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Ciência & Saúde Coletiva

ISSN: 1413-8123
cecilia@claves.fiocruz.br
Associação Brasileira de Pós-Graduação
em Saúde Coletiva
Brasil

Fagundes Júnior, Hugo Marques; Desviat, Manuel; Fagundes da Silva, Paulo Roberto
Reforma Psiquiátrica no Rio de Janeiro: situação atual e perspectivas futuras
Ciência & Saúde Coletiva, vol. 21, núm. 5, mayo, 2016, pp. 1449-1460
Associação Brasileira de Pós-Graduação em Saúde Coletiva
Rio de Janeiro, Brasil

Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=63045664012

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DOI: 10.1590/1413-81232015215.00872016 1449

Reforma Psiquiátrica no Rio de Janeiro:

artigo article
situação atual e perspectivas futuras

Psychiatric Reform in Rio de Janeiro:


the current situation and future perspectives

Hugo Marques Fagundes Júnior 1


Manuel Desviat 2
Paulo Roberto Fagundes da Silva 3

Abstract This article analyzes the mental health Resumo O artigo analisa a rede de saúde men-
network in the city of Rio de Janeiro. It provides a tal do município do Rio de Janeiro, objetivando
report on the current status of the implementation efetuar um balanço sobre a atual situação da im-
of psychiatric reform and identifies progress, lim- plementação da Reforma Psiquiátrica e apontar
itations and challenges in this area. Documenta- avanços, limites e desafios. Foi realizada pesquisa
ry research was carried out by examining official documental através de documentos oficiais, por-
documents, ordinances, SUS databases, informa- tarias, bancos de dados do SUS e informações
tion that was available at the Superintendency of disponíveis na Superintendência de Saúde Mental
Mental Health of the city of Rio de Janeiro, and do Município do Rio de Janeiro, e revisão de lite-
a literature review of Brazilian and international ratura especializada em artigos científicos nacio-
scientific articles. The results point to important nais e internacionais. Os resultados apontam para
advances in the de-institutionalization of care, importantes avanços na desinstitucionalização da
with a substantial reduction in the numbers of assistência, com substantiva redução de leitos psi-
psychiatric beds, and increased community fa- quiátricos e aumento dos dispositivos comunitá-
cilities. However, the following significant chal- rios. Entretanto, permanecem ainda como desafios
lenges remain: the need for increased coverage by importantes: o aumento de cobertura dos centros
psychosocial care centers; the implementation of de atenção psicossocial, a implantação de leitos
psychiatric beds in general hospitals; the integra- psiquiátricos em hospitais gerais, a integração da
tion of mental health with primary health care; saúde mental com a atenção primária, a desins-
1
Superintendência de the de-institutionalization of people who remain titucionalização de pessoas em situação de longa
Saúde Mental, Secretaria
Municipal de Saúde do Rio in hospitals for long periods; the expansion of the permanência hospitalar, a ampliação do quanti-
de Janeiro, Prefeitura da number of residential facilities; and an increase in tativo de dispositivos residenciais e o aumento da
Cidade do Rio de Janeiro. the provision of specific services for people using provisão dos serviços específicos para pessoas em
R. Afonso Cavalcanti 455,
Cidade Nova. 20211-110 alcohol and other drugs. uso prejudicial de álcool e outras drogas.
Rio de Janeiro RJ Brasil. Key words De-institutionalization, Mental health, Palavras-chave Desinstitucionalização, Saúde
hugofagundes@uol.com.br Psychiatric reform, Brazil mental, Reforma psiquiátrica, Brasil
2
Associação Espanhola
de Psiquiatria. Madrid
Espanha.
3
Departamento de Ciência
Sociais, Escola Nacional de
Saúde Pública, Fiocruz. Rio
de Janeiro RJ Brasil.
1450
Fagundes Júnior HM et al.

