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O DUELO

Autor
K. H. SCHEER

Tradução
RICHARD PAUL NETO

Digitalização e Revisão
ARLINDO_SAN
O prisioneiro do Serviço Solar de
Segurança lança mão de seus trunfos secretos; a
segunda aventura de Atlan!

Apesar das hábeis manobras realizadas no espaço galático, o


trabalho pelo poder e pelo reconhecimento da Humanidade no seio do
Universo, realizado por Perry Rhodan, forçosamente teria de ficar
incompleto, pois os recursos de que a Humanidade podia dispor na
época eram insuficientes face aos padrões cósmicos.
Cinqüenta e seis anos passaram-se desde a pretensa destruição
da Terra, que teria ocorrido no ano de 1984.
Uma nova geração de homens surgiu.
E, da mesma forma que em outros tempos a Terceira Potência
evoluiu até transformar-se no governo terrano, esse governo já se
ampliou, formando o Império Solar. Marte, Vênus e as luas de Júpiter
e Saturno foram colonizados. Os mundos do sistema solar que não se
prestam à colonização são utilizados como bases terranas ou jazidas
inesgotáveis de substâncias minerais.
No sistema solar não foram descobertas outras inteligências.
Dessa forma os terra-nos são os soberanos incontestes de um
pequeno reino planetário, cujo centro é formado pelo planeta Terra.
Esse reino planetário, que alcançou grau elevado de evolução
tecnológica e civilizatória, evidentemente possui uma poderosa frota
espacial, que devia estar em condições de enfrentar qualquer
atacante.
Mas Perry Rhodan, administrador do Império Solar, ainda não
está disposto a dispensar o manto protetor do anonimato. Seus
agentes cósmicos — todos eles mutantes do célebre exército —
continuam a ser instruídos no sentido de, em quaisquer
circunstâncias, manter em sigilo sua origem terrana.
Atlan vê aproximar-se a realização de seus desejos. Só um
obstáculo interpõe-se em seu caminho: Perry Rhodan, o
administrador do Império Solar.

======= Personagens Principais: = = = = = = =


Atlan — O personagem principal que conta a história em primeira pessoa. Trata-se
de um prisioneiro arcônida.
Marlis Gentner — Uma estudante de olhos escuros nascida em Vênus.
Gunter Viesspahn — Um colono barbudo de gestos grosseiros.
Perry Rhodan — Administrador do Império Solar.
1

Foram muito gentis, amáveis e, dentro dos limites das suas normas de serviço, até se
mostraram tolerantes. E isso significava alguma coisa, quando se tratava de membros da
defesa solar.
Muitos deles eram cientistas uniformizados. Outros, soldados da frota espacial,
calejados nas lutas. Conforme explicaram, haviam arriscado tudo pela Terra.
Para eles, eu era um ser totalmente estranho, tanto sob o aspecto biológico como do
ponto de vista político-social. Nunca chegaram a empregar a expressão “raça estranha”,
fato que só concorria para confirmar minha opinião relativa ao grau de amadurecimento
ético da Humanidade. Já não eram intolerantes como antigamente, quando perseguiam
pessoas que adotavam crenças diferentes das suas e executavam os adversários políticos.
Haviam amadurecido, mas isso não os impedia de verem um inimigo em minha pessoa.
— Não temos absolutamente nada contra o senhor, meu caro — declarou o general
Kosnow em tom jovial.
Por isso, formulei uma pergunta inteiramente lógica: por que não me deixavam ir
em paz? Quando me lembrei do sorriso azedo de Kosnow, senti a preocupação fermentar
em minha mente. Só nos raros momentos de equilíbrio psíquico esse fato me divertia.
Era claro que não poderiam soltar-me, depois que eu irrompera em seu círculo de
vida em circunstâncias tão misteriosas.
Não sabiam nada a respeito da minha cúpula pressurizada, situada nas profundezas
do Oceano Atlântico. Por outro lado, não lhes revelei que no ano de 1.971 resolvera
colocar-me em segurança, porque temia a irrupção de uma guerra nuclear.
Dali a sessenta e nove anos, quando as instalações médicas robotizadas de minha
base me despertaram do estado de hibernação biológica, tive de constatar que não houve
guerra.
Pude ver o que a Humanidade havia realizado dentro desses sessenta e nove anos.
Recorrendo a todos os meios de que consegui lançar mão, cheguei a Terrânia, onde
travei conhecimento com o homem mais importante da fase recente da história.
Seu nome era Perry Rhodan. Durante o tempo em que eu dormira, ele havia criado
um pequeno império planetário, ao qual dera o nome de Império Solar.
Na Galáxia habitada, ninguém parecia desconfiar de que na pessoa de Rhodan
surgira um conquistador audacioso e cheio de astúcia.
Levei algum tempo para avaliar aquele homem. E isso quase chegou a transformar-
se na minha perdição.
Embora conhecesse a dureza, a pertinácia e a capacidade de ação dos humanos, não
dei o devido valor a Rhodan.
Tentei fugir numa pequena espaçonave do tipo jato espacial, pois, após um longo
afastamento, tinha vontade de chegar em casa. Esperei por muito, muito tempo que o
desenvolvimento tecnológico dos humanos chegasse ao estágio da navegação espacial.
Quando finalmente conseguiram, cometi a tolice de fugir para as profundezas do
oceano. Dessa forma, perdi a oportunidade representada pelo grande salto.
Quando por ocasião do primeiro vôo tripulado à Lua, Rhodan descobriu o cruzador
danificado dos arcônidas. Naquela oportunidade, uma ação precipitada me fez perder a
maior chance de minha existência.
Enquanto eu estava mergulhado no profundo sono biológico, o antigo major da
Força Espacial adquiriu o saber arcônida e realizou seus projetos com base no mesmo.
Quem cruza nestas condições o caminho de um homem, que há decênios vê o
próprio sentido da vida em tudo quanto é dificuldade e risco, quase sempre se expõe a
uma catástrofe.
Fugi! Entrei numa nave espacial pilotada pelo próprio Rhodan. Em Hellgate, houve
o duelo no deserto.
Ele me mandou prender e algemar. Durante a luta tive uma oportunidade de matá-lo.
O motivo por que não o fiz, mas preferi errar o alvo, constituiu parte substancial das
minhas reflexões autocríticas do momento.
Por que não o matei? Teria sido porque antes ele me ajudara a sair da nave em
chamas?
Não. Esse motivo não tinha qualquer fundamento lógico. O homem que resolve
poupar seu inimigo não está certo de que este venha a adotar o mesmo modo de agir
quando surgir uma situação idêntica.
Apesar disso, senti que devia ser-lhe grato. Poupei sua vida de propósito e avisei-o
pelo rádio de que agora estávamos quites. Poucas horas depois iria arrepender-me do
gesto.
Após a salvação realizada no último instante, ele me fez contemplar a boca de sua
arma. Fiquei sabendo que, entre nós, surgira uma estranha amizade fundada no ódio.
Admirei-o a contragosto. Ele, que se considerava imortal, mas que poderia ser
atingido com tamanha facilidade, via em mim um objeto de estudo muito interessante.
Rhodan era muito inteligente e experimentado nas coisas da vida e talvez até
desconfiasse de que eu não fosse um verdadeiro arcônida. Provavelmente, foi só por isso
que me mandou levar à Terra num cruzador leve. E desde o dia 10 de maio de 2.040 estou
detido neste planeta, como prisioneiro da defesa solar.
Meu relacionamento com essa gente transformou-se numa tragicomédia de primeira
categoria. Evidentemente sabiam muito bem que a vida de seu ídolo estivera em minhas
mãos. E também sabiam que eu não era um verdadeiro inimigo da Humanidade.
Os homens da defesa solar eram psicólogos. Por isso, meu comportamento
colocava-os diante de uma verdadeira muralha de enigmas, cuja solução dificilmente
seria possível para quem não possuísse a chave adequada.
Quem tinha a chave era eu; também sobre este ponto estavam informados. Não
haveria nada mais natural que procurar arrancar-me esse conhecimento.
Quando foram buscar-me para realizar o primeiro interrogatório, tive um pouco de
medo. Talvez poderiam reincidir nos seus antigos vícios.
Pensava num tratamento grosseiro. À porta da sala em que seria realizado o
interrogatório, minha lembrança muito viva me mostrara coisas feitas em tempos
passados, por homens ainda não humanizados.
Não me fizeram nada. Os cientistas uniformizados apenas puderam ameaçar-me
com seus rostos zangados o que, uma vez vencido o primeiro choque, quase nem chegou
a impressionar-me.
Há dias estávamos brincando uns com os outros. Recorreram a todos os truques
puramente psicológicos que conheciam. Tive de prestar muita atenção. Mas, afinal, eu era
um conhecedor mais profundo da mente. Não dispunham das mesmas experiências que
eu, nem estavam informados sobre as coisas que eu mesmo experimentara pessoalmente
no correr do tempo.
Era um paradoxo que eu, um arcônida, conhecesse os homens melhor do que eles
mesmos se conheciam. Para mim, o fato de que vezes seguidas me ofereciam
oportunidade de deixá-los perplexos com o volume das minhas experiências representava
uma fonte de divertimento.
Era esta a situação quando vieram buscar-me no dia 16 de junho de 2.040, para o
vigésimo segundo interrogatório psicológico.
2

O tenente Tombe Gmuna era o oficial de escolta. Eu gostava do africano, sempre


risonho, que costumava demonstrar uma franqueza reconfortante.
Cederam-me uma pequena casa, situada nas proximidades do centro administrativo
de Terrânia. Não tinha janelas gradeadas ou outras instalações convencionais destinadas a
evitar a fuga.
Possuía três robôs de serviço que funcionavam impecavelmente. Mas nem mesmo
estes poderiam ajudar-me a vencer a barreira energética de minha “prisão”.
A cerca radiante tinha cinco metros de altura. Não poderia saltar sobre ela, nem teria
outro meio de vencê-la. As instalações energéticas e de comando ficavam fora da área
circular delimitada pela mesma. Via perfeitamente a casinha do transformador com o
projetor que criava o campo energético circular, mas não poderia atingi-la.
Sempre que levado para fora através de uma abertura feita por uma série de
manipulações, era acompanhado ao menos por três homens do serviço de defesa.
Portavam armas, cujo efeito era relativamente inofensivo, mas muito doloroso. Durante o
tempo em que estive preso, nunca quis assumir o risco de entrar em contato com o
fulgurante raio energético desencadeado pelo choque.
Desta vez, o tenente Gmuna trazia uma pistola de verdade no cinto do uniforme.
Notei que se tratava de um radiador de impulsos térmicos, cujos efeitos eram mortais.
Seu rosto franco parecia um tanto matreiro. Os olhos escuros exprimiam certa dose
de contrariedade. Ao ver meu olhar recriminador, disse em tom seco:
— São ordens, almirante.
Desde que ficaram sabendo que já exercera as funções de comandante de uma frota
arcônida, passaram a dar-me o tratamento de Sir ou almirante. Nos últimos dias, fiquei
refletindo sobre a espécie de truque psicológico que estaria ligado a esse procedimento.
Será que pensavam que com isso conseguiriam levar-me para seu lado?
Não fazia muita questão do título. Há muito tempo que dirigira uma poderosa
flotilha do comando de colonização arcônida. Porém não conseguia pensar no fato sem
que uma sensação de desalento se apossasse de mim. E a melancolia de meu espírito
nunca cessava.
— Que ordem, Gmuna? — perguntei.
— É a arma de impulsos — disse com um gesto de contrariedade. — Chegou outro
homem. Daqui em diante, seu oficial de escolta terá que levar um radiador.
Olhei-o da cabeça aos pés. Demorou um pouco até que seu rosto se descontraísse.
— Bem, não podemos fazer nada. Não pense na tolice de querer fugir. O senhor
conseguiu isso uma vez, mas não vai repetir o ato.
— Daquela vez me tornei invisível — afirmei.
— O senhor gosta de um esclarecimento total, não é?
Limitei-me a fazer um gesto afirmativo e fiz um esforço para não demonstrar a
inquietação que me atormentava.
O tenente abriu a porta do carro oficial muito simples. Sentei no banco do meio,
bastante desconfortável. Gmuna ocupou o lugar ao lado do motorista. Atrás de mim, os
pesados radiadores de choque dos dois soldados me ameaçavam. Era uma escolta digna
de um antigo almirante, que já desistira de pensar no passado grandioso.
Durante os vinte e um interrogatórios pelos quais já passei, haviam apresentado
provas cabais de que os dados relativos aos arcônidas, constantes da Enciclopédia
Terrânia, correspondiam à verdade. De acordo com esses dados, meu povo venerando se
encontrava num estágio de degenerescência física e mental que o tornava incapaz de
enfrentar as adversidades da vida. Não compreendi como isso poderia ter acontecido num
espaço de tempo tão curto.
De qualquer maneira os homens da defesa solar quebraram minha arrogância
nascida do sentimento de superioridade. Mas não conseguiram roubar minha altivez.
Afinal, mesmo um Perry Rhodan aprendera com os cientistas de meu povo. Se nossa
nave exploradora não tivesse realizado um pouso de emergência na lua terrana, nos idos
de 1.971, a navegação espacial interestelar não surgiria na Terra.
Ninguém poderia privar-me da consciência desses fatos. Aliás, nem pretendiam
negar que fomos seus mestres.
Era bem verdade que em alguns pontos pareciam ter ultrapassado os arcônidas.
Mostraram-me algumas naves espaciais construídas e equipadas na Terra, cujos detalhes
estruturais me deixaram perplexo.
Foram estes os meios que utilizavam para torturar-me. Já não eram primitivos a
ponto de encostar ferro em brasa aos meus pés.
O jovem Tombe Gmuna era um exemplo frisante do novo comportamento do
homem. Era tolerante, de mente limpa, e sempre estava disposto a reconhecer as
qualidades de outro ser. Tomara uma atitude tão franca para comigo que não pude deixar
de identificá-lo com a nova espécie de homem.
Eram os tipos arrojados de conquistadores, que meu povo também possuíra no
período áureo. Isso parecia pertencer ao passado, e essa circunstância me precipitava num
caos psíquico. Já me encontrava longe de casa há tanto tempo que não estava em
condições de formar opinião própria sobre o que realmente teria acontecido.
A arma mais eficiente utilizada contra mim foi a alusão constantemente repetida ao
gigantesco robô que, segundo diziam, administrava o império estelar criado por meus
antepassados.
Para ser sincero comigo mesmo, tive de perguntar-me por que estava empenhando
todos os meus anseios e minha capacidade de ação em chegar aos três planetas
sincronizados de Árcon, apesar de tudo que teria acontecido.
Seria o sentimento que os homens designavam como saudade? Em pessoas do meu
tipo uma manifestação do inconsciente como esta seria um fato inconcebível. Afinal,
sempre conseguira controlar-me, desde o momento em que deixara minha nave capitania,
a fim de pisar pela primeira vez no planeta verde, a Terra.
Talvez os numerosos amigos de verdade encontrados entre os humanos nem
permitiriam que pudesse sofrer um repentino acesso de saudades.
Provavelmente, o desejo de ir para casa, acontecesse o que acontecesse, nascera
principalmente do orgulho ferido. Foi terrível ter de constatar, assim que despertei do
profundo sono biológico, que os pequenos bárbaros do planeta Terra já se haviam tornado
adultos.
A essa hora, só sentia o desejo de verificar pessoalmente se as informações que o
serviço de defesa fornecera sobre meu povo correspondiam à verdade. Se isso
acontecesse, talvez voltaria para estender a mão a Rhodan e selar o pacto de amizade com
o mesmo.
Enquanto o veículo se deslocava em direção às instalações não muito distantes do
serviço de defesa, pensei em Perry Rhodan. Estava desaparecido há cerca de trinta dias.
Gmuna fizera algumas observações, segundo as quais Rhodan voltara a arriscar muita
coisa. De qualquer maneira, no momento, meu inimigo mais implacável não se
encontrava na Terra.
Meu inimigo? Soltei uma risadinha ao analisar o conceito. Sim, fora meu inimigo
até o momento em que dera ordem ao seu robô para que me desse água. Quando isso
aconteceu, percebi que nunca mais conseguiria matá-lo.
Gmuna levou-me ao elevador antigravitacional mais próximo. Os jovens lidavam
com o artefato como se tivessem passado por uma evolução tecnológica milenar. Tudo
aquilo se transformara numa coisa natural. Ao que parecia, nem chegaram a refletir sobre
o tempo que os cientistas de meu povo dispenderam no controle das forças gravitacionais.
Eles, os humanos, simplesmente receberam a tecnologia de nosso povo.
Quando pensava nesses detalhes, lutei contra a sensação de raiva que começava
apossar-se de mim. Seria bom que não se esquecessem de quem eles tinham diante de si.
Quem lhes dava o direito de mandar conduzir-me por um grupo de soldados armados,
como se fosse um criminoso? Era este detalhe que não me permitia fazer vistas grossas
para tudo, num gesto de verdadeira generosidade.
Se tivessem mais experiência, nunca teriam a idéia de algemar ou vigiar um homem
como eu. Minha palavra lhes bastaria.
Mas, ao que tudo indicava, não conheciam o elevado código de honra da velha frota
arcônida.
Por isso, cometeram o erro de minar constantemente a disposição de revelar
integralmente os fatos, que vez por outra surgia em minha mente. Despertaram todo o
volume de resistências desencadeadas pelas sensações do subconsciente. Achei preferível
não informá-los sobre este detalhe.
Parei por um instante no corredor do 86 o pavimento, prestando atenção aos últimos
ecos do trovão causado pela decolagem de uma grande espaçonave. Para mim não
poderia haver ruído mais agradável. Olhei para Gmuna.
— É uma nave da classe Império? — perguntei em tom curioso.
— É a nave Drusus, almirante. O chefe solicitou sua presença pelo hiper-rádio. Caso
o oficial de artilharia aperte os botões, ela poderá causar o fim do mundo.
Seu entusiasmo mais que compreensível me fez rir. O coração de um jovem não
poderia deixar de bater mais aceleradamente quando uma gigantesca esfera espacial de
1.500 metros de diâmetro disparava em direção ao espaço.
Dali a alguns segundos, as portas de correr blindadas abriram-se. Entrei nas salas de
trabalho do setor especial da defesa solar.
Como de costume, havia mais de dez pessoas. Já as conhecia.
Na minha escala de avaliação, o general Kosnow ocupava um lugar todo especial.
Conforme Gmuna certa vez cochichara ao meu ouvido, este homem seria muito velho.
Talvez pertencesse ao grupo de oficiais de grande mérito, que juntamente com Perry
Rhodan haviam criado e desenvolvido a antiga Terceira Potência. Dizia-se que Perry
Rhodan tinha a possibilidade de proporcionar um prolongamento biomédico da vida aos
homens que julgasse dignos desse benefício. Não possuía a menor idéia sobre a maneira
pela qual conseguia isso. Em nenhum dos homens pertencentes ao círculo de seus
colaboradores mais chegados, percebera qualquer fenômeno que, segundo as minhas
concepções, pudesse contribuir para a estabilização biológica e a renovação constante das
células.
De qualquer maneira, não podia deixar de haver um núcleo de verdade nesses
boatos, pois Perry Rhodan não envelhecera.
Quando vi o homem baixo, parei imediatamente.
Virou em minha direção o rosto que chamava a atenção pela pele lisa e pela
ausência quase completa de barba, que parecia dominado por dois olhos azuis.
Aparentava ser tão corriqueiro e inofensivo que não poderia deixar de despertar desde
logo minha desconfiança. Seria este o homem novo, do qual Gmuna me havia falado?
Se fosse eu quem estivesse no comando, teria dado ordem para que o jovem oficial
usasse uma arma realmente mortífera. Isto não concorreu para tornar o desconhecido
mais simpático aos meus olhos.
O general Kosnow levantou-se atrás da enorme escrivaninha. Cumprimentou-me
com um gesto de cabeça.
— Como vai, almirante?
Inclinei a cabeça num gesto comedido, esforçando-me para demonstrar certa
dignidade.
— Permita que lhe apresente o marechal-solar Allan D. Mercant, almirante.
“Cuidado! Perigo!”, sinalizou meu supercérebro. Senti nitidamente os impulsos
telepáticos expedidos pela mente do marechal.
Minha memória fotográfica entrou em funcionamento. Allan D. Mercant? O nome
não me era estranho. Lembrei-me de tê-lo lido na Enciclopédia Terrânia. Segundo os
dados constantes da mesma, em 1.971 Mercant fora chefe de um serviço secreto de
âmbito mundial, conhecido pelo nome Conselho Internacional de Defesa.
Depois que Rhodan regressou da Lua, o chefe do CID passou a simpatizar com o
major. Posteriormente passou a trabalhar com exclusividade para Rhodan. E, agora
aquele homenzinho ocupava o posto de marechal-solar. Provavelmente exercia as funções
de chefe do Serviço Solar de Segurança. Tinha certeza absoluta de que Rhodan não
poderia ter encontrado melhor elemento para desempenhar as funções.
Mercant, que além do mais parecia dispor de faculdades telepáticas limitadas,
também se levantou. O gesto com que me cumprimentou foi um tanto desajeitado, mas
não deixei que esse fato me iludisse. Mercant correspondia àquilo que meus antepassados
costumavam designar como o punhal de ponta envenenada: de aspecto inofensivo, era
uma mortífera arma de ataque.
— Muito prazer. Por favor, não se esforce em vão, Sir — disse em tom formal. — Já
houve telepatas melhores que o senhor que tentaram romper minha psique. Estou em
condições de bloquear o conteúdo da minha mente.
O homenzinho de cabeça quase totalmente calva, que usava óculos antiquados de
aros de ouro, parecia embaraçado.
— Queira desculpar — disse Mercant em tom lamentoso, mas seus olhos claros
falavam uma linguagem diferente...
Percebi que minha avaliação fora correta. Sua conduta aparente era apenas a
máscara que ele usava. Tinha certeza absoluta de que não sofria complexos de
inferioridade.
Por outro lado, não podia haver a menor dúvida sobre suas qualidades psicológicas.
Se Rhodan o havia escolhido para chefiar uma entidade importantíssima como a defesa
solar, Mercant devia ser dotado de uma capacidade extraordinária.
— Faça o favor de sentar — disse em tom amável.
Sua mão apontou gentilmente para uma cadeira confortável, colocada à frente das
escrivaninhas dispostas em ferradura. Sentei.
Raras vezes estivera tão atento. Se não estava muito enganado, a tática que Mercant
usaria durante o interrogatório seria muito diferente daquela empregada por seus
subordinados.
Foi como eu esperava. Começou instantaneamente, em forma de assalto. O fato de
que não recorria a palavras supérfluas constituía uma vantagem.
— O senhor está na Terra pelo menos há setenta anos, almirante — principiou com a
voz tranqüila.
Esforçei-me ao máximo para manter o autocontrole. Como poderia saber disso?
Mantive-me em silêncio.
— Tive o trabalho de examinar alguns documentos antigos da OTAN — disse com
um sorriso. — Em abril de 1.970, o chefe científico de um instituto de pesquisas
particular empregou um certo Olaf Peterson, que assinou um contrato. Esse homem foi o
senhor. Após quatro meses, passou a chefiar um setor próprio. Ali desenvolveu num
tempo espantosamente curto um aparelho chamado projetor de campos estruturais,
destinado a campos de compressão que exigem um elevado desempenho energético. Num
artigo escrito pelo senhor, diz-se que o mesmo poderia substituir perfeitamente as
câmaras de combustão convencionais e os bocais de jato submetidos a uma solicitação
térmica excessiva. Dali a mais três meses, o senhor passou a ocupar-se com a elaboração
de um minirreator destinado ao abastecimento de energia para as espaçonaves. Tratava-se
de um reator de fusão dotado de controle automático capaz de fornecer quinhentos
quilowatts por hora. Estes fatos são um tanto surpreendentes, não são?
Mercant fitou-me com uma expressão de curiosidade. Percebi que seria inútil negar.
— É verdade — disse em tom de tédio. — Naquela época, usava o nome de Olaf
Peterson. Pretendia apoiar os bárbaros nos seus esforços desesperados de conquistar o
espaço. A gente se assustava ao ver os problemas que os aborreciam. Quanto a mim,
apenas utilizei dados publicamente expostos nos museus de meu povo.
Fiquei satisfeito ao notar o choque causado nos homens que me ouviam
atentamente. Por pouco, não soltei uma estrondosa gargalhada. Mercant parecia divertir-
se.
— Obrigado pela franqueza, almirante.
— Não há por quê, Sir. Um homem inteligente não continua a mentir quando
percebe que está irremediavelmente desmascarado.
O chefe de segurança fez um gesto pensativo. Repentinamente mudou de assunto.
— Acreditamos que o senhor seja um agente cósmico no desempenho de missão
independente. Crest e Thora, nossos amigos arcônidas, não sabem nada a seu respeito.
Uma coisa é certa. O senhor veio à Terra por simples acaso.
— Não diga! — respondi.
Um sorriso disfarçado surgiu no rosto de Kosnow. Havia uma pequena dose de
malícia em seus olhos. Ao que parecia, gostava de ver Mercant sofrer um pequeno revés.
— Qual é sua idade, almirante? — foi a pergunta seguinte.
— Procure adivinhar.
Estavam se aproximando de meu segredo. O chefe de defesa seguira um caminho
bem diferente. Seus dedos brincavam nervosamente com uma velha espátula feita de
marfim.
— É o que faremos — prometeu em tom gentil. — O senhor tem um aspecto
surpreendentemente jovem. Diria que calculo sua idade em trinta e cinco anos. Como
podemos harmonizar essa circunstância com sua presença prolongada na Terra? Além
disso, segundo as informações de que dispomos, um oficial da frota arcônida que ocupa o
alto posto do senhor nunca tem menos de quarenta anos da contagem de tempo terrana.
Ninguém se torna almirante aos trinta anos.
— O senhor está com toda razão — disse em tom sério.
Descansou a espátula com uma lentidão acintosa. Senti que teve de esforçar-se para
manter o autocontrole.
“Prepare-se!”, foi a mensagem transmitida por meu cérebro. Sabia o que viria em
seguida.
— O senhor possui um aparelho muito estranho, almirante. Atendendo a seus
pedidos, deixamos de abrir o envoltório em forma de ovo. Ainda insiste na afirmativa de
que não se trata de uma arma?
— Perfeitamente.
— O senhor ponderou que o aparelho tinha alguma relação com seu bem-estar
físico. Uma vez que não lhe pretendemos fazer mal, não lhe tiramos o mesmo. Mas isso
pode mudar, almirante!
Se até então ninguém me ameaçara, Allan D. Mercant o estava fazendo.
Pensei nas terríveis cicatrizes que trazia na região do estômago, devidas
exclusivamente ao ativador celular a que Mercant acabara de aludir.
Envolvi-me num silêncio total. A situação parecia tornar-se desagradável para os
psicólogos que se encontravam presentes.
O chefe do serviço de defesa não se deixou perturbar. Desconfiei até onde pretendia
chegar. Era mais que perigoso.
— Trouxe alguns cálculos logísticos — acrescentou em tom casual. — Supondo que
esse aparelho realmente assume uma importância vital para o senhor, e que sempre deve
ser trazido junto ao seu corpo, os matemáticos concluíram que, no curso de seu passado
bastante agitado, o senhor deve ter sido obrigado várias vezes a engolir o micro conjunto.
O fato explicaria as suas numerosas cicatrizes. Foi só por isso que acreditei nas suas
declarações, segundo as quais o senhor não deve ser separado do aparelho.
Evidentemente essa circunstância nos leva a tirar conclusões da maior gravidade.
— E daí? — perguntei em tom irônico.
— O senhor se encontra na Terra há muito mais tempo do que está disposto a
confessar. Verificaremos os nomes com que tem aparecido no curso da história da
Humanidade.
— Fique à vontade. Não terá muita sorte.
Tornou-se um pouco mais impaciente.
— Atlan, o senhor deveria dizer a verdade. Um homem com a sua inteligência já
teria percebido que não adianta negar os fatos. O que espera conseguir com isso?
— Quero ir para casa — disse em tom tranqüilo.
— O senhor sabe perfeitamente que não podemos aceder a esse desejo. Por aí
pensasse que a Terra foi destruída e que Perry Rhodan está morto. Se permitíssemos que
o senhor fosse ao sistema de Árcon, isso representaria um perigo para a Humanidade.
— Se as informações que me forneceram sobre a decadência do Império de Árcon
correspondem à realidade, não direi uma palavra.
— O senhor não seria capaz disso. Árcon está sendo governado por um regente
robotizado. Além disso, achamos sua pretensão um tanto absurda. Como poderíamos
acreditar na sua promessa, se até aqui se obstina em manter silêncio sobre os fatos?
Allan D. Mercant era muito inteligente. Mas, nem ele mesmo se dera conta de que
minha palavra representaria muito mais que uma simples promessa. Chamei sua atenção
para essa circunstância.
— As informações que possuímos sobre as concepções morais dos oficiais da frota
arcônida são muito escassas, Sir. Os tempos estão mudados. Diga francamente quem é, de
onde veio, quando veio e por que veio. Depois poderemos falar sobre o resto. Por
enquanto, o senhor é um “fator” desconhecido, que pode ser totalmente inofensivo, mas
também pode ser muito perigoso.
No meu íntimo confessei que seu raciocínio era claro e lógico. Apesar disso, não
estava disposto a revelar de uma hora para outra meu grande segredo. Provavelmente não
acreditariam em mim, o que tornaria minha situação ainda pior.
Além desse raciocínio, o orgulho bastante ferido ainda me impedia de revelar os
fatos. Afinal, quem eram esses terranos? Meus antepassados viram neles selvagens do
tempo da Idade da Pedra, e agora um cientista e comandante de esquadra arcônida
recebia deles um péssimo tratamento.
Senti que me aproximava de um dilema. Já não conseguia vencer a fraqueza
determinada por fatores raciais. Meu supercérebro dizia que os terranos eram amigos,
mas minha memória fotográfica revelava o pequeno número de amigos que havia
encontrado entre eles.
— O senhor me ofendeu — respondi em tom áspero. — Se não quiser confiar na
minha palavra, não terá outra alternativa senão manter-me preso. Recuso-me a depor.
É um direito que as leis terranas me conferem.
— Voltamos à estaca zero, Sir — observou o general Kosnow.
Sabia o que queriam dizer. Os homens mais capazes do serviço de defesa já haviam
percebido por ocasião dos interrogatórios anteriores que em certo estágio um curto-
circuito emocional ocorria em minha mente, Até agora, Kosnow sempre suspendera o
inquérito ao chegar a este ponto.
Mercant não se afastou da regra. Levantou-se, cumprimentou-me com um gesto da
cabeça e disse:
— Pois não; fique à vontade, almirante. Hoje de tarde voltaremos a conversar. Até lá
disporemos de outros dados sobre sua pessoa. Se houver qualquer prova de que
desenvolveu alguma atividade de agente, terá de enfrentar um tribunal. O senhor não está
com a ficha muito limpa, senhor Atlan.
Este modo de falar fez com que ele fechasse desesperadamente os olhos. Já se
tornavam muito menos corteses, o que não lhes poderia levar a mal. Perguntei seriamente
a mim mesmo o que faria se estivesse em seu lugar. Talvez não fosse tão tolerante para
com um misterioso desconhecido.
Mercant saiu. O general Kosnow seguiu-o com um olhar pensativo. Depois que a
porta se fechou, virou a cabeça para mim.
O traço em torno dos seus lábios parecia exprimir preocupação.
— O senhor ainda não conhece Mercant, Sir — disse em tom de súplica. — Por que
insiste em não falar? Está certo; dar-lhe-emos mais algumas horas para refletir. Concorda
em conversar também hoje com os estudantes do último semestre?
Controlei-me para não revelar minha alegria. Desde o dia 12 de maio de 2.040,
surgira o hábito de levar-me todos os dias ao grande auditório da Academia Espacial,
onde as novas gerações de cientistas me faziam inúmeras perguntas. Geralmente tratava-
se de problemas médico-biológicos ou de questões de tática colonial solucionadas no
curso da política expansionista dos arcônidas.
Os estudantes de engenharia estavam curiosos para saber que tipos de propulsores e
máquinas usávamos naquele tempo, enquanto os astronautas esperavam que confirmasse
a exatidão de longos cálculos relativos a hipersaltos.
Os futuros oficiais da Frota Espacial Estratégica estavam interessados em conhecer
a forma pela qual os colonizadores arcônidas costumavam tratar os povos estranhos.
As discussões eram agradáveis. Na verdade, o interesse pelo passado grandioso de
meu venerável povo me deixava feliz.
Mais uma vez concordei, embora hoje nem pensasse em utilizar o saber imenso
armazenado na minha memória fotográfica no benefício exclusivo dos estudantes da
academia.
Meus cálculos incluíam um fator, que nas últimas semanas fora incluído na
categoria dos desconhecidos. Tratava-se de um ser humano, cujas reações constituiriam a
chave negativa ou positiva da minha equação: uma jovem estudante de cosmobiologia
chamada Marlis Gentner, que não nascera na Terra.
Marlis era descendente dos colonos que pousaram em Vênus cerca de sessenta anos
atrás. Evidentemente orgulhava-se dos seus antepassados, que conseguiram arrancar da
selva de Vênus tudo de que o homem precisa para sua subsistência.
Sabia que entre os colonos de Vênus e os terranos existiam certas tensões. Para
mim, as ligeiras divergências eram normais e inevitáveis. A história grandiosa de meu
povo demonstrara repetidas vezes que, uma vez vencidas as dificuldades iniciais, toda
colônia anseia pelo autogoverno.
As conseqüências sempre são desagradáveis para ambas as partes. É bem verdade
que os problemas econômicos e sócio-políticos podem ser solucionados satisfatoriamente
através de negociações. Mas, até o momento do acordo definitivo, sempre existe uma
diferença de princípios e de concepções.
Marlis Gentner era uma defensora ardorosa da justiça. Em sua opinião, o jovem
Estado venusiano fora prejudicado em seu desenvolvimento. Não lhe expliquei que os
colonos sempre são dessa opinião. Um pioneiro inteiramente satisfeito constitui um
fenômeno impossível.
Travei conhecimento com ela no dia 15 de maio, durante uma preleção. Poucos dias
depois, ela dissera numa discussão pública que minha prisão constituía uma indignidade.
Há três dias resolvi colocar todas as chances numa carta. Num cochicho informei-a
sobre o lugar em que havia escondido meu equipamento especial.
Em princípios de maio, quando cheguei a Terrânia, tive o cuidado de guardar
adequadamente os aparelhos que assumiam importância vital para mim. Por ocasião de
minha fuga precipitada na nave espacial de Rhodan, parte dos micro instrumentos havia
ficado para trás.
Se conseguisse apossar-me de certa cápsula, os dias de prisão teriam chegado ao
fim. Meus cálculos eram inatacáveis. Não havia a menor possibilidade de falha, desde
que o fator desconhecido representado por Marlis Gentner reagisse de forma positiva.
Os dois guardas armados voltaram a aparecer. Num gesto rotineiro, apontaram para
a porta atrás da qual havia um elevador que conduzia ao heliporto situado na cobertura do
edifício.
Ainda bem! Um ato de rotina sempre embota a mente, adormecendo o sentimento
de vigilância. Até mesmo Tombe Gmuna, sempre desconfiado, não suspeitou de nada
quando penetrou ao meu lado no campo energético.
Livres da ação da gravidade, subimos ao lugar em que o aparelho de rotores do
serviço de defesa nos aguardava.
A maior e a mais importante das academias espaciais do Império Solar ficava fora
da área do gigantesco espaçoporto.
Bem longe dali, ao leste, vi as coberturas reluzentes dos arranha-céus. Terrânia, a
capital da Terra e do pequeno império planetário, fundada há sessenta anos, já tinha mais
de 14 milhões de habitantes.
Era uma cidade que impressionava o observador. Por certo, ocuparia um lugar de
destaque na Galáxia, assim que as inteligências da Via Láctea a conhecessem. Por
enquanto, Perry Rhodan ainda se fingia de morto. Mas, na minha opinião, isso não
duraria muito.
Não poderia deixar de ser descoberta durante a missão arriscada que estava
executando. Quando isso acontecesse, preferia não estar na Terra. Meu lugar era no
palácio de cristal de Árcon I, o mundo que dominava o Universo conhecido.
Ao entrar na máquina, lembrei-me de como meu auxílio discreto seria útil para a
Humanidade. Deveria ter explicado aos homens do serviço de defesa que eu, Atlan,
estava imbuído da intenção honesta de, a partir de Árcon, apoiar a Humanidade em
ascensão?
Ninguém teria acreditado nas minhas palavras, ainda mais que segundo a opinião
oficial todos os arcônidas eram degenerados. Não podia conformar-me. Precisava ir para
casa, custasse o que custasse.
3

