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O DUELO
Autor
K. H. SCHEER
Tradução
RICHARD PAUL NETO
Digitalização e Revisão
ARLINDO_SAN
O prisioneiro do Serviço Solar de
Segurança lança mão de seus trunfos secretos; a
segunda aventura de Atlan!
Foram muito gentis, amáveis e, dentro dos limites das suas normas de serviço, até se
mostraram tolerantes. E isso significava alguma coisa, quando se tratava de membros da
defesa solar.
Muitos deles eram cientistas uniformizados. Outros, soldados da frota espacial,
calejados nas lutas. Conforme explicaram, haviam arriscado tudo pela Terra.
Para eles, eu era um ser totalmente estranho, tanto sob o aspecto biológico como do
ponto de vista político-social. Nunca chegaram a empregar a expressão “raça estranha”,
fato que só concorria para confirmar minha opinião relativa ao grau de amadurecimento
ético da Humanidade. Já não eram intolerantes como antigamente, quando perseguiam
pessoas que adotavam crenças diferentes das suas e executavam os adversários políticos.
Haviam amadurecido, mas isso não os impedia de verem um inimigo em minha pessoa.
— Não temos absolutamente nada contra o senhor, meu caro — declarou o general
Kosnow em tom jovial.
Por isso, formulei uma pergunta inteiramente lógica: por que não me deixavam ir
em paz? Quando me lembrei do sorriso azedo de Kosnow, senti a preocupação fermentar
em minha mente. Só nos raros momentos de equilíbrio psíquico esse fato me divertia.
Era claro que não poderiam soltar-me, depois que eu irrompera em seu círculo de
vida em circunstâncias tão misteriosas.
Não sabiam nada a respeito da minha cúpula pressurizada, situada nas profundezas
do Oceano Atlântico. Por outro lado, não lhes revelei que no ano de 1.971 resolvera
colocar-me em segurança, porque temia a irrupção de uma guerra nuclear.
Dali a sessenta e nove anos, quando as instalações médicas robotizadas de minha
base me despertaram do estado de hibernação biológica, tive de constatar que não houve
guerra.
Pude ver o que a Humanidade havia realizado dentro desses sessenta e nove anos.
Recorrendo a todos os meios de que consegui lançar mão, cheguei a Terrânia, onde
travei conhecimento com o homem mais importante da fase recente da história.
Seu nome era Perry Rhodan. Durante o tempo em que eu dormira, ele havia criado
um pequeno império planetário, ao qual dera o nome de Império Solar.
Na Galáxia habitada, ninguém parecia desconfiar de que na pessoa de Rhodan
surgira um conquistador audacioso e cheio de astúcia.
Levei algum tempo para avaliar aquele homem. E isso quase chegou a transformar-
se na minha perdição.
Embora conhecesse a dureza, a pertinácia e a capacidade de ação dos humanos, não
dei o devido valor a Rhodan.
Tentei fugir numa pequena espaçonave do tipo jato espacial, pois, após um longo
afastamento, tinha vontade de chegar em casa. Esperei por muito, muito tempo que o
desenvolvimento tecnológico dos humanos chegasse ao estágio da navegação espacial.
Quando finalmente conseguiram, cometi a tolice de fugir para as profundezas do
oceano. Dessa forma, perdi a oportunidade representada pelo grande salto.
Quando por ocasião do primeiro vôo tripulado à Lua, Rhodan descobriu o cruzador
danificado dos arcônidas. Naquela oportunidade, uma ação precipitada me fez perder a
maior chance de minha existência.
Enquanto eu estava mergulhado no profundo sono biológico, o antigo major da
Força Espacial adquiriu o saber arcônida e realizou seus projetos com base no mesmo.
Quem cruza nestas condições o caminho de um homem, que há decênios vê o
próprio sentido da vida em tudo quanto é dificuldade e risco, quase sempre se expõe a
uma catástrofe.
Fugi! Entrei numa nave espacial pilotada pelo próprio Rhodan. Em Hellgate, houve
o duelo no deserto.
Ele me mandou prender e algemar. Durante a luta tive uma oportunidade de matá-lo.
O motivo por que não o fiz, mas preferi errar o alvo, constituiu parte substancial das
minhas reflexões autocríticas do momento.
Por que não o matei? Teria sido porque antes ele me ajudara a sair da nave em
chamas?
Não. Esse motivo não tinha qualquer fundamento lógico. O homem que resolve
poupar seu inimigo não está certo de que este venha a adotar o mesmo modo de agir
quando surgir uma situação idêntica.
Apesar disso, senti que devia ser-lhe grato. Poupei sua vida de propósito e avisei-o
pelo rádio de que agora estávamos quites. Poucas horas depois iria arrepender-me do
gesto.
Após a salvação realizada no último instante, ele me fez contemplar a boca de sua
arma. Fiquei sabendo que, entre nós, surgira uma estranha amizade fundada no ódio.
Admirei-o a contragosto. Ele, que se considerava imortal, mas que poderia ser
atingido com tamanha facilidade, via em mim um objeto de estudo muito interessante.
Rhodan era muito inteligente e experimentado nas coisas da vida e talvez até
desconfiasse de que eu não fosse um verdadeiro arcônida. Provavelmente, foi só por isso
que me mandou levar à Terra num cruzador leve. E desde o dia 10 de maio de 2.040 estou
detido neste planeta, como prisioneiro da defesa solar.
Meu relacionamento com essa gente transformou-se numa tragicomédia de primeira
categoria. Evidentemente sabiam muito bem que a vida de seu ídolo estivera em minhas
mãos. E também sabiam que eu não era um verdadeiro inimigo da Humanidade.
Os homens da defesa solar eram psicólogos. Por isso, meu comportamento
colocava-os diante de uma verdadeira muralha de enigmas, cuja solução dificilmente
seria possível para quem não possuísse a chave adequada.
Quem tinha a chave era eu; também sobre este ponto estavam informados. Não
haveria nada mais natural que procurar arrancar-me esse conhecimento.
Quando foram buscar-me para realizar o primeiro interrogatório, tive um pouco de
medo. Talvez poderiam reincidir nos seus antigos vícios.
Pensava num tratamento grosseiro. À porta da sala em que seria realizado o
interrogatório, minha lembrança muito viva me mostrara coisas feitas em tempos
passados, por homens ainda não humanizados.
Não me fizeram nada. Os cientistas uniformizados apenas puderam ameaçar-me
com seus rostos zangados o que, uma vez vencido o primeiro choque, quase nem chegou
a impressionar-me.
Há dias estávamos brincando uns com os outros. Recorreram a todos os truques
puramente psicológicos que conheciam. Tive de prestar muita atenção. Mas, afinal, eu era
um conhecedor mais profundo da mente. Não dispunham das mesmas experiências que
eu, nem estavam informados sobre as coisas que eu mesmo experimentara pessoalmente
no correr do tempo.
Era um paradoxo que eu, um arcônida, conhecesse os homens melhor do que eles
mesmos se conheciam. Para mim, o fato de que vezes seguidas me ofereciam
oportunidade de deixá-los perplexos com o volume das minhas experiências representava
uma fonte de divertimento.
Era esta a situação quando vieram buscar-me no dia 16 de junho de 2.040, para o
vigésimo segundo interrogatório psicológico.
2
Minha preleção sobre a política colonial arcônida e a psicologia das raças estranhas
durou duas horas.
A seguir, os estudantes de várias especialidades apresentaram-se para discutir o
assunto. Era a hora da descontração e do descanso.
Marlis Gentner, uma moça alta, de cabelos escuros e um jeito obstinado, resolvera
não participar da guerra de palavras. Interpretei sua surpreendente reserva como um sinal
positivo, o que evidentemente poderia ser um raciocínio errôneo.
Várias vezes vi seu rosto surgir entre muitos outros como se fosse uma mancha
branca. Uma ocasião tive a impressão de que me examinava com os olhos críticos de
psiquiatra.
Sempre que pensava nela, experimentava um sentimento de carinhosa simpatia.
Quase chegava a sentir vergonha por tê-la induzido a trair sua raça.
Seria a doença infantil de todos os pioneiros; não havia a menor dúvida. E fora
injusto da minha parte deixar de esclarecê-la a este respeito. Ainda acontecia que não se
podia pensar numa ligação entre a moça e minha pessoa.
Era jovem, bela e inteligente. Já eu era um homem muito velho, que não tinha o
direito de atar a venusiana, que mal começava a despertar para a vida.
Enquanto respondia às indagações dos universitários, meu sexto sentido lógico, que
geralmente funcionava de forma impecável, me disse que por enquanto não havia
acontecido nada. Além disso não pretendia recorrer ao auxílio de Marlis para prejudicar a
Humanidade. Apenas desejava ir para casa. Queria escapar à vergonha da prisão. Era só
isso.
Ao meio-dia e dez, o tenente Gmuna interrompeu a longa discussão. Encontrava-se
entre os estudantes, dos quais alguns falavam excitadamente, enquanto outros ouviam em
silêncio. Naquele momento, discutiam se uma raça mais desenvolvida no terreno técnico
e científico tem o direito de enquadrar os habitantes dos mundos primitivos no seu
esquema colonizador.
Os prós e os contras esquentavam os ânimos jovens. Diverti-me ao notar como a
juventude mergulhava num tema que já ocupara as cabeças dirigentes do Império
Arcônida.
A inquietação que começava a tomar conta de mim, me fez ficar nervoso e distraído.
Esforcei-me ao máximo para dar respostas claras e objetivas. Se procedesse de outra
forma, Gmuna desconfiaria imediatamente.
Demorou alguns minutos até que eu visse Marlis ao meu lado. Gmuna não poderia
impedir que, durante a discussão tão animada, vez por outra, alguém esbarrasse em mim.
Todos os dias tinham sido a mesma coisa: queriam ver de perto o estranho vindo das
profundezas da Via Láctea.
Subitamente, vi os olhos de Marlis. Eram grandes e escuros que nem um lago nas
montanhas, em cujo fundo arde um fogo eterno. Esses olhos continuavam a indagar, e a
perscrutar. Percebi lutar consigo mesma, uma circunstância que provava que os objetos os
quais eu precisava se encontravam em seu poder.
Só deveria olhar ligeiramente para ela.
Naquele instante, Gmuna estava empurrando os estudantes para trás. A moça
aproveitou a oportunidade.
Ouvi sua voz, que soava baixo e abafada.
— O senhor me escreverá?
Fiz um gesto quase imperceptível com a cabeça. A tensão psíquica quase chegava a
dilacerar-me. Mercant prometera interrogar-me de novo durante a tarde. Poderia haver
cenas muito desagradáveis.
— Faça o favor de afastar-se — berrou Gmuna a plenos pulmões. — Do contrário
nunca mais ouvirá uma preleção.
— Darei notícias — disse apressadamente, dirigindo-me à moça.
— Não lutará contra minha gente?
— Dou-lhe minha palavra, Marlis. Preciso ir para casa. Procure compreender!
— Encontramo-nos em Port Vênus. Interromperei os meus estudos. Combinado?
Senti um nó na garganta. De repente, a tensão abandonou-a. Brindou-me com um
sorriso franco. Embaixo de sua pasta, surgiu um recipiente chato de cerca de 20
centímetros de comprimento. Agarrei-o apressadamente, mas ninguém notou o gesto.
Com um ligeiro movimento da mão, introduzi o estojo sob a blusa folgada. Senti as
duas ventosas entrarem em contato com a pele através da camisa.
Mais uma vez parecia uma pessoa estranha entre os jovens que discutiam, e que
finalmente abandonavam o campo.
O tenente Gmuna aproximou-se furioso. Sorri tranqüilamente para ele. Marlis
desaparecera. Provavelmente fizera muito mais pela Humanidade do que poderia
imaginar naquele instante. Quanto a mim, estava decidido a não voltar para a grade
energética.
Meu equipamento de emergência não oferecia grandes possibilidades. Quando me
encontrasse no interior da casa hermeticamente fechada, o defletor de ondas luminosas
não me poderia ser útil.
