdos durante as aulas.
Alguns dos surdos disseram gostar da matéria de artes por terem
afinidades com a fotografia, o desenho e o teatro, mas que sentem falta de aulas
mais dinâmicas com praticas artísticas, como podemos observar nas falas de alguns
alunos surdos que chamaremos aqui de surdos B e C (as falas foram traduzidas
para o português com a ajuda de intérprete de LIBRAS). Os surdos responderam ao
questionamento, em conversa informal, sobre o que gostariam de aprender nas
aulas de artes? “gostaria que a aulas de arte envolvessem mais práticas, tipo
dramatizações de teatro, pintura, desenho, seria mais interessante”, e o surdo C
disse que nas aulas de arte ele sente a “falta de dinâmica na aula, falta mais
criatividade, falta o professor preparar melhor as aulas”, apontando assim quais os
futuros caminhos metodológicos que deveriam ser trilhados nas nossas futuras
experimentações nas aulas de artes diante nas necessidades expostas pelos
próprios alunos.

21
Imagem 5 – Comunicação Virtual

Fonte: Acervo da equipe de estágio (2016)

Observa-se na imagem acima, a figura de uma mão de um aluno


manuseando um aparelho celular, e esta é uma ação muito comum por todos os
públicos de alunos da escola. Começamos então a perceber a utilização constante
deste aparelho eletrônico enquanto conversávamos com um grupo de surdos.
Assim, começamos a entender que estes aparelhos telefônicos e as mídias visuais
talvez possam representar uma possibilidade de comunicação entre os próprios
surdos e entre surdos e ouvintes nas aulas de artes, como acontece nos corredores
da escola. Nesse sentido, Sibilia (2012) evidencia que:

Esses artefatos de uso cotidiano não só provocam velozes


adaptações corporais e subjetivas aos novos ritmos e experiências,
permitindo responder com a maior agilidade possível à necessidade
de reciclagem constante e de alto desempenho, como também eles
mesmos acabam por se multiplicar e se popularizar em virtude de
tais mudanças nos estilos de vida ( p. 51).

Esses artefatos usados diariamente por surdos e ouvintes, no nosso


campo de pesquisa, tem se apresentado como pontes entre os mundos dos que
ouvem e dos que não ouvem, possibilitando diálogos. Com esses dispositivos
moveis compartilham textos, imagens e vídeos sem a presença de um intérprete.
Nesse sentido, as adaptações corporais citadas por Sibilia (2012), ocorrem
corriqueiramente e possibilitam o surgimento de novas subjetividades a partir do
22
fluxo e do contato com outras culturas que não apenas as dos grupos de surdos.
Sobre essas interações por meio desses artefatos eletrônicos e o contato com
imagens, Martins (2006) esclarece que:

[...] no universo cultural as interações acontecem por meio de


confluências, reciprocidade, simultaneidades e fronteiras. Fronteiras
porosas, como espaços muitas vezes imaginários, espaços de
transito e sem uma divisão a priori do que é bom e mal, culto ou
popular. (MARTINS, 2006, p. 75)

. A partir desse esclarecimento ficamos a pensar: como o ensino das


artes visuais pode construir pontes, criar possibilidades para a democratização e
autonomia ao acesso dos saberes entre ouvintes e não ouvintes? Como utilizar
esses artefatos tecnológicos do cotidiano dos alunos nas aulas de artes, de modo
que possam ampliar as possibilidades de aprendizado e interação? Como tornar as
aulas de artes mais significativas para a vida dos educandos?

Imagem 6 – bagagens

Fonte: Acervo da equipe de estágio (2016)

Pode-se observar na imagem 6, denominada de “bagagens”, que os


alunos carregam consigo bagagens que vão sendo adquiridas ao decorrer das
experiências cotidianas e estas são transportadas para dentro dos muros da escola.
Experiências essas mediadas cada vez mais pelo uso dos aparelhos eletrônicos. O
registro revela um instrumento tradicional utilizado pelos alunos dentro da escola

23
que divide suas atenções com seus aparelhos celulares. A diversidade de
experiências oferecidas pelos celulares pareciam agradar mais aos alunos do que o
instrumento, considerado um dos símbolos de aprendizado, o caderno. Estas
percepções e interpretações nos faziam pensar como nossas trajetórias seriam
afetadas por essas experiências? Como elas nos ajudariam a entender as teias
subjetivas no interior da instituição escolar e fora dela?
As redes de comunicação virtuais invadem o espaço de confinamento da
escola e tomam a atenção dos alunos com suas tramas e prazeres. De acordo com
Sibilia (2012):

Em contraste com o instrumental já antiquado que as escolas ainda


insistem em usar, parecem ser mais eficazes as novas formas de
atar os corpos contemporâneos aos circuitos integrados do universo
atual. [...] exercemos essas praticas com devoção cotidiana, o tempo
todo, porque queremos e porque isso nos agrada. [...] inclusive,
driblando as eventuais proibições das hierarquias escolares; alias,
costumam recorrer a essas conexões para sobreviver à chatice que
implica ter que passar boa parte de seus dias encerrados nas aulas,
mais desesperadamente desconectados que disciplinadamente
confinado (p. 177).

A nosso ver, em acordo com Sibilia (2012), isso é uma evidencia do


descompasso nas formas de aprender/ensinar apresentado pela instituição escolar
com o que os sujeitos vivenciam em seus cotidianos. Tanto alunos surdos quanto
ouvintes possuem acesso a essas parafernálias tecnológicas e através delas
constroem suas relações sociais e significações, e por meio delas se comunicam
tanto dentro como fora dos muros da escola.
Desejamos continuar nos perdendo nesse espaço heterogêneo, buscando
nas penumbras informações que contribuam para a construção de práticas
educativas que fossem de caracteres múltiplos e provisórios. Acreditamos que essa
seja uma tarefa complexa e concordamos que é necessário nos colocarmos na
posição do outro na tentativa de olhar com o olhar do outro. Tourinho (2013)
referindo se a processualidade e relacionalidades de possiblidades metodológicas
no ensino de arte, adverte que:

24
Se eu entendo que arte e experiência estética oferecem
possiblidades para nos colocar – mesmo que provisoriamente – no
lugar do outro, as metodologias de pesquisa e ensino precisam
buscar um caráter múltiplo, que vise a sua própria disseminação para
encontrar lugares que desconhecemos, praticas que não
vivenciamos sentidos que não nos pertencem - que extrapolam
nossos repertórios de vida (p. 68).

1. 2 OBSERVAÇÕES, REFLEXÕES E IMPRESSÕES DO UNIVERSO


SURDO.

Foram muitas as nossas desconfianças, ansiedades, medos,


inseguranças e incertezas de quais seriam as formas mais adequadas de trabalhar
os conteúdos oficiais de artes, de modo que pudessem incluir as experiências
compartilhadas pelos alunos surdos e ouvintes, num ambiente cheio das mais
diversas pluralidades e tensões. Assim, posicionamo-nos como observadores
participantes na tentativa de manter maior contato com as subjetividades dos
sujeitos evidenciados por nossas observações.

Imagem 7 - Confinados

Fonte: Acervo da equipe de estágio (2016)

Na imagem sete se visualiza um momento de confinamento típico de uma


sala de aula onde alunos apresentavam uma atividade avaliativa na forma de
seminário e os outros assistem passivamente a apresentação dos colegas em suas
cadeiras enfileiradas, não demonstrando grande interesse pelo o que falava. Os

25
alunos ouvintes apresentavam nos seminários temas relacionados a conteúdos
curriculares centrados na história da arte brasileira.
Percebemos que a intérprete de LIBRAS que acompanha os quatro
alunos surdos desta sala não estava presente. Com a intenção de incluir os alunos
surdos na aula a coordenação pedagógica disponibilizou outra tradutora para sala
de aula. A intérprete substituta não havia conhecimento do processo vivenciado
pelos alunos em aulas anteriores e estava tão somente interpretando o que era
compartilhado pelos ouvintes. Os surdos formavam um único grupo constituído
somente por não ouvintes, assim como todos os outros alunos da turma, deveriam
apresentar em forma de seminário informações de artistas previamente
selecionados entre os grupos. Os alunos surdos não conseguiram executar o
exercício proposto por não terem tido o acompanhamento necessário e suficiente
para o desenvolvimento da exposição do conteúdo. Esses alunos entregaram
apenas o trabalho escrito, gerando tensões entre professora e alunos.
Em entrevistas abertas eles expressaram em suas falas as tensões
geradas em sala de aula pela falta de adaptação metodológica, pelas formas
diferentes de comunicabilidade que limitam o contato dos professore com os alunos
surdos, e as dificuldades para compreender alguns assuntos sozinhos, assim como
para apresentar trabalhos que exijam explanação em forma de seminários. Como
evidenciado na fala do surdo que chamaremos de surdo D (informações em
LIBRAS):

É muito complicado entender os conteúdos sozinho, a dificuldade


com a leitura atrapalha e a gente perde o interesse pelos estudos,
enquanto o professor não se comunicar comigo em sala de aula eu
nunca vou me interessar pela disciplina de artes, vou continuar sem
entender e aprender nada. (SURDO D, entrevista aberta, 2016)

Estes relatos aumentavam, em nós, as tensões e as dúvidas de como


desenvolver aulas de artes que possibilitem um aprendizado tanto para alunos
surdos como para alunos ouvintes, abarcando as particularidades desses indivíduos.