Introdução apontado para um desmonte paulatino do im-


portante conjunto de leitos em hospitais psiqui-
A reforma psiquiátrica brasileira surge nos úl- átricos constituído na cidade. Esta estrutura hos-
timos anos da década de 1980, em tempos de pitalar foi em parte herdada do governo federal
reconstrução democrática da sociedade com o (três unidades municipalizadas, a partir de 1996)
fim da ditadura militar, em um contexto de re- e em parte fruto da intensa política de privatiza-
forma do setor saúde. A I Conferência Nacional ção das décadas de 1960 e 1970.
de Saúde Mental, realizada em 1987, pode ser A saúde mental consolidou-se como política
considerada o momento inaugural da Reforma. municipal efetiva a partir de 1996, no contexto da
Seus antecedentes se encontram no final dos anos realização de um censo dos pacientes internados
70, quando diversos segmentos da sociedade li- nos hospitais psiquiátricos da cidade, que apon-
gados a luta contra o regime militar organizaram tava para um significativo número de pacientes
o Movimento Nacional de Luta Antimanicomial, em situação de longa permanência e uma con-
voltado para buscar radicais transformações no centração da assistência nos equipamentos hos-
campo assistencial público, em uma saúde men- pitalares5,caracterizando um quadro de atenção
tal que superava o modelo asilar em um sistema custoso e inadequado. A constatação da necessi-
de saúde que garantia uma atenção universal1. dade de mudança no modelo teve como efeito a
Dado o começo tardio do processo brasileiro, implantação dos primeiros Centros de Atenção
já se conheciam as dificuldades e acertos dos pro- Psicossocial (o primeiro em 1996), seguida de
cessos de reforma psiquiátrica que o antecede- outros dispositivos de base comunitária.
ram, a complexidade de um processo assistencial O objetivo deste artigo é efetuar um balanço
que cria novos sujeitos, antes ocultos atrás dos sobre a implementação da Reforma Psiquiátrica
muros dos manicômios, novas demandas e no- no município do Rio de Janeiro, apontando seus
vos direitos. A necessidade de uma rede socios- avanços, limites e desafios. Em termos metodoló-
sanitária ampla e de uma organização que devia gicos, foi realizada pesquisa documental através
atender não só as pessoas desospitalizadas, mas de documentos oficiais, portarias, bancos de da-
também os novos perfis de cronicidade e de so- dos do SUS e informações disponíveis na Supe-
frimento psíquico2. rintendência de Saúde Mental da Secretaria Mu-
O processo de desinstitucionalização ganhou nicipal do Rio de Janeiro, e seus resultados dis-
intensidade na década de 1990, com a incorpora- cutidos à luz deliteratura científica sobre o tema.
ção dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS)
na estrutura de serviços do Sistema Único de Saú- A cidade do Rio de Janeiro e a rede de saúde
de, estando em curso no Brasil, um processo de
Reforma Psiquiátrica voltado a superar a supre- A população estimada para 2015 é de
macia do modelo assistencial centrado no hospi- 6.476.631 habitantes, em uma área territorial de
tal psiquiátrico, com seu efeito de exclusão dos 1.197.463 km²e uma densidade demográfica de
portadores de transtornos mentais do seio da so- 5.265,8 habitantes/km². Seu Índice de Desenvol-
ciedade. Esta transformação foi chancelada pela vimento Humano, em 2011, foi de 0,799 e equi-
promulgação da Lei nº 10.216 de 06/04/20013, vale ao 45° do país e ao 9º dentre as capitais. De
que redireciona o modelo assistencial em saúde acordo com o censo de 2010, a cidade apresentou
mental na direção da atenção comunitária, da in- um crescimento demográfico de 7.9 % em 10
tegração social e a produção da autonomia das anos, esperança de vida ao nascer de 75,7 anos e
pessoas, sendo também balizada pelas diretrizes 14,9% de idosos na população. A pirâmide etária
políticas da III Conferência de Saúde Mental, re- evidencia um processo de transição demográfica
alizada no mesmo ano1. e o envelhecimento da população6.
Como resultado desta política, os leitos em A Cidade é bastante heterogênea, apresen-
hospitais psiquiátricos do SUS foram reduzidos tando diferentes graus de desenvolvimento e
dos 85.000 existentes, ao final da década de 1980, desigualdade na distribuição e utilização dos re-
para menos de 26.000, em 2014, com a implan- cursos de saúde. No plano administrativo, os 160
tação concomitante de mais de 2.200 centros de bairros estão distribuídos em dez Áreas de Plane-
atenção psicossocial e de quase 700 residências jamento. As doenças crônicas não transmissíveis
terapêuticas para pacientes que se encontravam correspondem a 33,7% do total de internações
em situação de longa permanência4. pagas pelo SUS. As internações psiquiátricas, que
Seguindo as diretrizes da política nacional, a representavam o terceiro maior gasto com inter-
