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Sonhos e Outras Verdades

Ficção

Poncio Arrupe

-5-
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Alberta e Luís

Lia a sua Newsweek semanal. Um artigo sobra a etnia cigana e seus subgrupos
espalhados por diversas zonas da Europa. Eram feitas algumas menções à música
romani. À sua frente, em som de fundo, a tv noticiava qualquer coisa já muito repisada
sobre próximas adesões à CEE. Enquanto lia, mantinha-se disponível para interromper
se algo que lhe interessasse surgisse no écran. Estava sentado num sofá de dois lugares,
no lugar mais afastado de Luís e Alberta, namorados, por sua vez sentados num de três
lugares disposto em ângulo recto em relação ao primeiro. Separando os sofás uma
passagem estreita que dava acesso ao centro da sala, e uma mesa, encostada ao segundo,
com o telefone e um candeeiro de abajur. Os namorados, recentes, seguiam atentamente
o programa e, de quando em vez, comentavam com os seus habituais lugares comuns ...
João, em silêncio, interrogava-se sobre quando algum dos dois conseguiria dizer algo
que fosse realmente diferente, que ainda não soubesse ou não tivesse ouvido nunca. Que
não fossem ideias feitas, vezes sem conta reproduzidas nos mass media não
especializados e sem recursos para produzirem notícias próprias. E sujeitos inteiramente
à ditadura das volúveis, cruéis e infantis audiências, implacavelmente em busca do
plástico feito em série, previsível, e que as reconforta e alicia por isso mesmo.
Procurava, tão só, ocultar os trejeitos dos sorrisos motivados pelo burlesco da
banalidade dos dizeres de Luís e Alberta. Os de Alberta, esses, particularmente ridículos
pelo seu enfatuamento – recorria com frequência a termos ingleses ou franceses – o que
pateticamente contrastava com a simples justaposição de lugares comuns, dignos de
uma crónica de uma qualquer revista dita do coração. Por vezes João tinha que se
esforçar para não se desfazer numa gargalhada desabrida. Iria parecer um louco
indigente! A sua fama andava lá perto ...
João recusava-se a que fossem outros a determinar a que assuntos dedicava a sua
atenção. Entendia muito bem que as notícias, quaisquer, tinham sempre que surgir
porque os jornais e revistas eram compostos sempre pelo mesmo número de páginas, os
telejornais tinham uma duração prevista, independentemente do que os jornalistas
encontrassem – inventassem - para noticiar ... (Muitas notícias eram notícia porque
noticiadas). Acresce que muitos assuntos são abordados pelos jornalistas tão só porque
aumentam as audiências por apelarem às motivações – diria João - menos nobres das
pessoas, e por incitarem a emoções fáceis e primárias. Compreendia, ... cada um ganha

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o seu sustento como pode e sabe. Desde que não mintam ... Cabe ao espectador dar
atenção ao que entender. Para João, haveria, portanto, que estar disponível para várias
fontes de informação alternativas, sabendo que quase sempre se trataria apenas de ruído,
e não de algo realmente essencial. Aliás, cria, se algo de muito importante acontecesse
encontraria forma de lhe ir parar ao colo, inevitavelmente. Daí a sua opção de se dedicar
às notícias, com atenção e por sua iniciativa, apenas uma vez por semana. Era
suficiente. Procurava assim gastar o seu tempo com o que era realmente importante,
tentando desperdiçar pouco com o ruído de fundo provocado pelo que era acessório. Por
isso, preferia ler as notícias já consolidadas e aprofundadas em publicações com
reputação de fiabilidade a defender, do que se dedicar ao constante devir caótico da
novidade pela novidade.
Entretanto, na tv uma psicóloga - ou seria socióloga? - que, após cinco anos de
estudos mais alguns de prática - vá-se lá saber de quê! - ainda não tinha percebido a
diferença entre o que supostamente teria estudado e o corriqueiro senso comum,
afirmou doutamente, comentando uma peça sobre insucesso escolar, que as crianças
filhas de pais com mais formação académica tenderiam, elas próprias, a alcançar níveis
de formação acima da média. Concluiu paralelamente que, então, as crianças filhas de
progenitores com menores níveis de formação tenderiam para o inverso. Era este tipo de
verdades incontestáveis e óbvias que tocavam o diminuto intelecto de Alberta. Tudo o
que fosse menos evidente passava-lhe ao lado. Naquele momento, como lhe era habitual
em circunstâncias semelhantes, agiu de imediato como se se tivesse deparado com algo
de polémico, passível de discussão, uma qualquer questão de fundo. Nestas ocasiões,
sim, Alberta sentia-se capaz de articular algumas frases com sentido, quer concordasse,
quer discordasse. Aliás, estas eram sempre as duas opções que se oferecia a si própria.
Outras não havia. A dúvida, a pergunta em vez da afirmação, nunca faziam parte da sua
gama de reacções. Sentia-se obrigada a decidir, mesmo em questões que dependiam de
informação factual à qual, no momento, não tinha evidentemente acesso. O seu conceito
de pessoa bem informada era o de alguém que sempre optava a respeito dos diversos
assuntos da actualidade. Alberta e Luís eram as perfeitas “vítimas” dos mass media
modernos – acreditavam que lendo jornais e vendo e ouvindo noticiários ficavam de
imediato a conhecer o que era relevante para os capacitar para a tomada de decisão, e
para escolher campo. João nunca mais esqueceu como Alberta, e Luís também,
decidiram que evidentemente Sadam estava de posse de um arsenal de armas de
destruição maciça pronto a ser usado. (Luís gostava de dizer que era preciso saber ler