26
Imagem 8– Redes democráticas

Fonte: Acervo da equipe de estágio (2016)

Na imagem oito registramos um momento que para nós foi muito


interessante e de grande potencialidade. Observamos uma aglomeração na área da
cantina, no horário do intervalo, onde estavam duas TVs postas para que todos
pudessem acompanhar uma luta dos jogos olímpicos. Notamos ali a interação e
compartilhamento de interesses por alunos surdos e ouvintes em volta do aparelho
televisivo.
Estes dados nos fizeram refletir como a cultura popular 6 e as mídias
visuais em geral podem potencializar a construção de práticas educativas no ensino
de arte que alcancem os estudantes surdos e ouvintes de forma democrática nas
aulas de arte. Nesse sentido, os conteúdos curriculares oficiais, as práticas
educativas e as experiências com as mídias dos estudantes surdos e não surdos
muitas vezes resultam em tensões. Como destaca Martins, A. (2013) estas tensões:

[...] se estabelecem entre o que diz respeito ao normativo, ao


sociocultural, institucional, portanto coletivo, e o que advém do
singular, subjetivo, individual, que reivindica o direito à diferença.
Essas tensões dão o tom das relações entre as pessoas, das
informações que circulam em diferentes instâncias. Ecoam e vibram
nos ambientes onde diferentes atividades são desenvolvidas nas
visualidades produzidas, utilizadas, protegidas, atacadas, nos
discursos repetidos, construídos, combatidos (p.183).

6
O conceito de cultura popular é aqui entendido como “as produções culturais produzidas em grande escala
industrial, de fácil aceitação pelos consumidores, como: filmes, cds, programas televisivos, revistas, roupas,
objetos utilitários, produções midiáticas e de entretenimento” (RANGEL, 2008, p. 108)
27
Imagem 9– Rotas Alternativas

Fonte: Acervo da equipe de estágio (2016)

Os pés dos alunos, na imagem nove, fotografados e intitulados de “rotas


alternativas” foram os condutores para as reflexões aqui construídas. Suas rotas
subjetivas na dinâmica do cotidiano escolar foram observadas, fotografadas,
etnografadas, cartografadas e delinearam linhas de reflexão a partir das
experiências sensíveis que não poderiam ser captadas se não tivéssemos nos
desprendido de convicções, certezas e verdades sobre o universo escolar. Abrimos
nossos corpos para experimentar o cotidiano colegial de forma sensível,
interpretativa, incerta, usando a imaginação, pois “a imaginação não tem apenas o
poder para criar coisas que ainda não existem, mas também para explorar, sob
perspectivas diferentes, coisas já existentes” (TOURINHO, 2008, p. 7).
Para pensar possíveis ações na prática da docência dentro de um
universo constituído de liquidez, sobre isso Hernandez (2007, p. 17) diz que hoje,
mais do que nunca, se faz necessária “uma educação pensada a cada dia em
conjunto com sujeitos em permanente transição rumo ao incerto e ao desconhecido
e para os quais aprender de outras maneiras pode tornar-se uma experiência
apaixonante”.
Nesse sentido, os corredores outrora completamente cobertos por
penumbras agora são pra nós lugares de compartilhamentos, de interações e de
construções subjetiva. É no pátio e nos corredores da escola onde a maior interação
28
entre os distintos grupos de alunos acontece e sinaliza algumas possibilidades de
pensar a comunicação/interação entre professor e aluno nas aulas de arte.
Estar atentos aos grandes e pequenos acontecimentos dentro e fora do
espaço da sala de aula nos ajudou a perceber que os trânsitos de informações
compartilhados por ouvintes e surdos são limitados quando estes não possuem o
domínio necessário das formas de comunicação um do outro.
Estas barreiras, na escola estadual Tiradentes, têm sido ultrapassadas
pelo acesso às redes sociais acessadas por meio do uso dos seus aparelhos
celulares, onde observamos em diversas situações o compartilhamento de
mensagens, imagens, vídeos entre alunos surdos e ouvintes que em suas rodas de
conversa riam, paqueravam, partilhavam de suas experiências escolares, brigas,
fofocas, etc.

Imagem 10-Afetos

Fonte: Acervo da equipe de estágio (2016)

A imagem dez revela a não neutralidade deste trabalho, repara-se a


presença de alguns sujeitos surdos que frequentam a escola Tiradentes juntamente
com os pesquisadores que se envolveram em reciproca afetivamente. Como
ressalta o titulo empregado. Ao longo do processo de construção desta pesquisa de
cunho qualitativo, em acordo com Denzin e Lincoin (2006, p. 17) é “uma atividade
situada que localiza o observador no mundo” numa ação de intima relação entre os
pesquisadores e os pesquisados. Para os autores:

29
A pesquisa qualitativa envolve uma abordagem naturalista,
interpretativa, para o mundo, o que significa que seus pesquisadores
estudam as coisas em seus cenários naturais, tentando entender os
fenômenos em termos dos significados que as pessoas a eles
conferem. [...] envolve o estudo do uso e a coleta de uma variedade
de materiais empíricos – estudo de caso; experiência pessoal;
introspecção; história de vida; entrevista; artefatos; textos e
produções culturais; textos observacionais, históricos, interativos e
visuais – que descrevem momentos e significados rotineiros e
problemáticos na vida dos indivíduos. (DENZIN E LINCOIN, 2006, p.
17)

Neste registro fotográfico estão presentes sete dos doze alunos surdos
que contribuíram abertamente com todas as ações dos pesquisadores. Os dias de
observação nos possibilitaram a construção de laços afetivos com os sujeitos de
nossa pesquisa, laços esses que nos propiciaram uma abertura pra acessar
informações importantes na produção de dados.
A representatividade encontrada na presença do pesquisador surdo foi
algo que mais facilitou essa aproximação. Percebemos que esses alunos surdos
buscavam alguém que quisesse ouvi-los e entende-los. Ainda que houvesse
limitações na comunicação por parte dos estudantes ouvintes para com os surdos,
pudemos compartilhar de informações, subjetividades, histórias de vida, trânsitos e
relatos do cotidiano dos nossos colaboradores que ao perceberem nossa presença
nos corredores da escola logo se aproximavam e se mostravam disponíveis para
conversar.
Assim aproveitamos estas aberturas de dialogo e buscamos aprofundar
questões, a partir dos seus relatos de vida e seus interesses pessoais, na tentativa
de acessarmos informações ainda não percebidas por nós.

30
Imagem 11 -Expressões visuais

Fonte: Acervo da equipe de estágio (2016)

No que se refere aos relatos de vida e interesses pessoais, intitulada


como "Expressões visuais” a imagem acima, exibe produções artísticas de um aluno
surdo. São desenhos e pinturas feitas por ele, os quais são carregados de
significados e afetividade. Tivemos acesso a esses desenhos conversando com os
sujeitos surdos quando eles iam falando de seus gostos e trajetórias pessoais. Em
grande parte dos desenhos, os personagens estão desenhados com expressões
faciais fechadas, lábios cerrados, sobrancelhas frangidas e um olhar fixo. O aluno
retrata algo que está presente nas suas vivencias individuais enquanto sujeito surdo,
ou expressa como ele percebe os discursos a respeito dos surdos e a posição dos
seus semelhantes dentre da sociedade.
Durante a conversa, uma aluna surda da escola compartilhou suas
experiências na escola ao relatar que sempre tenta se aproximar dos colegas
ouvintes eu percebo algumas brincadeiras de mau gosto, alguns olhares estranhos
por conta do meu interesse, e isso me entristece, por isso me afasto, peço licença e
volto pro meu canto mais fico refletindo por que eles agem assim, muitas vezes eu
não compreendo essa falta de respeito. Fora da escola também riem da minha
comunicação através dos sinais da Libras, chegam a fazer até graça, mas eu não
tenho vergonha por isso, ignoro situações como essas.
Percebemos também que as temáticas dos desenhos, na sua maioria,
são voltadas para a cultura popular. Nas produções podia se ver desenhos de super-
heróis, vilões, personagens de videogames, personagens de filmes, figuras públicas,
seres extraterrestres e também alguns autorretratos. A partir das produções do

31
aluno notamos a forte presença das mídias como constituidoras de concepções de
realidade as quais despertam desejos e interesses nos seus interactores.
Nesse sentido, Sibilia (2012, p. 63) diz que “a sociedade contemporânea
esta fascinada pelos sedutores feitiços das imagens”. Em relação a essas praticas
culturais com imagens e as tecnologias visuais, Duncum (2011) exprime:

[...] em nenhum outro momento da historia da humanidade foi


possível comunicar-se instantaneamente com outras partes do
mundo mediante o apoio de imagens de alta resolução. Em suma,
essa tecnologia tem proporcionado uma proliferação de imagens sem
precedentes que revolucionou por completo, aparentemente em um
piscar de olhos, nossa paisagem visual. (DUNCUM, 2011, p. 17).