política de saúde mental do Rio de Janeiro tem nações há vinte anos, hoje se encontram no sexto
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lugar. Cerca de 90 % da rede de saúde do SUS do com população acima de 20.000 pessoas, e CAPS
Rio de Janeiro está sob administração pública e, II, para o atendimento de municípios com popu-
nesse grupo, 84,53% ligada à administração mu- lação acima de 70.000 pessoas. Os CAPS III e o
nicipal. A participação privada no SUS da cidade CAPS III AD (álcool e drogas) teriam capacidade
é de 11,49%. A rede municipal de saúde conta para atender municípios cujas populações este-
com 29 unidades hospitalares próprias, dentre jam acima de 200.000 habitantes, com a diferença
elas três hospitais psiquiátricos próprios e três em relação aos anteriores de constituir-se em ser-
enfermarias psiquiátricas em hospitais gerais. A viço de atenção contínua, durante 24h, incluindo
Cidade ainda conta com um hospital psiquiátrico feriados e finais de semana, e de contar com leitos
universitário (o Instituto de Psiquiatria da Uni- integrados ao serviço para o acolhimento notur-
versidade Federal do Rio de Janeiro), um estadual no. Além das três modalidades, existem serviços
(o Centro Psiquiátrico do Rio de Janeiro) e dois territoriais para clientelas específicas na área de
contratados ao SUS (Hospital Pedro de Alcântara álcool e drogas (CAPS AD), para municípios com
e Sanatório Rio de Janeiro). A rede de urgência população acima de 70.000 pessoas, e para a in-
e emergência tem 14 Unidades de Pronto Aten- fância e adolescência (CAPS i) para municípios
dimento e 5 Centros Regionais de Emergência7. com população acima de 150.000 pessoas10,11.
No que tange a atenção primária, a cidade vi- Até outubro de 2015, existiam 29 CAPS na
veu nos últimos anos um considerável aumento cidade do Rio de Janeiro, com maior destaque
da cobertura nos moldes da Estratégia de Saúde para os CAPS tipo II (37,9%). Em seguida os
da Família, modelo adotado pelo Ministério da CAPSi (27,6%), CAPSad III (13,8%), CAPSad II
Saúde. Até 2009, 83% do orçamento municipal (10,3%) e CAPS III (também com 10,3%) (Ta-
era gasto com despesas hospitalares e o Rio de Ja- bela 1). A maioria dos CAPS está sob gestão da
neiro tinha alguns dos piores indicadores de saú- Secretaria Municipal do Rio de Janeiro, com ex-
de das capitais brasileiras. A cobertura da Aten- ceção de 1CAPSi vinculado ao governo federal e
ção Primária em Saúde (APS) passou de 3.3% 1 CAPS II e um CAPSad II sob responsabilidade
para 47,16 % da população entre 2009 e 2014, e da gestão estadual.
durante esse período ocorreu um expressivo in- O Município do Rio de Janeiro apresenta um
vestimento na expansão e qualificação da atenção índice de cobertura de CAPS de 0,50 por 100.000
primária em paralelo com uma considerável des- habitantes considerada boa pelos parâmetros do
centralização administrativa e financeira8. Ministério da Saúde, que considera a cobertura
Como outras grandes cidades brasileiras, a muito boa acima de 0,70, boa entre 0,50 e 0,69
cidade tem uma importante cobertura de pla- e regular/baixa entre 0,35 a 0,49, sempre para
nos de saúde privados equivalente a cerca de 100.000 habitantes. Abaixo destes patamares, a
3.400.561 pessoas, o que corresponde 52,5 % da cobertura seria baixa, insuficiente ou crítica. Ob-
população9. servar que para este indicador, utiliza-se o cálcu-
lo de cobertura ponderada por porte do CAPS.
Os Centros de Atenção Psicossocial Assim, os CAPS I têm território de abrangência e
na cidade do Rio de Janeiro cobertura de 50.000 habitantes; os CAPS III e AD
III, de 150.000 habitantes; os demais CAPS (II,
Como no restante do país, os CAPS são ser- Ad e i), cobertura de 100.000 habitantes12.
viços estratégicos para a organização da rede de
atenção à saúde mental para a consolidação da
Reforma Psiquiátrica Brasileira.Seu funciona-
mento segue as diretrizes emanadas do Minis-
tério da Saúde, que diferenciam os serviços de
acordo com a densidade populacional do territó- Tabela 1. Centros de atenção psicossocial existentes
no Município do Rio de Janeiro - outubro de 2015.
rio ou do município, horário de funcionamento,
população atendida, capacidade de acolhimento Tipos de CAPS Quantidade Porcentagem
à crise, além dos profissionais que compõem a CAPS II 11 37,9%
equipe. CAPS III 3 10,3%
Os CAPS apresentam configuração organiza- CAPSi 8 27,6%
cional de CAPS I, CAPS II e CAPS III em função CAPSad II 3 10,3%
da complexidade dos serviços e da responsabi- CAPSad III 4 13,8%
lidade populacional. O CAPS I teria capacidade Total 29 100,0%
operacional para atendimento em municípios Fonte: CNES/Ministério da Saúde, outubro de 2015.
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Fagundes Júnior HM et al.