Minha preleção sobre a política colonial arcônida e a psicologia das raças estranhas
durou duas horas.
A seguir, os estudantes de várias especialidades apresentaram-se para discutir o
assunto. Era a hora da descontração e do descanso.
Marlis Gentner, uma moça alta, de cabelos escuros e um jeito obstinado, resolvera
não participar da guerra de palavras. Interpretei sua surpreendente reserva como um sinal
positivo, o que evidentemente poderia ser um raciocínio errôneo.
Várias vezes vi seu rosto surgir entre muitos outros como se fosse uma mancha
branca. Uma ocasião tive a impressão de que me examinava com os olhos críticos de
psiquiatra.
Sempre que pensava nela, experimentava um sentimento de carinhosa simpatia.
Quase chegava a sentir vergonha por tê-la induzido a trair sua raça.
Seria a doença infantil de todos os pioneiros; não havia a menor dúvida. E fora
injusto da minha parte deixar de esclarecê-la a este respeito. Ainda acontecia que não se
podia pensar numa ligação entre a moça e minha pessoa.
Era jovem, bela e inteligente. Já eu era um homem muito velho, que não tinha o
direito de atar a venusiana, que mal começava a despertar para a vida.
Enquanto respondia às indagações dos universitários, meu sexto sentido lógico, que
geralmente funcionava de forma impecável, me disse que por enquanto não havia
acontecido nada. Além disso não pretendia recorrer ao auxílio de Marlis para prejudicar a
Humanidade. Apenas desejava ir para casa. Queria escapar à vergonha da prisão. Era só
isso.
Ao meio-dia e dez, o tenente Gmuna interrompeu a longa discussão. Encontrava-se
entre os estudantes, dos quais alguns falavam excitadamente, enquanto outros ouviam em
silêncio. Naquele momento, discutiam se uma raça mais desenvolvida no terreno técnico
e científico tem o direito de enquadrar os habitantes dos mundos primitivos no seu
esquema colonizador.
Os prós e os contras esquentavam os ânimos jovens. Diverti-me ao notar como a
juventude mergulhava num tema que já ocupara as cabeças dirigentes do Império
Arcônida.
A inquietação que começava a tomar conta de mim, me fez ficar nervoso e distraído.
Esforcei-me ao máximo para dar respostas claras e objetivas. Se procedesse de outra
forma, Gmuna desconfiaria imediatamente.
Demorou alguns minutos até que eu visse Marlis ao meu lado. Gmuna não poderia
impedir que, durante a discussão tão animada, vez por outra, alguém esbarrasse em mim.
Todos os dias tinham sido a mesma coisa: queriam ver de perto o estranho vindo das
profundezas da Via Láctea.
Subitamente, vi os olhos de Marlis. Eram grandes e escuros que nem um lago nas
montanhas, em cujo fundo arde um fogo eterno. Esses olhos continuavam a indagar, e a
perscrutar. Percebi lutar consigo mesma, uma circunstância que provava que os objetos os
quais eu precisava se encontravam em seu poder.
Só deveria olhar ligeiramente para ela.
Naquele instante, Gmuna estava empurrando os estudantes para trás. A moça
aproveitou a oportunidade.
Ouvi sua voz, que soava baixo e abafada.
— O senhor me escreverá?
Fiz um gesto quase imperceptível com a cabeça. A tensão psíquica quase chegava a
dilacerar-me. Mercant prometera interrogar-me de novo durante a tarde. Poderia haver
cenas muito desagradáveis.
— Faça o favor de afastar-se — berrou Gmuna a plenos pulmões. — Do contrário
nunca mais ouvirá uma preleção.
— Darei notícias — disse apressadamente, dirigindo-me à moça.
— Não lutará contra minha gente?
— Dou-lhe minha palavra, Marlis. Preciso ir para casa. Procure compreender!
— Encontramo-nos em Port Vênus. Interromperei os meus estudos. Combinado?
Senti um nó na garganta. De repente, a tensão abandonou-a. Brindou-me com um
sorriso franco. Embaixo de sua pasta, surgiu um recipiente chato de cerca de 20
centímetros de comprimento. Agarrei-o apressadamente, mas ninguém notou o gesto.
Com um ligeiro movimento da mão, introduzi o estojo sob a blusa folgada. Senti as
duas ventosas entrarem em contato com a pele através da camisa.
Mais uma vez parecia uma pessoa estranha entre os jovens que discutiam, e que
finalmente abandonavam o campo.
O tenente Gmuna aproximou-se furioso. Sorri tranqüilamente para ele. Marlis
desaparecera. Provavelmente fizera muito mais pela Humanidade do que poderia
imaginar naquele instante. Quanto a mim, estava decidido a não voltar para a grade
energética.
Meu equipamento de emergência não oferecia grandes possibilidades. Quando me
encontrasse no interior da casa hermeticamente fechada, o defletor de ondas luminosas
não me poderia ser útil.
— Faça o favor de acompanhar-me — disse Gmuna em voz bastante alta. — A
partir de amanhã mandarei isolar seu lugar. Assim não é possível.
Quando comecei a rir, Gmuna contorceu o rosto numa expressão de contrariedade.
— O senhor sabe perfeitamente que todas as simpatias estão do seu lado. Não pense
em tolices. É verdade: amanhã mandarei fechar o auditório.
Gmuna nem parecia desconfiar de que essa decisão vinha tarde. Olhei para trás para
ver Marlis mais uma vez, mas não consegui descobri-la. Provavelmente, a esta hora, já se
estaria recriminando pesadamente. Não tive possibilidade de apoiar sua ação numa
conversa franca e prolongada. A moça só me conhecia das discussões.
Gmuna empurrou-me para a saída. Os dois guardas reapareceram.
Pegamos o pequeno elevador comum que ficava atrás da parede de comandos do
moderno auditório. Lancei um ligeiro olhar para as câmeras de televisão embutidas. As
minhas preleções costumavam ser transmitidas, pois a sala não comportava mais de mil
pessoas.
Fomos para a cobertura, onde Gmuna havia estacionado o helicóptero. Naquele
instante, minha calma e equilíbrio interior tornaram-se completos.
“Na cobertura, pedirão autógrafos a você”, avisou meu sexto sentido. Quase
cheguei a confirmar com um gesto. Até então, sempre fora assim. Os estudantes são uma
turma bastante engenhosa. Sabiam como pregar uma peça às autoridades.
Comecei a preparar-me para a fuga.
Quando saímos do elevador, não consegui ver a larga área de concreto do heliporto
de cobertura. Mais de mil universitários haviam comparecido para ver uma criatura
misteriosa como eu.
Eram os estudantes que não conseguiram entrar no auditório. Com certeza não
ficaram muito satisfeitos em assistir à palestra pela televisão, principalmente porque
dessa forma não poderiam intervir nos debates. E agora possibilitariam minha fuga.
Os guardas de Gmuna avançaram com os fuzis atravessados. Não conseguiram
afastar as pessoas, geralmente jovens, vindas de todos os continentes da Terra e dos
diversos planetas habitados. Antes que Gmuna se desse conta do que estava acontecendo,
nos vimos rodeados por gente excitada falando em altas vozes.
Olhei para o arco assimétrico do portão, sob o qual começavam as diversas faixas
transportadoras da via elevada. Precisava atingi-lo.
Alguém entregou-me um grande quadro, no qual identifiquei, para meu espanto,
minha própria pessoa. Canetas foram tiradas dos bolsos. Autógrafos foram solicitados.
Contra minha vontade vi-me transformado numa espécie de ídolo. Eu, que fora tão
comum, transformara-me numa figura conhecida de todos. Não gostei disso, pois o fato
me traria problemas bastante difíceis.
Gmuna distribuiu cotoveladas, até que dois gigantes risonhos o seguraram pelos
braços. O estojo metálico, que poucos segundos antes se encontrara preso à minha pele,
já se achava no bolso externo de minha blusa. Seria fácil abrir o fecho magnético e tatear
até encontrar o defletor de ondas luminosas, um artefato achatado.
Quando Gmuna conseguiu respirar e alguns representantes da polícia comum
acudiram correndo, minha hora havia chegado.
Bem atrás de mim, ficava a parede de concreto na qual se abriam os poços dos
elevadores. Quase todos os estudantes que participavam da manifestação de protesto
estavam à minha frente. Teria de passar pelos poucos mantidos junto à parede sem que
estes o percebessem.
Aguardei calmamente até que Gmuna voltasse a soprar o apito. Apertei a chave do
instrumento para baixo.
De uma hora para outra o defletor de ondas luminosas tornou-me invisível aos olhos
comuns. Via tudo, mas para os outros desaparecera de uma hora para outra.
O campo de deflexão adaptava-se automaticamente aos contornos de meu corpo.
Dei mais três saltos para trás e passei por alguns estudantes enfurecidos. Foi quando
vi o rosto perplexo de Gmuna.
Há poucos segundos ainda era a própria encarnação da calma; mas agora sentia-me
tangido pelos acontecimentos. Evidentemente desencadeariam o alarma geral. Se ainda
me achasse no espaçoporto, a fuga seria impossível. Mas, na situação em que me
encontrava por certo conseguiria mergulhar no formigueiro da gigantesca Terrânia.
Contornei o compacto grupo de estudantes e vi algumas aberturas em meio à massa,
que me permitiram avançar mais um pouco.
Ouvi um trovão atrás de mim. Parei em meio ao salto e virei-me apressadamente.
Não era possível que Gmuna, tomado de pânico, estivesse atirando contra aquela gente.
Não, não estava atirando. Em compensação, o ar aquecido pelos raios do sol estava
entrecortado por dedos luminosos das forças atômicas liberadas.
Tombe Gmuna atirava para o alto, provocando a fuga desabalada dos estudantes
assustados. O jovem tenente do serviço de defesa sabia como agir numa emergência.
Esperava que a confusão me proporcionasse alguns minutos de vantagem. E agora
conseguira fazer-se ouvir com uma rapidez surpreendente, além do que emitira um sinal
de alarma inconfundível.
Reprimi uma praga, orientei-me ligeiramente e voltei a correr.
Cheguei ao grande portão que ficava junto à beira da cobertura antes dos grupos de
estudantes. Aqui começavam as faixas transportadoras que, apoiadas em elegantes
colunas de sustentação, passavam por cima de toda a cidade de Terrânia.
Perto de algumas moças que gritavam a plenos pulmões saltei para a fita de baixa
velocidade. Dali passei com alguns saltos rápidos para a via expressa que se deslocava a
cinqüenta quilômetros por hora. Em virtude da série de saltos precipitados, caí
pesadamente sobre o piso elástico. Continuei deitado, observando os arredores.
A fita movimentava-se a uma velocidade um tanto elevada. Afastava-me do foco dos
acontecimentos mais rapidamente do que Gmuna poderia gostar.
Antes de ser carregado para a curva ampla situada entre o edifício da academia e um
dos edifícios da administração, vi alguns helicópteros da polícia aérea surgirem
ruidosamente.
A grande caçada estava começando. Se conseguissem agarrar-me de novo, meu jogo
estaria perdido.
Tive o cuidado de não entrar em contato com as raras pessoas que se encontravam
sobre a fita transportadora. Escolhera este meio de fuga não tanto por sua rapidez, mas
principalmente porque oferecia uma garantia quase absoluta contra a descoberta.
Evidentemente os passageiros, que se valiam desse meio de transporte rápido, não se
moviam sobre o mesmo. Quem conseguisse colocar-se sobre a fita ficava parado, para
resistir à pressão do vento. Nem sequer se arriscava a utilizar a comunicação direta.
Logo depois, desliguei meu espírito. Que procurassem à vontade. Continuaria
invisível enquanto o microcarregador fornecesse energia.
Prestei muita atenção aos grandes painéis luminosos que avisavam os passageiros
com a necessária antecedência sobre o lugar onde deveriam sair da fita para encontrar
esta ou aquela estação.
Quando vi à grande distância a inscrição “Campo de Pouso”, modifiquei meu plano
original. Face à reação surpreendentemente rápida de Gmuna, a penetração na área do
grande espaçoporto, além de perigosa, seria inútil. Se estivesse no lugar de Kosnow, a
esta hora já teria emitido uma proibição geral de decolagem.
Passei pela ramificação. Meu destino era a grande estação ferroviária. Os grandes
comboios de longa distância raras vezes eram utilizados pelos viajantes. Não teria
dificuldade em encontrar lugar num vagão de carga.
Sentei, cruzei os braços por cima dos joelhos e ri alto e alegre para o vento.
A correnteza de ar era tépida. Refrescava muito pouco. A próxima chuva fora
anunciada para a noite seguinte.
Tirei o estojo do bolso e retirei o pequeno projetor mental. Era uma versão reduzida
da arma psicológica altamente eficiente, cujas emanações eliminavam o pensamento
consciente. O aparelho não era perigoso, nem prejudicava a saúde. Não pretendia matar
nem ferir esses bárbaros selvagens, mas tão bem-sucedidos, que habitavam o planeta
Terra.
Deram-me um tratamento decente. Uma moça de sua raça chegara mesmo a
apaixonar-se por mim. Por que não confiavam em mim? As coisas poderiam ser muito
mais simples e os riscos menores. Prometi a mim mesmo que depois de chegar a Árcon
nunca mencionaria a Terra, o Império Solar ou o nome de Perry Rhodan. Esta palavra de
honra foi dada a mim mesmo segundo o sagrado código de honra da frota espacial dos
arcônidas. Não poderia voltar atrás, mesmo que mais tarde viesse a desejá-lo. Decidi
justamente fazer esse juramento para evitar que fatores sentimentais posteriores
pudessem demover-me do meu intento. Estava indissoluvelmente ligado ao mesmo.
Livre da carga das auto-recriminações e com o pensamento voltado para Marlis
Gentner, preparei-me para saltar para a fita mais lenta. Precisava dar certo. Não poderia
esbarrar em ninguém.
Bem à minha frente vi, em letras luminosas menores, a expressão “Estação de
Carga”.
Por certo, a área também seria bloqueada, mas não com o mesmo cuidado do
aeroporto intercontinental. Em Terrânia, dificilmente havia alguém que usasse as
antiquadas vias férreas.
4