— Faça o favor de acompanhar-me — disse Gmuna em voz bastante alta. — A
partir de amanhã mandarei isolar seu lugar. Assim não é possível.
Quando comecei a rir, Gmuna contorceu o rosto numa expressão de contrariedade.
— O senhor sabe perfeitamente que todas as simpatias estão do seu lado. Não pense
em tolices. É verdade: amanhã mandarei fechar o auditório.
Gmuna nem parecia desconfiar de que essa decisão vinha tarde. Olhei para trás para
ver Marlis mais uma vez, mas não consegui descobri-la. Provavelmente, a esta hora, já se
estaria recriminando pesadamente. Não tive possibilidade de apoiar sua ação numa
conversa franca e prolongada. A moça só me conhecia das discussões.
Gmuna empurrou-me para a saída. Os dois guardas reapareceram.
Pegamos o pequeno elevador comum que ficava atrás da parede de comandos do
moderno auditório. Lancei um ligeiro olhar para as câmeras de televisão embutidas. As
minhas preleções costumavam ser transmitidas, pois a sala não comportava mais de mil
pessoas.
Fomos para a cobertura, onde Gmuna havia estacionado o helicóptero. Naquele
instante, minha calma e equilíbrio interior tornaram-se completos.
“Na cobertura, pedirão autógrafos a você”, avisou meu sexto sentido. Quase
cheguei a confirmar com um gesto. Até então, sempre fora assim. Os estudantes são uma
turma bastante engenhosa. Sabiam como pregar uma peça às autoridades.
Comecei a preparar-me para a fuga.
Quando saímos do elevador, não consegui ver a larga área de concreto do heliporto
de cobertura. Mais de mil universitários haviam comparecido para ver uma criatura
misteriosa como eu.
Eram os estudantes que não conseguiram entrar no auditório. Com certeza não
ficaram muito satisfeitos em assistir à palestra pela televisão, principalmente porque
dessa forma não poderiam intervir nos debates. E agora possibilitariam minha fuga.
Os guardas de Gmuna avançaram com os fuzis atravessados. Não conseguiram
afastar as pessoas, geralmente jovens, vindas de todos os continentes da Terra e dos
diversos planetas habitados. Antes que Gmuna se desse conta do que estava acontecendo,
nos vimos rodeados por gente excitada falando em altas vozes.
Olhei para o arco assimétrico do portão, sob o qual começavam as diversas faixas
transportadoras da via elevada. Precisava atingi-lo.
Alguém entregou-me um grande quadro, no qual identifiquei, para meu espanto,
minha própria pessoa. Canetas foram tiradas dos bolsos. Autógrafos foram solicitados.
Contra minha vontade vi-me transformado numa espécie de ídolo. Eu, que fora tão
comum, transformara-me numa figura conhecida de todos. Não gostei disso, pois o fato
me traria problemas bastante difíceis.
Gmuna distribuiu cotoveladas, até que dois gigantes risonhos o seguraram pelos
braços. O estojo metálico, que poucos segundos antes se encontrara preso à minha pele,
já se achava no bolso externo de minha blusa. Seria fácil abrir o fecho magnético e tatear
até encontrar o defletor de ondas luminosas, um artefato achatado.
Quando Gmuna conseguiu respirar e alguns representantes da polícia comum
acudiram correndo, minha hora havia chegado.
Bem atrás de mim, ficava a parede de concreto na qual se abriam os poços dos
elevadores. Quase todos os estudantes que participavam da manifestação de protesto
estavam à minha frente. Teria de passar pelos poucos mantidos junto à parede sem que
estes o percebessem.
Aguardei calmamente até que Gmuna voltasse a soprar o apito. Apertei a chave do
instrumento para baixo.
De uma hora para outra o defletor de ondas luminosas tornou-me invisível aos olhos
comuns. Via tudo, mas para os outros desaparecera de uma hora para outra.
O campo de deflexão adaptava-se automaticamente aos contornos de meu corpo.
Dei mais três saltos para trás e passei por alguns estudantes enfurecidos. Foi quando
vi o rosto perplexo de Gmuna.
Há poucos segundos ainda era a própria encarnação da calma; mas agora sentia-me
tangido pelos acontecimentos. Evidentemente desencadeariam o alarma geral. Se ainda
me achasse no espaçoporto, a fuga seria impossível. Mas, na situação em que me
encontrava por certo conseguiria mergulhar no formigueiro da gigantesca Terrânia.
Contornei o compacto grupo de estudantes e vi algumas aberturas em meio à massa,
que me permitiram avançar mais um pouco.
Ouvi um trovão atrás de mim. Parei em meio ao salto e virei-me apressadamente.
Não era possível que Gmuna, tomado de pânico, estivesse atirando contra aquela gente.
Não, não estava atirando. Em compensação, o ar aquecido pelos raios do sol estava
entrecortado por dedos luminosos das forças atômicas liberadas.
Tombe Gmuna atirava para o alto, provocando a fuga desabalada dos estudantes
assustados. O jovem tenente do serviço de defesa sabia como agir numa emergência.
Esperava que a confusão me proporcionasse alguns minutos de vantagem. E agora
conseguira fazer-se ouvir com uma rapidez surpreendente, além do que emitira um sinal
de alarma inconfundível.
Reprimi uma praga, orientei-me ligeiramente e voltei a correr.
Cheguei ao grande portão que ficava junto à beira da cobertura antes dos grupos de
estudantes. Aqui começavam as faixas transportadoras que, apoiadas em elegantes
colunas de sustentação, passavam por cima de toda a cidade de Terrânia.
Perto de algumas moças que gritavam a plenos pulmões saltei para a fita de baixa
velocidade. Dali passei com alguns saltos rápidos para a via expressa que se deslocava a
cinqüenta quilômetros por hora. Em virtude da série de saltos precipitados, caí
pesadamente sobre o piso elástico. Continuei deitado, observando os arredores.
A fita movimentava-se a uma velocidade um tanto elevada. Afastava-me do foco dos
acontecimentos mais rapidamente do que Gmuna poderia gostar.
Antes de ser carregado para a curva ampla situada entre o edifício da academia e um
dos edifícios da administração, vi alguns helicópteros da polícia aérea surgirem
ruidosamente.
A grande caçada estava começando. Se conseguissem agarrar-me de novo, meu jogo
estaria perdido.
Tive o cuidado de não entrar em contato com as raras pessoas que se encontravam
sobre a fita transportadora. Escolhera este meio de fuga não tanto por sua rapidez, mas
principalmente porque oferecia uma garantia quase absoluta contra a descoberta.
Evidentemente os passageiros, que se valiam desse meio de transporte rápido, não se
moviam sobre o mesmo. Quem conseguisse colocar-se sobre a fita ficava parado, para
resistir à pressão do vento. Nem sequer se arriscava a utilizar a comunicação direta.
Logo depois, desliguei meu espírito. Que procurassem à vontade. Continuaria
invisível enquanto o microcarregador fornecesse energia.
Prestei muita atenção aos grandes painéis luminosos que avisavam os passageiros
com a necessária antecedência sobre o lugar onde deveriam sair da fita para encontrar
esta ou aquela estação.
Quando vi à grande distância a inscrição “Campo de Pouso”, modifiquei meu plano
original. Face à reação surpreendentemente rápida de Gmuna, a penetração na área do
grande espaçoporto, além de perigosa, seria inútil. Se estivesse no lugar de Kosnow, a
esta hora já teria emitido uma proibição geral de decolagem.
Passei pela ramificação. Meu destino era a grande estação ferroviária. Os grandes
comboios de longa distância raras vezes eram utilizados pelos viajantes. Não teria
dificuldade em encontrar lugar num vagão de carga.
Sentei, cruzei os braços por cima dos joelhos e ri alto e alegre para o vento.
A correnteza de ar era tépida. Refrescava muito pouco. A próxima chuva fora
anunciada para a noite seguinte.
Tirei o estojo do bolso e retirei o pequeno projetor mental. Era uma versão reduzida
da arma psicológica altamente eficiente, cujas emanações eliminavam o pensamento
consciente. O aparelho não era perigoso, nem prejudicava a saúde. Não pretendia matar
nem ferir esses bárbaros selvagens, mas tão bem-sucedidos, que habitavam o planeta
Terra.
Deram-me um tratamento decente. Uma moça de sua raça chegara mesmo a
apaixonar-se por mim. Por que não confiavam em mim? As coisas poderiam ser muito
mais simples e os riscos menores. Prometi a mim mesmo que depois de chegar a Árcon
nunca mencionaria a Terra, o Império Solar ou o nome de Perry Rhodan. Esta palavra de
honra foi dada a mim mesmo segundo o sagrado código de honra da frota espacial dos
arcônidas. Não poderia voltar atrás, mesmo que mais tarde viesse a desejá-lo. Decidi
justamente fazer esse juramento para evitar que fatores sentimentais posteriores
pudessem demover-me do meu intento. Estava indissoluvelmente ligado ao mesmo.
Livre da carga das auto-recriminações e com o pensamento voltado para Marlis
Gentner, preparei-me para saltar para a fita mais lenta. Precisava dar certo. Não poderia
esbarrar em ninguém.
Bem à minha frente vi, em letras luminosas menores, a expressão “Estação de
Carga”.
Por certo, a área também seria bloqueada, mas não com o mesmo cuidado do
aeroporto intercontinental. Em Terrânia, dificilmente havia alguém que usasse as
antiquadas vias férreas.
4
Minha fuga no trem de carga foi um verdadeiro martírio. Abri sem hesitar a porta de
correr de uma pesada locomotiva atômica, que recebera o sinal de partida no momento
em que estava chegando à estação. Pouco me importava a que lugar da Ásia ou da Europa
estaria destinado o trem. A única coisa que me interessava era sair de Terrânia quanto
antes, a fim de escapar à operação de busca em grande escala.
Exausto, escondi-me no transformador da gigantesca locomotiva, mas dez minutos
após a partida o trem foi detido. O serviço de defesa agira com uma rapidez inacreditável.
Dali em diante, comecei com o jogo arriscado. Os policiais empenhados na busca
sabiam que teriam de procurar uma criatura invisível. O problema seria praticamente
insolúvel pelos meios naturais. Por isso, o trem ficou parado durante duas horas em pleno
deserto, até que chegasse um comando especial com instrumentos de localização.
O lugar mais seguro para esconder-me continuava a ser o transformador, onde a
corrente de 30 mil volts gerada pelos reatores seria convertida para a voltagem com que
trabalhava a máquina.
Uma vez que me encontrava muito próximo aos trilhos condutores de energia, os
campos energéticos por eles gerados superavam bastante as débeis irradiações de meu
defletor de ondas luminosas. Face a isso, a localização energética seria impossível.
Acontece que tive de pagar por essa vantagem com um perigo constante para minha
vida. Saltitava entre os condutores reluzentes e, muito excitado, procurava calcular a que
distância poderia saltar um raio que transformaria meu corpo numa massa carbonizada.
Foram minutos terríveis. A sala de transformadores só foi submetida a uma busca
ligeira.
Depois que a composição partiu, percebi que avançava cada vez mais pelo desolado
deserto do Gobi Central. Os vagões de carga estavam vazios. Concluí que o trem se
destinava a um lugar em que os mesmos seriam carregados.
As horas foram passando. Desenvolvendo uma velocidade de 200 km/h, a
composição correu vertiginosamente pela China Ocidental, até que as montanhas do
maciço do Himalaia surgissem à nossa frente.
A máquina foi ocupada por dois maquinistas novos, mas isso não representou
qualquer alívio para mim. Preferi não influenciar os homens com o projetor mental para
conseguir ao menos um gole de água e um pouco de alimento. Se fossem examinados
pelos mutantes de Rhodan na estação de destino, o bloqueio hipnótico não deixaria de ser
constatado. E então já conheceriam o local aproximado em que eu poderia ser
encontrado.
Tive de suportar as horas que se seguiram num estado de esgotamento total.
