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Ontologia matemática:

modelos, axiomas e infinitos


na meta-ontologia de Alain Badiou

GT Ontologias Contemporâneas, Novembro 2017

O que eu gostaria de fazer hoje é tentar esclarecer um pouco o que significa a


expressão “as matemáticas são a ontologia”, apresentada por Alain Badiou pela
primeira vez na introdução do seu livro Ser e Evento. Para fazer isso, vou
contrapor minha leitura não só às principais críticas levantadas contra seu projeto,
mas também à apresentação feita pelo próprio Badiou, que, na minha opinião,
também incorre em alguns problemas e é parcialmente responsável por essa
recepção crítica. Em todo caso, a ideia não é disputar exegeses e defender Badiou,
mas esclarecer o que é efetivamente singular em sua proposta, para que as críticas
subsequentes possam ser inclusive mais produtivas.

1. O conceito de modelo

“As matemáticas são a ontologia” (SE, p.13) - é assim que Badiou introduz a
expressão que depois seria reproduzida por seus comentadores como numa
brincadeira de telefone sem fio: a gente diz, "para Badiou, a matemática é
ontologia”, tirando o plural, o que já prepara o terreno para defender, em seguida,
que a “teoria dos conjuntos é a ontologia”, reduzindo matemática a um de seus
fragmentos. Ou ainda dando em “matemática = ontologia”, o que desfaz a tensão
entre o verbo “ser" e a ciência do “ser enquanto ser”, entre discurso e ser.

Retomando então a formulação do próprio Badiou: “as matemáticas são a


ontologia”. O plural aparece de novo, na reiteração da tese, poucas páginas depois.
Cito: “as matemáticas, longe de serem um jogo sem objeto, extraem a severidade
excepcional da sua lei do fato de estarem condenadas a sustentar o discurso
ontológico”. Mesmo a versão condensada da tese, na página seguinte, mantém esse
descompasso entre a diversidade e a unidade: “matemáticas = ontologia”.

Mas por que o plural, se o resto do livro vai se concentrar sobre a teoria axiomática
dos conjuntos? E, mais, se vai se concentrar em uma versão particular da teoria, o
sistema de axiomas de Zermelo-Frankael, mais o axioma da escolha, o sistema
"ZFC"?

A referência às "matemáticas" na verdade, indica o resultado de mais de vinte anos


de pesquisa de Badiou. Já em 1968 - num seminário coordenado por Althusser,
mas interrompido pela efervescência política de Maio - Badiou consolidava sua
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resposta crítica ao estruturalismo em uma discussão sobre a relação entre o
formalismo matemático e a realidade histórica que girava em torno do problema
dos modelos. O seminário foi publicado no ano seguinte sob o título de O Conceito
de Modelo e, sem levá-lo em consideração, é difícil entender o que está em jogo na
posição defendida pelo filósofo vinte anos depois, quando a tese meta-ontológica
sobre as matemáticas é proposta.

O argumento central de O Conceito de Modelo pode ser resumido da seguinte


maneira: a capacidade da prática matemática de criticar e transpor, de forma
imanente, seus próprios limites se deriva de sua pluralidade irredutível - da
heterogeneidade cujo “índice epistemológico” é justamente o conceito de modelo.
Cito o Badiou: “o problema não é, e não pode ser, aquele das relações de
representação entre um modelo e o concreto, ou entre o formal e os modelos” (54) -
ou seja, o conceito de modelo, tal como opera na matemática, não diz respeito à
relação entre formalismos e fenômenos extra-formais. Ao invés, “a teoria dos
modelos governa a dimensão da imanência prática das ciências” (44). Trata-se, em
outras palavras, de uma teoria intra-matemática, que relaciona uma região da
matemática a outra - de modo que, citando Badiou mais uma vez, “a distinção
relevante entre semântica e sintaxe se refere a escolha de qual parte da matemática
será figurada como metalinguagem” (44).