As imagens veiculadas através das redes, do aparelho televisivo, do


cinema, chegam até os sujeitos de forma democrática e neles despertam diferentes
comportamentos e subjetividades que emergem em suas vivencias diárias. Assim,
nota-se que os indivíduos ao entrarem em contato com esses dispositivos “constrói-
se um tipo de subjetividade bem diferente daquela que germinava na sala de aula”
(SIBLIA, 2012, p. 89). De acordo com Duncum (2011) se faz necessário refletir a
respeito de mudanças no âmbito da arte educação, diante de um alunado
hiperconectado:

A arte educação precisa mudar para que possa abordar os efeitos


sociais da proliferação sem precedentes da imagética comercial que,
atualmente, satura a vida diária em varias partes do mundo. O modo
como vivemos hoje- como vivem, em especial, nossos alunos
eletronicamente conectados – é diferente do mundo retratado pela
pratica educacional artística convencional, continua a enfocar
elementos e princípios modernistas, bem como meios de
comunicação tradicionais. (DUNCUM, 2011, p. 15)

Estes processos de produção e circulação de imagens não estão à parte


das redes de relações que são tecidas dentro dos muros da instituição escolar, pelo
contrario, ela é invadida por esses circuitos que extrapolam seus limites
homogêneos, uniformes e normatizados. Ressaltam os descompassos nas
engrenagens desta instituição, com os processos fluidos de aprendizado e

32
significação vivenciados no dia-a-dia de seus transeuntes que não aprendem
apenas quando estão dentro das salas de aula, mas em todos os lugares, como
salienta Sibilia (2012):

Esses processos detonaram uma profunda transformação das


linguagens, afetando os modos de expressão e comunicação em
todos os âmbitos, inclusive em campos tão vitais quanto a
construção de si mesmo, as relações com os outros e a formulação
do mundo ( p. 63).

Os sujeitos são atraídos por essas fontes de entretenimento que


proporcionam a eles prazer e diversão, diferentemente do observado nas salas de
aula e nos relatos, onde o enfileiramento e a transfusão de conhecimento ainda são
predominantes, levando os alunos a um desinteresse pelos conteúdos curriculares
gerando tensões entre discentes e docentes.
Os alunos em sala de aula ouvem musicas com fones de ouvido,
acessam as redes sociais por seus celulares, em busca de diversão, buscando
pontos de fuga para o confinamento, Sibilia (2012, p. 81) diz que “aos alunos do
século XXI é necessário oferecer diversão” e que “os jovens de hoje pretendem que
as aulas sejam divertidas, o que evidencia certa defasagem entre duas formas
diferentes de o sujeito se relacionar consigo mesmo, com os demais e com o
mundo”.
A esse respeito, Fernando Hernandez (2007, p. 16) diz que a crise
enfrentada pela instituição escolar “poderia ser resumida pelo fato de que muitos
estudantes apresentam resistência à maneira como recebem o ensino na escola e
pelo fato de que muitos professores não querem aprender outro modo de ensinar
diferente do que sempre utilizaram”.

33
CAPITULO II

VIVÊNCIAS DOS ALUNOS, SUAS DIFERENÇAS, VISUALIDADES E SABERES


COMO POTÊNCIA DE AULA.

A volta ao campo despertou em nós novos sentimentos, em partes


sentíamos mais segurança por conhecermos e termos ganhado a confiança dos
sujeitos surdos que frequentam a escola, de alguns alunos ouvintes e funcionários
que demonstraram uma maior familiaridade com nossa presença na escola. Nosso
foco nesse momento era, a partir das observações registradas nos primeiros
momentos de exploração, pensarmos e elaboramos uma aula experimental que
abarcasse as impressões tidas anteriormente em relação às formas de comunicação
e interação compartilhadas por alunos surdos e ouvintes, suas vivencias, interesses,
e os assuntos do currículo formal.
A turma escolhida para desenvolvermos as observações e executarmos a
aula experimental foi a turma do terceiro ano do ensino médio, 323, que é composta
por 31 alunos, sendo 04 deles surdos.
A escola estava finalizando o 3° bimestre, e isto nos primeiros momentos
gerou algumas dificuldades em detrimento do acompanhamento das atividades
desenvolvidas em sala de aula, pois os alunos estavam em período de reavaliação..
Fomos informados pela professora que aconteceria no final da semana
posterior, um projeto desenvolvido na escola há nove anos sobre cultura afro-
brasileira. O projeto tem como objetivos estimular a escola na construção coletiva
de um projeto educacional de inclusão social na perspectiva da diversidade cultural
e definir o papel do professor na construção de identidade e autoestima positiva em
relação aos alunos(as) em geral, principalmente os alunos(as) negros(as). O projeto
é organizado por toda escola, onde os alunos desenvolvem diversas atividades
relacionadas à subtemas específicos da cultura afro. O subtema que a turma 323 iria
desenvolver seria sobre personalidades afro-amapaenses. A professora sugeriu que
poderíamos organizar nossa aula para realizar no projeto que aconteceria em uma
data muito próxima que impossibilitaria que nos organizássemos para o
desenvolvimento da regência junto à turma.

34
Imagem 12 – Propostas curriculares

Fonte: Acervo da equipe de estágio (2016)

Este registro, com título “propostas curriculares” apresentado na imagem


doze, foi capturado logo após algumas negociações com a discente responsável
pela turma. Esta é uma página do livro didático de artes intitulado “Arte e Interação”,
utilizado pela professora de artes na turma. A imagem retrata o contato com o
currículo oficial no momento de negociações com a professora, referente ao
conteúdo que deveríamos explorar nas nossas aulas.
A professora regente nos sugeriu que trabalhássemos o capítulo que tem
como tema: Cultura, Recepção e Interação. Assim, trabalharíamos dentro deste
tema o conceito de cultura popular, o qual o livro didático trazia exemplo de algumas
manifestações culturais populares. Com a delimitação do tema começamos a pensar
em como desenvolver as experimentações em sala de aula a partir das vivências
dos alunos, valorizando suas diferenças, suas diversas visualidades e saberes,
abarcando não somente os conteúdos oficiais mais também os conteúdos de
interesse dos jovens estudantes.
Sobre esta ação, de planejar aula e de fazer escolhas, Irene Tourinho
(2008, p.71) diz que “a ideia de escolha, de uma ação intencional que tanto inclui
como exclui saberes na construção de currículos acompanha a vida docente”.
Esta não é uma tarefa simples, requer do docente um olhar sensível
diante de uma ação complexa, num jogo de poderes onde se precisa atentar aos
interesses dos alunos e construir pontes para que o aprendiz construa um

35
conhecimento que atenda também as demandas do currículo oficial, construindo as
aulas a partir de um “caráter dialógico das relações de ensino e aprendizagem,
interconectando saberes de docentes e discentes, saberes emergentes e
duradouros, questões de poder e de conhecimento” (TOURINHO, 2008, p. 71).
Ao fim das negociações com a professora fomos até a sala 323 para
tentar conseguir acesso a algum grupo virtual de interação da turma. Desejávamos
adentrar em outra dimensão de penumbras, um ambiente virtual, onde os alunos
compartilham de suas vivencias. Nesse sentido, de acordo com Moreira e Candau
(2007) são:

Nesses outros espaços extraescolares, os currículos tendem a se


organizar com objetivos distintos dos currículos escolares, o que faz
com que valores como padronização, consumismo, individualismo,
sexismo e etnocentrismo possam entrar em acirrada competição com
outras metas, visadas por escolas e famílias. Vale perguntar: como
temos, nas salas de aula, reagido a esse “confuso” panorama em
que a diversidade se faz tão presente? Como temos nos esforçado
para desestabilizar privilégios e discriminações? Como temos
buscado neutralizar influências “indesejáveis”? Como temos, na
escola, dialogado com os “currículos” desses outros espaços?
(MOREIRA e CANDAU, 2007, p. 29)