Atravessamos várias cadeias montanhosas, até que chegamos à bacia gigantesca do rio
Bramaputra.
O segundo revezamento representou um risco enorme para mim, pois a máquina
voltou a ser revistada. Ao que parecia, novas ordens haviam chegado de Terrânia.
Quando finalmente entramos na grande estação de carga de Calcutá, cambaleei ao
tanque de água mais próximo, sem dar atenção aos riscos ligados a esse procedimento.
Dali em diante, o martírio foi diminuindo. No aeroporto da metrópole indiana,
descobri um transportador aéreo destinado a Tel-Aviv. Desta vez, vi-me obrigado a
influenciar o controlador com o projetor mental, pois dependia de sua cabine
pressurizada. Embora o aparelho desenvolvesse apenas seis vezes a velocidade do som,
voava a trinta quilômetros de altitude. Se permanecesse nos compartimentos de carga, eu
morreria sufocado.
Em Tel-Aviv, comecei a notar o enfraquecimento progressivo da capacidade da
bateria. Estava na hora de desligar o pequeno defletor de ondas luminosas.
Por isso, nem saí do aeroporto de Tel-Aviv. Procurei outra aeronave. Na cantina do
pessoal de superfície, pude saciar a fome que me martirizava.
Peguei um pequeno avião-transporte pertencente a uma empresa estatal de
lubrificantes e cheguei a Trípoli. Aí, encontrei o aparelho particular de um funcionário
libanês estacionado no aeroporto.
Quando o mesmo chegou num helicóptero de ligação, deduzi da palestra que travou
com o piloto que se encontrava numa viagem de serviço, pois era esperado em
Casablanca, onde participaria de uma conferência de técnicos de irrigação. Tratava-se da
construção de uma grande estação de recalque. O resto não me interessava. A cidade de
Casablanca, situada na costa ocidental da África, era um local muito favorável para a
realização do meu projeto.
Decolamos ao escurecer. Sentei bem ao lado do libanês, que ficou submetido
totalmente à influência do projetor mental. O piloto também reagira de acordo com os
meus desejos.
Recorri às abundantes provisões da dispensa de bordo do veículo de luxo para saciar
a fome e a sede e preparei-me para o próximo salto.
As transmissões de rádio e televisão relativas à minha fuga se sucediam. Limitei-me
a ouvir apenas o que os locutores oficiais tinham a dizer.
Nunca ouvira uma descrição tão exata de minha pessoa. A televisão terrana chegou
mesmo a transmitir séries inteiras de fotografias, com base nas quais até mesmo uma
pessoa quase cega conseguiria reconhecer-me.
Recorriam a todos os meios para procurar-me, mas do noticiário depreendia-se sem
a menor sombra de dúvida que haviam perdido minha pista. Agora felicitava-me pela
decisão de saltar sobre o trem de carga que partira naquele momento.
Provavelmente os matemáticos do serviço de defesa calcularam cada segundo. Se
não pudessem reconstituir exatamente meu roteiro de fuga, os dados finais não seriam
corretos. Por isso, a idéia do trem de carga não poderia ocorrer-lhes.
Os aparelhos de localização supereficientes produziram um resultado negativo. Ao
que tudo indicava, supunham que ainda me encontrava em Terrânia. Para mim, isso era
mais que conveniente.
— Pousaremos dentro de dez minutos, Sir — disse o piloto sem que ninguém lhe
perguntasse. Dera-lhe a ordem correspondente por via hipnótica.
Arrumei a cabine, guardei os mantimentos não consumidos e ordenei aos dois
homens que esquecessem minha presença.
Sob a luz fraca do projetor mental, vi que seus rostos se tornavam ainda mais
apáticos. Acabara de aplicar-lhes um poderoso bloqueio hipnótico.
O campo de pouso de Casablanca continuava mergulhado numa escuridão total.
Havíamos corrido pela noite. Passava pouco das duas horas da madrugada, bastante cedo
para que pudesse prosseguir na execução do meu projeto.
Poucas semanas atrás, quando fizera a primeira tentativa, escondera o traje
pressurizado de profundidade numa caverna da costa alcantilada. O local ficava perto da
cidade de Tanger, que poderia ser atingida antes do amanhecer.
Nosso piloto preparou o pouso. Vi-o girar os propulsores de radiações presos às
asas, dirigindo os fluxos de partículas para baixo.
Tocamos o chão suavemente, como se estivéssemos num helicóptero, deslizamos
alguns metros e paramos. Abri a porta, saltei e fechei-a atrás de mim, antes que o avião
começasse a deslizar novamente na pista.
Com alguns saltos, desapareci na escuridão. Pouco depois, descansei atrás de um
hangar em que não havia ninguém.
Bem longe dali o funcionário saiu de um pequeno aparelho. Vi que um carro o
esperava. Estava tudo em ordem.
Levei uma hora para descobrir um meio de prosseguir viagem. Uma pessoa do meu
tipo não recua diante da perspectiva de penetrar na cova do leão.
Aproximei-me furtivamente do helicóptero ligeiro da guarda costeira e esperei até
que os dois funcionários destacados para o patrulhamento aéreo aparecessem.
Quando entraram, já me encontrava no compartimento de carga. Depois da
decolagem, só levei alguns segundos para submetê-los à influência do projetor mental. O
enrijecimento de seus rostos demonstrava que já não possuíam vontade própria.
Esgueirei-me pela estreita porta e acomodei-me no banco traseiro.
O vôo levava-nos para o norte. Bem abaixo de nós, brilhavam as ondas brancas do
Atlântico Sul.
— Siga diretamente pela rota de Tanger — ordenei em voz lacônica. — Se sua
estação de controle fizer qualquer pergunta, diga que notou a presença de alguns veículos
expressos na via expressa litorânea, e que pretende revistá-los um por um. Entendido?
— Entendido, Sir — disse o piloto.
O tenente, que se encontrava a seu lado, olhava para a frente, com uma expressão
apática no rosto.
— Centro Blanca para patrulha seis, favor responder.
— Patrulha seis, tenente El Habid. Pode falar.
Quando ouvi o som do radiofone, estremeci. Se a tripulação recebesse ordens
definidas, que a obrigassem a sair da rota por mim desejada, a situação poderia
complicar-se.
— Atenção, patrulha seis — soou a voz forte vinda do alto-falante. — Voe pela linha
da costa e procure um iate ligeiro que segue a rota de Mechra el Hade. O nome da
embarcação é Almeria, e usa a bandeira espanhola. Controle a tripulação e procure
encontrar a pessoa que está sendo procurada. Desligo.
— Entendido, centro de Blanca. Seguiremos pela linha costeira. Desligo.
O oficial da patrulha aérea desligou. Examinei o reluzente mapa em relevo junto ao
painel de instrumentos.
A localidade de Mechra el Hade situava-se entre Casablanca e Tanger, bem na rota
que desejava seguir. Uma vez que a cidade de Tanger ficava apenas a cerca de 300
quilômetros em linha reta, poderia checar dentro de trinta minutos.
Transmiti minhas instruções ao piloto. O transformador do pequeno reator de fusão
que ficava atrás de mim começou a zumbir com mais força. O rotor, que corria em ponto
morto, produziu um matraquear superado pelo trovejar do propulsor de radiações
térmicas.
Voávamos a 600 km/h em direção ao lugar dos meus sonhos. Não houve nenhum
incidente, até que bem à nossa frente surgissem as luzes da grande cidade de Tanger.
Mandei que o piloto se dirigisse para a praia deserta situada entre Tanger e o
subúrbio de Arcila. Saí do aparelho ao sul da Via expressa litorânea.
Muito tenso, segui com os olhos a máquina que se afastava, até vê-la desaparecer na
escuridão. Era possível que viessem, a surgir complicações, se o chefe da patrulha não
conseguisse explicar por que resolvera voar até Tanger. Até lá teria que manter-me num
lugar onde em hipótese alguma pudesse ser encontrado.
Enquanto pensava assim, meu supercérebro transmitiu uma mensagem formada por
uma única idéia.
“Cansado, seu idiota!”
Era claro que estava cansado, mesmo exausto. Nos esconderijos em que me
encontrara até então, poucas vezes consegui dormir de verdade. Teria de passar o dia na
caverna bem camuflada e aguardar a noite seguinte para prosseguir na execução do meu
plano. Se o destino trabalhasse contra mim, os soldados da patrulha, por mim
influenciados, colocariam a defesa solar na minha pista. No momento, não sabia como
faria nesse caso para voar no meu traje especial pelo mar aberto até os Açores. Não se
devia subestimar a raça ativa dos terranos.
Cheguei ao esconderijo pouco antes do amanhecer. A caverna ficava no paredão
entrecortado e batido pelo sol. Ninguém conseguiria vê-lo de cima.
Verifiquei os equipamentos cuidadosamente guardados, bebi e comi alguma coisa e
deitei-me para dormir.
Meu traje pressurizado de profundidade estava em perfeita ordem, e também o
equipamento de vôo. Antes de mergulhar num sono pesado, entrecortado por sonhos
terríveis, voltei a refletir sobre meu projeto.
Ninguém sabia da existência de minha cúpula blindada, situada no fundo do mar. As
máquinas e instrumentos ali instalados permitiam uma transformação completa de minha
pessoa. Era um fator que o serviço de defesa não poderia incluir em seus planos.
Teria que descobrir um astronauta terrano que se assemelhasse a mim na estatura e
na expressão do rosto. Quando este homem se encontrasse na minha base, seria
relativamente fácil imitar seu corpo. Depois ocuparia seu lugar de tripulante num veículo
espacial destinado a Vênus.
Ao pensar no planeta Vênus, tive a impressão de ver Marlis Gentner à minha frente.
Disse que me esperaria em Port Vênus.
No grande espaçoporto do segundo planeta do sistema solar, costumavam ser
despachadas as naves intergalácticas. Ali talvez conseguisse encontrar um meio de viajar
para o sistema de Vega. Quando me encontrasse fora da área submetida à influência
imediata da Terra, encontraria um meio de prosseguir.
No sistema de Vega estavam estacionadas unidades da frota espacial solar. Sem
dúvida conseguiria apoderar-me de uma Gazela de velocidade superior à da luz, que me
levaria para casa.
Para casa! A idéia de Árcon, do Grande Árcon, me causou um calafrio. O que
poderia fazer se meu povo venerando realmente estivesse degenerado?
“Chamar Rhodan!”, disse meu supercérebro. “Voltar à Terra.”
Bastante contrariado, virei-me para o outro lado e fechei os olhos com força. O setor
lógico de meu ser poderia adivinhar à vontade. Se pretendesse voltar à Terra, seria
absurdo prosseguir na fuga.
***
A noite estava escura e não havia uma única estrela no céu. Regulei o aparelho de
absorção de gravidade para 0,1 por cento do valor terrano.
O campo energético pressurizado de alta potência de meu traje de profundidade
iluminou-se assim que entrou em contato com as águas escuras e encapeladas do
Atlântico.
Meu vôo decorrera sem o menor incidente. Mantive-me bem perto da superfície da
água, senão seria praticamente impossível localizar-me por meio de aparelho.
No momento em que mergulhei no mar, em algum ponto ao sul da ilha de São
Miguel, meu goniômetro registrou o impacto de impulsos de radar transmitidos em onda
curta, que provavelmente estariam sendo emitidos por uma aeronave que se deslocava em
grande altitude. Quando desapareci nas águas, o chiado agudo cessou.
Deixei-me baixar com uma força de 3 G, até que o fundo entrecortado do mar
surgisse embaixo de mim.
Aqui era tudo silêncio e solidão. Os únicos ruídos que perturbavam o ambiente
solene eram o zumbido do meu transformador e os estalidos agudos do projetor. A
pressão do vibrador de ondas me fez deslizar sobre as grandes reentrâncias do fosso dos
Açores, que começava neste ponto. Fiz a antena submarina emitir o primeiro sinal de
identificação.