A heterogeneidade interior ao formalismo matemático é condição para que a


modelagem de uma região matemática por outra - por exemplo, da geometria pela
álgebra, ou da aritmética pela teoria dos conjuntos - seja um procedimento capaz
de produzir novidades, revelando mais informações sobre uma dada estrutura do
que sua formalização original seria capaz. Há portanto uma espécie de dialética -
para usar o termo de Albert Lautman - em jogo aqui: o mesmo princípio que
permite que tratemos duas áreas distintas da matemática como sendo homogêneas
o suficiente para forçarmos uma relação de correspondência entre elas, também
permite que essa correlação não seja apenas uma tautologia, esbarrando em uma
diferença que possibilita a produção não apenas de novos teoremas, mas de teorias
que são irredutíveis às misturas que as compõem. Não haveria um conceito de
modelo imanente à prática matemática caso não houvessem matemáticas, no plural.

Na época, a principal preocupação de Badiou era criticar, simultaneamente, o


neopositivismo e o estruturalismo. De fato, defender que um modelo é uma relação
entre duas regiões da matemática era uma forma de atacar, em um só golpe, tanto
os pensadores para quem “o saber é a representação do real-empiricamente-dado
através de modelos”, como Levi-Strauss, quanto aqueles, como Carnap, para quem
“o real empírico dá a semântica, o modelo, da sintaxe apresentada pelas ciências
‘puras'" (50). Era também uma forma de consolidar sua crítica, iniciada anos antes,
ao uso feito pelos lacanianos do Fundamentos da Aritmética de Frege, cuja

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estratégia central de fundamentar a teoria dos números a partir da lógica de
predicados, partindo da tese - chamada hoje de logicismo - de que a lógica
matemática seria uma espécie de modelo fundamental, estrutura subjacente, de
toda a matemática.

A formulação - repito: “a distinção relevante entre semântica e sintaxe se refere a


escolha de qual parte da matemática será figurada como metalinguagem” - ao
mesmo tempo em que defende a interioridade do conceito de modelo à matemática,
denuncia como ideológica e sintomática toda referência às ciências como uma
unidade homogênea - unidade que, portanto, só poderia estabelecer relações
extrínsecas de modelagem. A frase faz mais que isso, na verdade: ela aponta
também para o caráter criativo e experimental - a “escolha" - que está em jogo na
relação de modelagem matemática. Pois tratar a teoria dos conjuntos como modelo
da aritmética, por exemplo, não é uma decisão derivável a partir de nenhuma
dessas duas regiões, envolve uma série de decisões cuja validade só pode ser
comprovada de maneira experimental, através de sua elaboração concreta. Essa
combinação de interioridade, criatividade e experimentação é o que permite que
Badiou defenda, por fim, a historicidade da produção matemática, apontando para
uma “história da formalização” (54), uma “epistemologia materialista das
matemáticas”.

Mas a força do argumento excede esse uso essencialmente crítico. Anos depois,
quando se tratava agora de propor uma nova perspectiva para a ontologia, essa
mesma crítica da apropriação filosófica - ideológica, propriamente falando - do
conceito de modelo viria novamente balizar a proposta de Badiou.

1.1. O conceito de modelo em Ser e Evento

Estou sendo bastante esquemático, claro, mas vamos dar um “fast-forward” de 20


anos, voltando às primeiras meditações de Ser e Evento, que é de 1988. O que eu
gostaria de defender agora é que as duas principais interpretações da tese “as
matemáticas são a ontologia” podem ser derivadas das duas interpretações
filosóficas do conceito de modelo, que Badiou já criticara nos anos 60 - as
interpretações que reduzem as matemáticas a uma unidade semântica ou a uma
unidade sintática, digamos assim.

A primeira, que trata a matemática como um conjunto de estruturas modelariam a


realidade empírica, critica a proposta de Badiou do ponto de vista da capacidade da
teoria dos conjuntos de representar o “ser" das coisas. Se a tese badiouiana é de que
a teoria dos conjuntos representa o ser, então basta acharmos um contra-exemplo,
algo que não pode ser modelado de forma consistente como uma estrutura do
sistema de axiomas de ZFC, e a ontologia matemática de Badiou terá sido

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contestada com sucesso. Lacanianos costumam fazer isso, seguindo a tradição
estruturalista: a pulsão de morte implica em estruturas de lógica paraconsistente, e
já que os axiomas da separação e da fundação impedem conjuntos que pertencem a
si mesmos, então ZFC não poderia ser um modelo do ser enquanto ser.