Minha fuga no trem de carga foi um verdadeiro martírio. Abri sem hesitar a porta de
correr de uma pesada locomotiva atômica, que recebera o sinal de partida no momento
em que estava chegando à estação. Pouco me importava a que lugar da Ásia ou da Europa
estaria destinado o trem. A única coisa que me interessava era sair de Terrânia quanto
antes, a fim de escapar à operação de busca em grande escala.
Exausto, escondi-me no transformador da gigantesca locomotiva, mas dez minutos
após a partida o trem foi detido. O serviço de defesa agira com uma rapidez inacreditável.
Dali em diante, comecei com o jogo arriscado. Os policiais empenhados na busca
sabiam que teriam de procurar uma criatura invisível. O problema seria praticamente
insolúvel pelos meios naturais. Por isso, o trem ficou parado durante duas horas em pleno
deserto, até que chegasse um comando especial com instrumentos de localização.
O lugar mais seguro para esconder-me continuava a ser o transformador, onde a
corrente de 30 mil volts gerada pelos reatores seria convertida para a voltagem com que
trabalhava a máquina.
Uma vez que me encontrava muito próximo aos trilhos condutores de energia, os
campos energéticos por eles gerados superavam bastante as débeis irradiações de meu
defletor de ondas luminosas. Face a isso, a localização energética seria impossível.
Acontece que tive de pagar por essa vantagem com um perigo constante para minha
vida. Saltitava entre os condutores reluzentes e, muito excitado, procurava calcular a que
distância poderia saltar um raio que transformaria meu corpo numa massa carbonizada.
Foram minutos terríveis. A sala de transformadores só foi submetida a uma busca
ligeira.
Depois que a composição partiu, percebi que avançava cada vez mais pelo desolado
deserto do Gobi Central. Os vagões de carga estavam vazios. Concluí que o trem se
destinava a um lugar em que os mesmos seriam carregados.
As horas foram passando. Desenvolvendo uma velocidade de 200 km/h, a
composição correu vertiginosamente pela China Ocidental, até que as montanhas do
maciço do Himalaia surgissem à nossa frente.
A máquina foi ocupada por dois maquinistas novos, mas isso não representou
qualquer alívio para mim. Preferi não influenciar os homens com o projetor mental para
conseguir ao menos um gole de água e um pouco de alimento. Se fossem examinados
pelos mutantes de Rhodan na estação de destino, o bloqueio hipnótico não deixaria de ser
constatado. E então já conheceriam o local aproximado em que eu poderia ser
encontrado.
Tive de suportar as horas que se seguiram num estado de esgotamento total.
Atravessamos várias cadeias montanhosas, até que chegamos à bacia gigantesca do rio
Bramaputra.
O segundo revezamento representou um risco enorme para mim, pois a máquina
voltou a ser revistada. Ao que parecia, novas ordens haviam chegado de Terrânia.
Quando finalmente entramos na grande estação de carga de Calcutá, cambaleei ao
tanque de água mais próximo, sem dar atenção aos riscos ligados a esse procedimento.
Dali em diante, o martírio foi diminuindo. No aeroporto da metrópole indiana,
descobri um transportador aéreo destinado a Tel-Aviv. Desta vez, vi-me obrigado a
influenciar o controlador com o projetor mental, pois dependia de sua cabine
pressurizada. Embora o aparelho desenvolvesse apenas seis vezes a velocidade do som,
voava a trinta quilômetros de altitude. Se permanecesse nos compartimentos de carga, eu
morreria sufocado.
Em Tel-Aviv, comecei a notar o enfraquecimento progressivo da capacidade da
bateria. Estava na hora de desligar o pequeno defletor de ondas luminosas.
Por isso, nem saí do aeroporto de Tel-Aviv. Procurei outra aeronave. Na cantina do
pessoal de superfície, pude saciar a fome que me martirizava.
Peguei um pequeno avião-transporte pertencente a uma empresa estatal de
lubrificantes e cheguei a Trípoli. Aí, encontrei o aparelho particular de um funcionário
libanês estacionado no aeroporto.
Quando o mesmo chegou num helicóptero de ligação, deduzi da palestra que travou
com o piloto que se encontrava numa viagem de serviço, pois era esperado em
Casablanca, onde participaria de uma conferência de técnicos de irrigação. Tratava-se da
construção de uma grande estação de recalque. O resto não me interessava. A cidade de
Casablanca, situada na costa ocidental da África, era um local muito favorável para a
realização do meu projeto.
Decolamos ao escurecer. Sentei bem ao lado do libanês, que ficou submetido
totalmente à influência do projetor mental. O piloto também reagira de acordo com os
meus desejos.
Recorri às abundantes provisões da dispensa de bordo do veículo de luxo para saciar
a fome e a sede e preparei-me para o próximo salto.
As transmissões de rádio e televisão relativas à minha fuga se sucediam. Limitei-me
a ouvir apenas o que os locutores oficiais tinham a dizer.
Nunca ouvira uma descrição tão exata de minha pessoa. A televisão terrana chegou
mesmo a transmitir séries inteiras de fotografias, com base nas quais até mesmo uma
pessoa quase cega conseguiria reconhecer-me.
Recorriam a todos os meios para procurar-me, mas do noticiário depreendia-se sem
a menor sombra de dúvida que haviam perdido minha pista. Agora felicitava-me pela
decisão de saltar sobre o trem de carga que partira naquele momento.
Provavelmente os matemáticos do serviço de defesa calcularam cada segundo. Se
não pudessem reconstituir exatamente meu roteiro de fuga, os dados finais não seriam
corretos. Por isso, a idéia do trem de carga não poderia ocorrer-lhes.
Os aparelhos de localização supereficientes produziram um resultado negativo. Ao
que tudo indicava, supunham que ainda me encontrava em Terrânia. Para mim, isso era
mais que conveniente.
— Pousaremos dentro de dez minutos, Sir — disse o piloto sem que ninguém lhe
perguntasse. Dera-lhe a ordem correspondente por via hipnótica.
Arrumei a cabine, guardei os mantimentos não consumidos e ordenei aos dois
homens que esquecessem minha presença.
Sob a luz fraca do projetor mental, vi que seus rostos se tornavam ainda mais
apáticos. Acabara de aplicar-lhes um poderoso bloqueio hipnótico.
O campo de pouso de Casablanca continuava mergulhado numa escuridão total.
Havíamos corrido pela noite. Passava pouco das duas horas da madrugada, bastante cedo
para que pudesse prosseguir na execução do meu projeto.
Poucas semanas atrás, quando fizera a primeira tentativa, escondera o traje
pressurizado de profundidade numa caverna da costa alcantilada. O local ficava perto da
cidade de Tanger, que poderia ser atingida antes do amanhecer.
Nosso piloto preparou o pouso. Vi-o girar os propulsores de radiações presos às
asas, dirigindo os fluxos de partículas para baixo.
Tocamos o chão suavemente, como se estivéssemos num helicóptero, deslizamos
alguns metros e paramos. Abri a porta, saltei e fechei-a atrás de mim, antes que o avião
começasse a deslizar novamente na pista.
Com alguns saltos, desapareci na escuridão. Pouco depois, descansei atrás de um
hangar em que não havia ninguém.
Bem longe dali o funcionário saiu de um pequeno aparelho. Vi que um carro o
esperava. Estava tudo em ordem.
Levei uma hora para descobrir um meio de prosseguir viagem. Uma pessoa do meu
tipo não recua diante da perspectiva de penetrar na cova do leão.
Aproximei-me furtivamente do helicóptero ligeiro da guarda costeira e esperei até
que os dois funcionários destacados para o patrulhamento aéreo aparecessem.
Quando entraram, já me encontrava no compartimento de carga. Depois da
decolagem, só levei alguns segundos para submetê-los à influência do projetor mental. O
enrijecimento de seus rostos demonstrava que já não possuíam vontade própria.
Esgueirei-me pela estreita porta e acomodei-me no banco traseiro.
O vôo levava-nos para o norte. Bem abaixo de nós, brilhavam as ondas brancas do
Atlântico Sul.
— Siga diretamente pela rota de Tanger — ordenei em voz lacônica. — Se sua
estação de controle fizer qualquer pergunta, diga que notou a presença de alguns veículos
expressos na via expressa litorânea, e que pretende revistá-los um por um. Entendido?
— Entendido, Sir — disse o piloto.
O tenente, que se encontrava a seu lado, olhava para a frente, com uma expressão
apática no rosto.
— Centro Blanca para patrulha seis, favor responder.
— Patrulha seis, tenente El Habid. Pode falar.
Quando ouvi o som do radiofone, estremeci. Se a tripulação recebesse ordens
definidas, que a obrigassem a sair da rota por mim desejada, a situação poderia
complicar-se.
— Atenção, patrulha seis — soou a voz forte vinda do alto-falante. — Voe pela linha
da costa e procure um iate ligeiro que segue a rota de Mechra el Hade. O nome da
embarcação é Almeria, e usa a bandeira espanhola. Controle a tripulação e procure
encontrar a pessoa que está sendo procurada. Desligo.
— Entendido, centro de Blanca. Seguiremos pela linha costeira. Desligo.
O oficial da patrulha aérea desligou. Examinei o reluzente mapa em relevo junto ao
painel de instrumentos.
A localidade de Mechra el Hade situava-se entre Casablanca e Tanger, bem na rota
que desejava seguir. Uma vez que a cidade de Tanger ficava apenas a cerca de 300
quilômetros em linha reta, poderia checar dentro de trinta minutos.
Transmiti minhas instruções ao piloto. O transformador do pequeno reator de fusão
que ficava atrás de mim começou a zumbir com mais força. O rotor, que corria em ponto
morto, produziu um matraquear superado pelo trovejar do propulsor de radiações
térmicas.
Voávamos a 600 km/h em direção ao lugar dos meus sonhos. Não houve nenhum
incidente, até que bem à nossa frente surgissem as luzes da grande cidade de Tanger.
Mandei que o piloto se dirigisse para a praia deserta situada entre Tanger e o
subúrbio de Arcila. Saí do aparelho ao sul da Via expressa litorânea.
Muito tenso, segui com os olhos a máquina que se afastava, até vê-la desaparecer na
escuridão. Era possível que viessem, a surgir complicações, se o chefe da patrulha não
conseguisse explicar por que resolvera voar até Tanger. Até lá teria que manter-me num
lugar onde em hipótese alguma pudesse ser encontrado.
Enquanto pensava assim, meu supercérebro transmitiu uma mensagem formada por
uma única idéia.
“Cansado, seu idiota!”
Era claro que estava cansado, mesmo exausto. Nos esconderijos em que me
encontrara até então, poucas vezes consegui dormir de verdade. Teria de passar o dia na
caverna bem camuflada e aguardar a noite seguinte para prosseguir na execução do meu
plano. Se o destino trabalhasse contra mim, os soldados da patrulha, por mim
influenciados, colocariam a defesa solar na minha pista. No momento, não sabia como
faria nesse caso para voar no meu traje especial pelo mar aberto até os Açores. Não se
devia subestimar a raça ativa dos terranos.
Cheguei ao esconderijo pouco antes do amanhecer. A caverna ficava no paredão
entrecortado e batido pelo sol. Ninguém conseguiria vê-lo de cima.
Verifiquei os equipamentos cuidadosamente guardados, bebi e comi alguma coisa e
deitei-me para dormir.
Meu traje pressurizado de profundidade estava em perfeita ordem, e também o
equipamento de vôo. Antes de mergulhar num sono pesado, entrecortado por sonhos
terríveis, voltei a refletir sobre meu projeto.
Ninguém sabia da existência de minha cúpula blindada, situada no fundo do mar. As
máquinas e instrumentos ali instalados permitiam uma transformação completa de minha
pessoa. Era um fator que o serviço de defesa não poderia incluir em seus planos.
Teria que descobrir um astronauta terrano que se assemelhasse a mim na estatura e
na expressão do rosto. Quando este homem se encontrasse na minha base, seria
relativamente fácil imitar seu corpo. Depois ocuparia seu lugar de tripulante num veículo
espacial destinado a Vênus.
Ao pensar no planeta Vênus, tive a impressão de ver Marlis Gentner à minha frente.
Disse que me esperaria em Port Vênus.
No grande espaçoporto do segundo planeta do sistema solar, costumavam ser
despachadas as naves intergalácticas. Ali talvez conseguisse encontrar um meio de viajar
para o sistema de Vega. Quando me encontrasse fora da área submetida à influência
imediata da Terra, encontraria um meio de prosseguir.
No sistema de Vega estavam estacionadas unidades da frota espacial solar. Sem
dúvida conseguiria apoderar-me de uma Gazela de velocidade superior à da luz, que me
levaria para casa.
Para casa! A idéia de Árcon, do Grande Árcon, me causou um calafrio. O que
poderia fazer se meu povo venerando realmente estivesse degenerado?
“Chamar Rhodan!”, disse meu supercérebro. “Voltar à Terra.”
Bastante contrariado, virei-me para o outro lado e fechei os olhos com força. O setor
lógico de meu ser poderia adivinhar à vontade. Se pretendesse voltar à Terra, seria
absurdo prosseguir na fuga.
***
A noite estava escura e não havia uma única estrela no céu. Regulei o aparelho de
absorção de gravidade para 0,1 por cento do valor terrano.
O campo energético pressurizado de alta potência de meu traje de profundidade
iluminou-se assim que entrou em contato com as águas escuras e encapeladas do
Atlântico.
Meu vôo decorrera sem o menor incidente. Mantive-me bem perto da superfície da
água, senão seria praticamente impossível localizar-me por meio de aparelho.
No momento em que mergulhei no mar, em algum ponto ao sul da ilha de São
Miguel, meu goniômetro registrou o impacto de impulsos de radar transmitidos em onda
curta, que provavelmente estariam sendo emitidos por uma aeronave que se deslocava em
grande altitude. Quando desapareci nas águas, o chiado agudo cessou.
Deixei-me baixar com uma força de 3 G, até que o fundo entrecortado do mar
surgisse embaixo de mim.
Aqui era tudo silêncio e solidão. Os únicos ruídos que perturbavam o ambiente
solene eram o zumbido do meu transformador e os estalidos agudos do projetor. A
pressão do vibrador de ondas me fez deslizar sobre as grandes reentrâncias do fosso dos
Açores, que começava neste ponto. Fiz a antena submarina emitir o primeiro sinal de
identificação.
Até então, a tripulação de robôs de minha cúpula mostrara-se infalível. E foi
também o que aconteceu desta vez. Depois de emitido o terceiro sinal, ouvi os sons
inconfundíveis dos raios vetores, que indicavam a direção exata. Dentro de poucos
minutos, descobri o fosso profundo em que estava escondida minha edificação de aço.
Desci, parei numa saliência da encosta e contemplei a montanha de lama que ocultava a
forma semi-esférica.
A luz infravermelha do meu holofote de capacete voltou a atrair os peixes de formas
bizarras que habitavam as águas profundas, e que desde longos tempos haviam sido meus
únicos amigos.
Esperei até que o raio energético deixasse livre a pequena comporta. A lama
levantada pela turbulência assentou devagar. Quando consegui enxergar um pouco
melhor, percorri as poucas centenas de metros que me separavam da escotilha aberta.
Antes de entrar na câmara da comporta, voltei a olhar em torno. Encontrava-me a
2.852 metros de profundidade. Aqui só poderia ser descoberto por um submarino, mas
estes não costumavam arriscar-se a entrar nas estreitas fendas do fundo do mar.
Há poucos meses alguém me havia confundido com um peixe. Hoje o fato parece
engraçado, mas na época foi uma experiência terrível.
Entrei na comporta, fechei a pesada escotilha blindada de aço arcônida e aguardei a
operação de esvaziamento. Acima de minha cabeça, as bombas potentes começaram a
trabalhar ruidosamente. Logo depois, a água altamente pressurizada foi recalcada para
fora da comporta.
O uivo produzido pelo ar que penetrava no recinto me fez fechar os olhos, muito
satisfeito. Só agora me encontrava em segurança. Só agora poderia realmente iniciar a
fuga.
O campo energético pressurizado, que me protegera contra a pressão da água, foi
desativado automaticamente. Uma luz forte penetrou pela escotilha interna que se abria.
Como sempre, o rosto de bioplástico de Rico exibia um sorriso gentil. Numa atitude
elegante e ágil, meu criado robotizado penetrou na comporta.
— Seja bem-vindo, senhor — disse a voz metálica, à qual não conseguíramos
conferir uma modulação humana.
O fato de subitamente ser chamado de senhor deixou-me emocionado. Tinha a
impressão de que de uma hora para outra penetrara num mundo diferente. E era isso
mesmo, conforme meu sexto sentido lógico avisou imediatamente.
Nessa cúpula dormira muitos anos. Era tão velha quanto boa parte da história da
Humanidade.
Estava prestes a revelar meu grande segredo perante minha própria mente, depois
que me mantivera calado por semanas a fio, suportando o martírio íntimo dos inquéritos
psicológicos.
Rico ajudou-me a tirar o desajeitado traje protetor.
— Cansado, senhor? — perguntou. A voz devia soar preocupada. Mas, mesmo
tratando-se de uma máquina de alta precisão, o robô não era capaz de dar expressão real a
esse tipo de emoção.
— Não — respondi em tom áspero.
Rico sorriu. Ninguém conseguiria ofendê-lo.
— Preparei um banho, senhor.
— Espere um pouco.
Com o corpo ereto desci pelo corredor estreito, tomei o elevador antigravitacional e
subi à cúpula abobadada. Parei diante da porta de aço pintada de vermelho.
Rico não disse mais nada. Calculara que estava dominado por emoções que um robô
não conseguiria compreender.
Atrás da porta vermelha ficava meu museu particular. Seu valor era muito superior
ao de um lugar destinado à guarda de objetos antigos. Até então só subira para lá quando
um estado de comoção psíquica me obrigasse a tanto.
Com as mãos, acionei a fechadura de impulsos. A escotilha abriu-se
silenciosamente. A luz indireta veio do teto.
A passos hesitantes penetrei na grande sala, separada por paredes internas.
Ali estavam depositadas as testemunhas mudas do meu passado, que tanto
interessariam a Allan D. Mercant e que simplesmente resolvi omitir.
Parei diante da grande espada afiada de ambos os lados, que pertencera a Carlos, o
Corajoso, da Borgonha. Num gesto pensativo, pesei-a com a mão. Certa noite, quando o
duque se encontrava na tenda de campanha, martirizado pelas dores, pedira-me que lhe
desse o golpe de misericórdia com essa arma.
Minha intenção era operá-lo, embora suas úlceras de estômago já se tivessem
transformado num câncer. No dia seguinte, Carlos, o Corajoso, tombou em combate. Vi
os confederados embriagados queimarem a tenda majestosa.
Prossegui, mergulhado em recordações. Não havia ninguém neste planeta que
estivesse tão bem informado sobre os inúmeros segredos do passado. E ninguém
conhecia melhor as falsificações da história. Não havia quem soubesse dizer tão bem
quanto eu por que o príncipe Eugênio conseguira infligir uma derrota tão fulminante aos
turcos.
O chapéu de Wallenstein com o penacho surgiu à minha frente. Bem ao lado do
mesmo estava o trabuco que Colombo disparara.
Mais adiante encontrei a armadura de Ricardo, Coração de Leão. Certa vez, dissera
que eu era seu vassalo mais fiel, e me prometera uma herdade na Inglaterra.
Sem querer, sorri ao descobrir a pequena luva de ferro. Joana d’Arc havia usado a
mesma quando juntos tomamos de assalto a fortaleza de Orleans.
Fui mergulhando no passado, à medida que andava pela sala repleta de objetos da
história. Sempre gostara de topar repentinamente com uma testemunha de tempos idos.
Não apreciava a ordem rigorosa. Preferia ser surpreendido.
Ali estava o canhão de tiro rápido, primitivo mas eficiente, que construíra
juntamente com Leonardo da Vinci. Considerava-o um homem muito importante, motivo
por que lhe ensinei uma porção de coisas.
Bem ao lado do mesmo, estava o Colt 44 da marinha, cuja coronha usara para abater
o assassino de Abraham Lincoln, infelizmente com um segundo de atraso.
Enquanto caminhava entre os objetos, parecia estar mergulhado num sonho.
De repente, Rico arrastou-me de volta para a realidade áspera.
— O cérebro o aguarda, senhor.
Caminhando na ponta dos pés, abandonei a sala do passado. Lá fora, junto da porta
vermelha, dei testemunho de mim mesmo.
Não; nunca fiz nada que pudesse prejudicar a Humanidade. Sempre me empenhei
em estimular seu desenvolvimento científico e tecnológico, que um dia a levaria a
dominar a navegação espacial.
Naquele tempo, já tinha o desejo de voltar para casa. Mas, quando um homem
chamado Perry Rhodan deu início à navegação espacial, fui idiota a ponto de fugir
apressadamente para minha fortaleza submarina, a fim de escapar a uma guerra nuclear
que não aconteceu. Dessa forma, dormi durante a fase mais importante da evolução dos
pequenos bárbaros.
Dali a dez minutos, vi-me diante da tela diagramada do computador robotizado da
cúpula, que aguardava minha programação.
— Preciso de uma construção semi-orgânica encerrada num corpo, que se pareça
com um esqueleto humano. Num exame de raios X, deverá ter o aspecto de um
verdadeiro homem. É necessário embutir refletores em forma de coração e pulmão, a fim
de transmitir a imagem perfeita do organismo humano. Será possível realizar uma
construção desse tipo?
O grande autômato começou a zumbir. Cinco gerações de técnicos haviam
trabalhado em sua construção.
— Solicito dados mais precisos, senhor — respondeu o computador.
Com esta resposta fiquei sabendo que minha própria excursão à superfície já não
correria o risco de transformar-se num fracasso em virtude da falta de uma simples
fotografia de raios X.
5