Até então, a tripulação de robôs de minha cúpula mostrara-se infalível. E foi
também o que aconteceu desta vez. Depois de emitido o terceiro sinal, ouvi os sons
inconfundíveis dos raios vetores, que indicavam a direção exata. Dentro de poucos
minutos, descobri o fosso profundo em que estava escondida minha edificação de aço.
Desci, parei numa saliência da encosta e contemplei a montanha de lama que ocultava a
forma semi-esférica.
A luz infravermelha do meu holofote de capacete voltou a atrair os peixes de formas
bizarras que habitavam as águas profundas, e que desde longos tempos haviam sido meus
únicos amigos.
Esperei até que o raio energético deixasse livre a pequena comporta. A lama
levantada pela turbulência assentou devagar. Quando consegui enxergar um pouco
melhor, percorri as poucas centenas de metros que me separavam da escotilha aberta.
Antes de entrar na câmara da comporta, voltei a olhar em torno. Encontrava-me a
2.852 metros de profundidade. Aqui só poderia ser descoberto por um submarino, mas
estes não costumavam arriscar-se a entrar nas estreitas fendas do fundo do mar.
Há poucos meses alguém me havia confundido com um peixe. Hoje o fato parece
engraçado, mas na época foi uma experiência terrível.
Entrei na comporta, fechei a pesada escotilha blindada de aço arcônida e aguardei a
operação de esvaziamento. Acima de minha cabeça, as bombas potentes começaram a
trabalhar ruidosamente. Logo depois, a água altamente pressurizada foi recalcada para
fora da comporta.
O uivo produzido pelo ar que penetrava no recinto me fez fechar os olhos, muito
satisfeito. Só agora me encontrava em segurança. Só agora poderia realmente iniciar a
fuga.
O campo energético pressurizado, que me protegera contra a pressão da água, foi
desativado automaticamente. Uma luz forte penetrou pela escotilha interna que se abria.
Como sempre, o rosto de bioplástico de Rico exibia um sorriso gentil. Numa atitude
elegante e ágil, meu criado robotizado penetrou na comporta.
— Seja bem-vindo, senhor — disse a voz metálica, à qual não conseguíramos
conferir uma modulação humana.
O fato de subitamente ser chamado de senhor deixou-me emocionado. Tinha a
impressão de que de uma hora para outra penetrara num mundo diferente. E era isso
mesmo, conforme meu sexto sentido lógico avisou imediatamente.
Nessa cúpula dormira muitos anos. Era tão velha quanto boa parte da história da
Humanidade.
Estava prestes a revelar meu grande segredo perante minha própria mente, depois
que me mantivera calado por semanas a fio, suportando o martírio íntimo dos inquéritos
psicológicos.
Rico ajudou-me a tirar o desajeitado traje protetor.
— Cansado, senhor? — perguntou. A voz devia soar preocupada. Mas, mesmo
tratando-se de uma máquina de alta precisão, o robô não era capaz de dar expressão real a
esse tipo de emoção.
— Não — respondi em tom áspero.
Rico sorriu. Ninguém conseguiria ofendê-lo.
— Preparei um banho, senhor.
— Espere um pouco.
Com o corpo ereto desci pelo corredor estreito, tomei o elevador antigravitacional e
subi à cúpula abobadada. Parei diante da porta de aço pintada de vermelho.
Rico não disse mais nada. Calculara que estava dominado por emoções que um robô
não conseguiria compreender.
Atrás da porta vermelha ficava meu museu particular. Seu valor era muito superior
ao de um lugar destinado à guarda de objetos antigos. Até então só subira para lá quando
um estado de comoção psíquica me obrigasse a tanto.
Com as mãos, acionei a fechadura de impulsos. A escotilha abriu-se
silenciosamente. A luz indireta veio do teto.
A passos hesitantes penetrei na grande sala, separada por paredes internas.
Ali estavam depositadas as testemunhas mudas do meu passado, que tanto
interessariam a Allan D. Mercant e que simplesmente resolvi omitir.
Parei diante da grande espada afiada de ambos os lados, que pertencera a Carlos, o
Corajoso, da Borgonha. Num gesto pensativo, pesei-a com a mão. Certa noite, quando o
duque se encontrava na tenda de campanha, martirizado pelas dores, pedira-me que lhe
desse o golpe de misericórdia com essa arma.
Minha intenção era operá-lo, embora suas úlceras de estômago já se tivessem
transformado num câncer. No dia seguinte, Carlos, o Corajoso, tombou em combate. Vi
os confederados embriagados queimarem a tenda majestosa.
Prossegui, mergulhado em recordações. Não havia ninguém neste planeta que
estivesse tão bem informado sobre os inúmeros segredos do passado. E ninguém
conhecia melhor as falsificações da história. Não havia quem soubesse dizer tão bem
quanto eu por que o príncipe Eugênio conseguira infligir uma derrota tão fulminante aos
turcos.
O chapéu de Wallenstein com o penacho surgiu à minha frente. Bem ao lado do
mesmo estava o trabuco que Colombo disparara.
Mais adiante encontrei a armadura de Ricardo, Coração de Leão. Certa vez, dissera
que eu era seu vassalo mais fiel, e me prometera uma herdade na Inglaterra.
Sem querer, sorri ao descobrir a pequena luva de ferro. Joana d’Arc havia usado a
mesma quando juntos tomamos de assalto a fortaleza de Orleans.
Fui mergulhando no passado, à medida que andava pela sala repleta de objetos da
história. Sempre gostara de topar repentinamente com uma testemunha de tempos idos.
Não apreciava a ordem rigorosa. Preferia ser surpreendido.
Ali estava o canhão de tiro rápido, primitivo mas eficiente, que construíra
juntamente com Leonardo da Vinci. Considerava-o um homem muito importante, motivo
por que lhe ensinei uma porção de coisas.
Bem ao lado do mesmo, estava o Colt 44 da marinha, cuja coronha usara para abater
o assassino de Abraham Lincoln, infelizmente com um segundo de atraso.
Enquanto caminhava entre os objetos, parecia estar mergulhado num sonho.
De repente, Rico arrastou-me de volta para a realidade áspera.
— O cérebro o aguarda, senhor.
Caminhando na ponta dos pés, abandonei a sala do passado. Lá fora, junto da porta
vermelha, dei testemunho de mim mesmo.
Não; nunca fiz nada que pudesse prejudicar a Humanidade. Sempre me empenhei
em estimular seu desenvolvimento científico e tecnológico, que um dia a levaria a
dominar a navegação espacial.
Naquele tempo, já tinha o desejo de voltar para casa. Mas, quando um homem
chamado Perry Rhodan deu início à navegação espacial, fui idiota a ponto de fugir
apressadamente para minha fortaleza submarina, a fim de escapar a uma guerra nuclear
que não aconteceu. Dessa forma, dormi durante a fase mais importante da evolução dos
pequenos bárbaros.
Dali a dez minutos, vi-me diante da tela diagramada do computador robotizado da
cúpula, que aguardava minha programação.
— Preciso de uma construção semi-orgânica encerrada num corpo, que se pareça
com um esqueleto humano. Num exame de raios X, deverá ter o aspecto de um
verdadeiro homem. É necessário embutir refletores em forma de coração e pulmão, a fim
de transmitir a imagem perfeita do organismo humano. Será possível realizar uma
construção desse tipo?
O grande autômato começou a zumbir. Cinco gerações de técnicos haviam
trabalhado em sua construção.
— Solicito dados mais precisos, senhor — respondeu o computador.
Com esta resposta fiquei sabendo que minha própria excursão à superfície já não
correria o risco de transformar-se num fracasso em virtude da falta de uma simples
fotografia de raios X.
5
Nevada Space Port, era este o nome do maior espaçoporto dos dois continentes
americanos. Dali partiam as espaçonaves destinadas às luas e aos planetas do sistema
solar.
As enormes naves de longo curso, cujos hiperpropulsores lhes permitiam vencer os
anos-luz em poucos segundos, decolavam em noventa e nove por cento dos casos de um
espaçoporto ainda maior: Terrânia.
De qualquer maneira, os Nevada Fields, como também costumavam ser designados,
tinham sua história.
Foi dali que Perry Rhodan decolou em 19 de junho de 1.971, para realizar a primeira
viagem tripulada à Lua, onde viria a descobrir a tripulação de uma nave exploradora dos
arcônidas, que realizara um pouso de emergência.
Em atitude pensativa, contemplei o foguete original com o qual Rhodan arriscara, há
sessenta e nove anos, o grande salto. Pelo que diziam, antigamente a Stardust ficara
depositada no deserto de Gobi, até que Rhodan mandou levá-la ao lugar onde seus
primitivos propulsores atômicos rugiram pela primeira vez.
Não era o único que se encontrava no grande museu de astronáutica de Nevada
Fields: cerca de duzentos emigrantes deixariam a Terra com destino a Vênus.
Olhei discretamente em torno. Entrara em meio a um verdadeiro enxame de pessoas.
Depois das investigações cautelosas por mim realizadas, resolvi desistir da idéia primitiva
de “imitar” um piloto de nave espacial.
Seria muito difícil enganar os numerosos amigos e conhecidos de um homem desse
tipo. Lembrei-me dos colonos que diariamente partiam em direção ao espaço.
Aproximei-me de um indivíduo louro e robusto que, quando muito, contaria trinta e
oito anos de idade. Tinha a mesma compleição que eu. Uma investigação mais detida
revelou que era o sexto filho de um lavrador da Alemanha do Norte. Seu nome era
Hinrich Volkmar. Viera sozinho, depois de formular uma série de pedidos de licença para
emigrar.
Hinrich era meu objetivo. Naquele momento, encontrava-se em um profundo sono
biológico nas profundezas do mar, bem velado pelos meus robôs.
Ordenara a Rico que dali a um ano, o mais tardar, o acordasse e o largasse na
Espanha, depois de entregar-lhe pedras preciosas no valor de cem mil solares.
Além disso, elaborei um relatório escrito destinado a Perry Rhodan e ao Serviço
Solar de Segurança, que poderia ser apresentado por Hinrich, depois que o mesmo fosse
acordado.
Ninguém poderia acusar o jovem, uma vez que agira sob a influência de meu
projetor mental. Fizera tudo para que não tivesse maiores problemas, mesmo que eu
morresse de uma hora para outra.
Depois do interrogatório hipnótico realizado no interior de minha cúpula, armazenei
seus dados individuais em minha memória fotográfica. Além disso, tinha em mãos seus
documentos, inclusive a licença de emigração, que já me haviam permitido penetrar na
área reservada.
Não tivera de mascarar-me muito. Meus robôs especializados apenas realizaram
alguns transplantes de bioplástico e removeram a coloração avermelhada dos meus olhos.
De resto nada havia sido mudado em meu corpo. Meu inglês tinha a tonalidade de
um dialeto alemão, e meu comportamento era descontraído, franco e ingênuo, motivo por
que até então ninguém desconfiara de mim.
A bagagem de Hinrich consistia numa mochila elástica, que continha exatamente
cinqüenta quilos de objetos de uso pessoal. Era o máximo que os emigrantes poderiam
levar, para não sobrecarregar as naves. Pelo que dizia, no segundo planeta solar estava
tudo preparado para receber os colonos de Vênus.
Se minha idéia a respeito de Rhodan fosse correta, Perry realmente deveria ter
tomado todas as providências. No contrato de Hinrich, lia-se que o Império Solar lhe
forneceria gratuitamente uma área de cinqüenta hectares e as máquinas necessárias ao
desmatamento, ao preparo do solo e ao plantio.
Rhodan elaborara um programa social de alto alcance. A instalação de uma fazenda
em Vênus, realizada por um emigrante terrano, custava cerca de 150 mil solares ao
governo.
Há três dias transformara-se num homem jovem de cabelos louros, lábios risonhos e
uma grande saudade no coração. Queria sair para o espaço, dar as costas à mãe-terra e
dedicar-se ao trabalho, a fim de que um belo dia pudesse escrever aos seus: consegui;
estou procurando uma companheira para minha vida. Quanto dinheiro devo mandar?