Em relação a modalidade dos CAPS, convém Estudo realizado sobre as condições de aces-
observar que quase um quarto dos dispositivos sibilidade dos CAPS do Estado do Rio de Janeiro
são do tipo III (24,1 %). Esta é uma tendência ins- apontou para o pequeno número de altas. Os au-
taurada a partir de 2010 quando foi inaugurado o tores consideraram que uma possível explicação
primeiro CAPS III da cidade. Pelo seu porte (lei- para o fenômeno era o próprio perfil de uma par-
tos, funcionamento noturno e final de semana), te da clientela, composta por usuários com trans-
os CAPS III demandam exigências de custeio mais tornos mentais severos e persistentes, que pode-
elevadas. Analisando a implantação dos CAPS tipo riam demandar cuidado de longo curso para pre-
III nos grandes municípios brasileiros, Costa et al. venir recaídas e minimizar a perda da autonomia
constaram que, em 2010, apenas 17 % dos muni- e das habilidades para a vida diária15. Explicações
cípios com mais de 200.000 habitantes possuíam adicionais poderiam estar relacionadas com a es-
CAPS III em sua rede de serviços13. A ampliação cassez de ambulatórios especializados na rede ou
do porte dos CAPS é vital para o enfrentamento a institucionalização de usu­ários que acabam por
qualificado do cuidado às crises mais graves. se tornar demasiadamente vinculados aos servi-
A ampliação da cobertura dos Centros de ços, em uma situação de li­mitação de interesses e
Atenção Psicossocial é indispensável e consiste de vínculos sociais16.
em um dos principais desafios para a gestão mu- No que tange aos ambulatórios especializa-
nicipal. Uma meta tangível para os próximos dois dos pode-se dizer que esta é uma limitação da
anos poderia ser um aumento de cobertura para rede da cidade do Rio de Janeiro e um desafio
0,64 por 100.00 habitantes com a implantação de para as Políticas Públicas de Saúde Mental no
sete novos serviços (quatro na modalidade III e Brasil, tendo em vista que esses dispositivos não
três nas modalidades CAPS II, Ad ou i). são reconhecidos como integrantes da Rede de
O cuidado, no âmbito dos CAPS, é desenvol- Atenção Psicossocial (RAPS)11. O resultado foi
vido por intermédio de Projeto Terapêutico Indi- uma redução dos recursos especializados de nível
vidual, envolvendo em sua construção a equipe, secundário para acesso à população.
o usuário e sua família, garantindo o acompa- Nesta direção, Nascimento e Galvanese17,
nhamento longitudinal do caso11. O processo analisando os CAPS do município de São Paulo,
de cuidado está organizado de forma a oferecer assinalam a depen­dência dos centros de atenção
oficinas terapêuticas, atividades comunitárias psicossocial à capacidade do sistema municipal
e artísticas, orientação e acompanhamento do de saúde de propiciar outros serviços de referên-
uso de medicação, atendimento domiciliar aos cia. Caso isto não ocorra, muitas vezes, alguns
usuários e seus familiares, psicoterapia individu- CAPS se organizam como equipamentos síntese,
al ou em grupo e apoio matricial às equipes da nos quais os usuários sempre seriam assistidos in-
atenção primária. Além disso, espera-se que re- dependentemente do nível de atenção requerido.
alize a articulação intersetorial no território de Outra questão de relevo para os CAPS e para
abrangência, coordene o processo de desinstitu- atenção ambulatorial é a escassez de psiquiatras
cionalização dos usuários em situação de longa na rede pública. A baixa adesão de psiquiatras
permanência hospitalar e propicie apoio técnico está evidentemente relacionada a questões de
aos programas de residências terapêuticas. mercado, mas o modo como sua formação é con-
O desempenho adequado do conjunto de duzida acaba por ocasionar uma baixa atrativi-
atribuições destinadas aos CAPS no âmbito das dade para o exercício profissional nos dispositi-
Redes de Atenção Psicossocial (RAPS) não é tarefa vos de atenção psicossocial.
trivial. Analisando os resultados de uma pesquisa Oito CAPS são infanto-juvenis e acompa-
realizada em três centros de atenção psicossocial nham regularmente mais de 2.000 crianças com
do município do Rio de Janeiro, Cavalcanti et al. transtornos mentais graves incluindo o autismo.
apontam para o acúmulo de funções das equipes Espera-se a ampliação da capacidade de seu ma-
e consideram que, em um grande centro urbano nejo nas situações de crise, de forma a antecipar
como o Rio de Janeiro, pode ser inviável que o situações, redirecionando o trabalho das equipes
profissional vinculado ao CAPS seja responsável, nas urgências/emergências e tendo como pri-
de forma satisfatória, tanto pelo atendimento no meira opção o acolhimento noturno no próprio
serviço quanto na comunidade14. Uma consequ- CAPSi. Em 2014 foram realizadas 45 internações
ência possível desta dificuldade pode ser o predo- psiquiátricas de crianças e adolescentes18.
mínio das atividades desenvolvidas com usuários No que tange a sua estrutura física, os Cen-
dentro dos CAPS e a pouca integração com ou- tros de Atenção Psicossociais não contaram, na
tros equipamentos sociais e de saúde. maioria das vezes, ao contrário das Unidades de