Hernandez (2007, p. 35) fala que aquele que deseja pensar a educação e
criar possibilidades a partir das subjetividades dos alunos, se faz necessário “que
nos apropriemos de outros saberes e de maneiras alternativas de explorar e de
interpretar a realidade, em comparação às atuais disciplinas escolares”.
Pensando sobre os currículos vividos pelos alunos fora da escola,
optamos por adentrarmos num ambiente virtual alternativo a fim de investigar os
trânsitos de distintos saberes “que nos ajudem a dar sentido ao emergente e ao
mutável, a compreendermos a nós mesmos e ao mundo em que se vive”
(HERNANDEZ, 2007, p. 35).
Sabemos que as fontes de informação e aprendizado antes da chegada
da internet eram “efetuadas na privacidade domestica, [...] e também nas salas de
aulas, nos pátios e nos corredores do colégio” (SIBILIA, 2012, p 47). Hoje, já não se
limitam a estas instituições, tais fontes estão ao alcance dos alunos a todo tempo em
suas mãos, nos seus aparelhos de celular portáteis, no computador, ao passo de
apenas um “clique” na grande rede de computadores mundial.
36
Tourinho e Martins (2011, p.51), nos alertam da importância investigativa
desses novos mecanismos sociais, o qual segundo os autores podem aparentar
inofensivos:

Aparentemente inofensivo e operando de maneira subliminar


mecanismos sociais responsáveis pela produção, distribuição e
circulação de informação e conhecimento nos colocam diante da
necessidade de reformular horizontes e repertórios visuais, de criar
novos mapas para apreender e compreender o moderno complexo
que estamos vivendo. (TOURINHO e MARTINS 2011, p. 51)

Em concordância com Torres (2005) sobre o âmbito dos parâmetros


curriculares oficiais e a cultura popular escolhido como tema para a aula:

Nesse âmbito, algo que dificilmente se encontra presente é o


podemos denominar de cultura popular e, particularmente, aquilo que
se vem denominando de culturas juvenis, em geral. Podemos
considerar essas culturas como formas de vida, como ocupações e
produtos que envolvem a vida cotidiana dos alunos e alunas fora das
escolas. São essas formas culturais as que melhor traduzem os
interesses, preocupações, valorações e expectativas da juventude,
as que nos permitem descobrir o verdadeiramente relevante de suas
vidas (p. 166).

2. 1 ESTÚDIOSOS 323: INVESTIGAÇÕES DO DESEJO EM ESPAÇOS


ALTERNATIVOS.

Imagem 13 – Transito livre

Fonte: Acervo da equipe de estágio (2016)

37
Numa conversa informal, negociamos com os alunos e conseguimos
nossa inclusão no grupo do aplicativo de mensagens Whatsapp7 da turma, o qual
denominasse “Estudiosos 323”. Como se vê na imagem intitulada “transito livre”, a
qual é um dos prints8 feitos do ambiente virtual compartilhados pelos alunos.
Neste novo ambiente percebemos outras relações de poder, outros
padrões de comportamento, onde os sujeitos gozavam da liberdade de exibir nas
telinhas dos celulares fotos com garrafas de bebidas alcoólicas, autorretratos
exibindo seus carros, roupas, joias, maquiagens, acessórios, festas, compartilhavam
musicas, fotos e vídeos com teor sexual, a liberdade de se falar de qualquer coisa
dos seus interesses pessoais e coletivos abria margem para que indivíduos se
expressassem mais abertamente, alguns que pareciam tímidos em sala de aula
demonstravam maior desenvoltura nas conversas virtuais.
Os currículos abordados advinham de suas vivencias cotidianas sem a
obrigatoriedade de filtros no que se diz e como se diz. Nossa presença despertou
nos alunos o interesse de saber o que estávamos fazendo naquele ambiente onde
eles podem transitar livremente sem temer a algum tipo de repressão. Era como
estar num outro universo, onde os saberes vinham das mais diversas vias e eram
construídos e compartilhados a partir dos interesses dos próprios sujeitos que ali
dialogavam, socializavam suas práticas fora e dentro da escola.
As observações através desta rede de comunicação possibilitou a tomada
de outros conhecimentos referente aos interesses dos alunos e suas fontes
subjetivas de prazer. Pudemos assim compreender o que eles elegem como
relevantes de ser tratado na aula de artes a ser executada.
Nesse sentido, esse contato nos ajudou a elaborar uma aula que valorize
suas vivencias e suas diversas culturas, assim como relaciona-las as exigências do
currículo oficial. Sobre culturas juvenis Torres (2005) diz que:

Se as distintas culturas destacam os caminhos e as maneiras através


das quais os seres humanos dão sentido a suas vidas, constroem
seus sentimentos, crenças, pensamentos, práticas e artefatos (desde
textos até instrumentos e produtos em geral), as culturas juvenis vão

7
Whatsapp é um software para smartphones utilizado para troca de mensagens de texto
instantaneamente, além de vídeos, fotos e áudios através de uma conexão a internet.
8
Print e o nome da ação de se criar uma imagem mostrando o que se ver na tela do celular ou do
computador naquele momento.
38
ser as que, por definição, traduzem a juventude. Não obstante, essa
realidade juvenil é algo que a instituição escolar vai tratar de ocultar,
quando não atacar frontalmente (TORRES, 2005, p. 166).

Concordamos com o posicionamento de Hernandez (2007, p. 16) quando


diz que “o professorado precisa revisar o que constituiu os fundamentos de sua
prática e criar novas maneiras de conhecer e de relacionar-se com o conhecimento
e com os aprendizes”. Pensar nisso, é pensar num outro ambiente de socialização
apropriado pelos alunos onde ali se constituam outras vivencias, diferenciadas das
construídas no ambiente da escola, da sala de aula, de maneira que, possamos nos
relacionar com os sujeitos numa outra esfera de interação, onde acessamos outros
canais de fluxos subjetivos do gosto, fontes de prazer, diversão, compartilhadas pelo
alunado.
Pensar o ensino das artes visuais a partir das perspectivas da cultura
visual nos viabilizou uma ampliação na questão da exploração dos artefatos
visuais/culturais contemporâneos levados pelos alunos ao contexto escolar.
Também percebemos as possibilidades de uma expansão de reflexões a respeito
das estratégias de como proporcionar experiências educativas sensíveis, com
diferentes visualidades e objetos, localizando-se enquanto educador num lugar
perceptivo dos contextos, em ações dinâmicas e multáveis.
. De acordo com Hernández (2011, p. 83) falar a partir deste lugar é
assumir um posicionamento epistemológico, metodológico e político, que
compreende a experiência educacional enquanto uma narrativa discursiva passível
de mudanças, o autor diz:

As narrativas são formas de estabelecer a maneira como há de ser


pensada e vivida a experiência. Uma forma de narrativa muito
poderosa no terreno educativo é aquela que tende à naturalização:
"As coisas são como são e não podem ser pensadas de outra
maneira". (HERNÁNDEZ, 2011, p. 83)

39
Imagem 14 - Pistas

Fonte: Acervo da equipe de estágio (2016)

No grupo do Whatsapp lançamos aos alunos perguntas em relação as


suas atividades fora da escola. A partir das conversas, começamos a encontrar as
primeiras pistas a cerca de seus interesses pessoais e coletivos. Lançamos
perguntas como: o que vocês fazem quando estão em casa? As respostas dos
alunos ouvintes e surdos apresentaram bastantes similaridades como em casa eu
gosto de mexer no Twitter9, Instagram10, ver séries, Whatsapp, Facebook11; ouvir
musicas no youtube12, mexer no celular, dormir, comer; outro sujeito diz eu gosto de
sair ou de ficar assistindo séries em casa. Os quatro sujeitos não ouvintes da turma
dizem: quando não estou na escola eu gosto de passear, sair com os amigos
surdos, bater papo, ficar em casa com a família; eu gosto de sair para jogar bola,
mexer no celular, ver vídeos; no meu tempo livre eu gosto de namorar, jogar game e
ver filmes; eu gosto de ficar com a família, assistir TV, olhar as redes sociais e sair
com os amigos.

9
Twitter é uma rede social e um servidor para microblogging, que permite aos usuários enviar e
receber atualizações pessoais de outros contatos, por meio do website do serviço, por SMS e por
softwares específicos de gerenciamento.
10
Instagram é uma rede social de fotos para usuários de Android e iPhone. Basicamente se trata de
um aplicativo gratuito que pode ser baixado e, a partir dele, é possível tirar fotos com o celular, aplicar
efeitos nas imagens e compartilhar com seus amigos.
11
Facebook é uma rede social lançada em 2004. O Facebook foi fundado por Mark Zuckerberg,
Eduardo Saverin, Andrew McCollum, Dustin Moskovitz e Chris Hughes, estudantes da Universidade
Harvard.
12
YouTube é um site que permite que os seus usuários carreguem e compartilhem vídeos em formato
digital.
40
A partir das informações compartilhadas em suas falas pudemos ter uma
noção de seus interesses nos universos subjetivos que vivenciam, para então
pensamos por quais vias iriamos encaminhar nossas experimentações. A partir
dessas falas passamos a nos perguntar: como explorar nas aulas de artes as
experiências vivenciadas pelos alunos? Como explorar novos conteúdos, de modo
que, valorize os saberes que os estudantes carregam?
Com estas indagações pudemos refletir e organizar os conteúdos do
plano de aula a ser desenvolvido nas duas aulas posteriores. Nesse sentido, as
aulas de artes, de acordo com Duncum (2011, p. 22) “deveria, pois, basear-se na
natureza da cultura visual, especificamente nas experiências dos alunos relativas a
ela e integradas ao conhecimento do professor”. O autor complementa dizendo que
nestes tipos de processo “é importante incorporar prazer e critica”.