Nevada Space Port, era este o nome do maior espaçoporto dos dois continentes
americanos. Dali partiam as espaçonaves destinadas às luas e aos planetas do sistema
solar.
As enormes naves de longo curso, cujos hiperpropulsores lhes permitiam vencer os
anos-luz em poucos segundos, decolavam em noventa e nove por cento dos casos de um
espaçoporto ainda maior: Terrânia.
De qualquer maneira, os Nevada Fields, como também costumavam ser designados,
tinham sua história.
Foi dali que Perry Rhodan decolou em 19 de junho de 1.971, para realizar a primeira
viagem tripulada à Lua, onde viria a descobrir a tripulação de uma nave exploradora dos
arcônidas, que realizara um pouso de emergência.
Em atitude pensativa, contemplei o foguete original com o qual Rhodan arriscara, há
sessenta e nove anos, o grande salto. Pelo que diziam, antigamente a Stardust ficara
depositada no deserto de Gobi, até que Rhodan mandou levá-la ao lugar onde seus
primitivos propulsores atômicos rugiram pela primeira vez.
Não era o único que se encontrava no grande museu de astronáutica de Nevada
Fields: cerca de duzentos emigrantes deixariam a Terra com destino a Vênus.
Olhei discretamente em torno. Entrara em meio a um verdadeiro enxame de pessoas.
Depois das investigações cautelosas por mim realizadas, resolvi desistir da idéia primitiva
de “imitar” um piloto de nave espacial.
Seria muito difícil enganar os numerosos amigos e conhecidos de um homem desse
tipo. Lembrei-me dos colonos que diariamente partiam em direção ao espaço.
Aproximei-me de um indivíduo louro e robusto que, quando muito, contaria trinta e
oito anos de idade. Tinha a mesma compleição que eu. Uma investigação mais detida
revelou que era o sexto filho de um lavrador da Alemanha do Norte. Seu nome era
Hinrich Volkmar. Viera sozinho, depois de formular uma série de pedidos de licença para
emigrar.
Hinrich era meu objetivo. Naquele momento, encontrava-se em um profundo sono
biológico nas profundezas do mar, bem velado pelos meus robôs.
Ordenara a Rico que dali a um ano, o mais tardar, o acordasse e o largasse na
Espanha, depois de entregar-lhe pedras preciosas no valor de cem mil solares.
Além disso, elaborei um relatório escrito destinado a Perry Rhodan e ao Serviço
Solar de Segurança, que poderia ser apresentado por Hinrich, depois que o mesmo fosse
acordado.
Ninguém poderia acusar o jovem, uma vez que agira sob a influência de meu
projetor mental. Fizera tudo para que não tivesse maiores problemas, mesmo que eu
morresse de uma hora para outra.
Depois do interrogatório hipnótico realizado no interior de minha cúpula, armazenei
seus dados individuais em minha memória fotográfica. Além disso, tinha em mãos seus
documentos, inclusive a licença de emigração, que já me haviam permitido penetrar na
área reservada.
Não tivera de mascarar-me muito. Meus robôs especializados apenas realizaram
alguns transplantes de bioplástico e removeram a coloração avermelhada dos meus olhos.
De resto nada havia sido mudado em meu corpo. Meu inglês tinha a tonalidade de
um dialeto alemão, e meu comportamento era descontraído, franco e ingênuo, motivo por
que até então ninguém desconfiara de mim.
A bagagem de Hinrich consistia numa mochila elástica, que continha exatamente
cinqüenta quilos de objetos de uso pessoal. Era o máximo que os emigrantes poderiam
levar, para não sobrecarregar as naves. Pelo que dizia, no segundo planeta solar estava
tudo preparado para receber os colonos de Vênus.
Se minha idéia a respeito de Rhodan fosse correta, Perry realmente deveria ter
tomado todas as providências. No contrato de Hinrich, lia-se que o Império Solar lhe
forneceria gratuitamente uma área de cinqüenta hectares e as máquinas necessárias ao
desmatamento, ao preparo do solo e ao plantio.
Rhodan elaborara um programa social de alto alcance. A instalação de uma fazenda
em Vênus, realizada por um emigrante terrano, custava cerca de 150 mil solares ao
governo.
Há três dias transformara-se num homem jovem de cabelos louros, lábios risonhos e
uma grande saudade no coração. Queria sair para o espaço, dar as costas à mãe-terra e
dedicar-se ao trabalho, a fim de que um belo dia pudesse escrever aos seus: consegui;
estou procurando uma companheira para minha vida. Quanto dinheiro devo mandar?
Era assim que pensava o verdadeiro Hinrich Volkmar, e também era assim que
pensavam os outros emigrantes vindos de todos os quadrantes. A nave transportadora
deveria decolar ainda hoje.
Estávamos no dia 13 de julho de 2.040. Pude realizar um trabalho rápido, mas
meticuloso. Menos de trinta dias se haviam passado a partir de minha fuga de Terrânia. A
ação de busca ainda prosseguia.
Acontece que, ao que tudo indicava, haviam subestimado os meios de que dispunha.
Naquele momento, felicitava-me a mim mesmo pelo silêncio obstinado mantido até
então, e que impedira a descoberta da cúpula submarina.
Na opinião do serviço de defesa, devia ser totalmente impossível que o fugitivo
escapasse à rede armada para sua captura. E seria isso mesmo, se não possuísse os
aparelhos eficientíssimos, cuja existência era ignorada por meus perseguidores.
No momento em que cheguei a Nevada Fields, disfarçado em Hinrich, foi realizado
um exame de raios X. Qualquer pessoa só poderia penetrar na área reservada depois de
passar pelas objetivas.
Evidentemente recorriam a essa medida para neutralizar qualquer ação por mim
concebida. O esqueleto de bioplástico, destinado a enganar o médico sobre a verdadeira
constituição de minha ossatura, foi reconhecido como genuíno.
Dessa forma, a partir do dia 11 de julho de 2.040 portava o distintivo luminoso de
cerca de dez centímetros, no qual estavam gravados em relevo os dados relativos à minha
pessoa. Nos fios magnéticos embutidos, estava armazenada uma série de dados adicionais
bem codificados sob a forma de impulsos, relativos à minha pessoa e às provas por mim
realizadas. Estava tudo na mais perfeita ordem.
Recebi o número 211. A nave espacial que me levaria a Vênus juntamente com
outros colonos era a Glória. Estava guardada num edifício alongado, que os funcionários
do serviço de emigração, num acesso de humor feroz, haviam batizado com o nome de
casa dos cheiros. O odor penetrante dos desinfetantes, usados numa profusão exagerada,
impregnava minhas vestes, feitas de fio sintético resistente e confortável, mas pouco
vistoso.
Os colonos destinados a Vênus eram muito bem equipados, porém não se fazia
questão de que fossem elegantes. O trabalho frio do setor de colonização não tinha lugar
para ganhos extras.
Já conhecia a nave que me transportaria. Era um pequeno veículo esférico, de
apenas cinqüenta metros de diâmetro, pertencente à série planetária. Não possuía armas e
não estava equipada com propulsores que lhe permitissem desenvolver velocidade
superior à da luz. Destinava-se exclusivamente ao transporte entre os mundos do sistema
solar.
O vôo até Vênus duraria oito horas. Era um tempo bastante longo, ainda mais que as
poucas cabines destinadas aos emigrantes só continham filas de poltronas muito
apertadas. As camas ou outros tipos de instalações confortáveis foram dispensadas. Na
opinião das autoridades, qualquer pessoa poderia permanecer sentada durante oito horas.
A Glória, uma nave de mais de trinta anos, viajava constantemente entre Vênus e
Terra e vice-versa. Todo segundo dia de cada mês, decolava com uma carga humana
destinada a Vênus, além do quê, transportava boa quantidade de mercadorias de todas as
espécies.
Os tripulantes dessas naves não gozavam de prestígio muito elevado. Os astronautas
altamente qualificados dos veículos espaciais, que desenvolviam velocidade superior à da
luz, olhavam-nos de cima para baixo.
Os vaivens planetários ocupavam aproximadamente o mesmo lugar dos antigos
navios fluviais, que nunca se comparariam a uma embarcação de alto-mar.
Diverti-me a valer com a enfatização da diferença. Neste ponto, os terranos não
eram diferentes dos indivíduos de meu povo. E, há menos de noventa e nove anos, esses
bárbaros encantadores se rejubilaram de admiração quando um Perry Rhodan conseguiu
realizar o salto ridículo até a lua terrana. Não havia como negar que evoluíram muito
depressa. A essa altura, os homens que pilotavam as hipernaves de longo curso sentiam-
se indignados quando se encontravam com uma dessas lesmas planetárias. Esqueciam-se
completamente de que essas lesmas sempre percorriam o espaço a uma velocidade apenas
dez por cento inferior à da luz.
Ao meio-dia em ponto, fui ao grande refeitório coletivo, repleto de emigrantes que
riam e discutiam animadamente. Procurei um canto afastado, devorei um enorme bife
com vagens e batatas fritas e observei com cuidado os arredores.
Eram todos iguais, esses jovens para quem Vênus, o planeta das selvas, continuava a
ser um paraíso, apesar de todas as informações em contrário que deveriam ter recebido.
Vi famílias inteiras dispostas a arriscar o grande salto. Sonhavam com a aventura e a
riqueza, com a independência e com grandes festas na borda da mata.
Ainda não conheciam as picadas dos mosquitos venusianos nem os sáurios vorazes
que, com umas poucas pisadas, destruíam suas culturas. E não faziam uma idéia
adequada dos pequenos répteis venenosos e da temperatura de estufa reinante na
superfície do planeta.
Pelas 12:30 h os alto-falantes soaram.
— Colonos destinados a Vênus, vôo 118. Apresentem-se no portão sul. Levem a
bagagem e mantenham os documentos em suas mãos. Apressem-se.
Era uma chamada pouco convencional. Cerca de duzentas e cinqüenta pessoas
levantaram-se das cadeiras duras de plástico. Alguns correram diretamente para o portão
norte, onde os funcionários apáticos e os pilotos sorridentes lhes apontavam o caminho
correto.
Foi um berreiro e uma correria; até se tinha a impressão de que o mundo estava para
acabar. Resolvi entrar na confusão. Dali a alguns segundos, também estava gritando.
Devo portar-me como um emigrante, era este o meu lema.
Um comando da policia recebeu-nos sob o sol escaldante do verão.
O sol provocou-me uma sensação muito desagradável; nos homens do serviço de
segurança não foi tanto. Atrás deles, encontravam-se os caminhões com as grandes
plataformas de carga. Ao que tudo indicava, seríamos submetidos a outro controle antes
que nos levassem à nave transportadora.
As mulheres e crianças tiveram permissão para subir imediatamente aos carros.
Apenas os homens enfileiraram-se para esperar. Encontrava-me no meio da fila formada
por emigrantes nervosos. Os homens gritavam de impaciência. Tudo iria recomeçar.
Meu equipamento especial, um volume muito reduzido, fora escondido bem nos
fundos da mochila padronizada. Ainda que me obrigassem a abri-la, teriam que procurar
muito para encontrar alguma coisa. Até mesmo o precioso ativador celular fora retirado
juntamente com a corrente. Não poderia demorar muito em pendurá-lo ao pescoço, pois
do contrário haveria problemas.
— O que houve? — perguntou um homem baixo e moreno. Virei-me e dei de
ombros.
Era um mexicano, que queria fugir da Terra com sua família de cinco pessoas. Seu
nome era Miguel Hosta. Não era a primeira vez que nos encontrávamos. Talvez fosse
recomendável entreter uma conversa com esse terrano cheio de vida.
— Não faço a menor idéia — disse com uma risada. — Apenas sei que não deixarei
que me mandem de volta. Pelo que dizem, há pouco tempo retiraram alguém da nave,
pouco antes da decolagem. O sujeito tinha um pouco de febre.
— Santo Deus! — gemeu o moreno num assomo de desespero. — Acho que
também estou com febre. Será que vão medir?
Os homens que se encontravam à minha frente e atrás de mim soltaram uma
gargalhada. As piadas e observações dirigidas ao policial que realizava o exame
tornavam-se mordazes, à medida que nos aproximávamos da mesa improvisada.
O que mais me incomodava era o aparelho de raios X sobre rodas que, segundo tudo
indicava, realizava um exame “automático” de cada emigrante. Ao lado da respectiva
tela, havia um médico do serviço de defesa. Assim que fazia um movimento relaxado
com a mão, o colono que acabara de ser submetido ao controle poderia dirigir-se ao carro.
Evidentemente o pretenso exame médico era um absurdo. Não havia mais nenhuma lista
a elaborar.
Estavam procurando um almirante arcônida que evidentemente não poderia ser
dotado de um esqueleto humano.
Meus olhos começaram a ficar úmidos, o que provava meu nervosismo. Se o médico
que se encontrava junto ao aparelho prestasse muita atenção, talvez pudesse notar a
diferença mínima no reflexo dos órgãos embutidos em meu corpo.
“Conserve a calma!”, disse meu sexto sentido. Naquele momento, cheguei a odiar o
setor de lógica do meu cérebro.
O homem à minha frente era um terrano gigantesco do Estado Federal da África.
Colocou-se diante do aparelho com as pernas bem abertas, abriu a blusa, na altura do
peito e pôs o dedo sobre o coração.
— Aqui, soldados! — berrou a plenos pulmões.
O médico estremeceu, enquanto um sorriso largo cobriu o rosto do tenente sentado
atrás da mesa. E eu perguntei-me se aquele rapaz de pele escura já teria ouvido falar nos
onze oficiais de Schill fuzilados pelos soldados de Napoleão.
O médico fez um gesto para que se calasse. O gigante, que ria às gargalhadas, correu
em direção ao carro. Depois chegou minha vez.
— O atestado de vacina, por favor — disse o funcionário com a voz cansada.
Quando levantou os olhos, acordou de um instante para o outro. Pôs a mão na arma.
Lançou-me um olhar penetrante. Mas finalmente uma expressão de insegurança
surgiu em seus olhos; virou-se para seus soldados.
— Nome? — perguntou em tom áspero.
Lancei-lhe um olhar ingênuo.
— Hinrich Volkmar, senhor tenente — respondi em voz trovejante. — Sou filho de
Pieter Volkmar, inspetor de diques.
O jovem oficial voltou a sentar. Sem dizer uma palavra apontou com o polegar em
direção ao aparelho de raios X. Sabia perfeitamente que minha radiografia já fora tirada.
— É uma semelhança surpreendente, Sir — disse um dos soldados em tom
apressado.
Coloquei-me diante da tela e tirei a mochila. Desta vez o médico examinou com
maior atenção a imagem projetada pelo aparelho.
— Aí estão as costelas, Tommey; não existe a menor dúvida — disse com a garganta
ressequida. — Vamos acabar logo com isto, senão terei uma insolação.
Ainda bem que o homem sofria tanto com o calor. Não havia examinado a
radioscopia com a atenção devida.
O tenente lançou mais um olhar perscrutador para minha pessoa, mas, por fim,
soltou um suspiro e colocou o carimbo no formulário.
— Aqui. Leve isto e guarde bem. O senhor se parece com uma pessoa com a qual
gostaríamos de ter uma conversa. Vamos logo; o próximo.
Esperei pelo pequeno mexicano, que se sentiu muito satisfeito por passar pelo
exame.
O terrano de pele negra puxou-nos para cima da plataforma do veículo. Dirigindo-se
a mim, riu e exclamou:
— Ei, o que queriam de você, meu caro? Venha para junto do meu coração.
Ao que parecia, o gigante parecia preocupar-se constantemente com o coração.
Apertou-me nos braços e empurrou-me para um lugar vazio. Miguel Hosta espremeu-se
para caber a meu lado.
“São uns sujeitos formidáveis!”, disse meu sexto sentido. Desta vez, concordei com
o setor lógico de minha mente. Com gente desse tipo, Rhodan poderia perfeitamente
construir um império estelar.
— Ainda tenho dois tabletes de chocolate no bolso — disse. — Alguém quer um
pedaço? Perdi o apetite. Estão procurando uma pessoa que se parece comigo.
Miguel recusou com um gesto de horror. O homem de pele escura, cujo nome era
Embros Tcheda, aceitou. Sorriu e disse:
— Quer saber de uma coisa, meu caro? Isso não devia preocupá-lo. Quando
estivermos em Vênus, começaremos vida nova. Você entende de economia agrícola? O
que pretende plantar?
— Ainda não resolvi. Entendo de EA. Você não?
Embros fez um gesto negativo e uma careta.
— Muito bem; nesse caso devíamos tornar-nos vizinhos — disse. — Não consigo
lidar com as bactérias do solo. Você entende do assunto?
— Em bactérias, sou um cobra. Farei as análises e você dirá o que devemos plantar.
Tive de esforçar-me para resistir ao seu vigoroso aperto de mão. Naquele momento,
indaguei a mim mesmo por que estava arriscando a vida para chegar em casa.
Nas veias dessa raça humana jovem corria sangue arcônida. Eu mesmo autorizara
vários casamentos entre meus subordinados e mulheres terranas. Afinal, onde era meu
lar?
6