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nas entrelinhas, pateticamente alardeando inteligência que manifestamente lhe faltava)
Mantiveram a sua posição mesmo após as revelações de Hans Blix sobre as
manipulações feitas ao seu relatório. A dúvida, o esperar para ver, o sentir necessidade
de mais informação que estivesse na posse de quem realmente a tinha não existia
naquelas mentes presunçosas, e prepotentes face à indecisão nos outros, ou à ausência
da necessidade de decidir.
Alberta, demonstrando não conseguir distinguir uma verdade estatística de um
axioma científico, contrariou então de imediato a douta licenciada da tv ...

- “Isto não é assim! Há muitos filhos de operários que chegam longe, e filhos de
licenciados que não saem da cepa torta!“, tendia normalmente a adoptar a
defesa dos menos favorecidos, mas apenas por complexo de esquerda pós-
revolucionário, frequente na época, e pela sua educação cristã.
( João disse para com os seus botões, mantendo os olhos na revista: Sim? Não
me digas?! E então ...)
Luís retorquiu a Alberta ...
- “T´á bem ..., mas os pais licenciados têm normalmente mais dinheiro, logo
podem dar melhores condições de vida, logo também mais facilidades e
motivação para os estudos ...”
(João, continuando em silêncio: Ora aí está um ponto de vista muuuiiiiiito
inteligente! ... Muda do avesso o ângulo da questão! ...)
E Alberta respondeu a Luís ...
- “Mas não tem que ser assim. Há pais licenciados pobres e não licenciados
ricos.”
(Agora é que estas cabeçinhas se vão ver aflitas para se desembaraçarem deste
imbróglio! Estou muito curioso ...)
E Luís ...
- “E há licenciados completamente broncos e ignorantes, e não licenciados
inteligentes e cultos ...”
(Estocada baixa! Isso não se faz à namorada! Agora é que estamos atolados até
ao pescoço! Aguardo ...)
E Alberta, em tom de desafio ...
- “Também podemos dizer o mesmo sobre os ricos e os pobres ...”
(Ui! Ui! É tão feia a vingança ... pagar na mesma moeda ... Não se faz ... )

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Nesta altura a douta licenciada da tv já estava arrumada ... João aguardava somente
que aquelas igualmente doutas mentes descobrissem a chave para a resolução do
problema que a primeira tinha suscitado. Alguns segundos de silêncio reflexivo da parte
de Alberta ...

( ... vem aí algo de esmagador ... )


Alberta ...
- “Lembras-te do Rogério, filho da empregada dos Mendes, que tem agora um
cargo importante em Bruxelas? ... E do Filipe que tinha tudo e arruinou a
empresa do pai?”
Luís ...
- “Sim, sei quem são.”
Alberta ...
- “Sabes o que eu acho? ...”
(Vem lá a solução ... não aguentava mais esta espera ...)
- “Isto não tem nada a ver com ricos e pobres, ou cultos e ignorantes ... Acho
que quando queremos e acreditamos, conseguimos. Tudo depende
essencialmente da vontade, das capacidades, do trabalho, ... Será isto que
ensinarei aos meus filhos!”, para Alberta o acaso, as constelações complexas
de contingências, o aleatório, pareciam não desempenhar papel relevante ...

João não aguentou aquela tirada conclusiva de génio! Ainda por cima expressa na
forma de um propósito educativo edificante ... (Sempre achou que a pior hipocrisia é a
que se alia a propósitos recomendáveis pelas boas consciências!) Fechou a revista,
levantou-se e saiu da sala forçando a tosse e levando a mão à boca para disfarçar uma
enorme vontade em se desfazer em gargalhadas. Para João, a doutora Alberta, que se
movimentava nos sectores da esquerda sexy, católica progressista, acabava de dizer,
sem o perceber, salvo excepções honrosas, vide Rogério, ou desonrosas, vide Filipe, que
os pobres são-no essencialmente porque não querem trabalhar, não têm capacidades, ou
porque seus pais não lhes ensinaram que tudo depende essencialmente da vontade de
cada um. Ao invés, os ricos são-no porque têm capacidades e trabalham, e tiveram a
felicidade de ter uns pais muito cultos, que até sabiam e lhes ensinaram que tudo
depende da vontade e do trabalho, desde que não se seja totalmente destituído de