CAPÍTULO III

DIÁLOGOS ENTRE CURRÍCULO OFICIAL, VIDA E COTIDIANO.

Na elaboração do plano de aula não nos interessava fazer/pensar


nenhuma transfusão de conhecimento, e não tínhamos nenhuma certeza dos
resultados que obteríamos. Impulsionados pelas incertezas nos lançamos no escuro
buscando nos caminhos que pudessem nos levar a construção de uma dinâmica de
aula que abarcasse as especificidades apresentadas pelos alunos, permitindo o
desenvolver de um processo compartilhado de significados, visando à autonomia
dos alunos nas aulas de artes visuais. Zabala (1998) destaca que nas concepções
engessadas do tradicionalismo:

O aluno, por sua vez, deve interiorizar o conhecimento tal como ele é
apresentado, de maneira que as ações habituais são a repetição do
que se tem que aprender e o exercício entendido como cópia do
modelo, até que seja capaz de automatiza-lo. Esta concepção é
coerente com a crença de que a aprendizagem consiste na
reprodução da informação, sem mudanças, como se se tratasse de
uma cópia na memoria do que se recebe através de diferentes
canais. (ZABALA, 1998, p. 108)

41
Inicialmente desejávamos trabalhar com o Whatsapp dentro da sala de
aula, pois achávamos que todos os alunos da turma teriam acesso à internet em
seus celulares, ou pelo menos a maioria, na escola. Contrariando nossas
suposições a maioria deles não possuía acesso à internet na escola, somente nas
suas residências. Assim, começamos as adaptações, tivemos que pensar outras
possibilidades para trabalhar com o celular nesse processo, já que não teríamos
como utilizar o aplicativo de mensagens dentro da sala como ferramenta de
comunicação pela falta de acesso a internet.
Após a divisão dos grupos proporcionou-se a autonomia de escolha de
temas que lhes interessava, numa tentativa de fugir da hierarquização dos
conteúdos. A esse respeito, sobre essa seleção do que aprender/ensinar na sala de
aula Moreira e Candau (2007) nos ajudam a perceber que:

Nessa hierarquia, silenciam-se as vozes de muitos indivíduos e


grupos sociais e classificam-se seus saberes como indignos de
entrarem na sala de aula e de serem ensinados e aprendidos. Nessa
hierarquia, reforçam-se relações de poder favoráveis à manutenção
das desigualdades e das diferenças que caracterizam nossa
estrutura social (MOREIRA E CANDAU, 2007, p. 25).

Nessa direção, exploramos tanto assuntos contidos no livro didático


como assuntos de interesse dos alunos coletados nas conversas informais e
indagações feitas pelo grupo virtual. Nessas conversas percebemos os temas de
interesse dos alunos e junta-los com os temas expostos pelo livro, como:
cnobrega13, carnaval, cantor Michael Jackson, marabaixo14, memes da internet15,
série de TV Black Mirror16, cantora Liniker17.

13
Tecnobrega é um gênero musical popular surgida em Belém do Pará nos anos 2000. O gênero
tem a influência que vai desde o brega tradicional, o calypso, o forró, o bolero, o merengue e o
carimbó, até a música eletrônica e o samba.
14
Marabaixo é uma dança da cultura africana, provavelmente trazida pelos negros que chegaram ao
Estado do Amapá no século XVIII.
15
A expressão meme de Internet é usada para descrever um conceito de imagem, vídeo e/ou
relacionados ao humor, que se espalha via Internet.
16
Black Mirror é uma série de televisão britânica antológica criada por Charlie Brooker, que apresenta
ficção especulativa com temas sombrios e às vezes satíricos que examinam a sociedade
contemporânea, especialmente no que diz respeito às consequências imprevistas das novas
tecnologias.
17
Liniker de Barros Ferreira Campos (Araraquara, 1995), conhecida como Liniker é uma cantora e
compositora brasileira de soul e black music.
42
Ao concordar com a “necessidade de se ampliar e desnormatizar os
objetos e os artefatos com os quais se trabalha em educação das artes visuais” ,
Hernandez (2007, p. 63), alerta para necessidade de valorizar as vivências dos
estudantes, seus interesses pessoais e coletivos, o que lhes proporciona prazer.
Provocando o alunado a “[...] desenvolver uma visão crítica em relação
ao poder das imagens, auxiliando-os a criar e aguçar um sentido de
responsabilidade das liberdades decorrentes desse poder” e sabendo que “[...] a
visão é uma “construção cultural” e, portanto, é algo aprendido e cultivado através
de práticas sociais e de práticas educacionais desenvolvidas nas instituições”
(MARTINS, R., 2006, p. 72).
No campo das investigações da cultura visual, Fernando Hernandez
(2007) destaca que a posição a ser assumida pelos professores nas aulas de artes,
não é aquela do detentor do conhecimento, ou mesmo de guardião do currículo
oficial. A pratica docente, a partir desse ponto de vista deixa de ser centrada na
transferência de conhecimento, uma vez que a:

Posição que nos coloca no lugar de questionadores e organizadores


de experiências de aprendizagem que propiciem aos alunos
questionamentos, que os convidem a assumir desafios fazendo
perguntas que os levem a imaginar respostas possíveis para elas.
Não como um caminho preestabelecido e predeterminado. Desta
maneira, talvez, comecemos a questionar a narrativa dominante na
educação escolar para que crianças e jovens possam pensar que a
Escola é um lugar de desafios – delineando-se propostas das quais
eles participem efetivamente e por meio das quais possam narrar
trechos de sua própria história ( p. 60).

De acordo com esse autor a valoração das histórias, interesses, gosto


pessoais no processo de aprendizado, possibilita aos estudantes experienciarem a
escola sob outras perspectivas, que não a de uma instituição onde se passa boa
parte do tempo ouvindo e fazendo coisas que não lhe são significativas.
Experiências, muitas vezes, incompatíveis com os ritmos dos seus cotidianos.
Com a intenção de possibilitar a autonomia dos alunos no processo de
aprendizado, a partir do uso dos aparelhos celulares, pedimos que ao longo da
semana os grupos estivessem pesquisando imagens e informações, compartilhando
os relatos de suas experiências com algum dos temas escolhidos e socializar essas

43
imagens, relatos, informações e opiniões no grupo de Whatsapp. Os alunos se
mostraram interessados nesse processo de aula, que se estenderia para além das
horas em sala de aula e sem a necessidade de seguir um roteiro rígido.

Imagem 15 – Representatividade

Fonte: Acervo da equipe de estágio (2016)

A imagem quinze, a qual tem como título “Representatividade”, foi uma


captura feita por nós. Nesta imagem retratamos um momento que explicávamos aos
alunos a dinâmica de aula que iriamos desenvolver, a fim de ouvir suas opiniões a
esse respeito. Chamou-nos muita atenção a insegurança dos sujeitos surdos em
participarem opinando no momento em que os pesquisadores ouvintes
apresentavam nossas propostas pedagógicas.
Observamos em dado momento que com a presença do pesquisador
surdo, Amadeu Pelegrin, os alunos não ouvintes começaram a interagir com mais
segurança. A presença de um indivíduo que compartilhe da língua de sinais de
forma fluente e que compartilhe do universo surdo em sala de aula fez com que os
alunos surdos se sentissem mais a vontade para interagir no momento da aula. A
necessidade da representatividade nessa situação foi claramente percebida, como o
observado por STROBEL (2015):

[...] a preferencia de surdos em se relacionar com seus semelhantes


fortalece sua identidade e lhes traz segurança. É nos contatos com
seus semelhantes que eles se identificam com os outros surdos e

44
encontram relatos, problemas e histórias semelhantes às suas.
(STROBEL, 2015, p. 121)

Ao buscar diminuir estas barreiras de comunicação existentes entre


surdos e ouvintes na sala de aula utilizamos as ferramentas que eles já se
apropriavam nos momentos em que os intérpretes não estavam por perto para
auxiliar na comunicabilidade. Os telefones móveis eram uma das ferramentas mais
usadas pelos alunos não ouvintes para construir diálogos com os ouvintes. Assim
utilizamos estes artefatos tecnológicos para construir possibilidades de um
aprendizado, onde a diversidade de alunos pudesse compartilhar os saberes.
Esta é uma ação complexa, pois a falta de conhecimento da língua de
sinais por parte dos alunos ouvintes e professores é um fator que dificulta a
interação, assim como a falta de recursos visuais nas aulas de artes. Como aponta
Strobel (2015):

Infelizmente, a maioria das escolas segue espaços não preparados


pra essas diferenças culturais, como é o caso de inclusão de alunos
surdos em escolas regulares. Eles se deparam com dificuldades de
adaptação e com problemas de subjetividades, porque nessas
escolas não compartilham suas identidades culturais. (STROBEL,
2015, p. 123)

Nossas ações experimentais foram conduzidas pelo desejo de construir o que


Duncum (2011) chama de “pedagogias dialógicas”, na tentativa de quebrar
hegemonias construídas por um sistema que negligencia as experiências juvenis da
atualidade na formulação do currículo. O autor explica que:

O objetivo de uma pedagogia dialógica que amalgama diversão e


crítica não consiste em fornecer respostas definitivas, mas sim em
levantar questionamentos, revelar dilemas e dar continuidade a uma
conversa. Tal pedagogia crê no poder dos alunos e em sua
capacidade de tomar decisões éticas ( p. 26).