Port Vênus era uma cidade supermoderna, cuja arquitetura adaptava-se às


exigências desse mundo escaldante fustigado pelas tormentas.
A rotação de Vênus em tomo de seu eixo polar era bastante lenta. A extensa zona de
penumbra, que ficava no limite entre a face diurna e a noturna, sofria constantemente os
efeitos de terríveis furacões. Nos momentos em que as povoações humanas se
encontravam na zona de turbulência, as ruas transformavam-se em tubos de compressão,
nos quais as fúrias desencadeadas tocavam um concerto infernal.
Não era nada simples morar nesse planeta, quanto mais estabelecer-se
comercialmente. Quando a camada de nuvens do segundo mundo solar se abria para
despejar a chuva, a água descia abruptamente, como se estivesse sendo despejada por
baldes. Quem não encontrasse imediatamente uma elevação poderia ser arrastado nas
torrentes.
Port Vênus ficava num extenso platô de rocha, situado na costa elevada do oceano
equatorial, Era nessa área que talvez se localizasse o centro de computação que meu povo
construíra há muito tempo no planeta Vênus.
Rhodan apossara-se da gigantesca máquina e controlava-lhe o funcionamento,
embora de direito isso não lhe coubesse.
Naquele momento, estaria disposto a conceder-lhe autorização a posteriori. Afinal,
fizera alguma coisa naquele mundo selvático.
Cerca de oitocentos metros abaixo do platô começava a mata escaldante e infestada
de febres. Não era de surpreender que o Instituto de Doenças Cósmicas Infecciosas,
ocupasse o maior e o mais importante dos edifícios da cidade. Aqui se travava uma luta
encarniçada contra a natureza poderosa e cruel.
Quase todas as semanas descobriam-se doenças novas, ainda desconhecidas, e
geralmente contagiosas. Os colonos vindos comigo haviam recebido mais de trinta
vacinas antes de partirem da Terra.
Minha imunidade era quase completa, pois abastecera-me com os soros arcônidas.
Fazia cinco dias que a Glória penetrara na densa atmosfera venusiana, com os jatos
chamejantes. O espaçoporto de Port Vênus ficava a apenas cinqüenta metros acima do
nível do mar. Esse dado nos revelou desde logo as verdadeiras condições reinantes em
Vênus.
Embros Tcheda, que fez questão de ser o primeiro a sair da nave, por pouco não
morre afogado nas torrentes de água despejadas do céu. Dentro de poucos segundos, o
extenso espaçoporto assumiu o aspecto de um rio caudaloso.
Com grande dificuldade conseguimos agarrar Embros. As águas turbilhonantes
quase o arrastaram para perto dos jatos incandescentes de uma nave de longo curso que
estava de partida.
Foi esta a primeira má impressão. Dali a dez minutos, o céu assumiu o aspecto
“límpido” que era uma característica de Vênus. Raras vezes a camada de nuvens
compactas permitia que se visse o sol.
Os vapores quentes, que subiam das placas de plástico blindado do revestimento do
espaçoporto, deixavam os homens deprimidos. Até parecia que nos encontrávamos numa
grande lavanderia.
Quando saímos da comporta constatamos que a temperatura era de exatamente 53,4
graus centígrados. Embora as pessoas que se encontravam ali fossem superselecionadas e
tivessem passado por centenas de testes, duas mulheres ficaram inconscientes. O calor era
suportável, mas não o elevado teor de umidade do ar. Era ele que tornava o clima
mortífero.
Na linha do horizonte, via-se a mata virgem. Já a conhecia de tempos idos, por isso
não me envolvi nas mesmas ilusões dos colonos.
Dali a duas horas, uma frota de potentes helicópteros levou-nos a Port Vênus. A
cidade ficava 850 metros acima do nível do mar. Acontece que o extenso platô de rocha
onde fora construída não oferecia espaço para o porto espacial.
O exame dos nossos documentos foi uma cerimônia enervante. Altos funcionários e
oficiais da selva disseram palavras que ora pareciam patéticas, ora duras. Falava-se
constantemente em doenças, feras, répteis venenosos, preparo do solo e condições
climáticas. Meus amigos vindos pela velha Glória nem sabiam o que os esperava.
Hoje recebi licença pela primeira vez. Logo após a minha chegada escrevera
algumas linhas, confiando-as ao correio de Vênus que, segundo tudo indicava,
funcionava muito bem.
Por uma questão de cautela, expedi a carta para a posta-restante. Se Marlis Gentner
já tivesse chegado, provavelmente iria todos os dias à agência dos correios.
Fiquei numa espera ansiosa até poucas horas atrás, quando a notícia me foi entregue
em mãos.
Meu velho amigo Gunter Viesspahn, que chegara a Vênus antes de mim, convidou-
me para dar um giro em Port Vênus.
No momento em que a carta me foi entregue, um sargento do serviço de segurança
pediu esclarecimento sobre a origem da ligação.
Mostrei-lhe a carta. Minha explicação, que falava num amigo de escola, revelara-se
bem plausível. Era bem possível que, por aqui, houvesse um conhecido que imigrara
antes de mim.
Encontrava-me no monotrilho que ligava a sede da administração do espaçoporto
com o centro da cidade. Mesmo com o aparelho de ar condicionado funcionando
perfeitamente, comecei a transpirar. O esqueleto de bioplástico colado à pele atrapalhava
a transpiração. Já estava na hora de livrar-me desse produto de minha oficina robotizada
pois não voltaria a ser submetido a um exame de raios X.
Meu sexto sentido prevenia-me sempre quanto ao sargento excessivamente curioso
do serviço de segurança. Por que teria demonstrado tamanho interesse por uma carta
inofensiva?
Teria de descobrir quanto antes se a operação de busca que visava minha pessoa
também se estendia a Vênus. Era bem possível que, após a decolagem da Glória, o oficial
incumbido do controle em Nevada Space Port ainda andasse desconfiado. Talvez tivesse
expedido um aviso pelo rádio.
Interrompi minhas reflexões angustiantes. Se Marlis houvesse realizado um trabalho
bem feito, não teria motivo para preocupações. Poderia ir para a selva, como colono, a
fim de aguardar uma oportunidade favorável para a fuga. Talvez conseguisse encontrar
em Vênus uma Gazela capaz de desenvolver velocidade superior à da luz, e esta me
levaria ao sistema de Árcon. O raio de ação dos modelos mais recentes desse tipo de nave
era limitado exclusivamente pela necessidade de revisão periódica dos propulsores.
Saí do metrô, subindo pela escada rolante. Poucas vezes, vira reunidos no mesmo
lugar terranos com vestes tão diferentes.
A Praça Tomisenkow, cujo nome homenageava um comandante russo de divisão que
há muitos anos procurara conquistar o planeta para sua pátria, era o centro de Port Vênus.
Aqui situavam-se os edifícios amplos e resistentes que abrigavam o governo
colonial venusiano. A rua Nova Iorque praticamente dividia a cidade. Nela ficavam os
escritórios e as lojas.
Neste mundo quente e úmido, podia-se comprar qualquer coisa. Por muito tempo
acreditara-se que sua atmosfera não continha oxigênio. Todavia, conseguia-se respirar
muito bem no segundo planeta solar, que parecia esconder-se da estrela-mãe sob uma
espessa camada de nuvens.
Junto à plataforma houve uma confusão. Dois sujeitos barbudos e pálidos, que há
anos não viam um raio de sol, brigavam por uma questão fútil.
A intervenção dos policiais, que acorreram imediatamente, foi bastante rude.
Ameaçaram com os fuzis de choques elétricos e fizeram dois disparos de advertência
para o alto. Os dois elementos logo se acalmaram.
Os habitantes do planeta pareciam ser rudes; era uma população pioneira, que sabia
lidar com as armas. Vi muitos colonos caminharem pelas ruas com os radiadores
energéticos a tiracolo. Ao lembrar-me do ambiente hostil que ameaçava a cidade,
compreendi por que os visitantes andavam tão bem armados.
Peguei um táxi de modelo antigo movido a turbina de gás, que me tirou da confusão,
levando-me para uma área mais tranqüila. Procurei gravar as ruas que atravessamos antes
de pararmos diante do edifício imponente do Museu Terrano.
Ao descer, apalpei os objetos que compunham meu equipamento especial.
Carregava tudo aquilo que antes escondera com tamanho cuidado. Se fosse obrigado a
fugir, não poderia voltar aos alojamentos de imigrantes.
Seria perigoso carregar as armas. Ainda não havia recebido o respectivo porte.
O ativador celular, imprescindível à minha vida, estava pendurado ao peito. Por
dentro do traje pouco elegante usado pelos colonos, levava o potente defletor de raios
luminosos, que era do tipo cujo funcionamento dependia do microcarregador.
Meu projetor mental tinha um alcance de dois quilômetros. Guardei a arma
psicológica em forma de bastão no bolso direito da calça.
Paguei e saí do carro. Caminhei lentamente em direção às pesadas portas blindadas
de plástico de aço do museu. Era ali que meu velho amigo iria esperar-me.
Inúmeras pessoas saíam e entravam incessantemente. Notei muitos colonos cujas
vestes grosseiras de fibra sintética os distinguiam dos trajes bem mais elegantes dos
funcionários da instituição.
Dois policiais em posição descontraída guardavam a larga porta de entrada. Ao
passar por eles, ouvi uma risadinha.
— Ei, calouro, já está com saudades da Terra?
Virei-me e fitei os homens que riam de mim. Usavam pesados fuzis de choque e
grandes capacetes de rádio. Ao que parecia, mantinham contato ininterrupto com a
central.
Calouro era o nome pelo qual me haviam chamado. Era o apelido dos colonos
recém-chegados.
— Aqui sempre faz tanto calor? — perguntei com a voz queixosa.
Sua risada tornou-se mais forte. Calei-me e prossegui sem dizer mais uma palavra.
Subitamente vi um homem de cabelo preto e barba ondulante. Usava roupa de colono e
um radiador energético de aspecto atemorizante.
Reconheceu-me imediatamente. Entre os fios da barba hirsuta surgiu a boca. Gritou
expressando contentamento.
Senti-me abalado. Marlis me mandara um sujeito um tanto maluco.
Bateu com tanta força nos meus ombros que, por vários dias, o local ficou dolorido.
Além disso, aquela fúria em pessoa gritou nomes carinhosos e felicitações chorosas ao
meu ouvido, e isso com tamanha força que tive medo de ficar surdo.
— Sou Gunter Viesspahn — disse em voz baixa entre dois gritos. — Vamos logo;
temos que dar o fora.
Segurou-me pelo braço e saiu cantando a plenos pulmões.
— Abram caminho, seus vermes ordinários da cidade; não estão vendo que um
homem quer passar? — gritou meu novo amigo para os policiais.
Estes deram uma resposta impublicável. O tom que se usava por ali era terrível.
Senti-me apavorado, mas logo me lembrei de que isso constituía uma das características
de um jovem planeta colonial.
O barbudo arrastou-me para dentro do museu em cujo subterrâneo, segundo dizia,
havia um restaurante no qual a temperatura seria bastante agradável.
— Desconfiaram de você? — perguntou em voz baixa.
— Não sei. Leram sua carta. Não tive outra alternativa — respondi em tom
apressado.
— Isso é mau, meu filho. O que contou aos espias?
Ficou satisfeito com minha explicação. Orientara-me pelas indicações disfarçadas
que lera entre as linhas. De acordo com as mesmas Gunter Viesspahn chegara a Vênus há
dois anos. Era da Frísia, onde nos conhecêramos há algum tempo.
No local reinava uma temperatura agradável. Porém não passava de uma terrível
espelunca cheia de colonos, que se divertiam contando bravatas. Não me senti à vontade.
— Vamos tomar um purly e dar o fora — disse Viesspahn. — Não olhe tão
desconfiado. Está tudo em ordem. Marlis está à sua espera. Tomamos todas as
precauções.
Não tinha muita certeza disso. Essa gente não conhecia a defesa solar. Fiz uma
pergunta lacônica:
— Alguém sabe que você conhece Marlis?
— Ora essa! — disse com uma risada. — Acontece que Marlis é minha irmã.
Vi as maiores complicações aproximarem-se ainda mais de mim.
Em Terrânia havia uma Divisão de Logística que contava com as cabeças mais
inteligentes e os computadores mais eficientes do Universo.
Marlis era uma das estudantes que me haviam visto no dia da fuga. Não havia a
menor dúvida de que o serviço de defesa já teria verificado quem se encontrava perto de
mim quando surgiu a confusão no auditório. Marlis foi uma delas. Depois interrompeu os
estudos e voltou para Vênus. Era uma das pessoas que defendiam os direitos daquele
planeta e, durante as discussões, dissera publicamente que em sua opinião minha prisão
representava uma indignidade.
Grande pista... e o general Kosnow não deixaria de percebê-la!
Após isso, em Nevada Fields suspeitou-se de um homem louro, mas verificou-se
que o mesmo possuía esqueleto humano. E junto a esses pequenos elementos de suspeita
ainda existia outro: após chegar a Vênus esse homem escreveu uma carta e recebeu
resposta.
Se fizessem uma investigação para apurar se dois colonos chamados Volkmar e
Viesspahn se conheciam na Terra, o resultado só poderia ser negativo.
A tudo isso, ainda acrescia que um irmão da estudante Marlis Gentner me esperara.
Se esses elementos fossem concatenados, o serviço de defesa de Rhodan desferiria seu
golpe dentro de uma hora.
Meu instinto me disse que já estava sendo esperado nos alojamentos dos imigrantes.
Em hipótese alguma, deveria voltar para lá. Meu esqueleto de bioplástico não resistiria a
um exame médico minucioso.
Lembrei-me dos policiais equipados com rádio de capacete. Será que na Central de
Defesa de Vênus já sabiam que me encontrara com Viesspahn? Alguém me teria
observado enquanto me dirigia ao museu? Em caso afirmativo, por que não fora detido?
“Antes de mais nada procure descobrir seus elementos de ligação”, disse meu sexto
sentido. “Talvez ainda poderão ajudá-lo.”
Era isso mesmo! A cada segundo que passava meu nervosismo crescia. Pedi que
saíssemos imediatamente do local.
— Bobagem! — disse o barbudo em tom indignado. — Quando dois velhos
conhecidos se encontram em Vênus, a primeira coisa que fazem é procurar o bar mais
próximo. Aqui é um ponto de encontro dos colonos, uma vez que os mesmos costumam
freqüentar vez por outra o museu terrano. Acho que ninguém o seguiu, não é?
Fitou-me com uma expressão de contrariedade. Sacudi a cabeça e beberiquei o
líquido forte.
— Então, por que tanta preocupação? — disse Gunter em tom tranqüilizador. —
Afinal, o que foi que você andou fazendo? Marlis não disse uma palavra.
Apontou para baixo, como se a Terra ficasse bem a seus pés.
— Isso não importa — respondi.
— Importa, sim. Afinal, se você estiver envolvido em algo muito grave, estarei
arriscando o pescoço. O amor fraternal não pode ir tão longe, não acha? Ao que parece,
Marlis anda louquinha por você.
Mais uma vez a desconfiança começou a brilhar em seus olhos escuros.
— Onde você nasceu? — perguntei.
Meus piores receios confirmaram-se. Gunter Viesspahn era um venusiano genuíno, e
eu dissera a um sargento que havíamos sido colegas de escola na Terra.
Desesperado, cerrei os olhos. Marlis, por onde andava sua inteligência? Você errou
desde o começo.
Mas tive o cuidado de não deixar o barbudo ainda mais irritado. No momento em
que acreditasse estar numa situação de perigo real, bateria em retirada. E eu não poderia
dispensar as ligações. Minha observação cautelosa sobre nossa velha amizade apenas o
fez dar de ombros.
— E daí? Como poderiam saber. Você viajou com documentos falsos, não viajou?
— Naturalmente. Mas existem alguns aspectos que vocês...
— Bobagem! Arranjaremos tudo. Você irá à minha fazenda, localizada no rio
Hondo, quinze quilômetros acima das cataratas de Marshall. Lá o rio se precipita numa
profundidade de cinco quilômetros, e sua largura também é esta. Um quadro
inesquecível! Trata-se de uma excelente região, que fica a pouco mais de duzentos
quilômetros ao norte de Port Vênus. Ali poderá estar tranqüilo até que Marlis descubra
uma nave para você.
Esta explicação quase me fez desistir da fuga. Se a moça fora imprudente a ponto de
revelar a seu irmão minhas ligações com o sistema de Vega, poderia entregar os pontos.
De uma hora para outra, modifiquei meus planos. Seria inútil continuar a esperar por
uma hipernave destinada a Vega. Tentaria sair da cidade quanto antes.
Pus a mão no bolso e tirei uma grande pérola. Os olhos de meu interlocutor
começaram a brilhar. Sabia quanto valia o tesouro que tinha na mão. As pérolas eram
uma das raras coisas preciosas que não podiam ser produzidas sinteticamente.
— Isto aqui é uma pérola legítima, no valor de cinco mil solares — disse com uma
calma enfática. — Preste atenção, meu caro. Você descreverá exatamente o lugar em que
Marlis está esperando por mim. Irei até lá sozinho. Enquanto isso você pegará seu avião...
você tem avião, não tem?
— É claro que sim; todo mundo tem.
— Muito bem. Você pegará seu avião e irá a algum lugar onde seja fácil encontrá-lo.
Uma vez lá, esperará por mim. Não quero que sejamos vistos com Marlis.
Fez algumas objeções, mas não pôde resistir à tentação da pérola. Acabou
descrevendo exatamente um lugar bem afastado, situado na periferia da cidade, onde um
amigo seu possuía um pequeno bar. Não seria difícil chegar lá.
A essa hora, só estava interessado em conservar Gunter Viesspahn, para poder
recorrer a ele se precisasse. Para fazer isso, teria que despedir-me dele em público. Talvez
o deixassem em paz.
Deu-me o endereço de Marlis. A moça esperava por mim em casa de uma velha tia,
cujo finado marido fora dono de uma casa de armas. Atualmente o negócio era dirigido
pela idosa dama que, segundo diziam, era muito enérgica. Marlis fora criada pelo tio.
Seus pais haviam morrido na selva muitos anos atrás.
Paguei a conta. Uma vez fora do museu, olhei cautelosamente em torno. Os dois
policiais continuavam no mesmo lugar, mas não receberam reforços. Mas isso não
significava nada nessa época de comunicações pelo rádio.
Despedi-me de meu velho amigo em voz alta, mas sem chamar a atenção. Disse que
voltaria aos alojamentos dos imigrantes.
Formulou várias objeções, até que o táxi por mim chamado parou à nossa frente. Os
dois policiais pareciam não nos dar maior atenção.
Entrei no carro, que era de construção moderna. Antes de fechar a porta, disse em
voz alta ao motorista para onde deveria levar-me.
Alguém devia ter ouvido. O carro deu partida. Gunter Viesspahn dirigiu-se ao
heliporto do museu.
Uma vez dobrada a primeira esquina, que me colocou fora das vistas dos guardas,
comecei a agir. Seria absurdo continuar a depender da sorte.
Apertei o botão do defletor de ondas luminosas e tornei-me invisível. Antes que o
motorista percebesse qualquer coisa, foi atingido pelo feixe de raios do projetor mental.
Sua postura tornou-se mais rígida.
— Dobre a primeira esquina, pare e laça de conta que está aborrecido porque seu
passageiro desapareceu de repente. Abra todas as portas e pergunte às pessoas que
estiverem por lá se viram alguém saltar pela porta traseira.
— Sim senhor — respondeu o motorista em tom indiferente.
Abri a porta e deixei-a balançar. O motorista parou antes do primeiro cruzamento e
começou o jogo que poderia custar-me o pescoço.
Correu em torno de seu carro, olhou para o interior vazio do mesmo e perguntou às
pessoas que riam a bandeiras despregadas se haviam visto o patife que saíra sem pagar a
corrida.
Enquanto isso saí do veículo e, sem provocar o menor ruído, subi sobre a carroçaria
do mesmo, onde fiquei deitado.
Poucos segundos depois, aconteceu aquilo que eu esperara. Um veículo preto e
muito moderno, usando campos deslizantes antigravitacionais no lugar das rodas
antiquadas, parou ao lado do táxi. Dois homens saltaram do mesmo e exibiram distintivos
reluzentes ao motorista.
Quer dizer que fora perseguido! O joguinho de Marlis, tão bem intencionado mas
tão mal executado, já fora desmascarado. A defesa solar voltara a agir.
O interrogatório do motorista foi muito rápido. Os dois homens apalparam todos os
ângulos dos bancos. Fiquei sabendo que esperavam ter de lidar com uma pessoa invisível.
Quando se despediram, deixando o exaltado dono de táxi a sós na rua, voltei a entrar
no veículo.
Sentindo-me livre do pesadelo, ordenei ao motorista que se dirigisse à rua Tóquio,
que ficava na parte antiga da cidade. Assim que chegamos perto do destino, saí do táxi,
depois de ter ordenado ao motorista que se dirigisse ao ponto de estacionamento mais
próximo e esquecesse tudo.
Comecei a caminhar sob a proteção do campo defletor. A pequena casa de armas da
velha senhora Gentner não podia ficar longe.
“Seu idiota!”, disse meu sexto sentido, conforme costumava fazer sempre que estava
prestes a cometer uma asneira.
Era claro que Marlis já havia sido descoberta. Provavelmente fora interrogada na
Terra por um dos telepatas do Exército de Mutantes de Rhodan. Talvez já tivessem até
descoberto que a moça me entregara meu equipamento especial que mantive por tanto
tempo escondido.
Rhodan, que já devia encontrar-se na Terra, não interviera. Eu conhecia o curso do
raciocínio desse homem extraordinariamente inteligente.
Marlis não sabia como e quando pretendia chegar a Vênus. Sentia-me feliz porque
no momento em que encetara a fuga eu mesmo ainda não sabia.
Por isso, Rhodan só tinha uma. coisa a fazer: esperar. Naquele momento, já poderia
ter sido informado pelo rádio de que o suspeito desaparecera de repente de um táxi.
Parei num portão e pus-me a refletir. Não; não fora totalmente inútil chegar a Vênus
em condições tão difíceis. Aqui seria mais fácil desaparecer que na Terra densamente
povoada com sua estonteante rede de transportes e comunicações. A selva de Vênus era
grande e misteriosa. Além disso, conhecia os perigos que me aguardavam lá fora.
A informação do setor lógico de minha mente, segundo a qual Rhodan só não me
prendera porque esperava que eu o levasse aos meus elementos de ligação também fora
errônea.
Era exatamente o contrário. Dispunha de provas suficientes contra Marlis Gentner,
talvez mesmo contra seu irmão. Talvez, o barbudo já estivesse sendo interrogado por um
mutante.
Rhodan apenas aguardara até que Marlis recebesse uma carta pela posta-restante.
Com isso, as pedras começaram a encaixar-se.
Uma vez que usei o pseudônimo, o serviço de defesa não conseguiu apurar desde
logo quem fora o remetente. Mesmo a correspondência que me fora dirigida por Gunter
Viesspahn ainda poderia ser considerada inofensiva, pois muitos dos colonos recém-
chegados costumavam receber cartas.
De qualquer maneira, se eu fosse Rhodan, teria agido imediatamente. Fiquei
refletindo a este respeito, até que a idéia certa me ocorreu. Se o oficial de Nevada Fields
ainda não tivesse avisado nada, eu mesmo entrara na armadilha. Ninguém sabia quem
chegara a Vênus sob o disfarce de Hinrich Volkmar. Só o encontro com o irmão de Marlis
havia colocado o serviço de defesa na minha pista.
Se o barbudo já estivesse sob observação, as coisas teriam sido bem mais fáceis para
os homens de Rhodan. E muito me admiraria se já não me tivessem prendido.
Provavelmente sentiam-se muito seguros de que o jogo tão bem urdido não seria
desvendado tão depressa.
Meu nervosismo foi diminuindo. Uma “risadinha” me fez estremecer, mas logo
percebi que o ruído provinha de mim mesmo.
A esta hora não gostaria de pertencer ao serviço de defesa local. Se minha idéia
sobre Rhodan fosse correta, já estaria pessoalmente a caminho de Vênus.
Prossegui devagar e com a maior cautela, tendo sempre o máximo cuidado para
fechar perfeitamente o monobloco destinado à defesa contra pesquisas telepáticas.
Bastaria que minha mente irradiasse um único impulso para que um mutante pudesse
localizar-me.
Senti que desta vez atirariam para matar. Rhodan não poderia assumir o risco de
deixar que eu desaparecesse na selva de Vênus. Um belo dia, a vigilância no espaçoporto
diminuiria, e então minha chance teria chegado.
E Rhodan sabia disso; não havia a menor dúvida. Esse bárbaro de olhos cinzentos
sabia raciocinar.
Evidentemente seria uma loucura procurar entrar em contato com Marlis. Estava sob
observação, ou então não queria chamar-me Atlan.
Tranqüilizei meu instinto de autoconservação que ameaçava entrar em revolta,
dizendo a mim mesmo que, sem uma arma energética mortal, não poderia penetrar na
selva. Os sáurios venusianos dificilmente se deixariam afetar por um pequeno radiador de
choques. E qual seria o melhor lugar para encontrar a tal arma senão em uma casa
especializada?
Prossegui, até que vi o letreiro numa rua lateral.
Não notei ninguém, e nem esperava outra coisa. Ansiava por Marlis, por um único
olhar e um sorriso de seus lábios cercados de amargura. A moça arriscara muito. E não
poderia culpá-la por ter cometido erros graves. Afinal, não era uma agente treinada, mas
apenas uma criatura impulsiva, capaz de ainda entusiasmar-se pela voz do coração.
Se não tivesse percebido nada do interrogatório realizado pelos mutantes, que sem
dúvida fora extremamente suave, não se poderia imputar-lhe qualquer culpa, por mais
leve que fosse. Só poderia pensar que me encontrasse em segurança absoluta. Se sua
opinião fosse outra, teria deixado de procurar a posta-restante.
Além do mais, perdera minha gigantesca pérola. Evidentemente Gunter Viesspahn já
não me poderia ser útil. Encontrava-me numa situação bastante desfavorável.
7