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Pronto Atendimento (UPAs), com um projeto tre os centros comunitários de saúde mental e a
arquitetônico especialmente destinado à sua fi- atenção primária era considerada por Berardi et
nalidade. Ao longo dos anos, foram implantados al.21 como um objetivo a ser alcançado. Entre as
em imóveis ou espaços públicos disponíveis, bus- barreiras para a integração detectadas, encontra-
cando adaptar a sua rotina de trabalho à estrutu- vam-se a falta de treinamento dos médicos gene-
ra física existente. Como resultado, algumas uni- ralistas em relação aos transtornos mentais que
dades têm estruturas inadequadas para o melhor ocorrem, concomitantemente com a dificuldade
desempenho de seus projetos assistenciais. de os profissionais de saúde mental apreenderem
A busca por maior agilidade nos processos de como o sofrimento mental se expressa nos settin-
aquisição de materiais e insumos, a necessidade gs de atenção primária. Na Espanha, a atenção de
de flexibilizar a seleção e contratação de pessoal, saúde mental se situa no nível secundário, com o
bem como a adoção de modelos de gestão vol- resto das especialidades médicas, com programas
tados para os resultados, teve como resposta a de articulação com a atenção primária que cons-
opção pela contratualização com Organizações tituem a porta de entrada do sistema de saúde. A
Sociais de Saúde em um processo de gestão com- integração entre a atenção primária e as equipes
partilhada, acompanhado periodicamente por de saúde mental junto com o trabalho em rede
uma comissão de avaliação que analisa e controla territorializada é considerada um dos pontos for-
o desenvolvimento do contrato. tes da reforma psiquiátrica espanhola22.
As consequências da adoção deste modelo Para o Rio de Janeiro, espera-se que as ações
ainda estão por ser avaliadas ao longo do tempo. de saúde mental na atenção primária adotem
Como apontam Barbosa e Elias19, em um estudo o modelo de redes de base territorial e atuação
do processo de implementação das organizações transversal com outras políticas específicas e que
sociais de saúde (OSS), no Estado de São Paulo, busquem o estabelecimento de vínculos e de aco-
muitas vezes a administração direta é ancorada lhimento. O território de responsabilidade dos
em regras incompatíveis com a velocidade das CAPS deve seguir o estabelecido pelo Território
respostas que o setor público deve promover, Integrado de Atenção à Saúde (TEIAS) da Área
tendo em vista as demandas e necessidades da de Planejamento em Saúde (AP) onde ele está
população. Não existem estudos disponíveis que inserido, seus limites geográficos e população,
avaliem as peculiaridades da saúde mental no assim como o rol de ações e serviços devem ser
contexto do modelo OS. Como é sabido, trata-se pactuados entre os serviços da rede de saúde lo-
de um expediente polêmico que tem como um cal de modo a evitar barreiras ao acesso. É neces-
dos pontos de dificuldade a contestação política sário desconstruir a lógica do encaminhamento,
de segmentos de atores que militam no campo entendida como um movimento de desrespon-
das políticas públicas e se constitui em um cam- sabilização no cuidado ao sofrimento psíquico e
po de conflitos e embates. estabelecer dispositivos ao alcance da APS para
compartilhar o manejo dos casos.
Ações de saúde mental inseridas O manejo da depressão e a ansiedade é uma
na atenção primária de saúde importante questão de saúde pública que fre-
quentemente envolve a atenção primária. Em
O Sistema Único de Saúde (SUS) no Brasil diversos países observa-se o uso crescente de
considera a atenção primária como o eixo orga- medicação antidepressiva23. Onde o consumo
nizador de toda a atenção em saúde. A coordena- de antidepressivos é muito baixo,deve ser ava-
ção entre as equipes da atenção básica e de saúde liada a existência de necessidades não atendidas.
mental é essencial para uma atenção integral no Entretanto, em outros locais, onde o consumo é
território20. particularmente alto, é fundamental avaliar os
A notável expansão da Atenção Primária na padrões de diagnóstico e prescrição, definir pro-
cidade do Rio de Janeiro com investimentos em tocolos clínicos e avaliar a possibilidade de abor-
renovação organizacional e administrativa, tec- dagens alternativas para a depressão. Para alguns
nologia, gestão do conhecimento, governança autores, existem robustas evidências de que o
clínica e, sobretudo, na expansão do acesso, criou diagnóstico de depressão está superdimensiona-
possibilidades significativas de ampliação do do e que a utilização da medicação antidepressiva
campo de intervenção da saúde mental. apresenta significativas limitações24. Tal situação
Na Itália, cujo modelo é frequentemente reforça a importância de uma efetiva integração
considerado como referência para a reforma da saúde mental e da atenção primária visando
psiquiátrica brasileira, a completa integração en- também o uso adequado de medicação
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Fagundes Júnior HM et al.