Era assim que pensava o verdadeiro Hinrich Volkmar, e também era assim que
pensavam os outros emigrantes vindos de todos os quadrantes. A nave transportadora
deveria decolar ainda hoje.
Estávamos no dia 13 de julho de 2.040. Pude realizar um trabalho rápido, mas
meticuloso. Menos de trinta dias se haviam passado a partir de minha fuga de Terrânia. A
ação de busca ainda prosseguia.
Acontece que, ao que tudo indicava, haviam subestimado os meios de que dispunha.
Naquele momento, felicitava-me a mim mesmo pelo silêncio obstinado mantido até
então, e que impedira a descoberta da cúpula submarina.
Na opinião do serviço de defesa, devia ser totalmente impossível que o fugitivo
escapasse à rede armada para sua captura. E seria isso mesmo, se não possuísse os
aparelhos eficientíssimos, cuja existência era ignorada por meus perseguidores.
No momento em que cheguei a Nevada Fields, disfarçado em Hinrich, foi realizado
um exame de raios X. Qualquer pessoa só poderia penetrar na área reservada depois de
passar pelas objetivas.
Evidentemente recorriam a essa medida para neutralizar qualquer ação por mim
concebida. O esqueleto de bioplástico, destinado a enganar o médico sobre a verdadeira
constituição de minha ossatura, foi reconhecido como genuíno.
Dessa forma, a partir do dia 11 de julho de 2.040 portava o distintivo luminoso de
cerca de dez centímetros, no qual estavam gravados em relevo os dados relativos à minha
pessoa. Nos fios magnéticos embutidos, estava armazenada uma série de dados adicionais
bem codificados sob a forma de impulsos, relativos à minha pessoa e às provas por mim
realizadas. Estava tudo na mais perfeita ordem.
Recebi o número 211. A nave espacial que me levaria a Vênus juntamente com
outros colonos era a Glória. Estava guardada num edifício alongado, que os funcionários
do serviço de emigração, num acesso de humor feroz, haviam batizado com o nome de
casa dos cheiros. O odor penetrante dos desinfetantes, usados numa profusão exagerada,
impregnava minhas vestes, feitas de fio sintético resistente e confortável, mas pouco
vistoso.
Os colonos destinados a Vênus eram muito bem equipados, porém não se fazia
questão de que fossem elegantes. O trabalho frio do setor de colonização não tinha lugar
para ganhos extras.
Já conhecia a nave que me transportaria. Era um pequeno veículo esférico, de
apenas cinqüenta metros de diâmetro, pertencente à série planetária. Não possuía armas e
não estava equipada com propulsores que lhe permitissem desenvolver velocidade
superior à da luz. Destinava-se exclusivamente ao transporte entre os mundos do sistema
solar.
O vôo até Vênus duraria oito horas. Era um tempo bastante longo, ainda mais que as
poucas cabines destinadas aos emigrantes só continham filas de poltronas muito
apertadas. As camas ou outros tipos de instalações confortáveis foram dispensadas. Na
opinião das autoridades, qualquer pessoa poderia permanecer sentada durante oito horas.
A Glória, uma nave de mais de trinta anos, viajava constantemente entre Vênus e
Terra e vice-versa. Todo segundo dia de cada mês, decolava com uma carga humana
destinada a Vênus, além do quê, transportava boa quantidade de mercadorias de todas as
espécies.
Os tripulantes dessas naves não gozavam de prestígio muito elevado. Os astronautas
altamente qualificados dos veículos espaciais, que desenvolviam velocidade superior à da
luz, olhavam-nos de cima para baixo.
Os vaivens planetários ocupavam aproximadamente o mesmo lugar dos antigos
navios fluviais, que nunca se comparariam a uma embarcação de alto-mar.
Diverti-me a valer com a enfatização da diferença. Neste ponto, os terranos não
eram diferentes dos indivíduos de meu povo. E, há menos de noventa e nove anos, esses
bárbaros encantadores se rejubilaram de admiração quando um Perry Rhodan conseguiu
realizar o salto ridículo até a lua terrana. Não havia como negar que evoluíram muito
depressa. A essa altura, os homens que pilotavam as hipernaves de longo curso sentiam-
se indignados quando se encontravam com uma dessas lesmas planetárias. Esqueciam-se
completamente de que essas lesmas sempre percorriam o espaço a uma velocidade apenas
dez por cento inferior à da luz.
Ao meio-dia em ponto, fui ao grande refeitório coletivo, repleto de emigrantes que
riam e discutiam animadamente. Procurei um canto afastado, devorei um enorme bife
com vagens e batatas fritas e observei com cuidado os arredores.
Eram todos iguais, esses jovens para quem Vênus, o planeta das selvas, continuava a
ser um paraíso, apesar de todas as informações em contrário que deveriam ter recebido.
Vi famílias inteiras dispostas a arriscar o grande salto. Sonhavam com a aventura e a
riqueza, com a independência e com grandes festas na borda da mata.
Ainda não conheciam as picadas dos mosquitos venusianos nem os sáurios vorazes
que, com umas poucas pisadas, destruíam suas culturas. E não faziam uma idéia
adequada dos pequenos répteis venenosos e da temperatura de estufa reinante na
superfície do planeta.
Pelas 12:30 h os alto-falantes soaram.
— Colonos destinados a Vênus, vôo 118. Apresentem-se no portão sul. Levem a
bagagem e mantenham os documentos em suas mãos. Apressem-se.
Era uma chamada pouco convencional. Cerca de duzentas e cinqüenta pessoas
levantaram-se das cadeiras duras de plástico. Alguns correram diretamente para o portão
norte, onde os funcionários apáticos e os pilotos sorridentes lhes apontavam o caminho
correto.
Foi um berreiro e uma correria; até se tinha a impressão de que o mundo estava para
acabar. Resolvi entrar na confusão. Dali a alguns segundos, também estava gritando.
Devo portar-me como um emigrante, era este o meu lema.
Um comando da policia recebeu-nos sob o sol escaldante do verão.
O sol provocou-me uma sensação muito desagradável; nos homens do serviço de
segurança não foi tanto. Atrás deles, encontravam-se os caminhões com as grandes
plataformas de carga. Ao que tudo indicava, seríamos submetidos a outro controle antes
que nos levassem à nave transportadora.
As mulheres e crianças tiveram permissão para subir imediatamente aos carros.
Apenas os homens enfileiraram-se para esperar. Encontrava-me no meio da fila formada
por emigrantes nervosos. Os homens gritavam de impaciência. Tudo iria recomeçar.
Meu equipamento especial, um volume muito reduzido, fora escondido bem nos
fundos da mochila padronizada. Ainda que me obrigassem a abri-la, teriam que procurar
muito para encontrar alguma coisa. Até mesmo o precioso ativador celular fora retirado
juntamente com a corrente. Não poderia demorar muito em pendurá-lo ao pescoço, pois
do contrário haveria problemas.
— O que houve? — perguntou um homem baixo e moreno. Virei-me e dei de
ombros.
Era um mexicano, que queria fugir da Terra com sua família de cinco pessoas. Seu
nome era Miguel Hosta. Não era a primeira vez que nos encontrávamos. Talvez fosse
recomendável entreter uma conversa com esse terrano cheio de vida.
— Não faço a menor idéia — disse com uma risada. — Apenas sei que não deixarei
que me mandem de volta. Pelo que dizem, há pouco tempo retiraram alguém da nave,
pouco antes da decolagem. O sujeito tinha um pouco de febre.
— Santo Deus! — gemeu o moreno num assomo de desespero. — Acho que
também estou com febre. Será que vão medir?
Os homens que se encontravam à minha frente e atrás de mim soltaram uma
gargalhada. As piadas e observações dirigidas ao policial que realizava o exame
tornavam-se mordazes, à medida que nos aproximávamos da mesa improvisada.
O que mais me incomodava era o aparelho de raios X sobre rodas que, segundo tudo
indicava, realizava um exame “automático” de cada emigrante. Ao lado da respectiva
tela, havia um médico do serviço de defesa. Assim que fazia um movimento relaxado
com a mão, o colono que acabara de ser submetido ao controle poderia dirigir-se ao carro.
Evidentemente o pretenso exame médico era um absurdo. Não havia mais nenhuma lista
a elaborar.
Estavam procurando um almirante arcônida que evidentemente não poderia ser
dotado de um esqueleto humano.
Meus olhos começaram a ficar úmidos, o que provava meu nervosismo. Se o médico
que se encontrava junto ao aparelho prestasse muita atenção, talvez pudesse notar a
diferença mínima no reflexo dos órgãos embutidos em meu corpo.
“Conserve a calma!”, disse meu sexto sentido. Naquele momento, cheguei a odiar o
setor de lógica do meu cérebro.
O homem à minha frente era um terrano gigantesco do Estado Federal da África.
Colocou-se diante do aparelho com as pernas bem abertas, abriu a blusa, na altura do
peito e pôs o dedo sobre o coração.
— Aqui, soldados! — berrou a plenos pulmões.
O médico estremeceu, enquanto um sorriso largo cobriu o rosto do tenente sentado
atrás da mesa. E eu perguntei-me se aquele rapaz de pele escura já teria ouvido falar nos
onze oficiais de Schill fuzilados pelos soldados de Napoleão.
O médico fez um gesto para que se calasse. O gigante, que ria às gargalhadas, correu
em direção ao carro. Depois chegou minha vez.
— O atestado de vacina, por favor — disse o funcionário com a voz cansada.
Quando levantou os olhos, acordou de um instante para o outro. Pôs a mão na arma.
Lançou-me um olhar penetrante. Mas finalmente uma expressão de insegurança
surgiu em seus olhos; virou-se para seus soldados.
— Nome? — perguntou em tom áspero.
Lancei-lhe um olhar ingênuo.
— Hinrich Volkmar, senhor tenente — respondi em voz trovejante. — Sou filho de
Pieter Volkmar, inspetor de diques.
O jovem oficial voltou a sentar. Sem dizer uma palavra apontou com o polegar em
direção ao aparelho de raios X. Sabia perfeitamente que minha radiografia já fora tirada.
— É uma semelhança surpreendente, Sir — disse um dos soldados em tom
apressado.
Coloquei-me diante da tela e tirei a mochila. Desta vez o médico examinou com
maior atenção a imagem projetada pelo aparelho.
— Aí estão as costelas, Tommey; não existe a menor dúvida — disse com a garganta
ressequida. — Vamos acabar logo com isto, senão terei uma insolação.
Ainda bem que o homem sofria tanto com o calor. Não havia examinado a
radioscopia com a atenção devida.
O tenente lançou mais um olhar perscrutador para minha pessoa, mas, por fim,
soltou um suspiro e colocou o carimbo no formulário.
— Aqui. Leve isto e guarde bem. O senhor se parece com uma pessoa com a qual
gostaríamos de ter uma conversa. Vamos logo; o próximo.
Esperei pelo pequeno mexicano, que se sentiu muito satisfeito por passar pelo
exame.
O terrano de pele negra puxou-nos para cima da plataforma do veículo. Dirigindo-se
a mim, riu e exclamou:
— Ei, o que queriam de você, meu caro? Venha para junto do meu coração.
Ao que parecia, o gigante parecia preocupar-se constantemente com o coração.
Apertou-me nos braços e empurrou-me para um lugar vazio. Miguel Hosta espremeu-se
para caber a meu lado.
“São uns sujeitos formidáveis!”, disse meu sexto sentido. Desta vez, concordei com
o setor lógico de minha mente. Com gente desse tipo, Rhodan poderia perfeitamente
construir um império estelar.
— Ainda tenho dois tabletes de chocolate no bolso — disse. — Alguém quer um
pedaço? Perdi o apetite. Estão procurando uma pessoa que se parece comigo.
Miguel recusou com um gesto de horror. O homem de pele escura, cujo nome era
Embros Tcheda, aceitou. Sorriu e disse:
— Quer saber de uma coisa, meu caro? Isso não devia preocupá-lo. Quando
estivermos em Vênus, começaremos vida nova. Você entende de economia agrícola? O
que pretende plantar?