A segunda interpretação, que trata a matemática como o domínio da sintaxe pura,


critério de rigor e validade dos demais discursos, critica a proposta de Badiou do
ponto de vista da capacidade da teoria dos conjuntos de funcionar como sistema
formal subjacente desde o qual a realidade em geral poderia ser estudada e
avaliada. Se a tese badiouiana é de que a teoria dos conjuntos é um sistema formal
puro, totalmente esvaziado de significado, então o problema é que essa
característica mesma impediria a teoria dos conjuntos de ser um discurso, e
portanto de ser um discurso sobre a ontologia. Um discurso inclui uma semântica,
logo, inclui uma dimensão não-matemática. Basta mostrar então que sem a
interpretação filosófica do formalismo não seria possível defender que as
matemáticas são a ontologia para criticar as ambições de Badiou.

Essa segunda crítica é apresentada em sua forma mais exemplar, me parece, no


livro Fields of Sense (2015) de Markus Gabriel, que dedica um capítulo à
“ontologia conjuntista e o niilismo contemporâneo” (p.116). Gabriel defende que “a
teoria dos conjuntos, sem a ajuda da filosofia, não prova nada de importância para
a reflexão filosófica” (120). Sua crítica parte da definição de “formalismo” como “o
entendimento de que os símbolos matemáticos não têm qualquer semântica, apenas
sintaxe” (117), para então criticar a aposta badiouiana de que esse formalismo puro
seria capaz de contornar a filosofia para relacionar-se diretamente com o ser. Sua
crítica basicamente reproduz o argumento do “quarto chinês” de Searle.
Transpondo para os nossos termos, a crítica diz: não seríamos capazes de
reconhecer as propriedades do ser-múltiplo como sentido das proposições da teoria
axiomática dos conjuntos se não houvesse aí, entre as duas, a intervenção de uma
terceira parte, fazendo a “tradução” de uma para a outra. A crítica reconhece,
acertadamente, que a relação de modelagem não é motivada pelas estruturas que
relaciona, é extrínseca, mas repete o argumento positivista de que as ciências
formais são o campo da pura sintaxe e que portanto só podem estabelecer relações
de modelagem com campos extra-formais.

Bem, se Badiou já havia criticado ambas as posições nos anos 60, e se havia
defendido a dimensão intra-matemática do conceito de modelo - e portanto a
irredutibilidade da função referencial, semântica, ao procedimento concreto das
matemáticas - então como que as matemáticas podem ver "condenadas a sustentar
o discurso ontológico”?

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Para compreender a solução de Badiou, é preciso considerar a estratégia em três
tempos que organiza as primeiras meditações de Ser e Evento. O livro não começa,
afinal de contas, com a proposição de que as matemáticas são o discurso do ser
enquanto ser, mas com uma discussão das “condições a priori de toda ontologia
possível” (29): uma elaboração puramente filosófica sobre a questão do múltiplo e
do um. Em suma, Badiou recapitula as condições de possibilidade de uma nova
ontologia, e poderíamos resumi-las em quatro pontos: se uma ontologia é possível,
esse discurso precisaria ser capaz de não tratar o ser como existência, como
sentido, como unidade ou como objeto. E Badiou adiciona ainda uma outra
cláusula: à luz dessas condições severas, seria preciso ainda avaliar se a ontologia
poderia ser um discurso - isto é, se existe algum tipo de discursividade que poderia
respeitar essas condições. Nos termos de Badiou, seria preciso avaliar se um
pensamento do ser subtraído dessas categorias poderia ele mesmo ser consistente
enquanto forma de pensamento. Para o filósofo, a resposta heideggeriana foi “não":
todo discurso racional tem um objeto, logo a única maneira de respeitar essas
condições é através dos operadores que perturbam a discursividade consistente, em
especial a poesis. Trata-se de uma decisão filosófica de Heidegger, a respeito do que
seria a discursividade e a linguagem.