Nosso desejo como futuros docentes foi experimentar outros caminhos,


diferentes dos habituais e problematizar as experiências estéticas do cotidiano que
45
se constituem além da sala de aula. Pensamos que tais caminhos possam apontar
para construção de aprendizagens plurais, significativas e produtivas tanto para
alunos surdos quanto para alunos ouvintes. Como ressalta CANDAU (2011) :

A dimensão cultural é intrínseca aos processos pedagógicos, “está


no chão da escola” e potencia processos de aprendizagem mais
significativos e produtivos, na medida em que reconhece e valoriza a
cada um dos sujeitos neles implicados, combate todas as formas de
silenciamento, invisibilização e/ou inferiorização de determinados
sujeitos socioculturais, favorecendo a construção de identidades
culturais abertas e de sujeitos de direito, assim como a valorização
do outro, do diferente, e o diálogo intercultural. (CANDAU, 2011, p.
342)

Consideramos que nossa pesquisa e experimentações tiveram como foco


central possibilitar diálogos e construir pontes a partir das práticas que os alunos
estabelecem na dinâmica do seu dia-a-dia no interior do espaço escolar e fora dele,
entendemos que “as salas de aula podem ser espaços produtivos se professores e
alunos puderem compartilhar suas vivências, questionar e fazer conexões entre
experiências” (TOURINHO, 2008, p. 79).
Acreditamos na diminuição dos “abismos” existentes nas relações entre os
sujeitos surdos e ouvintes na escola estadual Tiradentes, apostando na valoração da
diversidade cultural no processo pedagógico, buscando nas incertezas,
estranhamentos e desconfianças propulsão para uma ação educativa menos
centrada no professor, no currículo engessado, e nas metodologias pré-formuladas,
num jogo onde os acertos e erros são partes constituintes das experiências, na
tentativa de encurtar as distâncias entre os conhecimentos oficiais e os
conhecimentos construídos nas vivencias dos alunos, na relação entre aprendizes e
seus professores e “isso pressupõe ultrapassar os limites do que parece aceitáveI,
de modo do que possamos repensar e transgredir, para criar novas narrativas e
experiências de aprendizagem que venham a ter sentido” (HERNANDEZ, 2007, p.
17).

46
CAPITULO IV

EXPERIMENTAÇÕES DE OUTRAS FORMAS DE APRENDER:


DESCONFINADOS.

No período de seis dias interagimos com a turma por meio do aplicativo


de mensagens citado anteriormente na busca de democratizar as informações e
diminuir as barreiras da comunicação, usando para isso mensagens de texto,
imagens, vídeos, para dialogar com os alunos surdos e ouvintes. Buscamos articular
diálogo a partir das variadas projeções do imaginário e dos conceitos individuais dos
alunos trabalhando também os conteúdos curriculares programados.

Imagem 16 – O que é Cultura?

Fonte: Acervo da equipe de estágio (2016)

Este processo de aula a distancia se deu em dois momentos, no primeiro


contato utilizamos imagens de expressões e linguagens artísticas diversas, de
diferentes épocas e contextos como imagens de danças balé e funk, pinturas
clássicas e imagens de pichações, como se vê na imagem acima. A fim de investigar
qual o juízo empregado pelos alunos as diferentes formas de expressões artístico-
culturais, explorando o conceito de cultura. Construirmos coletivamente reflexões a
respeito deste conceito, como o evidenciado na imagem 16 que questiona “o que é

47
cultura?”. Compreendemos este complexo conceito num sentido plural, concordando
com o posicionamento de Moreira e Candau (2007):

[...] a palavra “culturas” (no plural) corresponde aos diversos modos


de vida, valores e significados compartilhados por diferentes grupos
(nações, classes sociais, grupos étnicos, culturas regionais,
geracionais, de gênero etc) e períodos históricos [...] os significados
que os grupos compartilham, ou seja, os conteúdos culturais. Cultura
identifica-se, assim, com a forma geral de vida de um dado grupo
social, com as representações da realidade e as visões de mundo
adotadas por esse grupo. (MOREIRA e CANDAU, 2007, p. 27)

Através das comparações procuramos provocar “mudança de


posicionamento dos sujeitos de maneira que passem a constituir-se de receptores
ou leitores a visualizadores críticos” (Hernandez, 2011, p.38). Alguns alunos se
posicionaram dizendo que tanto o funk quanto o balé são expressões culturais só
são diferentes, outro aluno fala eu tenho cultura, minhas raízes negras me definem,
outro acrescenta todos temos cultura, diferentes umas das outras, só que umas
sofrem preconceito como funk, hip-hop, tecnobrega. A esse respeito Candau
(2011), fala que:

As diferenças são então concebidas como realidades sociohistóricas,


em processo contínuo de construção-desconstrução-construção,
dinâmicas, que se configuram nas relações sociais e estão
atravessadas por questões de poder. São constitutivas dos
indivíduos e dos grupos sociais. Devem ser reconhecidas e
valorizadas positivamente no que têm de marcas sempre dinâmicas
de identidade, ao mesmo tempo em que combatidas as tendências a
transformá-las em desigualdades, assim como a tornar os sujeitos a
elas referidos objeto de preconceito e discriminação. (CANDAU,
2011, p. 336)

Durante os diálogos buscou-se a valoração das diferenças que muitas


vezes são negadas e ate mesmo silenciadas nos ambientes escolares, como
constatado quando questionamos aos alunos quantos autores, artistas,
personalidades que representem a cultura surda estão presentes nas folhas dos
livros didáticos estudados por eles durante o ano letivo, e a resposta de um dos
discentes foi: acho que nenhum. Sobre este fato Candau (2011) nos recorda sobre o
importante papel da escola neste processo de desconstrução destes preconceitos e
48
discriminações, a partir do reconhecimento, valoração e empoderamento dos
sujeitos inferiorizados:

A escola tem um papel importante na perspectiva de reconhecer,


valorizar e empoderar sujeitos socioculturais subalternizados e
negados. E esta tarefa passa por processos de diálogo entre
diferentes conhecimentos e saberes, a utilização de pluralidade de
linguagens, estratégias pedagógicas e recursos didáticos, a
promoção de dispositivos de diferenciação pedagógica e o combate
a toda forma de preconceito e discriminação no contexto escolar.
(CANDAU, 2011, p. 342)

Sabendo do poder das imagens no mundo midiatizado onde “toda obra ou


toda imagem é de certa forma uma opinião social e as formas artísticas e imagens
estão encharcadas de valorações sociais” (MARTINS, 2006, p. 76), buscamos
explorar as potencialidades do uso de imagens no processo educativo em artes e
num contexto particular onde alguns sujeitos são primariamente visuais, como
recorda Strobel (2015):

Os sujeitos surdos, com sua ausência de audição e som, percebem o


mundo através de seus olhos e de tudo o que ocorre ao redor deles:
desde os latidos de um cachorro – que são demonstrador por meio
dos movimentos de sua boca e da expressão corpórea-facial bruta-
até de uma bomba estourando, que é obvia aos olhos de um sujeito
surdo pelas alterações ocorridas no ambiente, como os objetos que
caem abruptamente e a fumaça que surge [...]. (STROBEL, 2015, p.
45)

Como planejado e negociado com os alunos demos inicios ao segundo


momento de aula pelo grupo virtual da turma onde eles deveriam pesquisar imagens
e informações a respeito dos subtemas escolhidos pelos grupos e compartilhar no
grupo do Whatsapp. Todos os grupos puderam compartilhar imagens de seus
subtemas selecionados e informações que consideravam relevantes.
Durante os diálogos pelo aplicativo de mensagens os alunos surdos não
se posicionaram diretamente, percebemos com isso um comportamento que é
reproduzido também na sala de aula. Diante disso fomos provocados a refletir quais
ações poderiam ser tomadas para promover maior interação dos sujeitos surdos no
processo de aula.
49
4. 1 DIVERSÃO, EXPERIMENTAÇÃO E CRIAÇÃO.