— Ainda não resolvi. Entendo de EA. Você não?
Embros fez um gesto negativo e uma careta.
— Muito bem; nesse caso devíamos tornar-nos vizinhos — disse. — Não consigo
lidar com as bactérias do solo. Você entende do assunto?
— Em bactérias, sou um cobra. Farei as análises e você dirá o que devemos plantar.
Tive de esforçar-me para resistir ao seu vigoroso aperto de mão. Naquele momento,
indaguei a mim mesmo por que estava arriscando a vida para chegar em casa.
Nas veias dessa raça humana jovem corria sangue arcônida. Eu mesmo autorizara
vários casamentos entre meus subordinados e mulheres terranas. Afinal, onde era meu
lar?
6
***
Dali a exatamente uma hora e treze minutos, o novo helicóptero de Viesspahn
desceu no campo de pouso que se encontrava próximo ao restaurante na selva. Rhodan
cumprira sua palavra. Era medonho de ver como sabia agir depressa.
O piloto não era outro senão o maldito rato gigante de uniforme. Haviam feito um
buraco no uniforme do ser extraterrano, para que o mesmo pudesse tocar o chão com a
cauda de castor. E agora, aquela criatura ainda usava na cabeça uma coisa parecida com
um capacete-rádio, sob o qual sobressaía o focinho pontudo com o dente roedor.
O “sujeitinho” de menos de um metro de altura plantou-se solenemente à frente do
estúpido Viesspahn e informou ao barbudo em voz alta sobre os direitos e os deveres dos
colonos.
No íntimo, sabia que minha raiva por aquele rato uniformizado era injusta. Estava
sendo dominado pelos sentimentos exaltados, que me diziam que esse “sujeitinho”
ridículo era mais estranho no sistema solar que eu mesmo. Por que falava de modo tão
altivo?
Dominado por uma raiva incontrolável e absurda, abaixei-me, peguei um pedaço de
madeira podre e atirei-o com toda força contra o focinho da criatura arrogante.
Pelos deuses da antigüidade terrana, nunca deveria ter feito uma coisa dessas.
Meu ódio desvaneceu-se imediatamente.
Poucos segundos depois, fugi a toda. Ainda bem que o rato gigante, imediatamente
possuído pela raiva, não me via nem podia localizar-me por via telepática.
Era horrível de ver-se o que o ser peludo fez com os colonos totalmente inocentes. O
ser extraterrano devia ser um grande telecineta; caso contrário, não teria conseguido atirar
os colonos, que soltavam gritos horríveis, para dentro da poça, e depois deixar as
criaturas banhadas de lama nas copas das árvores altíssimas.
A seguir, o animal sentou-se no concreto do campo de pouso e riu como nunca
ouvira rir uma inteligência galáctica.
Gunter Viesspahn foi o único homem poupado pela fúria do ser peludo, que
provavelmente vira que o pedaço de madeira não fora arremessado por suas mãos. Ao
menos fiquei sabendo o que poderia esperar do amigo de Rhodan.
Viesspahn inclinou o corpo num gesto humilde quando o “sujeitinho” desapareceu
como se nunca tivesse aparecido por ali.
— Vou mostrar uma coisa a vocês! — gritou antes de desaparecer.
Caminhei tranqüilamente em direção ao novo helicóptero. Quando o colono
decolou, encontrava-me no banco traseiro. Meu sexto sentido me dizia que Rhodan não
voltaria a atacar.
Provavelmente a esta hora estaria mobilizando mais alguns membros do seu
Exército de Mutantes. Qual deles poderia representar um perigo para mim? Os telepatas
não, conforme já ficara provado. A qual deles Rhodan teria de recorrer para localizar-me
apesar do bloqueio mental e do defletor de ondas luminosas?
Não encontrei a solução, pois não sabia qual o trunfo mantido de reserva pelo
bárbaro.
Nesse momento já me arrependia por não ter atirado nele. Como poderia chegar ao
sistema de Árcon, se poupasse Rhodan toda vez que surgisse uma oportunidade de matá-
lo? Era uma atitude absurda. Afinal, era o grande inimigo de meu venerável povo, ou
não?
8
O furacão parecia enlouquecer as feras. Fazia cerca de cinco minutos que as duas
torres feitas de carne e ossos haviam saído da mata próxima para executar uma dança
estranha nos campos bem cuidados de Viesspahn.
Eram dois lagartos-corredores, nome que se costumava dar a esses animais em
Vênus. Possuíam aproximadamente a forma de canguru terrano, apenas os crânios
alongados que terminavam num focinho chato erguiam-se uns trinta metros acima do
solo.
Os lagartos-corredores pertenciam à espécime dos animais mais perigosos desse
mundo primitivo. Em certos lugares, sua blindagem córnea atingia uma grossura de
quarenta e cinco centímetros. Desenvolviam uma velocidade tremenda. Antes da chegada
do homem, pertenciam ao grupo dos monarcas não coroados do planeta.
Ambos perseguiam um pisoteador gigante que saíra da mata em fuga desabalada. O
quadrúpede vegetariano devastou os campos, de Viesspahn numa questão de segundos.
Nos lugares em que havia colocado as enormes patas, surgiram profundas crateras
lamacentas.
No momento em que atingiram a clareira junto às barrancas do rio Hondo, os dois
lagartos-corredores resolveram desistir da perseguição do pisoteador.
Por alguns minutos, permaneceram eretos no terreno, antes de iniciarem a “dança”.
Viesspahn estava sentado na cabine de comando de sua fazenda ultramoderna.
Esforçava-se para trazer de volta os tratores robotizados teleguiados, antes que os
mesmos fossem descobertos e atacados pelos lagartos.
Ouvi as terríveis pragas que soltava, pois voltara à central energética. Há três dias
encontrava-me na fazenda, mas Viesspahn nem desconfiava disso. Não tinha o menor
interesse em informar este homem que não merecia maior confiança sobre minha
presença naquele lugar. Era bem verdade que, com o tempo, se espantaria com o
desaparecimento de seus mantimentos. Até lá teria que encontrar uma solução.
Atrás de mim, uma chave de segurança automática de quinhentos ampères desligou-
se: Pertencia ao circuito de força da grade de alta-tensão do setor sul, e não representara
nenhum obstáculo sério para o pisoteador que acabara de invadir a fazenda.
As luzes vermelhas piscaram cada vez mais depressa, até que permaneceram acesas
de vez. Por três vezes, a chave automática de quinhentos ampères foi girada para a
posição de contato pelo campo energético eletrônico. Por três vezes, desligaram-se com
um forte estalo. O circuito fora inutilizado; ao que parecia, a grade de alta-tensão entrara
em curto-circuito.
Viesspahn começou a praguejar cada vez mais alto. Retirei-me para a sala dos
isoladores. Atrás da pesada porta de aço, zumbia o transformador do reator de alta
potência.
Viesspahn possuía um modelo de fusão moderno, cujo desempenho máximo era de
mil quilowatts-hora. Tal potência era suficiente para abastecer a fazenda. Os tratores de
múltiplas finalidades possuíam suprimento de energia próprio.
Olhei pelas lâminas de plástico blindado que fechavam a estação de controle.
Dentro de poucos segundos, o furacão chegou ao auge. Sabia que a longa noite de
Vênus estava para chegar. A escuridão reinaria durante cerca de doze dias terranos. A
translação do planeta aproximava-nos da temível zona de penumbra, na qual não fazia sol
nem era completamente escuro. Essa zona também resultava da rotação lenta de Vênus.
As tormentas começaram com o início do prolongado crepúsculo. Chovia demais,
dando a impressão de que a água estava sendo despejada por um balde gigantesco. Mas o
súbito resfriamento do ar não refrescava o ambiente.
As pragas de Viesspahn perderam-se nos uivos do furacão. Porém conseguiu levar
as máquinas para as garagens subterrâneas.
Já não me sentia bem na apertada sala dos isoladores, situada no pedestal de uma
robusta torre de concreto. Todas as fazendas de Vênus possuíam uma torre de energia
desse tipo, cuja parte superior estava coberta por uma cúpula de chapas blindadas
transparentes.
Dali se via a área da fazenda e as residências adjacentes. No segundo planeta solar,
essas construções pertenciam à classe do absolutamente indispensável. Quando os
gigantescos animais da selva se aproximassem, não havia outra possibilidade senão
rechaçá-los em tempo.
E neste ponto, a zona da penumbra era mais temida. Parecia que a súbita
modificação climática produzia uma espécie de embriaguez nos lagartos. Tornavam-se
descontrolados e agressivos.
O fazendeiro barbudo passou ligeiro e aos tropeços junto ao meu esconderijo
provisório. Abriguei-me instintivamente quando sua mão fechada bateu contra a chave do
pequeno canhão energético giratório, montado no alto da cúpula transparente. Para usar
uma arma dessa potência, tornava-se necessária uma licença especial do governo. Só
eram fornecidas em sua feição estacionaria e os funcionários de Port Vênus controlavam-
nas a intervalos regulares.
Enquanto Viesspahn subia pela íngreme escada em caracol, saí cautelosamente da
desconfortável sala dos isoladores. Acima de minha cabeça, ouvi as pisadas de seus
sapatos pesados. Chegou à pequena plataforma na qual era manipulado o canhão.
Vi que utilizava ambos dispositivos de mira. Tratava-se de um aparelho de ondas
infravermelhas acoplado com um equipamento goniométrico. Por mais escura que fosse a
noite, Viesspahn identificaria perfeitamente o alvo. Perplexo, indaguei a mim mesmo se
seria recomendável confiar um instrumento de destruição desse tipo aos colonos
eternamente rebelados. Seria fácil modificar um canhão de pequeno porte como este,
retirá-lo de seu embasamento e dar-lhe outro emprego.
Sentei na poltrona giratória que ficava à frente das chaves de telecomando dos
tratores e aguardei as coisas que viriam. Lá fora, já estava quase totalmente escuro. O
vento uivante tangia verdadeiras cascatas contra as janelas de plástico blindado. Parecia
que este mundo tão jovem seria tragado pelas águas.
O anemômetro mostrava que a velocidade do vento era de cento e oitenta
quilômetros por hora. Nessas condições, era altamente recomendável não sair do seguro
abrigo.
Gunter Viesspahn mantinha-se à espreita no assento giratório de sua arma
energética. Os dois lagartos encontravam-se a cerca de duzentos metros. Apesar da
distância pareciam torres de igreja. Suas terríveis caudas levantavam muitos metros
cúbicos do precioso solo arável, arrancando-o do chão subitamente encharcado.
Ao que parecia, o furacão não afetava os gigantes de mais de trinta metros de altura.
Saltavam pelo terreno, atiravam-se contra o vento e soltavam um berreiro que me fazia
cingir fortemente a arma.
Não me separei por um minuto sequer do único seguro de vida existente neste
inferno selvático. Era bem verdade que retirara dos estoques de Viesspahn um potente
radiador de choques, mas portátil. Sendo assim, num caso verdadeiramente grave de nada
adiantaria. Contra um lagarto-corredor, só mesmo uma arma superpotente poderia
revelar-se eficaz.
Quando as feras aproximaram-se ainda mais, Gunter Viesspahn começou a disparar.
Tive o cuidado de virar o rosto para o outro lado, mas assim mesmo a incandescência
fulgurante doeu nos meus olhos.
Um trovejar irreal superou o ruído da tormenta. Um raio energético da grossura de
um braço humano precipitou-se para o ambiente infernal. Ao longo do fluxo
incandescente surgiu um fenômeno fascinante. Parecia que alguém escavara um túnel nas
massas de água que se precipitavam do céu. Densas nuvens de vapor espalharam-se,
quando o furacão as atingiu.
Viesspahn fez boa pontaria. Entre as curtas pernas dianteiras do lagarto surgiu uma
mancha incandescente, que se dissolveu numa série de relâmpagos. A parte da energia,
que não foi absorvida pelo corpo do animal, escapou pelas costas sob a forma de
descargas luminosas.