Em oposição a isso, Badiou defende que há sim um pensamento racional e


consistente que respeita todas as condições - a teoria axiomática dos conjuntos.
Mas por quê? Não por alguma necessidade de essência, mas por uma questão
contingente, por conta de desenvolvimentos históricos singulares que
desembocaram, sem que ninguém se preocupasse com isso, num sistema formal
cujos axiomas existenciais dizem respeito apenas ao que é impossível de existir
enquanto tal, que é capaz tanto de suspender a primazia da unidade quanto da
definição de objetos independentes. E, por fim, trata-se de um sistema formal que
não significa nada fora de si mesmo: nem se refere a um discurso não-matemático e
nem serve como seu ponto de referência.

Bem, as condições para uma ontologia possível são discutidas na primeira


meditação. A segunda interpreta essas condições em termos de uma hipótese
filosófica: estabelece que onde Platão, no Parmênides, admitia o “nada” como única
doação ao pensamento quando esse avança rumo ao múltiplo puro, mas apenas
para em seguida tomar o “nada" como nome do impensável, é possível sustentar
uma hipótese filosófica alternativa. É possível tratar o “nada" como marca pensável
do múltiplo puro. Esse é o ponto intermediário que permitiria a “sutura” - que é
como Badiou vai chamar essa ligação - entre as matemáticas e a ontologia do
múltiplo. Por fim, a adequação de um dado fragmento das matemáticas a essas
condições é tema da terceira meditação.

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Mas qual a ordem das razões aqui? Primeiro passo: só pode haver um novo
discurso do ser enquanto ser se, em sua gramática, esse não confundir o ser com a
existência, com o sentido extra-discursivo de uma proposição, com a unidade e com
o objeto. Segundo passo: há um discurso que respeita essas condições - por razões
contingentes, um fragmento das matemáticas, nem mesmo o mais relevante ou
atual, responde adequadamente a essas condições. Passo final, que nos permitiria
ligar a ontologia do múltiplo puro - múltiplo sem existência, sem sentido, unidade
ou objetos definidos - à teoria axiomática dos conjuntos: se o discurso do ser
enquanto ser, condicionado de acordo com o primeiro passo, precisa abordar o ser
apenas como “nada” então é apenas se a teoria dos conjuntos pensa “nada” que ela
pensa o ser enquanto ser.

É aqui que incidiria a crítica de Markus Gabriel: há uma decisão filosófica a


respeito do múltiplo puro, de que esse pode ser pensado como “nada”, e há uma
teoria formal que trabalha com conjuntos de certas propriedades. Mas a associação
entre essa teoria formal e essa decisão filosófica não está contida na teoria formal
ela mesma - tomar o “nada" como modelo, como horizonte semântico, do conjunto
vazio é uma relação totalmente extrínseca ao formalismo. Mas é aqui, também, que
o conceito de modelo, trabalhado por Badiou nos anos 60, nos ajuda a entender a
posição de Ser e Evento: se Badiou estivesse defendendo que o conjunto vazio é a
sintaxe e o “nada" é a semântica de um discurso, a ontologia, estaria não apenas
contradizendo as condições que ele mesmo colocou para qualquer ontologia
possível - pois implicaria em dizer que o “nada” é um objeto existente, sentido das
proposições da teoria dos conjuntos - como entraria em contradição com sua
própria crítica dos usos estruturalistas e positivistas da formalização matemática.
Mas qual seria então a outra possiblidade?

É aqui que a interioridade da semântica à prática matemática ganha toda a sua


importância: para Badiou, o que qualifica - ou "condena" - a matemática a servir
como discurso do ser enquanto ser é justamente que ela não se refere a nada fora
de si mesma, nem mesmo ao nada. "Se referir ao nada” - isto é, ser a sintaxe para
um conceito filosófico - e "não se referir a nada" - isto é, conter, em outras regiões
de sua própria interioridade, as estruturas que lhe servirão de modelo - não é a
mesma coisa. No primeiro caso, a filosofia estabeleceria uma relação
condescendente com a matemática: delega a tarefa de pensar a ontologia, mas
permanece em condição de julgar a validade e sentido de seus resultados. No
segundo, a filosofia se coloca uma problemática diferente: dado que a matemática é
capaz de operar de maneira consonante com aquilo que consideraríamos uma
ontologia possível, qual é ponto de vista em que o trabalho matemático é
indistinguível do trabalho que acreditávamos caber ao filósofo?