No caso do Rio de Janeiro, propõe-se a cons- Tabela 2. Leitos psiquiátricos hospitalares e em


tituição de equipes de referência para famílias de Centros de Atenção Psicossocial tipo III – Secretaria
determinado território e suas respectivas equipes Municipal de Saúde do Rio de Janeiro – setembro de
da APS, não se dividindo por recortes etários ou 2015.
subespecialidades, ou ainda, por diagnósticos, Localização dos leitos Quantidade Porcentagem
mas por usuários das respectivas áreas de abran-
gência, em uma contraposição à ideia de equipe Hospitais psiquiátricos 1.504 95,7%
Hospitais gerais 49 3,1%
de especialistas. Trata-se de uma estratégica para
CAPS III 19 1,2%
horizontalizar o campo da Saúde Mental e colo-
Total 1.572 100,0%
cá-lo ao alcance das equipes de saúde da Aten-
ção Primária e seus usuários, permeando todo o Fonte: CNES/Ministério da Saúde, setembro de 2015.
trabalho de acompanhamento com sofrimento
psíquico mais grave ou mais agudo, e oferecendo
alternativa à tendência de medicalização do so-
frimento.

A atenção à crise e os hospitais psiquiátricos cenário desejável para os próximos anos seria o
descredenciamento global dos leitos contratados
Estudos interna­cionais consideram que não e o fechamento progressivo dos leitos públicos
existe evidência de que um sistema de saúde localizados nos Institutos Philippe Pinel, Nise da
mental possa prescindir de leitos para atenção à Silveira e Juliano Moreira.
crise. Entre­tanto, essa necessidade deve ser equa- Esta decisão implica na construção de uma
cionada por vagas em hospitais gerais ou em ser- rede de atenção às crises mais graves em disposi-
viços comunitários. A quantidade de leitos em tivos localizados em hospitais gerais e em serviços
hospital geral necessária é altamente condiciona- comunitários com leitos (CAPS modalidade III).
da pela quanti­dade de outros serviços existentes Em outubro de 2015, a rede da cidade contava
no território e depende das características sociais, com sete CAPS tipo III com leitos de acolhimento
econômicas e culturais de cada local25. com funcionamento nas 24 horas diárias, sendo 4
O Município do Rio de Janeiro promoveu voltados para os transtornos relacionados ao ál-
uma extensiva redução de leitos psiquiátricos cool e outras drogas e 3 para portadores de outros
nos últimos quinze anos (cerca de 2400 leitos). transtornos mentais. Essas Unidades dispõem de
Como resultado, as internações foram reduzidas 6 a 9 camas de acolhimento noturno para a aten-
de 42.762, em 2002, para 20.404, em 201226. En- ção à crise, em um total de 19 (Tabela 2).
tretanto, as internações ainda são massivamente A integração da saúde mental com a saúde
realizadas em hospitais psiquiátricos evidencian- geral pode ser considerada um dos principais de-
doa frágil implantação dos dispositivos de base safios a serem superados. O papel ainda relevante
comunitária com acolhimento noturno e de lei- na assistência exercido pelos Institutos (estru-
tos localizados em hospitais gerais. turas herdadas pela municipalidade do governo
Pode-se observar na Tabela 2, a situação dos federal) pode ser considerado um importante
dispositivos de acolhimento às crises mais graves fator obstaculizante. Retrata esta observação, a
com grande predominância dos leitos localizados existência de duas emergências localizadas em
em hospitais psiquiátricos em setembro de 201527. hospitais psiquiátricos que ainda não foram in-
Do total de leitos do SUS ainda registrados no corporadas ao sistema de urgência/emergência
Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saú- da cidade. As futuras reduções de leitos em hos-
de (CNES), 1.174 permaneciam ativos,de acordo pitais psiquiátricos estarão, assim, limitadas pela
com a supervisão contínua realizada pela Secreta- superação deste paradigma.
ria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro18. Por outro lado, entre os leitos ocupados exis-
O eixo principal das ações de desinstitucio- tentes, encontram-se pouco mais de 300 pessoas
nalização vem sendo encerrar o ciclo de compra em situação de longa permanência no Instituto
de serviços hospitalares em instituições priva- Juliano Moreira, que são majoritariamente ido-
das,descredenciando 2.700 leitos em 8 diferentes sos, com alta dependência de cuidados. Tal fato
hospitais, em um período de cerca de 30 anos. implica em desafios de outra ordem, como se
Em relação aos leitos atualmente existentes, o verá no seguimento.
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Pessoas em situação de longa permanência íses com sistemas de saúde mental consolidados,
e os Serviços Residenciais Terapêuticos continuam a se formar contingentes de usuários
que acabam permanecendo mais tempo em en-
Em outubro de 2015, haviam 613 pacientes fermarias de agudos e se tornando pacientes em
em longa permanência institucional (mais de um situação de longa permanência institucional.
ano de internação psiquiátrica) distribuídos nos Muitas vezes é necessária uma potente interface
hospitais psiquiátricos públicos, contratados ao entre os hospi­tais e serviços comunitários para o
SUS e custodiais localizados no próprio municí- seu retorno a vida em sociedade30.
pio ou no interior do Estado. Destes, 282(46%) A principal estratégia de desinstitucionaliza-
encontram-se na faixa etária entre 41 e 60 anos, ção dos usuários de longa permanência repousa
e 176 (29%), acima de 71 anos.Encontram-se nos serviços residenciais terapêuticos (SRTs). São
institucionalizados há mais de 10 anos 300 usu- moradias inseridas na comunidade, destinadas
ários,e 125 deles encontram-se internados entre a cuidar dos portadores de transtornos mentais,
1 e 2 anos. Há um considerável predomínio de egressos de internações de longa permanência
homens (61%) distribuídos em todas as faixas em hospitais psiquiátricos ou de custódia, que
etárias. Deles, 38,8% não possuem nenhum be- não possuam suporte social e laços familiares que
nefício, 35% não recebem visitas de nenhum fa- viabilizem sua inserção social31. Podem ser carac-
miliar, 86% são moradores do hospital sem lugar terizados em Tipo I e II de acordo com o grau
para ficar fora da unidade18. de complexidade, dependendo da necessidade de
O desafio da desinstitucionalização dos pa- supervisão com maior ou menor intensidade, na
cientes de longa permanência nos hospitais psi- ênfase na construção de habilidades para a vida
quiátricos do Rio de Janeiro envolve um grupo diária referentes ao autocuidado, alimentação,
de pessoas que se encontravam institucionaliza- vestuário, higiene, formas de comunicação e au-
das antes da implantação dos centros de atenção mento das condições para estabelecimento de
psicossocial enquanto política pública de saúde vínculos afetivos32.
mental. Muitas delas são idosas e com décadas de A velocidade das políticas públicas, as restri-
internação. Os pacientes com este perfil são, em ções orçamentárias e a necessidade da expansão
geral, altamente dependentes e têm muita difi- da rede de atenção psicossocial acabaram por se
culdade de deixar os hospitais. Costumam estar constituírem como entraves para a desinstitu-
em enfermarias de longa permanência e apresen- cionalização da população internada. A rede de
tam um alto grau de sintomas negativos e desa- saúde da cidade do Rio de Janeiro conta com 62
bilidades sociais severas. Usualmente necessitam serviços residenciais terapêuticos (SRT) distribu-
do cuidado diário de profissionais da instituição ídos pela Cidade. Atualmente são acompanhados
e seus vínculos familiares foram rompidos ao 330 usuários egressos de longa internação, sendo
longo do tempo. Costumam necessitar de respos- que 126 (38 %) têm idade entre 61 e 80 anos, e
tas psicossociais de alta intensidade, como dispo- 22 (6,67%), acima de 81 anos. Observe-se ainda
sitivos residenciais com supervisão permanente que 20 deles estão inseridos nos SRT há mais de
e presença de equipe nas 24 horas do dia. Este 11 anos. Na atual situação, o número médio de
grupo de pacientes é denominado por Desviat28, moradores é de 5,3 por módulo18. Para avaliar-
como o núcleo duro presente em todos os pro- se a magnitude do desafio, seria necessário em
cessos de desinstitucionalização. torno de 75 novas residências terapêuticas para
Outros se encontram na condição de novos abrigarmos aproximadamente 600 pessoas em si-
pacientes de longa permanência institucional. tuação de longa permanência nos hospitais (con-
Em relação a esta população, em artigo sobre siderando um número de 8 moradores por casa).
moradias destinadas a pessoas com transtornos O processo de cuidado envolve o acompa-
mentais no Brasil, Furtado29 alerta sobre a ine- nhamento por equipes que visam garantir a
xistência de iniciativas sistemáticas voltadas para continuidade de cuidados, ajudando a promover
pessoas sem histórico de longas internações psi- sua inserção nos recursos existentes no território
quiátricas, estabelecendo um gargalo no acesso e onde habitam.
garantia de moradia para essa clientela, que in- Para o ingresso dos usuários nos SRTs é ne-
clui o crescente número de pacientes com trans- cessário que os mesmos estejam vinculados aos
tornos mentais graves atendidos na ampla rede CAPS, que proporcionam a atenção em saúde
nacional de CAPS. mental. O processo de cuidado das residências
Cabe ainda assim assinalar que, a despeito de terapêuticas pode ser incluído dentro da tipo-
décadas de desinstitucionalização, em muitos pa­ logia proposta por Nelson et al.33 de supportive
1456
Fagundes Júnior HM et al.