Vi o corpo gigantesco tombar. O animal fora atingido mortalmente, mas seus
reflexos prosseguiram por mais algum tempo. E era terrível de ver com que força
revolvia o solo enlameado.
O outro sáurio saiu aos berros e desapareceu atrás da muralha de água caída do céu.
Um tanto perplexo, olhei para Viesspahn. Ao que tudo indicava, voltara a dedicar-se
ao praguejar. Era uma das características daquele homem que eu não apreciava nem um
pouco.
Estive a ponto de retirar-me para o depósito contíguo, quando a trovoada irrompeu
lá fora. O ribombar dos trovões me fez comprimir as mãos contra os ouvidos. Este mundo
nunca poderia ser conquistado por criaturas pacatas. Sem dúvida, precisava-se de homens
como Gunter Viesspahn para domar este planeta no correr do tempo.
Perto da cúpula, algumas árvores estavam em chamas. Ardiam apesar da chuva e do
ambiente superúmido. Na Terra, nunca havia visto um temporal como este.
Viesspahn continuava sentado atrás do canhão energético. Tive a sensação de que se
embriagava com o poder que tinha nas mãos.
Quando pretendia retirar-me, vi o brilho reluzente. Bem atrás do colono, que
começara a ficar nervoso, um corpo surgiu do nada. Quando os contornos assumiram
formas estáveis, percebi que eram dois os seres que haviam aparecido de repente.
Desta vez, não me senti dominado pelo pavor. Já conhecia esse maldito rato gigante
com a cauda de castor. Mantive-me imóvel, embora com aquele furacão ninguém pudesse
ouvir qualquer ruído.
Num movimento quase inconsciente, pus a mão no radiador de choques que trazia
no cinto. Tive a impressão de que meu sexto sentido manifestava uma revolta sarcástica.
Por que não me dispunha a atacar os amigos de Rhodan com uma arma mortal, já que me
via obrigado a lutar contra eles? Era um paradoxo, e o setor lógico de minha mente me
informou sobre isso através de uma série de impulsos dolorosos.
O outro ser sem dúvida era um terrano. Soltou-se das costas da criatura extraterrana
que, por certo, havia transportado o homem robusto. Perplexo, constatei que subestimara
as faculdades do ser inumano. Se conseguia levar mais um corpo dentro de seu campo de
desmaterialização, as energias que podia concentrar deviam ser imensas.
Ligeiramente encurvado, mantive-me atrás do quadro de telecomando das máquinas
agrícolas. Era uma caixa imensa de quase dois metros de altura, que me tiraria da visão
dos mutantes mesmo que não fosse invisível.
Viesspahn não notou a presença dos intrusos. Continuava sentado em atitude de
espreita, praguejando em altas vozes para dar vazão ao seu descontentamento.
O ridículo ser estranho, que Rhodan costumava chamar pelo nome de Gucky,
parecia examinar a mente do fazendeiro. De repente, compreendi que Rhodan iniciara a
operação de controle. A esta hora, felicitava-me por não ter informado Viesspahn. Uma
vez que não sabia da minha presença, não poderia trair-me, nem consciente, nem
inconscientemente.
Um sorriso sarcástico brincava em torno dos meus lábios. Olhei tranqüilamente para
a pequena plataforma do canhão e tive vontade de rir quando Gucky fez um gesto
aborrecido. O rato gigante acabara de constatar que o colono não conhecia meu
paradeiro.
Resignado, o terrano que viera em companhia de Gucky deu de ombros. Segundo
acreditei, significava que pretendia retirar-se dali.
Foi nesse instante que aconteceu uma coisa inacreditável.
De repente, o terrano levantou a mão e apontou exatamente para o lugar em que me
encontrava. Ao mesmo tempo, sua boca abriu-se. Ao que parecia, gritava. Mas não pude
ouvir por causa do furacão. Apenas sabia que o desconhecido me descobrira, apesar do
campo de deflexão e do excelente abrigo atrás do qual me ocultara.
Acontecera! Era inacreditável. Haveria alguém que fosse capaz de enxergar através
de paredes compactas e de um campo de deflexão de raios luminosos?
Meu sangue parecia ter uma tendência irresistível de contrariar todas as leis naturais
e concentrar-se exclusivamente no cérebro. A surpresa produziu um choque que poderia
causar um esgotamento psíquico total em pessoas de meu tipo, reduzindo-as à
inatividade. Apenas percebi o impulso de meu segundo cérebro, que imediatamente
entrou em funcionamento.
“O pequeno!”
Fiz pontaria com o radiador de choques. Naquele momento o rato gigante girava o
corpo com uma agilidade extraordinária, virando o rosto para meu lado. Uma vez que eu
fora descoberto, o ser extraterreno representava o perigo mais grave. Vira sua maneira de
lidar com os colonos.
O terrano voltou a gritar alguma coisa e pôs a mão na arma energética manual. Foi
quando puxei o gatilho.
Ouvi o estrondo do raio paralisante. Vi confusamente a luminosidade intensa, uma
vez que o acúmulo de sangue no cérebro prejudicava-me a visão.
O corpo do extraterrano foi envolvido pelo raio de choque. Vi a boca de Gucky
abrir-se num grito antes que caísse ao chão com os músculos enrijecidos e os reflexos
amortecidos. Ficaria fora de ação pelo menos por uma hora.
O segundo disparo de minha arma de choque coincidiu com o ataque do terrano,
cujas intenções eram muito mais sérias que as minhas.
Senti o hálito escaldante do fino raio térmico, que a menos de dois metros do lugar
onde me encontrava atingia o encosto da poltrona giratória, reduzindo-o a uma massa de
fogo.
O desconhecido atirara apressadamente, enquanto eu acertara mais uma vez. Seu
corpo contorceu-se e caiu.
Reuniu as últimas forças e voltou a puxar o gatilho de sua arma. O raio energético
atravessou o piso de metal leve da plataforma e com um chuvisco de fogo atingiu a caixa
de fusíveis da grade eletrificada.
Já me recuperara do perigoso momento de susto. No instante em que as chapas de
revestimento expeliam os raios, já me encontrava na entrada da sala dos isoladores.
Com a boca escancarada, Gunter Viesspahn fitava os vultos imóveis. Levou algum
tempo para descer da plataforma, pegar um extintor e apagar o princípio de incêndio.
Logo debelou as chamas. Retirei-me satisfeito.
Viesspahn estava fora de si. Seus olhos assustados rolavam nas órbitas. Parecia
perguntar constantemente a si mesmo de onde haviam vindo os dois disparos de arma
paralisante.
Saí da sala enfumaçada, produzindo o menor ruído possível. O braço esquerdo do
terrano paralisado pendia da plataforma do canhão. Vi perfeitamente que a pequena luz
de chamada do microrrádio preso ao seu pulso começou a piscar.
Concluí que os dois agentes não estavam sós. Se não me enganara, Perry Rhodan
devia estar próximo. Provavelmente viera com um destacamento do serviço de defesa.
Um homem do seu feitio só realizava um golpe de surpresa em boa forma.
Sabia que não tinha um segundo a perder.
Com a maior rapidez, mas tranqüilo e perfeitamente equilibrado, retirei-me para o
pequeno depósito onde dormira nos últimos dias. Peguei a mochila na qual colocara boa
quantidade de alimentos concentrados, pendurei-a nos ombros e prestei atenção para que
fosse atingida pelo campo de deflexão.
Realizei as últimas regulagens de precisão, examinei a pesada arma de impulsos e
abri o alçapão da galeria de emergência que Viesspahn construíra há um ano.
A galeria descia íngreme. Terminava num degrau, e de lá seguia diretamente para o
rio Hondo.
Havia outra galeria subterrânea que ia até a sala dos reatores, ligando a torre
energética com a residência.
Se Rhodan avançasse para esse lado, não me encontraria mais. O caminho até o
conjunto de edifícios residenciais certamente já fora bloqueado.
Foi em virtude de uma seqüência de conclusões lógicas que escolhi o túnel pouco
confortável.
Prestei atenção aos ruídos vindos de baixo antes de bater a pesada tampa-alçapão.
Fechei a tramela interna, embora soubesse que um ligeiro disparo energético bastaria para
destruí-la juntamente com o alçapão. No entanto, de acordo com um calculo rápido, seria
necessário um esfriamento de pelo menos quinze minutos antes que alguém pudesse
seguir-me pelo tampão fundido.
A galeria era circular e não tinha mais de um metro de altura. Tive que abaixar-me
bastante e segurar a pesada arma energética em posição inclinada. Minha lâmpada
recarregável emitia uma luz forte, que iluminava profusamente as paredes vitrificadas
pela fusão.
Já andara várias vezes por esse caminho. Sabia que tinha pouco menos de seiscentos
metros. Desta vez, não fiz nenhuma pausa para deitar e descontrair as costas doloridas.
Rhodan não pertencia à classe de pessoas que, numa situação crítica, costumam
presentear alguém com segundos preciosos.
Gucky era um ótimo telepata. Rhodan também possuía esse dom, mas em grau bem
menor. Por isso, já devia saber que seu pequeno amigo havia sido colocado fora de ação.
Enquanto prosseguia apressadamente, fiquei refletindo com a necessária frieza sobre
como o terrano me poderia ter visto. Ao que tudo indicava, tratava-se de um homem
pertencente ao Exército de Mutantes de Rhodan. Se é que o desconhecido conseguira
romper o campo de deflexão com a vista, também seria capaz de superar camadas de
matéria compacta.
Mas, segundo parecia, não possuía qualquer outro dom. Agira acertadamente ao
colocar fora de ação em primeiro lugar o rato gigante.
O rosto largo do mutante desconhecido surgiu na minha imaginação. Depois que os
telepatas de Rhodan falharam por completo em virtude de meu bloqueio mental,
transformara-se no mais perigoso dos meus inimigos.
Provavelmente Rhodan mandaria seu espia aos lugares mais críticos. Assim que me
localizasse, as pessoas que estivessem em sua companhia poderiam abrir fogo, ou atacar-
me com recursos extra-sensoriais.
“Você deveria tê-lo matado, seu idiota!”, disse meu supercérebro.
Cerrei os lábios, respirei profundamente e prossegui mais depressa. Sem qualquer
pausa a longa caminhada transformou-se num martírio. Mas não poderia perder tempo.
Quando finalmente cheguei ao alargamento da galeria, ouvi as águas do Hondo
rugirem atrás de uma porta de aço. O furacão continuava a uivar. Na zona da penumbra,
as tormentas são muito prolongadas.
Abri a porta de pouco menos de dois metros de altura e olhei cautelosamente para o
setor da galeria, cujo solo já estava coberto pela água. Mais adiante, o barco de plástico
blindado pertencente a Viesspahn balançava nas ondas.
Era uma embarcação inteiramente estável e coberta. O maquinismo trabalhava
segundo o princípio da retropropulsão: a água aspirada por uma potente turbo-bomba era
expelida sob alta pressão através de um bocal móvel, que tornava dispensável o leme
convencional. Tivera a cautela de familiarizar-me com o manejo de barco, fato que agora
me seria muito útil.
Subi pela estreita escada de alumínio, que levava a um pedestal de rocha. Quando
abri a escotilha do barco, à prova de água, a pequena luz sobre a roda do leme acendeu-
se.
Estava tudo em ordem. Abri a tampa da máquina e certifiquei-me de que o
dispositivo de vôo unipessoal, que escondera há dois dias, ainda se encontrava no mesmo
lugar. Durante esse tempo, Viesspahn não se interessara pelo barco.
Coloquei minha arma sobre o banco dianteiro, ativei o minirreator, do tamanho de
uma garrafa, e empurrei a chave do potente motor da bomba para a direita.
O barco arrancou com um solavanco, reagindo imediatamente à pressão do leme.
Sabia que, naquele lugar, o rio Hondo com seus cinco quilômetros de largura devia
parecer-se com um oceano fustigado pela tempestade. Mas não tive outra alternativa
senão utilizar este caminho para afastar-me da área de perigo.