Calculei e planejei, martirizando o cérebro dolorido em busca de uma solução


satisfatória; mas sua aparição repentina abalou-me profundamente.
Parecia que uma força desconhecida paralisava meus nervos. Uma pessoa do meu
tipo sabe odiar ou amar além de qualquer medida; sentir a alegria ou o desencanto, desde
que não seja privada do equilíbrio psíquico.
O vulto esbelto de Perry Rhodan produziu em minha alma o efeito de uma ducha de
ácido. Era bastante difícil para a mente absorver sua presença. Um estranho
formigamento espalhou-se na zona da nuca. Demorei algum tempo para superar o revés
moral.
Encontrava-me atrás de um arbusto, e não podia ser visto. Porém tive a impressão
de que seus olhos me fitavam com uma expressão perscrutadora. Tinha total certeza de
que não me poderia ter visto, pois meu defletor de ondas luminosas funcionava
impecavelmente.
E a localização energética também não era possível, uma vez que as potentes armas
energéticas de seus acompanhantes e os motores atômicos das naves estacionadas
geravam campos muito mais potentes que o emitido pelo meu aparelho.
Fazia apenas dez minutos que eu chegara, depois de ter visto Marlis Gentner.
Arrisquei-me a entrar na casa de armas e encontrei-a numa sala dos fundos.
Tal qual os policiais do serviço de segurança venusiano que se encontravam à
espreita, escondidos do lado de fora, não notara minha presença.
Não sabia que havia sido interrogada na Terra. Envergonhei-me por não me ter
informado a este respeito. Mas não comentei o fato por uma questão de segurança
pessoal.
Quando me dei a conhecer, parou em atitude rígida diante da pequena janela.
— É você? — perguntou com os lábios trêmulos. Manteve um perfeito autocontrole,
mas já estava perdida. Minha única esperança era aplacar o ânimo de Perry Rhodan.
Marlis não devia ser castigada.
Cochichei ao seu ouvido, informando-a de que tinha de fugir imediatamente para a
selva, uma vez que surgiram dificuldades. Em hipótese alguma poderia entrar em contato
com seu irmão, pois desconfiava de que o mesmo estivesse sendo observado.
Ainda disse à moça que me comunicaria com um amigo que conhecera na nave
Glória. Não citei qualquer nome. Os agentes do serviço de defesa poderiam quebrar a
cabeça se quisessem.
O fato de não informá-la foi um truque da minha parte. Só poderia contar-lhe aquilo
que o serviço de defesa poderia saber. Não tinha a menor dúvida de que eslava sendo
vigiada pelos telepatas. Por isso não poderia saber que eu descobrira tudo.
Durante o tempo em que permaneci na velha casa, corri certo perigo. Se naquele
momento tivesse sido realizada uma vigilância telepática na moça, minha presença teria
sido revelada.
Tive sorte. No interior da casa de armas, achei o que queria: o cofre de armas. Nele
se encontravam os pesados radiadores energéticos, que costumavam ser usados em Vênus
para abater os gigantescos sáurios. Tratava-se de artefatos maciços, com fortes campos
direcionais alimentados por processos de fusão nuclear de elevada potência. A
incandescência dessa arma derrubaria sem a menor dificuldade os gigantescos animais do
mundo primitivo.
Escapei sem ninguém o perceber, e Marlis foi de opinião que ninguém ficaria
sabendo de minha ligeira visita.
Após isso, fiz exatamente o contrário do que lhe dissera. Dirigi-me ao restaurante
situado fora da zona urbana, onde Gunter Viesspahn me esperaria.
Depois, voltei a modificar meus planos. Minha ação devia ser cheia de variáveis,
para impossibilitar o cálculo logístico-esquemático de meus passos. Além disso, a idéia
de voltar à cova do leão não deixava de ter seus encantos.
Assim que cheguei, descobri Viesspahn. Encontrava-se no interior da velha taberna,
conversando com alguns colonos de aspecto embrutecido que haviam feito compras na
loja ao lado.
Viesspahn ainda não fora preso! Nem desconfiava do que havia acontecido.
Quanto a mim, calculava com a inteligência do inimigo. Depois que me despedi tão
apressadamente de Viesspahn, à saída do museu, os homens do serviço de defesa
deveriam ter seguido o curso de raciocínio por mim desejado. Um homem do meu tipo
nunca volta para junto do conhecido que sabe estar em perigo.
Até parecia que minhas previsões haviam sido corretas. O serviço de segurança
estava deixando o barbudo em paz. Quando me deleitava nas mais belas esperanças,
subitamente um grande helicóptero da defesa solar pousou nas proximidades. O susto que
senti ao ver Perry Rhodan descer foi infinito.
Uma vez que ele mesmo se encarregara da operação de busca, teria que triplicar
meus cuidados. Apareceu com poucos acompanhantes. E fez de conta que nem se
interessava por Viesspahn.
Cumprimentou ligeiramente os colonos e disse em tom bem-humorado que apenas
viera para rever o lugar onde quase encontrara a morte quando pela primeira vez pousou
em Vênus.
Contou uma história inventada sobre uma furiosa cobra dos pântanos, conquistando
os aplausos dos pioneiros endurecidos. Dessa forma, meu grande inimigo deu uma
explicação plausível de seu súbito aparecimento.
A seguir, Rhodan colocou-se atrás do edifício. Um homem do serviço de defesa saiu
com o helicóptero. Tudo parecia muito pacato. Os colonos que se encontravam no interior
da loja mantinham-se em atitude discreta. Quase chegaram a curvar-se, mostrando grande
veneração.
Angustiado, fiquei atrás do arbusto de folhas largas que escolhera como refúgio
ainda antes da chegada de Rhodan. Não me atrevia a fazer o menor movimento. O
botequim com sua barulheira ficava a mais de cinqüenta metros. Os risos e a cantoria dos
alegres pioneiros da selva formavam uma cortina sonora muito tênue, que não era
sufocada pelo farfalhar das folhas.
Era uma situação martirizante, pois os inúmeros insetos não se incomodavam com o
defletor de ondas luminosas. Penetravam nele às cegas, e eu tornava-me vítima de suas
picadas violentas. Além disso, as pontas metálicas do anel de escapamento de gases da
câmara de fusão da minha arma incomodavam-me constantemente. Estava comprimida
contra a omoplata direita.
Aguardei impaciente e fiz votos de não ser surpreendido por uma das terríveis
trovoadas de Vênus.
Vi-me libertado mais depressa do que esperava. É bem verdade que por pouco não
me traí, pois não contava com a aparição.
A menos de cinco metros do lugar em que me encontrava, o ar superúmido começou
a tremeluzir. Do nada surgiu uma coisa que contemplei com um espanto infinito e com
uma inquietação cada vez maior.
O ser tinha o aspecto de um rato gigante com a cauda grossa, muito parecida com a
de um castor terrano.
A estranha criatura parou sobre as curtas patas traseiras que lhe permitiam um andar
ereto à maneira dos humanos. Os braços finos com as delicadas garras estavam cruzados
sobre o peito de sua vestimenta semelhante a um uniforme. Seria um animal?
Examinei mais detidamente a aparição, e tive que retificar minha opinião. Um
animal não carrega radiadores energéticos. O rosto pontudo de camundongo com as
lindas orelhas normalmente me teria obrigado a sorrir. Mas na situação em que me
encontrava, aquele ser coberto de pêlo delicado me causou um tremendo susto.
De onde teria vindo? Levei alguns segundos até que minha memória fotográfica se
lembrasse de um ser inteligente que, segundo diziam, ocupava lugar de destaque no
Exército de Mutantes de Rhodan. Ouvira falar dele em Terrânia.
Gucky; era este o nome que Rhodan costumava dar ao ser peludo. Evidentemente
tratava-se de uma inteligência vinda de algum planeta desconhecido. Ao que parecia, o
pequenino era um teleportador. Só assim se explicaria sua súbita materialização.
Apertei fortemente a coronha de minha arma energética. A rigidez provocada pelo
pavor começava a abandonar meu corpo.
— Saiam daí — chilreou o rato gigante.
— Por aqui poderão esperar o resto da vida. Esteve com a moça e disse-lhe que iria
à selva, onde ficaria na fazenda de um amigo. O serviço de segurança daqui deveria ser
atirado no pântano mais próximo. Não entende nada do negócio.
Perry Rhodan saiu de trás do depósito. Seu rosto dava a impressão de indiferença.
Apenas as pequenas rugas em torno dos olhos pareciam mais profundas. Passou tão perto
de mim que acreditei ter sido descoberto.
A pequena inteligência peluda pôs à mostra um enorme dente roedor. Um coronel do
serviço de segurança de Vênus, que eu não conhecia, abriu a boca, perplexo.
Um jovem tenente, que provavelmente ainda não tivera oportunidade de conhecer
Gucky, tossiu de forma bastante estranha. O dente roedor do pequenino ser desapareceu
atrás do “nariz” franzido.
— Suas toupeiras! — piou com a maior falta de respeito. — Por que não me
chamaram logo? De qualquer maneira, tinha o que fazer em Vênus. Por que não o
prenderam assim que recebeu a carta do tal do Viesspahn?
A testa de Rhodan franziu-se; mostrava preocupação.
— Sim, por quê? — disse o chefe do Império Solar, repetindo a pergunta de seu
estranho amigo.
O coronel empertigou-se.
— Sir, peço licença para ponderar que havíamos recebido dados insuspeitos sobre
todos os passageiros da Glória. O indivíduo, que se identificou pelo nome de Hinrich
Volkmar, submeteu-se a dois exames de raios X na Terra.
— Mas o senhor devia saber que o irmão da estudante foi escolhido para receber o
arcônida. Os interrogatórios telepáticos à distância informaram-nos a este respeito.
Deviam ter posto as mãos no homem assim que a carta de Viesspahn chegasse ao
alojamento.
— Não tivemos muita certeza, Sir — respondeu o coronel, que transpirava
abundantemente. — O elemento que procuramos mostrou a carta a um sargento do
serviço de segurança, e o conteúdo era totalmente “Inofensivo”. Além disso, conforme já
ressaltei, o homem foi...
— ...submetido a dois exames de raios X — interrompeu Rhodan em tom irônico.
Meus parabéns; os senhores fizeram um trabalho bem feito.
— Tinha a intenção de prendê-lo depois que se encontrasse com Viesspahn no
museu.
O ridículo ser soltou uma risada aguda e estridente. Subitamente pôs-se nas patas
traseiras, girou em torno de seu eixo e gritou:
— Quem andou pensando que sou um sujeito ridículo? Quem foi?
Assustado, acionei o bloqueio mental que, ao alegrar-me com o incidente, abrira por
uma fração de segundo. Então esse projeto de rato ainda era um telepata! Provavelmente
absorvera o conteúdo da mente de Marlis logo depois que me despedi dela.
De repente, o jovem tenente começou a girar no ar. O pequeno ser peludo ria a
bandeiras despregadas, parado nas patas traseiras, olhando para o oficial que soltava
gritos de pavor.
— Se você não pedir desculpas imediatamente, farei com que caia de cabeça
naquele pântano — gritou Gucky.
— Pare imediatamente! — ordenou Rhodan em tom áspero.
O rato gigante baixou a cabeça sob o olhar gelado do chefe. O tenente pousou de
forma suave sobre o rotor de um helicóptero estacionado.
Rhodan não perdeu mais tempo. No íntimo, não pude deixar de admirá-lo. Seria um
inimigo muito difícil.
— Coronel, averigúe imediatamente com quem o elemento que procuramos fez
amizade. Todos os colonos recém-chegados que ainda não partiram para seu destino
deverão permanecer no acampamento. Aqueles que já receberam suas fazendas deverão
ser imediatamente visitados por um comando especial. Obrigado; por enquanto é só. Faça
o favor de chamar meu helicóptero.
Rhodan encostou o dedo no boné, ajeitou o cinto com o pesado radiador energético
e caminhou a passos duros em direção no pequeno campo de pouso.
— O que vamos fazer com o tal do Viesspahn?
Rhodan respondeu sem virar o rosto. Em sua voz, vibrava uma raiva contida.
— O senhor já deveria ter adivinhado, coronel. É claro que não vamos prendê-lo.
Faça de conta que nunca ouviu falar nele. Se acreditar que o fugitivo ainda entrará em
contato com ele, o senhor estará me ofendendo. Pode imaginar por quê?
Rhodan girou no calcanhar.
— Lutei contra este homem, e tive que fazer o máximo para vencer na última hora.
Por isso peço-lhe o favor de não pensar que é um idiota.
Naquele momento, não sabia o que pensar. Por pouco, não desliguei o defletor num
súbito gesto de resignação e caminhei para a frente.
Controlei-me no último instante. Meus olhos ardentes seguiram o mais encarniçado
dos meus inimigos. Por que não atirava nele? Sem dúvida poderia mergulhar na mata
próxima.
Vi o tenente do serviço de segurança apontar para o helicóptero pintado de
vermelho. Era o aparelho de Viesspahn. Ao que parece, Rhodan pedira informações a este
respeito.
A seguir, entrou no grande veículo oficial. Era uma versão moderna com propulsor
de impulsos e canhão energético de montagem rígida. Verifiquei que, de repente, Rhodan
tomava lugar no assento do piloto.
Depois que decolou e desapareceu no horizonte brumoso, arrisquei-me a sair detrás
do arbusto e caminhar em direção ao helicóptero vermelho. Acontecera aquilo que eu
pretendia conseguir com minha ação arriscada: Rhodan não acreditava que ainda fosse
encontrar-me com o irmão de Marlis.
Parei alguns minutos junto à escotilha do compartimento de carga e olhei para a
loja. Não vi o barbudo. Em compensação, escutei suas gargalhadas.
Abri calmamente a escotilha e pus o pé na escada embutida. Quando pretendia
enfiar o corpo no compartimento apertado, ouvi o ruído de um helicóptero em mergulho.
O zumbido suave cresceu num uivo estridente. O aparelho que descia devia
encontrar-se próximo à barreira do som.
Olhei para cima. Reconheci um objeto reluzente. Saía em vôo arriscado de trás da
muralha formada pela mata, apontou o “focinho” para baixo e dirigiu-se em vôo
vertiginoso ao lugar em que me encontrava naquele instante.
Foi meu sexto sentido que mandou minhas pernas correrem. Corri como nunca.
Com um salto desesperado rolei para dentro de uma poça de água malcheirosa.
Ouvi o rugido terrificante do canhão energético. No mesmo instante, cessou o uivo
da máquina que acabara de ultrapassar a barreira do som. Em compensação, ouviu-se o
ribombar das massas de ar comprimidas, que fulguraram sob a ação do raio energético.
Menos de cinqüenta metros atrás de mim, as energias atômicas liberadas atingiram o
solo venusiano, que imediatamente entrou em ebulição. O aparelho de Gunter Viesspahn,
pintado de forma tão espalhafatosa, foi transformado numa bola de fogo, que explodiu.
De uma hora para outra, o dia sombrio parecia iluminado por um pequeno sol. O canhão
energético lançava uma luz fulgurante, que prenunciava desastre.
A sucção produzida pelo aparelho que passou rente à poça em que me encontrava
por pouco não me arranca da mesma. A menos de dez metros do lugar em que me
encontrava o solo fervia.
Rhodan traçara um canal retilíneo de lava no solo.
As ondas sonoras chegaram dali a poucos segundos. Mais uma vez parecia o fim do
planeta. Comprimi as mãos contra os ouvidos martirizados e, ofuscado pela luz,
cambaleei em direção ao grande depósito. Uma vez lá, deixei-me cair ao chão,
completamente exausto.
Um soluço seco me apertava a garganta. Uma raiva desarrazoada começava a
dominar minha mente. Tive vontade de gritar face às declarações de meu supercérebro.
Senti-me humilhado e rebaixado.
Rhodan partira, mas voltara. Numa reflexão fria abrira fogo contra o aparelho de
Viesspahn.
Esse maldito bárbaro de olhos cinzentos, apesar de tudo o que se passara, contara
com a possibilidade de que eu pudesse entrar em contato com o barbudo. As instruções e
advertências que gritara para o coronel destinavam-se a um “invisível” que se encontrasse
nas proximidades.
Se tivesse esperado mais trinta segundos antes de voltar, me encontraria no interior
do compartimento de carga. Nesse caso, a reação instantânea da fuga teria sido inútil.
Tive de esforçar-me ao máximo para conservar o autocontrole quando vi o veículo
policial pousar pela segunda vez. Rhodan saiu da cabina e aproximou-se o mais que pôde
do metal ardente.
Levantei-me instintivamente. Queria ouvir o que tinha a dizer. Aproximei-me tanto
dos colonos que acorreram às pressas que quase cheguei a tocar num homem.
Pálido como cera, Gunter Viesspahn encontrava-se ao lado do ser mais poderoso do
Império Solar. O coronel plantara-se nas proximidades de Rhodan.
— Esse helicóptero foi seu, senhor Viesspahn? — perguntou o coronel.
Meu amigo confirmou com um gesto perturbado. Lançou um olhar assustado para
os homens do serviço de defesa.
— Sinto muito — disse Rhodan em tom Irônico. — Foi um pequeno engano. Peço
sua compreensão. Infelizmente não posso dar maiores explicações. Naturalmente o
governo lhe pagará outro helicóptero. Faça o favor de informar ao oficial sobre a natureza
de sua carga. A indenização será paga dentro de uma hora. Providencie imediatamente,
coronel Fasting.
Viesspahn soltou uma risada embaraçada na qual, segundo parecia, também havia
certo alívio.
Rhodan despediu-o com um gesto e voltou a contemplar a aeronave que ainda
estava ardendo.
— Coronel!
O coronel, que afastava-se, parou e ficou em posição de sentido. A voz de Rhodan
tinha um tom impessoal.
— Assim que os destroços tiverem esfriado, providencie um exame científico dos
mesmos. É possível que os restos mortais de um ser humano sejam descobertos nos
mesmos. Quero ser informado imediatamente sobre os resultados da análise. Obrigado; é
só.
Afastou-se, depois de confirmar novamente ao nervoso Viesspahn que ele, Rhodan,
lhe mandaria entregar dentro de uma hora um helicóptero novinho em folha.
Quanto a mim, encontrava-me em campo aberto, tremendo por todo corpo. As
costas de Rhodan surgiram na mira luminosa de minha arma. Bastaria apertar o botão
para realizar nele aquilo que pretendera fazer comigo.
Baixei a pesada arma de radiações. Não; nunca seria capaz de alvejá-lo pelas costas.
Em saltos largos, voltei para junto do depósito. Os colonos conversavam
animadamente. Ninguém sabia o que estava acontecendo. Apenas Gunter Viesspahn
parecia ter uma idéia, mas preferiu ficar calado.
Vi Rhodan entrar no helicóptero da polícia. Desta vez, não ocupou o lugar do piloto.
Esse bárbaro se atrevera a destruir um helicóptero em perfeito estado, com base;
num raciocínio elementar. Não sabia se realmente me encontrava no interior do mesmo.
Por isso, ele preferia aguardar, para que eu tivesse tempo de entrar.
Contara com todas as eventualidades e guiara-se pelo método de que sempre é
preferível andar seguro.
Tive vontade de arrancar pedaços de meu corpo face à minha imprudência
fenomenal. O fato de que Rhodan deixara um homem do serviço de segurança na loja
deveria ter chamado minha atenção.
Evidentemente o soldado recebera ordens de impedir que qualquer pessoa fosse ao
campo de pouso. Rhodan queria ter o campo livre para atirar. Seu alvo era eu, apenas eu.
Mal e mal consegui controlar minha perturbação.
Esse bárbaro magro só poderia encontrar-se em Vênus há poucas horas, mas já me
causara mais problemas que aqueles que tivera de enfrentar com todo o serviço de defesa
durante seis dias no planeta Terra. Agora as coisas começavam a ficar sérias. Tinha
certeza absoluta de que esse homem não cometeria qualquer erro de lógica

***
Dali a exatamente uma hora e treze minutos, o novo helicóptero de Viesspahn
desceu no campo de pouso que se encontrava próximo ao restaurante na selva. Rhodan
cumprira sua palavra. Era medonho de ver como sabia agir depressa.
O piloto não era outro senão o maldito rato gigante de uniforme. Haviam feito um
buraco no uniforme do ser extraterrano, para que o mesmo pudesse tocar o chão com a
cauda de castor. E agora, aquela criatura ainda usava na cabeça uma coisa parecida com
um capacete-rádio, sob o qual sobressaía o focinho pontudo com o dente roedor.
O “sujeitinho” de menos de um metro de altura plantou-se solenemente à frente do
estúpido Viesspahn e informou ao barbudo em voz alta sobre os direitos e os deveres dos
colonos.
No íntimo, sabia que minha raiva por aquele rato uniformizado era injusta. Estava
sendo dominado pelos sentimentos exaltados, que me diziam que esse “sujeitinho”
ridículo era mais estranho no sistema solar que eu mesmo. Por que falava de modo tão
altivo?
Dominado por uma raiva incontrolável e absurda, abaixei-me, peguei um pedaço de
madeira podre e atirei-o com toda força contra o focinho da criatura arrogante.
Pelos deuses da antigüidade terrana, nunca deveria ter feito uma coisa dessas.
Meu ódio desvaneceu-se imediatamente.
Poucos segundos depois, fugi a toda. Ainda bem que o rato gigante, imediatamente
possuído pela raiva, não me via nem podia localizar-me por via telepática.
Era horrível de ver-se o que o ser peludo fez com os colonos totalmente inocentes. O
ser extraterrano devia ser um grande telecineta; caso contrário, não teria conseguido atirar
os colonos, que soltavam gritos horríveis, para dentro da poça, e depois deixar as
criaturas banhadas de lama nas copas das árvores altíssimas.
A seguir, o animal sentou-se no concreto do campo de pouso e riu como nunca
ouvira rir uma inteligência galáctica.
Gunter Viesspahn foi o único homem poupado pela fúria do ser peludo, que
provavelmente vira que o pedaço de madeira não fora arremessado por suas mãos. Ao
menos fiquei sabendo o que poderia esperar do amigo de Rhodan.
Viesspahn inclinou o corpo num gesto humilde quando o “sujeitinho” desapareceu
como se nunca tivesse aparecido por ali.
— Vou mostrar uma coisa a vocês! — gritou antes de desaparecer.
Caminhei tranqüilamente em direção ao novo helicóptero. Quando o colono
decolou, encontrava-me no banco traseiro. Meu sexto sentido me dizia que Rhodan não
voltaria a atacar.
Provavelmente a esta hora estaria mobilizando mais alguns membros do seu
Exército de Mutantes. Qual deles poderia representar um perigo para mim? Os telepatas
não, conforme já ficara provado. A qual deles Rhodan teria de recorrer para localizar-me
apesar do bloqueio mental e do defletor de ondas luminosas?
Não encontrei a solução, pois não sabia qual o trunfo mantido de reserva pelo
bárbaro.
Nesse momento já me arrependia por não ter atirado nele. Como poderia chegar ao
sistema de Árcon, se poupasse Rhodan toda vez que surgisse uma oportunidade de matá-
lo? Era uma atitude absurda. Afinal, era o grande inimigo de meu venerável povo, ou
não?
8