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capacidades, o que é pouco provável para quem herdou genes de pais ricos! Concluindo,
estamos condenados a encharcar a terra de genes de má qualidade porque os pobres têm
muitos filhos! E isto não tem remédio porque nem vale a pena dar a estes pobres mais
do que a devida e santa caridade, porque as oportunidades que lhes possam ser
oferecidas serão desperdiçadas pela sua incapacidade e indolência congénitas. A única
coisa que sabem e querem fazer é ... filhos! João não resistiu a ir mais longe no absurdo:
Solução para a pobreza? Esterilizar os pobres ... E obrigar os ricos a procriar
proporcionalmente aos seus rendimentos! (Não deixa de ser semelhante aos benefícios
fiscais em função do número de filhos que certos políticos propunham então em alguns
países mais ricos) Deprimente ... a tontinha, a indigente mental Alberta. A sua
ignorância - congénita, não tem culpa! – e formação de beata progressista não lhe
permitia perceber o contra-senso evolucionário em que incorria.
Alguns minutos mais tarde, depois de se despedir com um neutro “boa noite”,
enquanto lavava os dentes para se deitar, João recordou algumas das frases favoritas de
Alberta: “Isso comigo não se passa assim!”, ou algo parecido como “Eu não sou
assim!”, “Não tem que ser sempre assim”, ... Deste modo Alberta descartava-se das
evidências, recorrendo por sistema ao principio da excepção, desobrigando-se
comodamente de incluir nos dados prévios às questões tudo aquilo que aconselharia à
reformulação dos seus pressupostos, normalmente de natureza bem pensante, aceitáveis
à primeira vista para a maioria das pessoas. Era, aliás, este o seu crivo implícito
dominante – o senso comum das conversas de café. Naturalmente que, com frequência,
conduzia os seus raciocínios a becos sem saída. Refugiava-se, então, no silêncio, e por
vezes na má criação característica de quem se sente humilhado, ou em risco de o ser.
Por exemplo, terminava abruptamente as conversas com uma frase do género “Esta é a
minha opinião, é assim que eu penso, pronto!”, evitando prosseguir por terrenos que já
lhe fugissem sob os seus pés. Muitas vezes, de seguida, segredava qualquer coisa ao seu
namorado, ostensivamente querendo mostrar que escondia algo e que desprezava aquele
com quem tinha estado a discutir. Luís, normalmente, sorria constrangido. Na mente de
João, nestas ocasiões, surgiam logo imagens evocativas das desavenças típicas das
crianças e jovens adolescentes dos seus tempos de escola, dos seus segredos,
conspirações, ressabiamentos, ciúmes e invejas, amizades e inimizades feitas e desfeitas
em contínuo, a propósito de tudo e de nada. Não tinha pachorra ... Era melhor continuar
como espectador, e quedar-se calado. João tinha aprendido a não incorrer no risco de
humilhar pessoas como a Alberta. Sabia que evitava deste modo dissenções

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desnecessárias e perturbadoras das relações que convinha manter rolando sem
sobressaltos – em grande parte por causa dos laços comuns com outras pessoas - e, em
simultâneo, sem grande esforço e dedicação.
Luís também era useiro nas banalidades e frases feitas. João nunca mais esqueceu
aquele dia, já não se lembra a que propósito de que evento - queda do muro de Berlim? -
, em que aquele proferiu pomposamente: “O Comunismo em teoria é uma coisa boa,
mas na prática é impossível de implementar” (Esta foi a forma que Luís encontrou de
rejeitar o comunismo e simultaneamente aplacar a sua consciência por, no seu
entendimento primário, estar a rejeitar uma ideologia essencialmente boa uma vez que
propunha a igualdade entre todos. Nunca Luís percebeu o valor essencial da diferença,
crucial para a emergência das transformações em todas as dimensões, sem excepção, do
humano e social). Durante muitos anos aquela foi a frase favorita de João para ilustrar a
mais absoluta estupidez e vacuidade, e que o fez frequentemente sorrir a sós, repetindo-
a em silêncio, só com os lábios, adoptando correspondentes posturas e gestos teatrais,
acentuando os tiques da grandiloquência bacoca de Luís, ... e por vezes ser surpreendido
por Paula e outros nesse acto ... por vezes ao espelho! Enquanto o tema esteve na berra e
quase toda a gente se sentia na obrigação de marcar uma posição sobre o assunto,
utilizava também aquele dito para provocar reacções em interlocutores de ocasião,
testando-os ... Era o seu vacuómetro cerebral de algibeira.

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