Comprimi os pés contra a parede dianteira e regulei a máquina para a velocidade
máxima. O barco deu um salto para a frente, rompeu a vegetação aquática que margeava
o barranco e disparou para a grande baía.
O furor primitivo da tormenta envolveu-me. Acima das margens íngremes e
elevadas, um grupo de demônios parecia lutar pelo domínio do ambiente.
Enquanto me encontrava sob a proteção da baía, não tive maiores dificuldades.
Estas começaram quando atingi as águas abertas.
De repente, o pequeno e largo turbo-barco foi atingido pelas ondas. Até parecia que
avançara para o mar aberto. Antes de dar-me conta do que estava acontecendo, a
cobertura de plástico blindado estava sendo lavada pelas ondas espumejantes.
Quase não dei a menor atenção à fúria dos elementos. Uma vez que o vento soprava
da esquerda, tive de usar toda a força do motor para evitar que o barco fosse tangido para
a margem. Pretendia afastar-me o mais possível do barranco, a fim de que o barco fosse
envolvido pelo negrume que cobria o centro da corrente. Seria de admirar se lá ainda
conseguissem localizar-me pelo radar.
Dentro de poucos segundos, o veículo aquático, balançando e jogando em todas as
direções, saiu do abrigo que os barrancos ofereciam contra o vento. Não via mais nada.
Em torno, as águas geralmente tão tranqüilas borbulhavam como se um grupo de
monstros invisíveis estivesse empenhado em rasgar o leito do rio.
A seguir, comecei a acreditar que escapara às forças que, sem dúvida, haviam
pousado nas proximidades. Mal a idéia aflorou em minha mente, um inferno foi
desencadeado atrás de mim.
O barulho do furacão não me permitiu ouvir o ribombar dos disparos. Em
compensação, vi a luz branquicenta dos fluxos energéticos, que atingiam a água de um e
outro lado do barco saltitante, produzindo torvelinhos fumegantes.
Mantive-me absolutamente tranqüilo e inabalável. Um arcônida da minha época não
entra em pânico quando surge um fenômeno já esperado. Apenas me esforcei para fazer o
barco indomável dançar ainda mais furiosamente.
Dali a alguns segundos, os disparos atingiam a água a distâncias cada vez maiores.
Ao que tudo indicava, as miras automáticas passaram a localizar troncos flutuantes.
Depois do último lampejo, percebi que me encontrava aproximadamente no meio do
rio. Deixei o barco entregue à corrente impetuosa que, juntamente com a tormenta vinda
de trás, me afastava da zona de perigo. Seria difícil avaliar a velocidade, mesmo
aproximadamente. Vez por outra, a quilha arranhava em obstáculos. No Hondo, havia
numerosos baixios, e apenas poderia fazer votos de escapar aos mesmos.
Lancei o aparelho de imagem infravermelha, que me proporcionaria ao menos uma
ligeira visão dos arredores. O rio parecia uma gigantesca panela em ebulição. Minha
segurança era apenas relativa, pois Rhodan sabia perfeitamente que durante a tormenta
suas aeronaves seriam inúteis. Por isso, esperava que o furacão ainda durasse bastante,
muito embora o vento que vinha em rajadas indicasse que as fúrias da natureza estavam
próximas do fim.
Pelo que sabia, as célebres cataratas de Marshall ficavam cerca de treze quilômetros
abaixo do lugar do qual partira. Ali, as águas do Hondo se precipitavam de uma altura de
quase cinco quilômetros. Evidentemente não poderia arriscar um salto desses.
Vi que havia subestimado a velocidade do barco. Antes que pudesse elaborar meu
plano, ouvi um rugido que superava o da tormenta que já diminuía.
Bem à minha frente, observei algumas rochas cheias de arestas que se erguiam em
meio às águas. Pouco abaixo delas, as águas começavam a cair. Como a força da
correnteza fosse terrível, tomei imediatamente o rumo da margem ainda distante.
No último instante, consegui escapar à sucção das águas. A quilha tocou em algo.
Houve um estalo que parecia indicar desastre. O barco encalhara justamente num trecho
rochoso da margem do rio.
Desliguei o motor e esforcei-me para ouvir os ruídos vindos de fora. Bem ao leste, o
céu já começava a clarear na medida em que isso era possível na zona de penumbra. Se
quisesse aproveitar a semi-escuridão e as últimas rajadas de vento, teria que agir com a
maior rapidez.
Antes de sair da escotilha da cabine, coloquei o aparelho de vôo, formado por dois
minúsculos rotores de três paletas que giravam em sentido oposto, e que se abriam com a
força centrífuga.
No momento, as paletas elásticas estavam reduzidas a um pacotezinho, que mal
aparecia em cima da mochila, juntamente com o minúsculo reator.
Depois que desci, fui recebido pelo vento. A tormenta era muito mais forte do que
supusera no interior da cabine. Girei a popa do barco para o lado do rio, inclinei-me bem
para a frente, empurrei a chave do motor para a velocidade máxima e deixei que a
embarcação se precipitasse água adentro.
Com os olhos pensativos, contemplei o barco que se afastava em alta velocidade.
Logo foi levado pela correnteza. Dentro de poucos instantes, desapareceu em meio às
vagas.
Restava saber se Rhodan acreditaria no acidente que acabara de encenar.
“Tanto faz; procure ganhar tempo!”, disse o setor lógico de minha mente.
Confirmei com um gesto. Não havia a menor dúvida de que um pequeno ganho de
tempo assumia a maior importância. Rhodan teria o cuidado de examinar os destroços do
barco e procurar meu cadáver. Não tive a menor dúvida de que se lembraria da perigosa
catarata. Seria perfeitamente lógico contemplar a possibilidade de uma queda.
Era um estranho na região, estava fugindo e, além disso, a tormenta rugia em torno
de mim. Não haveria nada mais natural do que a suposição de que poderia ter ocorrido
um acidente.
Esperei sob a proteção do barranco até que a tormenta amainasse. Quando tive a
impressão de que o tempo já era suportável, abri a alavanca telescópica que servia para
controlar a direção e a velocidade do vôo. A pequena mochila que carregava nas costas
transformou-se num aparelho de vôo.
O zumbido do motor energético embutido na cabeça dos rotores foi superado pelo
matraquear agudo destes que se abriam. Subia suavemente ao ar brumoso e úmido, mas
preferi manter-me abaixo das copas das árvores que, se necessário, me ofereceriam um
abrigo facilmente alcançável.
Dali a poucos segundos, a maior queda d’água até então descoberta em Vênus
espumejava embaixo de mim. Senti um calafrio ao lembrar-me de que nessa altura
poderia estar lá embaixo, com o corpo esmigalhado.
Regulei a alavanca para a progressão do vôo. Desenvolvendo cerca de cento e
cinqüenta quilômetros por hora, deslizei tão perto da água que, vez por outra, levantava,
os pés para evitar os blocos de pedra que surgiam de repente.
Meu destino era Port Vênus. Num gesto de resignação, desisti de bancar o
“desaparecido”. Um homem como Perry Rhodan não se deixaria enganar tão facilmente.
Há poucas horas namorara a idéia de assumir o controle do grande centro de
computação de Vênus. Conhecia perfeitamente as instalações, e sabia como fazer para
atingir as cavernas através das galerias de emergência.
Mas agora, que Rhodan procedera com tamanha coerência para descobrir meu
paradeiro, todos os planos se haviam frustrado. Esse bárbaro de olhos cinzentos pensaria
antes de mais nada no cérebro positrônico que poderia estar exposto a um perigo. Por
isso, não tinha a menor dúvida de que o precioso centro de computação estava sendo
submetido a uma vigilância extremamente rigorosa.
Minha grande chance só poderia ficar no centro dos acontecimentos, ou seja, em
Port Vênus. Já percebera que o melhor esconderijo para um homem na minha situação era
uma grande cidade com sua turbulência. Em algum momento, surgiria a oportunidade de
apoderar-me de uma nave capaz de desenvolver velocidade superior à da luz, estacionada
no espaçoporto, ou de penetrar num veículo espacial de grandes dimensões sem ser
percebido.
Nos últimos dias, poupara meu defletor de ondas luminosas. Voltei a ligá-lo, porque
agora havia o risco de ser descoberto.
Não ouvi as aeronaves de Rhodan. Provavelmente, o soberano do sistema solar
ainda estaria ocupado no interrogatório, embora Viesspahn nada pudesse esclarecer.
Voltei a ter ânimo. De repente, a situação já não parecia tão desesperadora: chegaria
a Port Vênus.
“Aonde irá?”, indagou o setor lógico de minha mente. “Pretende procurar Marlis?”
Não; para mim a moça passara a ser tabu. Quando muito poderia contemplá-la de
longe.
Enquanto prosseguia pelo leito do rio, aproveitando tudo que pudesse representar
um abrigo, resolvi escrever a Perry Rhodan a fim de pedir clemência para Marlis. Sem
dúvida, esse bárbaro inteligente já percebera que a mesma só havia desempenhado um
papel secundário.
“Aonde irá em Port Vênus?”, voltou a perguntar meu segundo cérebro.
Procurei lembrar-me das várias possibilidades, até que o grande museu terrano me
veio à mente. Era isso mesmo! Por que não me esconderia ali? As salas eram amplas e
difíceis de serem abrangidas com a vista. Se realmente aparecesse aquele estranho
mutante com sua capacidade visual, ainda poderia escapar. De qualquer maneira, seria
uma posição favorável para agir prontamente assim que chegasse o momento.
Provavelmente teria que matá-lo. Bastaria que demorasse alguns segundos a fim de
concentrar sua mente para que eu tivesse uma boa possibilidade de atacá-lo. Um homem
do meu tipo não se impressiona com coisas aparentemente sobrenaturais. Mesmos os
mutantes de Rhodan eram apenas seres humanos com seus defeitos e fraquezas.
O plano que previa minha permanência no museu terrano deixava-me cada vez mais
feliz. Talvez a idéia fundava-se menos na lógica que no sentimento.
Ninguém conhecia o passado da Terra tão bem quanto eu. Já vivia quando os
primeiros mercadores romanos se dirigiram à Germânia para trocar as armas de ferro por
ouro e âmbar. Levei Leif Erikson a prosseguir na sua viagem para o Ocidente, até que
atingisse a costa americana.
Os numerosos objetos que deviam estar guardados nesse museu atraíam-me e
fascinavam minha mente. Além disso, no subsolo do edifício existia um restaurante, que
garantiria a alimentação.
A idéia tranqüilizava minha consciência. Meu segundo cérebro permaneceu quieto.
Ao que tudo indicava percebera que havia atingido certo estágio de esgotamento.
Provavelmente, em algum canto recôndito de minha mente, já havia fluxos
emocionais que me faziam perceber a inutilidade de prosseguir na fuga.
Era jovem de corpo e de alma, mas os séculos passados não poderiam ser deixados
de lado. Trouxeram-me um cabedal enorme de experiências e decepções. Meu saber, os
sofrimentos pelos quais havia passado e as alegrias de que desistira a contragosto atavam-
me à Humanidade com uma força muito maior do que eu mesmo estava disposto a
reconhecer.
Por que procurava escapar desses bárbaros adoráveis? Seria a teimosia, o orgulho ou
o sentimento do tradicional que me fazia agir assim? Talvez fosse certa presunção gerada
pela minha elevada ascendência. Por dez milênios, fora um mestre para a Humanidade.
Dirigira as grandes cabeças e promovera a ocorrência de fatos que a historiografia
considerava estranhos e quase inacreditáveis. Até hoje os historiadores costumam indagar
como os elefantes de Aníbal conseguiram atravessar os Alpes. Na época pretendia
destruir o poderio romano, pois não estava interessado na existência de um império
parado no tempo.
Quando quase esbarrei num galho que boiava, chamei-me à ordem. Essas reflexões
eram absurdas. Por enquanto, pretendia ir para casa, onde seria meu lugar. Provavelmente
meu venerável povo também precisaria de auxílio.
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