O furacão parecia enlouquecer as feras. Fazia cerca de cinco minutos que as duas
torres feitas de carne e ossos haviam saído da mata próxima para executar uma dança
estranha nos campos bem cuidados de Viesspahn.
Eram dois lagartos-corredores, nome que se costumava dar a esses animais em
Vênus. Possuíam aproximadamente a forma de canguru terrano, apenas os crânios
alongados que terminavam num focinho chato erguiam-se uns trinta metros acima do
solo.
Os lagartos-corredores pertenciam à espécime dos animais mais perigosos desse
mundo primitivo. Em certos lugares, sua blindagem córnea atingia uma grossura de
quarenta e cinco centímetros. Desenvolviam uma velocidade tremenda. Antes da chegada
do homem, pertenciam ao grupo dos monarcas não coroados do planeta.
Ambos perseguiam um pisoteador gigante que saíra da mata em fuga desabalada. O
quadrúpede vegetariano devastou os campos, de Viesspahn numa questão de segundos.
Nos lugares em que havia colocado as enormes patas, surgiram profundas crateras
lamacentas.
No momento em que atingiram a clareira junto às barrancas do rio Hondo, os dois
lagartos-corredores resolveram desistir da perseguição do pisoteador.
Por alguns minutos, permaneceram eretos no terreno, antes de iniciarem a “dança”.
Viesspahn estava sentado na cabine de comando de sua fazenda ultramoderna.
Esforçava-se para trazer de volta os tratores robotizados teleguiados, antes que os
mesmos fossem descobertos e atacados pelos lagartos.
Ouvi as terríveis pragas que soltava, pois voltara à central energética. Há três dias
encontrava-me na fazenda, mas Viesspahn nem desconfiava disso. Não tinha o menor
interesse em informar este homem que não merecia maior confiança sobre minha
presença naquele lugar. Era bem verdade que, com o tempo, se espantaria com o
desaparecimento de seus mantimentos. Até lá teria que encontrar uma solução.
Atrás de mim, uma chave de segurança automática de quinhentos ampères desligou-
se: Pertencia ao circuito de força da grade de alta-tensão do setor sul, e não representara
nenhum obstáculo sério para o pisoteador que acabara de invadir a fazenda.
As luzes vermelhas piscaram cada vez mais depressa, até que permaneceram acesas
de vez. Por três vezes, a chave automática de quinhentos ampères foi girada para a
posição de contato pelo campo energético eletrônico. Por três vezes, desligaram-se com
um forte estalo. O circuito fora inutilizado; ao que parecia, a grade de alta-tensão entrara
em curto-circuito.
Viesspahn começou a praguejar cada vez mais alto. Retirei-me para a sala dos
isoladores. Atrás da pesada porta de aço, zumbia o transformador do reator de alta
potência.
Viesspahn possuía um modelo de fusão moderno, cujo desempenho máximo era de
mil quilowatts-hora. Tal potência era suficiente para abastecer a fazenda. Os tratores de
múltiplas finalidades possuíam suprimento de energia próprio.
Olhei pelas lâminas de plástico blindado que fechavam a estação de controle.
Dentro de poucos segundos, o furacão chegou ao auge. Sabia que a longa noite de
Vênus estava para chegar. A escuridão reinaria durante cerca de doze dias terranos. A
translação do planeta aproximava-nos da temível zona de penumbra, na qual não fazia sol
nem era completamente escuro. Essa zona também resultava da rotação lenta de Vênus.
As tormentas começaram com o início do prolongado crepúsculo. Chovia demais,
dando a impressão de que a água estava sendo despejada por um balde gigantesco. Mas o
súbito resfriamento do ar não refrescava o ambiente.
As pragas de Viesspahn perderam-se nos uivos do furacão. Porém conseguiu levar
as máquinas para as garagens subterrâneas.
Já não me sentia bem na apertada sala dos isoladores, situada no pedestal de uma
robusta torre de concreto. Todas as fazendas de Vênus possuíam uma torre de energia
desse tipo, cuja parte superior estava coberta por uma cúpula de chapas blindadas
transparentes.
Dali se via a área da fazenda e as residências adjacentes. No segundo planeta solar,
essas construções pertenciam à classe do absolutamente indispensável. Quando os
gigantescos animais da selva se aproximassem, não havia outra possibilidade senão
rechaçá-los em tempo.
E neste ponto, a zona da penumbra era mais temida. Parecia que a súbita
modificação climática produzia uma espécie de embriaguez nos lagartos. Tornavam-se
descontrolados e agressivos.
O fazendeiro barbudo passou ligeiro e aos tropeços junto ao meu esconderijo
provisório. Abriguei-me instintivamente quando sua mão fechada bateu contra a chave do
pequeno canhão energético giratório, montado no alto da cúpula transparente. Para usar
uma arma dessa potência, tornava-se necessária uma licença especial do governo. Só
eram fornecidas em sua feição estacionaria e os funcionários de Port Vênus controlavam-
nas a intervalos regulares.
Enquanto Viesspahn subia pela íngreme escada em caracol, saí cautelosamente da
desconfortável sala dos isoladores. Acima de minha cabeça, ouvi as pisadas de seus
sapatos pesados. Chegou à pequena plataforma na qual era manipulado o canhão.
Vi que utilizava ambos dispositivos de mira. Tratava-se de um aparelho de ondas
infravermelhas acoplado com um equipamento goniométrico. Por mais escura que fosse a
noite, Viesspahn identificaria perfeitamente o alvo. Perplexo, indaguei a mim mesmo se
seria recomendável confiar um instrumento de destruição desse tipo aos colonos
eternamente rebelados. Seria fácil modificar um canhão de pequeno porte como este,
retirá-lo de seu embasamento e dar-lhe outro emprego.
Sentei na poltrona giratória que ficava à frente das chaves de telecomando dos
tratores e aguardei as coisas que viriam. Lá fora, já estava quase totalmente escuro. O
vento uivante tangia verdadeiras cascatas contra as janelas de plástico blindado. Parecia
que este mundo tão jovem seria tragado pelas águas.
O anemômetro mostrava que a velocidade do vento era de cento e oitenta
quilômetros por hora. Nessas condições, era altamente recomendável não sair do seguro
abrigo.
Gunter Viesspahn mantinha-se à espreita no assento giratório de sua arma
energética. Os dois lagartos encontravam-se a cerca de duzentos metros. Apesar da
distância pareciam torres de igreja. Suas terríveis caudas levantavam muitos metros
cúbicos do precioso solo arável, arrancando-o do chão subitamente encharcado.
Ao que parecia, o furacão não afetava os gigantes de mais de trinta metros de altura.
Saltavam pelo terreno, atiravam-se contra o vento e soltavam um berreiro que me fazia
cingir fortemente a arma.
Não me separei por um minuto sequer do único seguro de vida existente neste
inferno selvático. Era bem verdade que retirara dos estoques de Viesspahn um potente
radiador de choques, mas portátil. Sendo assim, num caso verdadeiramente grave de nada
adiantaria. Contra um lagarto-corredor, só mesmo uma arma superpotente poderia
revelar-se eficaz.
Quando as feras aproximaram-se ainda mais, Gunter Viesspahn começou a disparar.
Tive o cuidado de virar o rosto para o outro lado, mas assim mesmo a incandescência
fulgurante doeu nos meus olhos.
Um trovejar irreal superou o ruído da tormenta. Um raio energético da grossura de
um braço humano precipitou-se para o ambiente infernal. Ao longo do fluxo
incandescente surgiu um fenômeno fascinante. Parecia que alguém escavara um túnel nas
massas de água que se precipitavam do céu. Densas nuvens de vapor espalharam-se,
quando o furacão as atingiu.
Viesspahn fez boa pontaria. Entre as curtas pernas dianteiras do lagarto surgiu uma
mancha incandescente, que se dissolveu numa série de relâmpagos. A parte da energia,
que não foi absorvida pelo corpo do animal, escapou pelas costas sob a forma de
descargas luminosas.
Vi o corpo gigantesco tombar. O animal fora atingido mortalmente, mas seus
reflexos prosseguiram por mais algum tempo. E era terrível de ver com que força
revolvia o solo enlameado.
O outro sáurio saiu aos berros e desapareceu atrás da muralha de água caída do céu.
Um tanto perplexo, olhei para Viesspahn. Ao que tudo indicava, voltara a dedicar-se
ao praguejar. Era uma das características daquele homem que eu não apreciava nem um
pouco.
Estive a ponto de retirar-me para o depósito contíguo, quando a trovoada irrompeu
lá fora. O ribombar dos trovões me fez comprimir as mãos contra os ouvidos. Este mundo
nunca poderia ser conquistado por criaturas pacatas. Sem dúvida, precisava-se de homens
como Gunter Viesspahn para domar este planeta no correr do tempo.
Perto da cúpula, algumas árvores estavam em chamas. Ardiam apesar da chuva e do
ambiente superúmido. Na Terra, nunca havia visto um temporal como este.
Viesspahn continuava sentado atrás do canhão energético. Tive a sensação de que se
embriagava com o poder que tinha nas mãos.
Quando pretendia retirar-me, vi o brilho reluzente. Bem atrás do colono, que
começara a ficar nervoso, um corpo surgiu do nada. Quando os contornos assumiram
formas estáveis, percebi que eram dois os seres que haviam aparecido de repente.
Desta vez, não me senti dominado pelo pavor. Já conhecia esse maldito rato gigante
com a cauda de castor. Mantive-me imóvel, embora com aquele furacão ninguém pudesse
ouvir qualquer ruído.
Num movimento quase inconsciente, pus a mão no radiador de choques que trazia
no cinto. Tive a impressão de que meu sexto sentido manifestava uma revolta sarcástica.
Por que não me dispunha a atacar os amigos de Rhodan com uma arma mortal, já que me
via obrigado a lutar contra eles? Era um paradoxo, e o setor lógico de minha mente me
informou sobre isso através de uma série de impulsos dolorosos.
O outro ser sem dúvida era um terrano. Soltou-se das costas da criatura extraterrana
que, por certo, havia transportado o homem robusto. Perplexo, constatei que subestimara
as faculdades do ser inumano. Se conseguia levar mais um corpo dentro de seu campo de
desmaterialização, as energias que podia concentrar deviam ser imensas.
Ligeiramente encurvado, mantive-me atrás do quadro de telecomando das máquinas
agrícolas. Era uma caixa imensa de quase dois metros de altura, que me tiraria da visão
dos mutantes mesmo que não fosse invisível.
Viesspahn não notou a presença dos intrusos. Continuava sentado em atitude de
espreita, praguejando em altas vozes para dar vazão ao seu descontentamento.
O ridículo ser estranho, que Rhodan costumava chamar pelo nome de Gucky,
parecia examinar a mente do fazendeiro. De repente, compreendi que Rhodan iniciara a
operação de controle. A esta hora, felicitava-me por não ter informado Viesspahn. Uma
vez que não sabia da minha presença, não poderia trair-me, nem consciente, nem
inconscientemente.
Um sorriso sarcástico brincava em torno dos meus lábios. Olhei tranqüilamente para
a pequena plataforma do canhão e tive vontade de rir quando Gucky fez um gesto
aborrecido. O rato gigante acabara de constatar que o colono não conhecia meu
paradeiro.
Resignado, o terrano que viera em companhia de Gucky deu de ombros. Segundo
acreditei, significava que pretendia retirar-se dali.
Foi nesse instante que aconteceu uma coisa inacreditável.
De repente, o terrano levantou a mão e apontou exatamente para o lugar em que me
encontrava. Ao mesmo tempo, sua boca abriu-se. Ao que parecia, gritava. Mas não pude
ouvir por causa do furacão. Apenas sabia que o desconhecido me descobrira, apesar do
campo de deflexão e do excelente abrigo atrás do qual me ocultara.
Acontecera! Era inacreditável. Haveria alguém que fosse capaz de enxergar através
de paredes compactas e de um campo de deflexão de raios luminosos?
Meu sangue parecia ter uma tendência irresistível de contrariar todas as leis naturais
e concentrar-se exclusivamente no cérebro. A surpresa produziu um choque que poderia
causar um esgotamento psíquico total em pessoas de meu tipo, reduzindo-as à
inatividade. Apenas percebi o impulso de meu segundo cérebro, que imediatamente
entrou em funcionamento.
“O pequeno!”
Fiz pontaria com o radiador de choques. Naquele momento o rato gigante girava o
corpo com uma agilidade extraordinária, virando o rosto para meu lado. Uma vez que eu
fora descoberto, o ser extraterreno representava o perigo mais grave. Vira sua maneira de
lidar com os colonos.
O terrano voltou a gritar alguma coisa e pôs a mão na arma energética manual. Foi
quando puxei o gatilho.
Ouvi o estrondo do raio paralisante. Vi confusamente a luminosidade intensa, uma
vez que o acúmulo de sangue no cérebro prejudicava-me a visão.
O corpo do extraterrano foi envolvido pelo raio de choque. Vi a boca de Gucky
abrir-se num grito antes que caísse ao chão com os músculos enrijecidos e os reflexos
amortecidos. Ficaria fora de ação pelo menos por uma hora.
O segundo disparo de minha arma de choque coincidiu com o ataque do terrano,
cujas intenções eram muito mais sérias que as minhas.
Senti o hálito escaldante do fino raio térmico, que a menos de dois metros do lugar
onde me encontrava atingia o encosto da poltrona giratória, reduzindo-o a uma massa de
fogo.
O desconhecido atirara apressadamente, enquanto eu acertara mais uma vez. Seu
corpo contorceu-se e caiu.
Reuniu as últimas forças e voltou a puxar o gatilho de sua arma. O raio energético
atravessou o piso de metal leve da plataforma e com um chuvisco de fogo atingiu a caixa
de fusíveis da grade eletrificada.
Já me recuperara do perigoso momento de susto. No instante em que as chapas de
revestimento expeliam os raios, já me encontrava na entrada da sala dos isoladores.
Com a boca escancarada, Gunter Viesspahn fitava os vultos imóveis. Levou algum
tempo para descer da plataforma, pegar um extintor e apagar o princípio de incêndio.
Logo debelou as chamas. Retirei-me satisfeito.
Viesspahn estava fora de si. Seus olhos assustados rolavam nas órbitas. Parecia
perguntar constantemente a si mesmo de onde haviam vindo os dois disparos de arma
paralisante.
Saí da sala enfumaçada, produzindo o menor ruído possível. O braço esquerdo do
terrano paralisado pendia da plataforma do canhão. Vi perfeitamente que a pequena luz
de chamada do microrrádio preso ao seu pulso começou a piscar.
Concluí que os dois agentes não estavam sós. Se não me enganara, Perry Rhodan
devia estar próximo. Provavelmente viera com um destacamento do serviço de defesa.
Um homem do seu feitio só realizava um golpe de surpresa em boa forma.
Sabia que não tinha um segundo a perder.
Com a maior rapidez, mas tranqüilo e perfeitamente equilibrado, retirei-me para o
pequeno depósito onde dormira nos últimos dias. Peguei a mochila na qual colocara boa
quantidade de alimentos concentrados, pendurei-a nos ombros e prestei atenção para que
fosse atingida pelo campo de deflexão.
Realizei as últimas regulagens de precisão, examinei a pesada arma de impulsos e
abri o alçapão da galeria de emergência que Viesspahn construíra há um ano.
A galeria descia íngreme. Terminava num degrau, e de lá seguia diretamente para o
rio Hondo.
Havia outra galeria subterrânea que ia até a sala dos reatores, ligando a torre
energética com a residência.
Se Rhodan avançasse para esse lado, não me encontraria mais. O caminho até o
conjunto de edifícios residenciais certamente já fora bloqueado.
Foi em virtude de uma seqüência de conclusões lógicas que escolhi o túnel pouco
confortável.
Prestei atenção aos ruídos vindos de baixo antes de bater a pesada tampa-alçapão.
Fechei a tramela interna, embora soubesse que um ligeiro disparo energético bastaria para
destruí-la juntamente com o alçapão. No entanto, de acordo com um calculo rápido, seria
necessário um esfriamento de pelo menos quinze minutos antes que alguém pudesse
seguir-me pelo tampão fundido.
A galeria era circular e não tinha mais de um metro de altura. Tive que abaixar-me
bastante e segurar a pesada arma energética em posição inclinada. Minha lâmpada
recarregável emitia uma luz forte, que iluminava profusamente as paredes vitrificadas
pela fusão.
Já andara várias vezes por esse caminho. Sabia que tinha pouco menos de seiscentos
metros. Desta vez, não fiz nenhuma pausa para deitar e descontrair as costas doloridas.
Rhodan não pertencia à classe de pessoas que, numa situação crítica, costumam
presentear alguém com segundos preciosos.
Gucky era um ótimo telepata. Rhodan também possuía esse dom, mas em grau bem
menor. Por isso, já devia saber que seu pequeno amigo havia sido colocado fora de ação.
Enquanto prosseguia apressadamente, fiquei refletindo com a necessária frieza sobre
como o terrano me poderia ter visto. Ao que tudo indicava, tratava-se de um homem
pertencente ao Exército de Mutantes de Rhodan. Se é que o desconhecido conseguira
romper o campo de deflexão com a vista, também seria capaz de superar camadas de
matéria compacta.
Mas, segundo parecia, não possuía qualquer outro dom. Agira acertadamente ao
colocar fora de ação em primeiro lugar o rato gigante.
O rosto largo do mutante desconhecido surgiu na minha imaginação. Depois que os
telepatas de Rhodan falharam por completo em virtude de meu bloqueio mental,
transformara-se no mais perigoso dos meus inimigos.
Provavelmente Rhodan mandaria seu espia aos lugares mais críticos. Assim que me
localizasse, as pessoas que estivessem em sua companhia poderiam abrir fogo, ou atacar-
me com recursos extra-sensoriais.
“Você deveria tê-lo matado, seu idiota!”, disse meu supercérebro.
Cerrei os lábios, respirei profundamente e prossegui mais depressa. Sem qualquer
pausa a longa caminhada transformou-se num martírio. Mas não poderia perder tempo.
Quando finalmente cheguei ao alargamento da galeria, ouvi as águas do Hondo
rugirem atrás de uma porta de aço. O furacão continuava a uivar. Na zona da penumbra,
as tormentas são muito prolongadas.
Abri a porta de pouco menos de dois metros de altura e olhei cautelosamente para o
setor da galeria, cujo solo já estava coberto pela água. Mais adiante, o barco de plástico
blindado pertencente a Viesspahn balançava nas ondas.
Era uma embarcação inteiramente estável e coberta. O maquinismo trabalhava
segundo o princípio da retropropulsão: a água aspirada por uma potente turbo-bomba era
expelida sob alta pressão através de um bocal móvel, que tornava dispensável o leme
convencional. Tivera a cautela de familiarizar-me com o manejo de barco, fato que agora
me seria muito útil.
Subi pela estreita escada de alumínio, que levava a um pedestal de rocha. Quando
abri a escotilha do barco, à prova de água, a pequena luz sobre a roda do leme acendeu-
se.
Estava tudo em ordem. Abri a tampa da máquina e certifiquei-me de que o
dispositivo de vôo unipessoal, que escondera há dois dias, ainda se encontrava no mesmo
lugar. Durante esse tempo, Viesspahn não se interessara pelo barco.
Coloquei minha arma sobre o banco dianteiro, ativei o minirreator, do tamanho de
uma garrafa, e empurrei a chave do potente motor da bomba para a direita.
O barco arrancou com um solavanco, reagindo imediatamente à pressão do leme.
Sabia que, naquele lugar, o rio Hondo com seus cinco quilômetros de largura devia
parecer-se com um oceano fustigado pela tempestade. Mas não tive outra alternativa
senão utilizar este caminho para afastar-me da área de perigo.
Comprimi os pés contra a parede dianteira e regulei a máquina para a velocidade
máxima. O barco deu um salto para a frente, rompeu a vegetação aquática que margeava
o barranco e disparou para a grande baía.
O furor primitivo da tormenta envolveu-me. Acima das margens íngremes e
elevadas, um grupo de demônios parecia lutar pelo domínio do ambiente.
Enquanto me encontrava sob a proteção da baía, não tive maiores dificuldades.
Estas começaram quando atingi as águas abertas.
De repente, o pequeno e largo turbo-barco foi atingido pelas ondas. Até parecia que
avançara para o mar aberto. Antes de dar-me conta do que estava acontecendo, a
cobertura de plástico blindado estava sendo lavada pelas ondas espumejantes.
Quase não dei a menor atenção à fúria dos elementos. Uma vez que o vento soprava
da esquerda, tive de usar toda a força do motor para evitar que o barco fosse tangido para
a margem. Pretendia afastar-me o mais possível do barranco, a fim de que o barco fosse
envolvido pelo negrume que cobria o centro da corrente. Seria de admirar se lá ainda
conseguissem localizar-me pelo radar.
Dentro de poucos segundos, o veículo aquático, balançando e jogando em todas as
direções, saiu do abrigo que os barrancos ofereciam contra o vento. Não via mais nada.
Em torno, as águas geralmente tão tranqüilas borbulhavam como se um grupo de
monstros invisíveis estivesse empenhado em rasgar o leito do rio.
A seguir, comecei a acreditar que escapara às forças que, sem dúvida, haviam
pousado nas proximidades. Mal a idéia aflorou em minha mente, um inferno foi
desencadeado atrás de mim.
O barulho do furacão não me permitiu ouvir o ribombar dos disparos. Em
compensação, vi a luz branquicenta dos fluxos energéticos, que atingiam a água de um e
outro lado do barco saltitante, produzindo torvelinhos fumegantes.
Mantive-me absolutamente tranqüilo e inabalável. Um arcônida da minha época não
entra em pânico quando surge um fenômeno já esperado. Apenas me esforcei para fazer o
barco indomável dançar ainda mais furiosamente.
Dali a alguns segundos, os disparos atingiam a água a distâncias cada vez maiores.
Ao que tudo indicava, as miras automáticas passaram a localizar troncos flutuantes.
Depois do último lampejo, percebi que me encontrava aproximadamente no meio do
rio. Deixei o barco entregue à corrente impetuosa que, juntamente com a tormenta vinda
de trás, me afastava da zona de perigo. Seria difícil avaliar a velocidade, mesmo
aproximadamente. Vez por outra, a quilha arranhava em obstáculos. No Hondo, havia
numerosos baixios, e apenas poderia fazer votos de escapar aos mesmos.
Lancei o aparelho de imagem infravermelha, que me proporcionaria ao menos uma
ligeira visão dos arredores. O rio parecia uma gigantesca panela em ebulição. Minha
segurança era apenas relativa, pois Rhodan sabia perfeitamente que durante a tormenta
suas aeronaves seriam inúteis. Por isso, esperava que o furacão ainda durasse bastante,
muito embora o vento que vinha em rajadas indicasse que as fúrias da natureza estavam
próximas do fim.
Pelo que sabia, as célebres cataratas de Marshall ficavam cerca de treze quilômetros
abaixo do lugar do qual partira. Ali, as águas do Hondo se precipitavam de uma altura de
quase cinco quilômetros. Evidentemente não poderia arriscar um salto desses.
Vi que havia subestimado a velocidade do barco. Antes que pudesse elaborar meu
plano, ouvi um rugido que superava o da tormenta que já diminuía.
Bem à minha frente, observei algumas rochas cheias de arestas que se erguiam em
meio às águas. Pouco abaixo delas, as águas começavam a cair. Como a força da
correnteza fosse terrível, tomei imediatamente o rumo da margem ainda distante.
No último instante, consegui escapar à sucção das águas. A quilha tocou em algo.
Houve um estalo que parecia indicar desastre. O barco encalhara justamente num trecho
rochoso da margem do rio.
Desliguei o motor e esforcei-me para ouvir os ruídos vindos de fora. Bem ao leste, o
céu já começava a clarear na medida em que isso era possível na zona de penumbra. Se
quisesse aproveitar a semi-escuridão e as últimas rajadas de vento, teria que agir com a
maior rapidez.
Antes de sair da escotilha da cabine, coloquei o aparelho de vôo, formado por dois
minúsculos rotores de três paletas que giravam em sentido oposto, e que se abriam com a
força centrífuga.
No momento, as paletas elásticas estavam reduzidas a um pacotezinho, que mal
aparecia em cima da mochila, juntamente com o minúsculo reator.
Depois que desci, fui recebido pelo vento. A tormenta era muito mais forte do que
supusera no interior da cabine. Girei a popa do barco para o lado do rio, inclinei-me bem
para a frente, empurrei a chave do motor para a velocidade máxima e deixei que a
embarcação se precipitasse água adentro.
Com os olhos pensativos, contemplei o barco que se afastava em alta velocidade.
Logo foi levado pela correnteza. Dentro de poucos instantes, desapareceu em meio às
vagas.
Restava saber se Rhodan acreditaria no acidente que acabara de encenar.
“Tanto faz; procure ganhar tempo!”, disse o setor lógico de minha mente.
Confirmei com um gesto. Não havia a menor dúvida de que um pequeno ganho de
tempo assumia a maior importância. Rhodan teria o cuidado de examinar os destroços do
barco e procurar meu cadáver. Não tive a menor dúvida de que se lembraria da perigosa
catarata. Seria perfeitamente lógico contemplar a possibilidade de uma queda.
Era um estranho na região, estava fugindo e, além disso, a tormenta rugia em torno
de mim. Não haveria nada mais natural do que a suposição de que poderia ter ocorrido
um acidente.
Esperei sob a proteção do barranco até que a tormenta amainasse. Quando tive a
impressão de que o tempo já era suportável, abri a alavanca telescópica que servia para
controlar a direção e a velocidade do vôo. A pequena mochila que carregava nas costas
transformou-se num aparelho de vôo.
O zumbido do motor energético embutido na cabeça dos rotores foi superado pelo
matraquear agudo destes que se abriam. Subia suavemente ao ar brumoso e úmido, mas
preferi manter-me abaixo das copas das árvores que, se necessário, me ofereceriam um
abrigo facilmente alcançável.
Dali a poucos segundos, a maior queda d’água até então descoberta em Vênus
espumejava embaixo de mim. Senti um calafrio ao lembrar-me de que nessa altura
poderia estar lá embaixo, com o corpo esmigalhado.
Regulei a alavanca para a progressão do vôo. Desenvolvendo cerca de cento e
cinqüenta quilômetros por hora, deslizei tão perto da água que, vez por outra, levantava,
os pés para evitar os blocos de pedra que surgiam de repente.
Meu destino era Port Vênus. Num gesto de resignação, desisti de bancar o
“desaparecido”. Um homem como Perry Rhodan não se deixaria enganar tão facilmente.
Há poucas horas namorara a idéia de assumir o controle do grande centro de
computação de Vênus. Conhecia perfeitamente as instalações, e sabia como fazer para
atingir as cavernas através das galerias de emergência.
Mas agora, que Rhodan procedera com tamanha coerência para descobrir meu
paradeiro, todos os planos se haviam frustrado. Esse bárbaro de olhos cinzentos pensaria
antes de mais nada no cérebro positrônico que poderia estar exposto a um perigo. Por
isso, não tinha a menor dúvida de que o precioso centro de computação estava sendo
submetido a uma vigilância extremamente rigorosa.
Minha grande chance só poderia ficar no centro dos acontecimentos, ou seja, em
Port Vênus. Já percebera que o melhor esconderijo para um homem na minha situação era
uma grande cidade com sua turbulência. Em algum momento, surgiria a oportunidade de
apoderar-me de uma nave capaz de desenvolver velocidade superior à da luz, estacionada
no espaçoporto, ou de penetrar num veículo espacial de grandes dimensões sem ser
percebido.
Nos últimos dias, poupara meu defletor de ondas luminosas. Voltei a ligá-lo, porque
agora havia o risco de ser descoberto.
Não ouvi as aeronaves de Rhodan. Provavelmente, o soberano do sistema solar
ainda estaria ocupado no interrogatório, embora Viesspahn nada pudesse esclarecer.
Voltei a ter ânimo. De repente, a situação já não parecia tão desesperadora: chegaria
a Port Vênus.
“Aonde irá?”, indagou o setor lógico de minha mente. “Pretende procurar Marlis?”
Não; para mim a moça passara a ser tabu. Quando muito poderia contemplá-la de
longe.
Enquanto prosseguia pelo leito do rio, aproveitando tudo que pudesse representar
um abrigo, resolvi escrever a Perry Rhodan a fim de pedir clemência para Marlis. Sem
dúvida, esse bárbaro inteligente já percebera que a mesma só havia desempenhado um
papel secundário.
“Aonde irá em Port Vênus?”, voltou a perguntar meu segundo cérebro.
Procurei lembrar-me das várias possibilidades, até que o grande museu terrano me
veio à mente. Era isso mesmo! Por que não me esconderia ali? As salas eram amplas e
difíceis de serem abrangidas com a vista. Se realmente aparecesse aquele estranho
mutante com sua capacidade visual, ainda poderia escapar. De qualquer maneira, seria
uma posição favorável para agir prontamente assim que chegasse o momento.
Provavelmente teria que matá-lo. Bastaria que demorasse alguns segundos a fim de
concentrar sua mente para que eu tivesse uma boa possibilidade de atacá-lo. Um homem
do meu tipo não se impressiona com coisas aparentemente sobrenaturais. Mesmos os
mutantes de Rhodan eram apenas seres humanos com seus defeitos e fraquezas.
O plano que previa minha permanência no museu terrano deixava-me cada vez mais
feliz. Talvez a idéia fundava-se menos na lógica que no sentimento.
Ninguém conhecia o passado da Terra tão bem quanto eu. Já vivia quando os
primeiros mercadores romanos se dirigiram à Germânia para trocar as armas de ferro por
ouro e âmbar. Levei Leif Erikson a prosseguir na sua viagem para o Ocidente, até que
atingisse a costa americana.
Os numerosos objetos que deviam estar guardados nesse museu atraíam-me e
fascinavam minha mente. Além disso, no subsolo do edifício existia um restaurante, que
garantiria a alimentação.
A idéia tranqüilizava minha consciência. Meu segundo cérebro permaneceu quieto.
Ao que tudo indicava percebera que havia atingido certo estágio de esgotamento.
Provavelmente, em algum canto recôndito de minha mente, já havia fluxos
emocionais que me faziam perceber a inutilidade de prosseguir na fuga.
Era jovem de corpo e de alma, mas os séculos passados não poderiam ser deixados
de lado. Trouxeram-me um cabedal enorme de experiências e decepções. Meu saber, os
sofrimentos pelos quais havia passado e as alegrias de que desistira a contragosto atavam-
me à Humanidade com uma força muito maior do que eu mesmo estava disposto a
reconhecer.
Por que procurava escapar desses bárbaros adoráveis? Seria a teimosia, o orgulho ou
o sentimento do tradicional que me fazia agir assim? Talvez fosse certa presunção gerada
pela minha elevada ascendência. Por dez milênios, fora um mestre para a Humanidade.
Dirigira as grandes cabeças e promovera a ocorrência de fatos que a historiografia
considerava estranhos e quase inacreditáveis. Até hoje os historiadores costumam indagar
como os elefantes de Aníbal conseguiram atravessar os Alpes. Na época pretendia
destruir o poderio romano, pois não estava interessado na existência de um império
parado no tempo.
Quando quase esbarrei num galho que boiava, chamei-me à ordem. Essas reflexões
eram absurdas. Por enquanto, pretendia ir para casa, onde seria meu lugar. Provavelmente
meu venerável povo também precisaria de auxílio.
9