Na última etapa do plano de aula realizou-se a socialização das imagens


e informações compartilhadas ao longo dos seis dias de aula a distancia. Iniciamos
a aula exibindo no Datashow as imagens que os grupos haviam coletado na web .
Ao exibirmos as imagens de cada subtema percebemos uma boa
interação dos alunos que tinham de comentar um pouco do que haviam
compreendido dos assuntos pesquisados pelos grupos, era notável o interesse e os
conhecimentos compartilhados entre eles. Cada grupo pôde compartilhar os
conhecimentos obtidos a partir das pesquisas e das conversas pelo aplicativo de
mensagens. Juntamente com os alunos fomos relacionando os temas abordados
pelo livro didático com os temas pesquisados que eram de seus interesses,
concordando com Tourinho (2010, p. 03) que diz que “um dos sérios problemas de
aprendizagem e, consequentemente, de evasão escolar, diz respeito à distância
entre os saberes escolares e as experiências dos alunos”.
Dar aos alunos a oportunidade de escolher que assunto pesquisar e
compartilhar, fora uma tentativa da equipe de pesquisa de descentralização do
professor e aproximação das vivências compartilhadas pelo alunado com os
conteúdos apontados pelo currículo, na fala de Tourinho (2010):

[...] a oferta de possibilidades de escolha sobre o quê e como


aprender, uma ideia que rompe com um ensino centrado na
professora ou professor, que pretendia conduzir o processo de
aprendizagem de forma a fazer com que todos os alunos tivessem,
ao mesmo tempo, as mesmas experiências. A ênfase nas
possibilidades de escolha das alunas e alunos exige que uma
proposta de trabalho – da professora, dos alunos ou resultado da
negociação entre eles – tenha diferentes caminhos e possa ser
realizada a partir de desvios, preferências, recursos e resultados que
não são iguais para todos. (TOURINHO, 2010, p. 04)

Nosso objetivo não foi revelar alguma verdade aos alunos, sabendo que
“conhecimento, consciência e verdade não são realidades fixas e não se encontram
em espaços delimitados” (MARTINS, 2006, p. 76) e assim buscamos construir
coletivamente uma percepção das varias formas culturas e de expressões existentes
no mundo.

50
Os alunos surdos e ouvintes respondiam de formas distintas durante todo o
processo, percebeu-se uma maior participação da maioria ouvinte, tanto no
desenvolvimento da aula pelo aplicativo de mensagens, como nos dois momentos
de aula presencial. Estes comportamentos nos levaram a questionar quais seriam
então as metodologias aplicáveis de avaliação num processo onde diferentes
respostas são dadas, onde os caminhos e desvios trilhados por cada aluno é único e
como fugir de uma aplicação avaliativa normativa e hegemônica.
Refletindo nas considerações de Tourinho (2010) sobre avalição que diz:

Reduzir a avaliação a apenas uma ação é incorrer numa ameaça


pedagógica – ou tudo ou nada – além de ser uma postura autoritária
na educação, [...] temos a responsabilidade, como professores, não
apenas de emitir esse juízo, mas de entender que ele é apenas “um”
juízo e não uma sentença geral sobre a capacidade, desempenho e
inteligência dos alunos. (TOURINHO, 2010 p. 5)

Decidimos por uma avaliação de caráter processual/investigativo e de


valoração dos caminhos percorridos por cada aluno, e uma proposta pratica que
instigasse a criatividade e “a pluralidade de ‘possíveis’ nos resultados da
aprendizagem” (TOURINHO, 2010, p. 6). Observamos o desenvolvimento dos
sujeitos surdos e ouvintes no processo, acompanhando os percursos e não
delimitando parâmetros fixos e universais.
Intentou-se fugir da normatização e hegemonização que os métodos
tradicionais de avaliação produzem. Refletindo nas considerações de Tourinho
(2010) sobre o que vem sendo proposto para as ações avaliativas para o ensino de
arte, listado pela autora, como ela mesma diz, eles não são tópicos excludentes nem
estão aqui apresentados hierarquicamente:

[...] a avaliação (1) é processual; (2) inclui valores éticos e juízos de


valor; (3) necessita cumplicidade e colaboração (entre alunos e
professores); (4) é dependente do contexto e das circunstâncias; (5)
busca a participação e solidariedade da comunidade escolar; (6)
considera as trajetórias pessoais; (7) foca na qualidade da
experiência educativa e de aprendizagem; (8) permite tanto o
desenvolvimento de novas práticas como o acompanhamento e
controle do processo pedagógico. (TOURINHO, 2010, p. 2)
51
Buscamos por uma estratégia pedagógica provisória, que aproximasse a
avaliação aos anseios do alunado, que já haviam pronunciado a respeito da falta de
atividades práticas nas aulas de artes. Criando vínculos com seus interesses e
saberes, explorando suas visualidades, experiências subjetivas, onde todos os
alunos pudessem se expressar criativamente, sobre isso Tourinho (2008) exclama:

Não há, aqui, um retorno à ideia de criatividade atrelada ao mito da


descoberta original, ou da força divina ou, ainda, da inspiração, como
dito acima. Nem há, nesta defesa da criatividade, uma concepção
atrelada à ingenuidade, à pureza, à falta de informação, como alguns
ainda pensam. (TOURINHO, 2008, p. 78)

Pensando nisso realizou-se uma atividade prática onde se usou como


base fotocópias de uma pintura mundialmente conhecida a “Mona Lisa”, obra de
Leonardo da Vinci pintada entre 1503-1506. Pois esta obra nos remete o conceito de
alta cultura trabalhado nas aulas anteriores, propondo conexões e contrastes entre
as vivencias culturais/cotidianas e as belas artes.
Os alunos demonstraram grande interesse em realizar esta ação, tendo
autonomia de experimentar e criar sua própria versão da pintura canônica. Dando a
ela outros significados e interpretações, dialogando com as reflexões construídas ao
longo das aulas. Para a criação das interpretações os estudantes utilizaram recortes
de imagens de revistas e jornais que foram inseridas na obra do artista.
Diálogos entre arte e vida foram sendo tecidos pelos estudantes que
incorporaram à clássica obra uma gama de imagens de objetos da eletrônica
contemporânea e imagens midiáticas, pondo “em evidencia a capacidade de
resistência, autoria e ação dos aprendizes” (HERNANDEZ, 2011, p. 44), como
observado nas imagens que se seguem:

52
Imagem 17 – Outras Imagem 18– Outras Imagem 19– Outras
interpretações 1 interpretações 2 interpretações 3

Fonte: Acervo da equipe de Fonte: Acervo da equipe de Fonte: Acervo da equipe de


estágio (2016) estágio (2016) estágio (2016)

As imagens são registros de algumas intervenções realizadas pelos


alunos. Escolhemos apenas seis das trinta produções dos alunos para aqui
construirmos algumas considerações interpretativas em relação aos discursos que
elas carregam visualmente e os discursos dos alunos a respeito dessa atividade
prática. Entre os seis trabalhos aqui selecionados existem alguns que são de autoria
de alunos surdos, mas que não nos interessa evidencia-los e sim provocar e tecer
reflexões ao respeito das visualidades comuns compartilhadas pelos sujeitos
pesquisados.
Nesse sentido, pode-se notar que os artefatos utilizados nas
representações visuais são diretamente relacionados às experiências subjetivas
particulares e coletivas vivenciadas pelo alunado. As produções deixam transparecer
os fazeres e saberes oriundos do dia-a-dia dos educandos, através do uso de
objetos presentes na dinâmica do cotidiano e que ressaltam questões da vida em
sociedade.
Como se observa nas imagens e nas falas de alguns alunos a respeito
das significações atribuídas por eles às suas produções. Um aluno diz a minha
Mona Lisa é uma travesti, é a Travelisa; outro colaborador expressa a Mona Lisa
que eu fiz é uma marginal; um terceiro exclama minha obra fala de sexo,

53
criminalidade e dinheiro; outro fala na minha obra eu expressei o cotidiano cultural
que vivemos hoje em dia, um mundo de consumismo onde as pessoas só pensam
em ostentar.
Nota-se tanto nas intervenções como nas falas dos colaboradores uma
projeção dos desejos particulares e coletivos em uma aproximação dos arranjos
sociais e suas redes subjetivas de significações com a prática artística,
resignificando a obra de acordo com suas próprias concepções de “realidade”, com
questões significativas para os sujeitos, e esta tem sido a função da arte através dos
tempos, como aponta Efland (2004, p. 229) citado por Hernandes (2007):

A função das artes através da história cultural humana foi e continua


a ser uma tarefa de “construção de realidade”. [...] Muito do que se
constitui a realidade está construído socialmente, incluindo coisas
como o dinheiro, a propriedade, o matrimonio, os papeis de gênero,
os sistemas econômicos, os governos e os males como
discriminação racial. (EFLAND apud HERNANDES, 2007, p. 41)