housing, onde ocorre o entrelaçamento entre Equipes de Abordagem são os atores de relevo em
moradia e a reabilitação psicossocial. Um com- ações integradas com os CAPS, uma vez que es-
ponente do trabalho de reabilitação é desenvol- tabelecem estratégias de construção de vínculo,
vido no interior das residências, muitas vezes a essenciais para o início do trabalho e se oferecem
cargo de cuidadores, que permanecem nas casas como dispositivos de baixa exigência. Os casos
em tempo variável, dependendo da intensidade graves estão chegando em grande proporção em
do cuidado. todos os CAPSad III, muitos com comorbidades
Um dos mecanismos potentes para viabilizar clínicas tais como tuberculose pulmonar e sífilis,
o processo de desinstitucionalização e a reinser- fazendo com que os leitos de acolhimento a cri-
ção social é o aporte de recursos para a garantia se trabalhem sempre com ocupação em torno de
de renda oferecida diretamente aos egressos de 90 a 100%. O mesmo ocorre com as Unidades de
longa internação. Esse aporte de recursos pode Acolhimento de adultos que também apresentam
ser operado por meio de bolsas com pagamen- um percentual de ocupação próximo a 100%.
to mensal vitalício, podendo ser municipais (Lei No entanto, a coexistência de uma vasta rede
Municipal nº 3.400 de 17/05/2002) ou federais de instituições organizadas segundo a premissa
(Lei Federal nº 10.708 de 31 de julho de 2003). da longa estadia em programas centrados na abs-
Além disso, podem ser beneficiados com o bene- tinência, mantidas por contribuições individuais
fício de prestação continuada da Lei Orgânica da ou subvenções estaduais ou federais exerce um
Assistência Social. forte apelo junto à opinião pública e aos familia-
res dos usuários de drogas. Trata-se de um mo-
Atenção aos usuários com problemas delo concorrente que, embora não apresente seus
decorrentes de álcool e outras drogas resultados de forma evidente, sustenta uma con-
siderável clientela que gravita em torno dessas
No Rio de Janeiro, a rede de atenção psicos- instituições constituindo-se em outro segmento
social voltada para o atendimento às pessoas com de resolving door.
problemas decorrentes do uso de álcool, crack e Em artigo recente, Ribeiro et al. avaliam que
outras drogas está composta por três CAPSad II, as comunidades terapêuticas no Rio de Janeiro
quatro CAPSad III, duas Unidades de acolhimen- se desenvolvem por fora dos sistemas públicos
to de adultos e sete equipes de Consultório na de saúde e de assistência social e possuem bai-
Rua. Unidades de acolhimento têm como obje- xa transparência em termos de práticas clínicas
tivo oferecer acolhimento voluntário e cuidados e abordagens terapêuticas, não sendo nítidas as
contínuos para pessoas com necessidades decor- suas habilitações jurídicas ao menos para os tra-
rentes do uso de crack, álcool e outras drogas, tamentos que informam praticar. Além disso, a
em situação de vulnerabilidade social e familiar rede apresentada possui baixa visibilidade, ex-
e que demandem acompanhamento terapêutico pressa por apenas 20,1% dos serviços informa-
e protetivo34. dos estarem registrados no CNES26.
Para a dimensão do território da Cidade, essa A rede pública não tem mapeada, com pre-
rede ainda é insuficiente, mantendo grandes áre- cisão, qual é capacidade instalada desse segmen-
as sem cobertura de serviços, em especial a região to das chamadas comunidades terapêuticas.
do Centro da Cidade que mantém algumas cenas No entanto, a SMS Rio refere a existência de 45
de uso acompanhadas por duas equipes de Con- comunidades terapêuticas na cidade18. Há uma
sultório na Rua, mas sem retaguarda de serviços. permanente demanda por mais subsídios gover-
Outro aspecto significativo é que os CAPSad não namentais e uma luta política que contamina a
estão localizados necessariamente nas regiões discussão da descriminalização do uso de drogas
onde há cena de uso de crack, embora todos es- psicoativas e a torna tributária de uma agenda
ses serviços se desloquem para essas cenas, certa- moralizadora.
mente há perda do protagonismo do serviço na
abordagem e no cuidado dos usuários de crack.
Essa rede realiza em média de 8.000 atendimen- Considerações finais
tos por mês18.
Há uma grande dificuldade de chegada e ade- A análise do comportamento da rede de atenção
são aos serviços, o que expressa as peculiaridades psicossocial na Cidade do Rio de Janeiro aponta
deste tipo de clientela e que impõe a necessidade avanços na desinstitucionalização da assistência,
de flexibilização das práticas instituídas. Assim, a com progressiva redução de leitos em hospitais
estratégia dos Consultórios na Rua e as chamadas psiquiátricos e aumento do protagonismo dos
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dispositivos comunitários. A análise da situação futuro da política de saúde mental municipal já
atual aponta para um conjunto de desafios futu- aponta para a possibilidade do fechamento dos
ros que forma sumarizados no Quadro 1. hospitais psiquiátricos nos próximos anos.
Na atividade dos CAPS do Rio de Janeiro, A existência de um percentual elevado de
e de boa parte do país, podemos observar que, pessoas com planos de saúde privados (52,5 % da
apesar de uma eficiente atenção longitudinal a população), que têm um modelo de assistência
pacientes com transtornos graves e persistentes centrado em consultas individuais por psiquia-
(principalmente transtornos psicóticos), existem tras e psicólogos e nas internações psiquiátricas
mais dificuldades em relação a atenção à crise. com uma limitação de dispositivos comunitários
Como pontua Campos, os serviços substitutivos assinala uma certa fragilidade da assistência pú-
convivem, em maior ou menor grau, com o even- blica, que não soube chegar ao conjunto da po-
to internação psiquiátrica e que, muitas vezes, a pulação com serviços mais próximos e eficientes.
internação provoca quebras na vinculação com Ao mesmo tempo, evidencia um descompasso
os CAPS, redundando em exposição ao risco de com o processo de desinstitucionalização e a po-
novas internações35. lítica da reforma psiquiátrica36.
No caso do Rio de Janeiro, em que pese a re- Em relação à atenção às pessoas com proble-
dução das internações psiquiátricas nos últimos mas decorrentes do uso de álcool e outras drogas,
anos, se observa um número elevado de pessoas pode-se considerar que a entrada mais incisiva
que procuram os serviços de urgência/emergên- das denominadas “comunidades terapêuticas”na
cia psiquiátrica, o que aponta para uma fragilida- arena setorial constitui um obstáculo à consoli-
de na resposta da rede de atenção psicossocial no dação das diretrizes estabelecidas pelo Ministério
acompanhamento dos casos e acarreta um volu- da Saúde e provocam a fragilização dos stake-
me de atendimentos pontuais, de baixa resoluti- holders da reforma psiquiátrica no controle da
vidade e desconectados dos projetos terapêuticos agenda para o tema do crack, gerando demandas
individualizados. sociais por soluções institucionais e involun-
Além disso, a permanência de serviços de tárias. Entretanto, a baixa provisão dos servi-
urgência/emergência como porta de entrada ços específicos para usuários de álcool e outras
de serviços psiquiátricos confere uma reduzida drogas, como os CAPS AD III e as unidades de
capacidade de intervenção em casos de maior acolhimento, impossibilita ainda uma avaliação
complexidade clínica que demandem a disposi- mais conclusiva da efetividade do atual formato
ção de recursos para diagnóstico e tratamento. A da política do SUS para a questão37.
implantação de três serviços hospitalares de re- Apesar de esforços realizados nos últimos
ferência em hospitais gerais foi um significativo anos, a rede de saúde mental do Rio de Janeiro
avanço na integração com o setor saúde como permanece com um gap informacional em rela-
um todo e vem corroborando com a progressiva ção a indicadores básicos de acompanhamento,
redução da dependência da rede de saúde de lei- como a situação do acesso e o perfil da cliente-
tos em hospitais especializados. O planejamento la. Por outro lado, permanece a lacuna entre o