Logo após o anoitecer, camadas de nuvens grossas e pretas como veludo


estenderam-se sobre Port Vênus. O movimento nos salões do museu terrano foi
diminuindo, até cessar por completo.
Durante a longa noite de Vênus, os colonos costumavam permanecer em suas
fazendas, a fim de espantar os monstros que agiam na escuridão.
Quando os últimos visitantes desapareceram e as luzes acenderam-se em Port
Vênus, voltei a ativar meu defletor de ondas luminosas. Estava na hora de tomar
precauções contra os seres que ali poderiam penetrar de surpresa, e que só seriam vistos
depois de se terem materializado.
Voltei a transformar-me num ser invisível, o que entre outras coisas me levou a
vagar calmamente pelos enormes salões. Muitos dos objetos aqui expostos, e que
simbolizavam o grande passado da Terra, não eram genuínos. Todos os esforços foram
feitos para que as imitações fossem as mais fiéis possíveis, mas nem sempre esses
esforços foram bem-sucedidos.
O salão em que estavam expostas as armas da Germânia antiga e dos países
nórdicos deixou-me bastante chocado. Em parte, as espadas afiadas de ambos os lados
eram muito grandes e pesadas. Até parecia que naquela época só existiam gigantes e
atletas. Na verdade, os homens da Antigüidade geralmente eram menores e mais fracos
que os de hoje.
Em toda parte, encontrava falsificações históricas, mas ainda assim encontrei muita
coisa boa e bela. Não me cansava de contemplar as testemunhas mudas do passado
turbulento.
Fazia cerca de vinte horas que ninguém aparecia no museu. Os portões ficaram
fechados e os grandes tubos luminosos foram desligados. Apesar disso, a luz era
suficiente para que se pudesse examinar e tocar cautelosamente os objetos expostos.
Port Vênus estava dormindo. Os homens haviam trazido da Terra os seus hábitos de
vida. Uma vez que o sono era biologicamente condicionado, não havia como adaptar-se
aos longos períodos diurnos e noturnos daquele mundo estranho. Dormia-se e trabalhava-
se a intervalos prefixados, quer fizesse sol ou não.
A angústia me martirizava. Há várias horas chegara ao museu, são e salvo, e desde
então não enfrentara a menor dificuldade.
No subsolo, retirei minha ração de alimentos do autômato. Não peguei nada de
ninguém, com exceção de uma pesada arma portátil que tirei do cinto de um colono
embriagado. Só posteriormente notei que se tratava de uma arma fornecida gratuitamente
pelo governo.
O fato representava um risco, pois o homem certamente notificaria a autoridade em
relação ao objeto de que se vira privado. Acontece que seria desagradável continuar
carregando constantemente o desajeitado fuzil energético. Por outro lado, não desejava
ficar sem uma arma e, naquela altura, não considerava o radiador de choques uma arma
na verdadeira acepção do termo.
Quando os grandes portões se fecharam lá embaixo, o sentimento da solidão
começou a dominar-me. Levantei-me nervosamente do leito, que consistia na réplica da
cama de luxo de Luís XIV.
Há uma hora vagava pelos diversos setores. Parava num e noutro lugar, mergulhado
em recordações, até que voltei ao salão com os objetos da Germânia.
Bem atrás, havia um barco dos vikings. Não media mais de quinze metros, o que
não condizia com os objetos colocados no mesmo. Os barcos do século IX eram maiores.
Os bonecos de plástico deveriam representar vikings noruegueses. As vestimentas e
as armas eram aproximadamente corretas. Apenas, os capacetes pontudos enfeitados com
chifres haviam sido providos de protetores de nariz e orelhas feitos de ferro. Isso não
correspondia à verdade. Já havia visto um capacete desse tipo, mas o mesmo provinha de
uma oficina pertencente a Carlos Magno.
Parei diante do boneco que representava um enorme viking. Sua mão direita
segurava uma espada afiada de ambos os lados e a esquerda, um escudo redondo.
Sim, era mais ou menos assim que foram aqueles homens rudes e destemidos do
Norte. Recuei para examinar melhor o boneco.
Porém, ouvi o ruído produzido pela ponta de lança que penetrava no boneco. A haste
do artefato, arremessado com uma força terrível, balançava...
O ferro cravara-se bem no peito do boneco. O objeto de plástico começou a
cambalear e finalmente tombou lentamente, como que a contragosto. A lança caiu
ruidosamente ao solo.
Parei estupefato. Ouvi o rufo de tambores. Levei algum tempo para compreender
que eram as batidas de meu coração.
Virei lentamente a cabeça, tendo o cuidado de não tirar os pés do chão. Não vi
ninguém. O salão, perfeitamente visível em todos os cantos, estava vazio como nas horas
precedentes.
Havia alguém, mas não vi nenhuma criatura humana. Quem me teria golpeado com
minhas próprias armas?
Continuei a confiar no campo de deflexão, motivo por que não saí do lugar. Se
algum mutante tivesse penetrado ali, não seria o espia, pois o mesmo não possuía o dom
da teleportação. Quem teria penetrado ali, e de que forma teria arremessado a lança?
— Se eu fosse você, já teria mudado de lugar, arcônida — disse um homem em tom
irônico.
Comprimi as mãos contra a boca, para reprimir um gemido. Por um instante, meus
pés pareciam paralisados. Quando procurei movê-los, recusaram-se a obedecer.
A voz era inconfundível.
— Estou adivinhando seus pensamentos, arcônida — soou a voz de Rhodan, que
ressoava pelo amplo salão.
O tom irônico em que foram proferidas estas palavras fizeram meu sangue ferver. A
estupefação diminuiu rapidamente. Logo recuperei o autocontrole. Porém achei preferível
não mudar de posição, a fim de não produzir qualquer ruído que pudesse trair-me. Talvez
fosse por simples coincidência que a lança atingira o boneco tão perto do lugar onde me
encontrava.
Não respondi. Por um instante, o silêncio foi total. Subitamente ouvi a risadinha de
Rhodan. A cólera apoderou-se de minha mente. Quem dera que esse homem não
demonstrasse uma arrogância tão repugnante!
— Poderia tê-lo matado, oh, imortal — disse meu inimigo invisível. — É estranho,
não é? Como é que um imortal pode ser tão vulnerável? Já sei o que vem a ser o aparelho
que você costuma carregar no peito. Examinei certos relatórios do século dezessete. Um
médico de Gustavo Adolfo, rei dos suecos, deixou um manuscrito no qual relata uma
operação bastante estranha. Um homem alto e louro vindo do norte deu-lhe instruções
exatas sobre a maneira de realizar a intervenção. O médico falou num “recipiente
brilhante” com uma agulha na ponta. O oficial louro espetou-se com a mesma e depois
disso perdeu a sensação da dor. O médico teve que retirar de seu estômago um objeto
vermelho e brilhante em formato de ovo. Foi você, arcônida. Será que pretende negar?
Não respondi. Pois bem; haviam descoberto meu segredo. Meu raciocínio
embrutecera tanto que o fato não provocou a menor sensação em minha mente.
— Pode contar. — voltou a falar a voz. — Tenho sua imagem na tela do localizador
individual. Como sabe, possuímos todos os dados relativos à freqüência de suas vibrações
orgânicas. Não haveria nada mais natural que construir um aparelho especialmente
adaptado às mesmas, não é? Em parte, as vibrações de suas células desenvolvem-se na
quinta dimensão. Por isso não são absorvidas pelo campo de deflexão. Não acha que
somos inteligentes?
“Inteligentes demais”, avisou meu segundo cérebro.
Isso mesmo! Rhodan acabara de cometer um erro. Conhecia as irradiações de meu
organismo. Eram mínimas e só poderiam ser captadas se o receptor estivesse
perfeitamente ajustado. Bastaria dar alguns passos para colocar-me fora do alcance do
localizador. Depois que me procurasse, esse bárbaro de olhos frios.
Saí correndo. Foram os saltos do desespero que me fizeram passar por cima do
barco e abrigar-me atrás do mesmo. Deitei no chão e procurei um alvo para minha arma.
Esforcei-me para ouvir a respiração de Rhodan. Teria de encontrá-lo, mesmo que
estivesse usando um defletor de ondas luminosas igual ao meu. Provavelmente mandara
retirar o aparelho de um traje arcônida. Por que não me lembrara dessa possibilidade?
— Não adianta — gritou.
Os sons pareciam vir do lado da porta, mas era possível que estivesse enganado.
Neste recinto as ondas sonoras sofriam numerosas interferências.
— Não adianta mesmo — enfatizou Rhodan. — Este salão possui uma única porta,
e meus homens estão de guarda. Vim sozinho para provar que o poder que você quer
encarnar já não é o mesmo de mil anos atrás. Entregue-se, arcônida!
Quase cheguei a trair-me. Rhodan principiara com uma campanha psicológica.
Provavelmente procurava colocar-me outra vez na tela de seu localizador. Viera só
porque não havia outra possibilidade. Talvez um teleportador o tivesse colocado
diretamente diante da porta. Duvidava de que seus homens se encontrassem do lado de
fora. Rhodan costumava lidar em pessoa com os assuntos difíceis. Quanto mais esperava,
maiores seriam suas chances de bloquear o museu.
De repente, o achei odioso. Sempre fora a barreira que se opunha ao curso das
minhas ações.
O silêncio começava a tornar-se penoso. Meu instinto dizia-me que o jogo devia
irritá-lo. Conhecia as pessoas do tipo de Rhodan. Deixam passar uma boa chance, apenas
para satisfazer a vaidade pessoal. Deveria ao menos ter-me ferido com a lança quando
ainda não tinha a menor idéia da sua presença.
Estava procurando outro abrigo quando outro objeto atravessou o ar com um chiado.
Antes que esfacelasse as tábuas do barco, reconheci a direção do vôo. Devia encontrar-se
ao lado direito da porta.
Levantei o radiador de impulsos; mas preferi não atirar. No último instante, lembrei-
me dos efeitos devastadores que um incêndio de grandes proporções causaria naquele
local. Talvez nem conseguisse sair do salão.
Hesitei. Rangi os dentes de raiva, baixei a arma e procurei pegar a arma de choque,
relativamente inofensiva. Ao que parecia, Rhodan também sabia por que atirava lanças.
Ouvi sua risadinha. Descobrira-me.
— Você está preso ao passado, não é? Seria uma pena queimar todas estas coisas
bonitas. Você está novamente na minha tela, arcônida. Vejo-o atrás do barco dos vikings.
Já percebeu que poderia matá-lo com um tiro energético?
Perdi o autocontrole. A calma de Rhodan e o tom de superioridade ao pronunciar
aquelas palavras despertaram em minha mente o orgulho desarrazoado e teimoso, que
sem o menor fundamento lógico exige uma auto-afirmação.
Esse traço emocional, bastante pronunciado nos arcônidas da minha linhagem, já me
colocara várias vezes em perigo de vida.
Saí de trás do meu abrigo, apenas para provar que dispensava conscientemente a
compaixão oferecida.
— Que gesto heróico! — disse a voz de meu inimigo invisível. — Não faça tolices.
Meus homens realmente estão lá fora, e Wuriu Sengu o verá imediatamente, mesmo que
consiga chegar à porta.
Sabia que estava blefando. Não havia ninguém lá fora.
O orgulho vão e a vaidade ferida fizeram-me dar um passo que, naquele momento,
poderia parecer absurdo. Acontece que vi nele minha última chance.
Nunca poderia acertá-lo, porque depois de cada arremesso de lança mudava de
posição. Devia fazê-lo abandonar sua posição favorável antes da chegada dos homens
que poderiam ajudá-lo. Se resolvesse atirar, estaria perdido. Confiei nos traços de seu
caráter, que provavelmente não lhe permitiriam atirar contra um homem indefeso. No
meu íntimo, declarei-lhe a guerra psicológica.
Com um baque surdo, minhas armas caíram ao chão. Rhodan riu.
Depois disse-lhe com uma ironia igual à que vinha usando comigo:
— Pode atirar, seu bárbaro de uma figa. Devo estar bem visível. É uma pena que
poucos dias atrás não puxei o gatilho. Você estava na minha mira, depois que teve a idéia
idiota de destruir o helicóptero vermelho de Viesspahn. Será que você realmente
acreditava que não percebi suas intenções? Encontrava-me a seu lado quando deu ordem
para revistar os destroços.
Desta vez fui eu quem riu. Ao que parecia, minhas palavras roubaram-lhe a fala. De
repente, o jogo me estimulava. Avancei mais um passo, desligando meu campo de
deflexão. Tornei-me visível.
Quando me abaixei para tirar a espada da mão de plástico do boneco viking
derrubado, só poderia fazer votos de que Rhodan não tivesse um radiador de choques.
Dificilmente atiraria com o mortífero radiador energético.
Coloquei-o diante de um difícil problema de consciência, calculando tranqüila e
minuciosamente os diversos fatores e considerando suas fraquezas. Se tivesse a
imprudência de aceitar meu desafio...
Pesei a espada na mão direita, levantei-a e dirigi-me lentamente à porta que ficava a
menos de quarenta metros.
Rhodan continuava calado. Todos os sentimentos pareciam ter morrido em minha
mente. Meu sexto sentido envolveu-me numa letargia dolorosa. Nem um único impulso
conseguiu romper o bloqueio.
Caminhei lentamente sobre o forro brilhante de plástico que revestia o soalho. Meus
sapatos rangiam. Afastava-me cada vez mais das armas realmente eficientes que deixara
no chão.
Num escudo polido, percebi que meus lábios se haviam contorcido num sorriso
sarcástico. Transformara-me no desafio em pessoa. Só mesmo um patife sem o menor
sentimento de decência atiraria contra mim de uma posição absolutamente segura.
Quando alcancei o centro do salão, já sabia que ele não tinha nenhuma arma de
choque. Sem dúvida, refletia febrilmente sobre o meio de colocar-me fora de ação.
Se seus homens se encontrassem do outro lado da porta, não deixaria de chamá-los
numa situação como essa. Afinal, eu não estava mais invisível. Afinal, seu orgulho e
espírito humanitário não iriam ao ponto de dar uma boa chance a um elemento perigoso
como eu.
— Pare! — disse. — Se der mais um passo, serei obrigado a matá-lo. Não pense que
escapará depois de tanto trabalho para descobri-lo. Arcônida, cometeu um erro ao vir a
este museu. Meus psicólogos calcularam que este edifício seria um local de permanência
muito atraente para você. Além disso, roubou a arma de um colono. Encontramos suas
impressões digitais no coldre, que evidentemente foi examinado assim que o homem
denunciou a perda.
As palavras foram sendo pronunciadas cada vez mais apressadamente. Rhodan
encontrava-se num beco sem saída. Desconfiei de que a denúncia do furto da arma fora
dada com alguma demora. Talvez, antes disso, o colono procurou descobrir pessoalmente
a preciosa arma. Ninguém saberia dizer quais foram as pessoas de quem chegou a
suspeitar.
— Foi uma ótima idéia, homem das cavernas. Depois você veio imediatamente, não
é?
Escutei minhas próprias palavras. Enquanto isso, caminhava tranqüilamente em
direção à porta. Estaria percebendo minha tensão interna?
Será que sabia, ou ao menos imaginava, que como gladiador enfrentei na arena
romana os homens mais hábeis no manejo da espada?
Em caso afirmativo, nunca se deixaria levar a enfrentar-me com esse tipo de arma.
Até onde conseguira investigar meu passado? Apenas até o tempo de Gustavo Adolfo?
Naquele tempo, já se lutava com outro tipo de espada. Será que seu orgulho e
autoconfiança seriam suficientemente fortes para incutir-lhe a idéia de que estaria em
condições de bater-se comigo? Se já tivesse recebibo lições de esgrima, dificilmente
deixaria de ter essa idéia, ainda mais que eu tanto o provocava.
Qual teria sido o currículo de Rhodan? Será que naquele tempo a esgrima constava
do programa da academia espacial? Não sabia, mas a conduta, que ele adotasse dali em
diante, me esclareceria a este respeito.
Quando me encontrava a vinte passos da porta, uma lança germânica saiu do
suporte. Mais adiante estavam expostas armas alemãs.
Metade da lança desapareceu no campo de deflexão de Rhodan. Apenas a ponta
larga continuava visível. Foi levantada. Estava assumindo a posição de arremesso.
— Pare! — advertiu em tom apressado. Sua voz vibrava. Rhodan encontrava-se sob
os efeitos do flagelo psicológico. Esse homem não atiraria contra mim com uma arma
atômica, Meus cálculos foram corretos.
— Você sabe atirar, bárbaro — disse com um sorriso.
Depois arremessou para valer. Vi a ponta reluzente da lança deslocar-se rapidamente
para trás. Estava tomando impulso. Quando o projétil cortou o ar, desviei- me com um
salto rápido. Minha gargalhada sarcástica acompanhou a lança que acabara de errar o
alvo.
Continuei a caminhar em direção à porta. Conforme esperava, Rhodan tornou-se
visível de um instante para outro. Usava um uniforme simples. Com o corpo encurvado e
a pistola apontada para mim, mantinha-se junto à coleção de armas germânicas. Seus
olhos chamejavam. O problema de consciência martirizava-o.
— Se fosse você já teria atirado, bárbaro — disse em tom tranqüilo.
Um suspiro profundo e raivoso saiu de seu peito. A arma de impulsos desapareceu
no coldre. Com um movimento rápido, pegou uma espada.
— Seu rebento arrogante do Império! — exclamou. — Se você pensa que eu...
— Apenas penso que já teria atirado. Lamento não ter usado suas costas como alvo
— interrompi-o com nova menção do fato de ter poupado sua vida. Essa observação
arrasava-o moralmente, mas no estado de exaltação em que se encontrava não descobriu a
finalidade de minhas palavras.
Dali a alguns segundos, vimo-nos frente a frente. Estendeu a espada pesada para a
frente, à maneira do esgrimador. Não se lembrou do fato de que, com um instrumento
pesado como este, não se devem fazer brincadeiras dessa espécie.
Golpeava como se segurasse uma lâmina leve. Não agüentaria mais que dois
minutos: seu braço perderia a força.
Defendi-me sem maiores dificuldades, saltitando para o lado. Depois de meu
primeiro golpe, que lhe arranhou o braço, percebeu que cometera um engano fatal.
Notei a rigidez de seu rosto. Investia contra mim sem dizer uma palavra. A cena era
igual à que se costuma ver em filmes de terceira categoria. Defendia-me dos seus golpes
furiosos, até que consegui acertar um golpe contra seu tornozelo direito.
No último instante, girei a espada. Assim, sua perna só foi atingida pela parte larga
da lâmina. Apesar disso, soltou um grito e tombou ao chão. Antes que Rhodan
conseguisse reprimir os gemidos, a ponta de minha lâmina exercia uma pressão sensível
contra sua garganta. Com o pé, retirei o radiador energético do coldre aberto.
Subitamente Rhodan calou-se. Seu rosto tornou-se abatido; os cabelos desgrenhados
cobriam sua testa.
Nossos olhos encontraram-se. Apertei mais um pouco.
— Então, seu barbarozinho — disse baixinho e sem qualquer entonação. — Acho
que você só sabe lidar com canhões de radiação.
— Eu o odeio, arcônida! — disse.
Não se atrevia a mover um dedo.
— Foi o que o gladiador romano Marco Vinício me disse quando sentiu a ponta de
minha espada em sua garganta. Vinício caíra no desagrado de Nero, por ter feito algumas
observações infelizes sobre o imperador divino. Nero baixou o polegar. Quem será que
deve dar o sinal no presente caso? Como é que a gente pode cair numa destas? É claro
que seus comandos não estão por aqui.
Rhodan fechou os olhos e conteve a respiração. Aumentei a pressão. Quando as
primeiras gotas de sangue afloraram-lhe no pescoço e suas mãos começaram a tremer na
angústia inconsciente da morte, retirei a arma.
Dei vazão ao meu nervosismo através de uma risada estridente e histérica. Ainda
estava rindo quando Rhodan já se sentara e esfregava o tornozelo.
Não; eu não queria mais fugir. Não tinha forças! E minha vitória sobre Rhodan
confirmara tudo aquilo que já sentira. Sabia que estava desperdiçando um tempo
precioso. De um instante para outro, poderia receber auxílio. Tivera a intenção de levá-lo
a envolver-se na luta para tornar-me invisível e desaparecer.
Preferi não agir assim. Tudo se tornara muito absurdo. Mesmo que conseguisse
escapar, dali a poucos dias os agentes do serviço de defesa de Vênus usariam centenas de
localizadores individuais. Nunca conseguiria entrar numa nave espacial sem que ninguém
o percebesse. Decerto, já notara que minha fuga chegara a um beco sem saída. Tanta
coisa estava mudada.
Atirei a espada para o lado, abaixei-me e apalpei sua perna. Rhodan ficou calado.
Apenas seus lábios tremiam.
— Você deveria tirar uma radiografia, meu caro — disse em tom tranqüilo. — Tive
que golpear para fazê-lo cair. É possível que o osso esteja fraturado.
Depois disso ficamos sentados lado a lado, olhando-nos.
Passado algum tempo respondeu em voz baixa:
— Não gostaria de defrontar-me com você na época áurea do Império, Atlan. Qual é
a sua idade?
— Pouco mais de dez mil anos terranos — respondi, também em voz baixa. — O
centro de computação de Vênus foi construído sob minha direção.
Em seus olhos, surgiu um brilho no qual reconheci, num acesso de alegria, uma
expressão de respeito. Por que tivemos a intenção de matar-nos?
— Ainda quer ir para casa? — perguntou.
Sacudi lentamente a cabeça. Não, já não queria ir para casa. O que iria fazer no
planeta Árcon?
— Não menti. O Grande Império se encontra numa situação extremamente difícil.
Ajude-me a substituir o regente. Nós, os humanos, precisamos de gente como você.
Sorri sem dizer uma palavra. Esses bárbaros pequeninos e tão ambiciosos sempre
necessitaram do meu auxílio.
Senti a mão de Rhodan pousada no meu ombro. Ainda se encontrava lá quando o
rato gigante subitamente materializou-se em meio à sala de armas antigas. Vi que o
“sujeitinho” segurava uma arma energética. Ao ver-nos reunidos em atitude tão pacífica,
sua boca abriu-se numa careta de espanto. O cano da arma apontou para o chão.
— Olá — disse o rato gigante em voz estridente. — Isso deve ser um espetáculo
especial, não é?
— Fora! — ordenou Rhodan em tom tranqüilo. — Saia logo, senão ele voltará a
atingi-lo com os raios paralisantes. Chame alguns robôs enfermeiros. Acho que meu
tornozelo está fraturado. Não, nada disso. Quero que você dê o fora; não quero que faça
perguntas.
Fechei os olhos, apavorado, quando o ser extraterrano se pôs a esbravejar. Rhodan
escancarou a boca de tão espantado que ficou com o vocabulário de seu “estranho”
amigo.
— Ainda ajustaremos contas! — esbravejou o ser peludo antes de desaparecer num
salto de teleportação.
Apesar da dor, Rhodan soltou uma risada. Arrependi-me de ter golpeado. Muito
abatido, pedi desculpas.
— OK; esqueça-se disso — disse com um gesto de desprezo. — Lá no espaço o
inferno está às soltas. Receio que não demorarão em desmascarar a história de minha
pretensa morte. Teria algumas tarefas para você, almirante.
Um sentimento estranho apossou-se de mim. Voltei devagar a cabeça em sua
direção.
— Você estaria disposto a confiar-me uma nave espacial?
Confirmou com um gesto.
— Se necessário confio-lhe uma frota. Se você ama seu povo, terá que fazer causa
comum com os humanos. Que diabo! Onde estarão os robôs enfermeiros?
Chegaram dali a poucos minutos e colocaram Rhodan numa maca. Um oficial do
serviço de defesa fez continência. Já era meu conhecido. Tratava-se do general Kosnow
em pessoa.
Caminhei ereto entre os homens do comando terrano que chegou momentos depois.
O tenente Gmuna era um deles. Ria com os olhos alegres.
Dali em diante eles seriam dos meus, ou eu seria um deles, conforme se quisesse.
Depois que Rhodan foi colocado no aparelho, também entrei no grande helicóptero.
— Uma certa Marlis Gentner o espera na chefatura — cochichou Gmuna. —
Chegou ontem e implorou para que tivéssemos compaixão pelo senhor. Será que isso não
poderia ser evitado?
— Poderia, meu filho — respondi em tom tranqüilo. — Acontece que, segundo me
parece, uma pessoa de meu tipo precisa de um certo tipo de auto-afirmação. Eu mesmo
não sei dizer exatamente do que se trata.
A máquina decolou. A meu lado estava deitado um homem cujos lábios vez por
outra se contorciam de dor. Mas, quando ria, sua risada era franca e alegre. Afinal, Perry
Rhodan era mesmo uma criatura digna de minha estima.
— Você deve ter muita coisa para contar — disse.
Respondi com um gesto pensativo. Poderia contar histórias por anos a fio. Os
milênios haviam proporcionado o assunto.

***
**
*

Atlan já não representa perigo para a existência do


Império Solar, pois o arcônida percebeu que qualquer
oposição aos planos de Rhodan seria insensata... Torna-
se aliado de Perry.
No próximo livro da série, A Sombra do
Supercrânio, surge um acontecimento com o qual
ninguém contava: os mutantes se revoltam.

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