Tanto alunos surdos como ouvintes puderam experimentar, criar e


expressar suas representações de realidade de forma autônoma sem a necessidade
de intervenção de terceiros. Percebe-se no fazer artístico outro canal de
comunicação e compartilhamento de informações e ideias, democrático e acessível
a todos. Sobre experimentação e criação Tourinho (2008, p. 79) fala que “as
experimentações que a educação contemporânea propõe também não hierarquizam
materiais nem processos, integrando linguagem, narrativa, observação,
interpretação” e prossegue dizendo que:

[...] a experimentação não está dissociada da reflexão nem da


elaboração de idéias, percepções, sentimentos e experiências.
Nesse sentido [...]. Refletir sobre como criam e quais processos
influenciam e interferem na experiência criativa são fatores que
alteram os papéis e a relação aluno/professor colocando a
curiosidade de ambos em proveito de um diálogo entre teoria e
prática e entre as esferas públicas e privadas do saber, do fazer e do
investigar. (TOURINHO, 2008, p. 79)

54
Imagem 20 – Outras Imagem 21– Outras Imagem 22– Outras
interpretações 4 interpretações 5 interpretações 6

Fonte: Acervo da equipe de Fonte: Acervo da equipe de Fonte: Acervo da equipe de


estágio (2016) estágio (2016) estágio (2016)

O registro acima são outros trabalhos feitos pelos estudantes que


puderam transgredir e criar, possibilitando a abertura para “indagações sobre qual
tem sido o lugar das artes, dos imaginários visuais, na constituição dos relatos
hegemônicos sobre os diferentes aspectos que conformam a identidade: o sexo, a
etnia, a classe social, a religião, a nacionalidade...” (HERNANDEZ, 2011, p. 47).
Compreendemos que as imagens e outras representações visuais são
muito mais do que um suporte mudo e passivo, elas falam, portam e mediam
significados e posições discursivas que são partes integrantes e fundamentais do
aprendizado dos alunos surdos e ouvintes contribuindo para pensarmos o mundo e
para pensarmos a nós mesmo enquanto sujeitos.
As atividades interpretativas feitas por eles foi uma oportunidade de
expressão sem necessitar acessar a língua de sinais ou o português, as imagens
(re)construídas em seu caráter polissêmico deram voz e liberdade de interação e
expressão para ambos os sujeitos, ultrapassando toda e quaisquer barreiras
comunicativas.
Eles trouxeram para uma obra clássica imagens e artefatos carregados
de significados compartilhados nas teias de significações da vida social, imagens
que dialogam entre si e que revelam grande semelhança das questões subjetivas
que atravessam os sujeitos, independente de serem ouvintes ou surdos. Como o
aparelho celular tão utilizado por eles, como também, carros, dinheiro, joias, fazendo

55
referencia à chamada “ostentação”, trazendo outras interpretações sobre a pintura,
transgredindo o seu caráter sacrossanto e chamando ao debate “compreendendo
que não são os artefatos que definem arte, imagem e cultura visual, mas o modo
como aproximamos, relacionamos, vemos e olhamos tais artefatos” (MARTINS,
2006, p. 77).
A satisfação em realizarem esse tipo de exercício prático, e no processo
de aula desenvolvido junto à turma, é evidenciada também em suas falas num
momento posterior: foi um trabalho interessante, fazia tempo que eu não fazia algo
do tipo, e foi bacana fazer algo diferente do padrão que estamos acostumados; foi
um trabalho legal, onde todos nós pudemos colocar nossas opiniões e sentimentos
para expressar em uma pintura muito famosa, nossas culturas; uma aula bem
dinâmica e agradável muito útil para tirar o fardo que tem atividades somente
teóricas; foi muito interessante, nossas opiniões foram ouvidas e respeitadas mesmo
se não estivessem certas.
As falas dos colaboradores nos arremetem a fala de Duncum (2011, p.
26) ao dizer que “algo da diversão até mesmo do prazer transgressor que os alunos
absorbem da cultura popular deve ser concebido como um ingrediente da
pedagogia” abrindo margem para outros canais de aprendizado. Percebeu-se nessa
ação prática uma maior satisfação, interação e comunicação entre os estudantes e
até mesmo com a equipe de pesquisa.
Os deslocamentos de olhares nos abriram atalhos e clareiras em meio a
uma densa floresta de sensações, sentimentos, pensamentos, que se fundiam ao
medo do novo e do imprevisível, ânsia de esperar pelos possíveis resultados e
outros desconfortos que as incertezas nos proporcionam.
Olhar para os alunos além da sala de aula, observar seus trajetos pelos
corredores, banheiros, lanchonete, quadra de esporte e até pelos trânsitos virtuais
de comunicação, foi essencial para despertar em nós um olhar sensível ao o que os
alunos querem e como querem aprender nas aulas de artes, buscando nas
potencialidades de suas subjetividades e visualidades os direcionamentos das
metodologias aplicáveis em uma aula de artes. Deslocando assim o olhar do
professor como detentor do saber, do currículo ditador dos únicos conteúdos e
formas de atuação em sala de aula, da escola como único ambiente onde se
aprende, e do próprio conceito de aprender.

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ALGUMAS CONSIDERAÇÕES

Ainda que de inicio o processo tenha nos causado certos desconfortos e


aflições por sermos iniciantes no processo de pesquisa, foi prazeroso estarmos
imerso no subjetivo e plural universo da instituição escolar e estar em contato direto
com as diversidades que ali transitam.
Muitos dados foram levantados e partes deles aqui foram compartilhados,
algumas questões não foram trabalhadas profundamente por não fazerem parte do
foco da pesquisa. Questões relacionadas à posição do sujeito ouvinte enquanto
acadêmico e pesquisador no universo surdo, enfrentando dificuldades com as
barreiras comunicacionais com os sujeitos não ouvintes do campo e com o próprio
pesquisador surdo. Assim como os deslocamentos de olhar a respeito do outro
diferente. Questões e situações que suscitam o desejo nos pesquisadores ouvintes
em conhecerem e se envolverem com maior profundidade com pessoas surdas a fim
de contribuir para a valoração das diferenças dos sujeitos não ouvintes.
Não aprofundamos também a posição do próprio sujeito surdo no
ambiente acadêmico predominantemente ouvinte, fazendo pesquisas a respeito de
problemáticas que lhe afetam diretamente e que também lhe são corriqueiras; o
papel do intérprete de LIBRAS em todo o processo de ensino/aprendizado, entre
outras discussões que podem surgir através deste trabalho, e que serão exploradas
em outras oportunidades.
Pudemos aprender com o percurso que as experiências dos sujeitos não
podem ser acessadas apenas com um olhar clinico, ou com um olhar
preconceituoso carregado de verdades e certezas, para alcançar e tocar as
subjetividades é necessário que ocorra deslocamentos de sentidos e das formas de
olhar o outro diferente. Durante todos os momentos da pesquisa fomos levados a
pensar e repensar as metodologias aplicáveis na docência no campo das artes
visuais, a partir das visualidades que o campo nos ofereceu.
Permanecemos ainda cheios de incertezas, e tendo nas desconfianças,
tensões e sentidos construídos nesse contato com a escola, perspectivas de nos
tornarmos professores de artes buscando ir além das praticas tradicionais.
Perspectivas essas, que nos fazem pensar uma atuação docente que considere os
trânsitos juvenis fora e dentro do espaço escolar.

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Consideramos que faz parte da ação docente, nos processos de
ensino/aprendizagem, tecer reflexões que ajudem a pensar, fundamentar, organizar
e construir, práticas educativas inclusivas. Não como procedimentos modelos,
rígidos e generalizantes, mas processuais, de modo que levem em consideração os
contextos específicos, as visualidades e experiências dos sujeitos envolvidos no
processo de aprendizado em artes visuais.
Não há a pretensão de universalizar os resultados obtidos e nem de tê-los
como provas, verdades absolutas e modelos, pois entendemos que são provisórios
e que não se podem esgotar apenas aqui neste trabalho, mas tão somente tornar
conhecidos os processos e resultados de explorações e experimentações
rizomaticas que foram construindo narrativas visuais apontadas pelo próprio campo
a partir das nossas observações etnográficas, das conversas informais, das
entrevistas abertas, dos relatos de historias de vida, das interpretações e de nossas
próprias histórias que se envolviam com as dos indivíduos participantes da pesquisa,
a fim de convidar ao debate, gerar curiosidade, construir diferentes narrativas nas
quais se possam pensar e criar novas experimentações educativas sensíveis.
Finalizamos nossas atividades de pesquisa com perspectivas de que
ainda há muito a se pensar a respeito dos dados que aqui foram apresentados e que
para atuarmos em universo tão liquido e em constante mutação precisamos estar
abertos as possiblidades, as mudanças de rotas, estar sensível aos trânsitos e as
visualidades dos alunos para elaboração de práticas educativas inclusivas passiveis
de reestruturações constantes, compreendendo que apesar de a escola continuar
sendo um recinto de transmissão/transfusão de conteúdos pré-estabelecidos, há
também a possibilidade de resistência e transgressão que viabilizam construções de
outras perspectivas e outras possibilidades de rotas.

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REFERÊNCIAS

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