Quadro 1. Reforma Psiquiátrica no Rio de Janeiro – Questões cruciais.

Aumento de cobertura dos centros de atenção psicossocial


Conversão do modelo de leitos em hospitais psiquiátricos para leitos em hospitais gerais e nos centros de
atenção psicossocial tipo III
Inserção do atendimento às emergências psiquiátricas no sistema de urgência/emergência da rede municipal
de saúde
Ampliação da integração da saúde mental e na saúde em geral e a coordenação das equipes de saúde mental
com a atenção primária.
Ampliação do quantitativo de residências terapêuticas
Aumento da provisão dos serviços específicos para pessoas em uso prejudicial de álcool e outras drogas e
diminuição da fragmentação da política
Superar o descompasso entre os modelos assistenciais do sistema de saúde suplementar e do SUS
Aproximar a Reforma Psiquiátrica do aparelho formador e das instituições de pesquisa.
1458
Fagundes Júnior HM et al.

aparelho formador e os serviços públicos,sendo os processos de reforma psiquiátrica, inclusive


necessárias novas ações que possam garantir a aqueles considerados mais exitosos, que ainda
formação continuada dos profissionais de saúde não foi suficientemente desenvolvido um mo-
da rede, como mestrados profissionais e novos delo teórico, clínico e assistencial que vá muito
cursos de pós-graduação lato sensu. O Interna- além do enunciado biopsicossocial22.
to Médico integrado da Universidade Federal do As lições apontadas pelo acompanhamento
Rio de Janeiro, que passou a ser desenvolvido em da rede de atenção psicossocial da cidade do Rio
parceria com Instituto de Psiquiatria da UFRJ, de Janeiro servem como elementos analisadores
pode ser considerado uma iniciativa útil na dire- para outras experiências municipais de grandes
ção da formação de médicos de família e psiquia- conglomerados urbanos que dispõem de uma
tras com esse olhar mais integrado dos sujeitos. rede manicomial de considerável importância e
Existe ainda escassez de estudos avaliati- buscam alternativas para transformação de seu
vos, que permitam aferir com mais precisão a modelo assistencial.
qualidade e eficácia do cuidado em todas suas Apesar de novos e antigos desafios, é emble-
dimensões, fazendo-se necessário promover no- mático considerar a consolidação da mudança de
vas iniciativas de parceria com as Instituições de paradigma na assistência psiquiátrica da cidade
pesquisa para o fomento de investigações que te- que pode ser observada, por exemplo no cotidia-
nham em conta a especificidade da saúde mental. no dos usuários desinstitucionalizados, a maioria
A despeito dos importantes avanços no conheci- após anos de internação psiquiátrica: em lugar
mento, tanto na assistência quanto na formação dos muros e pavilhões asilares, as ruas, a cidade, a
e na pesquisa, permanece um desafio para todos vida cotidiana ao lado de outros cidadãos.

Colaboradores

HM Fagundes Júnior, M Desviat e PRF Silva par-


ticiparam igualmente de todas as etapas de elabo-
ração do artigo.
1459

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Artigo apresentado em 30/11/2015


Aprovado em 01/02/2016
Versão final apresentada em 03/02/2016

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