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E há realmente um outro ponto de inserção para a filosofia aqui que não é fazer-se
de modelo da sintaxe conjuntista, mas antes reconhecer que ao fazer de si mesma
um modelo, uma região da matemática “filosofiza" a outra. Quando uma região da
matemática serve de modelo para a outra, está em jogo aí uma operação que
apresenta todas as propriedades que estamos acostumados a reconhecer nos
debates metafísicos - e cujos "índices epistemológicos”, já dizia Badiou nos anos 60,
são as relações de modelagem intra-matemáticas.

Portanto, quando Markus Gabriel faz o paralelo, em Fields of Sense, entre a


prática matemática e a derivação de teoremas por um computador, temos aí um
sinal de que seu diagnóstico de “formalismo" ou “matematicismo” realmente é
informado pela ideologia positivista, que, tratando a relação de modelagem como
uma relação extrínseca à matemática, acaba também por invisibilizar a dimensão
criativa e experimental da formalização, sem a qual não podemos entender a
estratégia de Badiou. Não se trata, para ele, de interpretar metafisicamente o que a
matemática faz, mas de reconhecer que o que chamávamos de "metafísica" é feito
de maneira imanente em certas interações entre sistemas formais matemáticos.

Essa formulação - de difícil aceitação - nos traz ao segundo conceito fundamental


sem o qual é impossível compreender propriamente a proposta de Badiou.

2. O conceito de axioma

Como que é possível que as relações de modelo efetivamente expressem, em sua


própria interioridade ao formalismo matemático, os processos de decisão sobre a
existência ou não-existência de dados múltiplos? Aqui intervém uma outra
problemática, que concerne não tanto o conceito de modelo, quanto o de axioma.

A maior parte dos comentadores de Badiou tende a justificar a centralidade da


teoria dos conjuntos em seu projeto metaontológico através de uma referência ao
papel de “fundação" que essa teoria teria em relação às outras áreas da matemática.
Dou um exemplo dessa leitura. Em seu artigo Badiou and Deleuze on the
Ontology of Mathematics, Daniel Smith escreve que “a ontologia de Badiou
presume uma dupla redução: da física à matemática e da matemática à teoria
axiomática dos conjuntos". Está em jogo aí essa mesma espécie de analogia: Badiou
estaria atrás de um discurso para fundar os demais discursos, e teria escolhido a
teoria dos conjuntos por que esse se presta a servir de teoria das estruturas
matemáticas em geral. A fundação ontológica está para o mundo como a teoria dos
conjuntos está para as matemáticas e a física matematizada. Se esse argumento
analógico fosse consistente, então a superação das expectativas de generalidade da
teoria dos conjuntos - o que de fato ocorreu, ainda na primeira metade do século

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vinte - significaria também a desqualificação das expectativas da ontologia
matemática de Badiou. No entanto, não é disso que se trata.

Assim como argumentei acima que a posição de Badiou não pressupõe como
necessário o aparecimento de um fragmento das matemáticas que respondesse
adequadamente às condições de uma nova ontologia, também não pressupõe que
esse fragmento tenha um papel especial - de redução ou unificação - para a própria
matemática. A teoria dos conjuntos é, para ir direto ao ponto, uma região da
matemática que lida com a problemática do infinito: ela surge com o desafio de
pensar o infinito sem recursos à geometria e à intuição, e ela permanece ativa até
hoje não por ser uma teoria capaz de absorver todo o resto da matemática, mas
porque a problemática do infinito - por exemplo, a questão dos grandes cardinais -
permanece igualmente em aberto.

Mas há ainda outra maneira de argumentar as pretensões supostamente


"fundacionistas" da tese “as matemáticas são a ontologia”, que é se referir ao papel
dos axiomas. O uso de axiomas seria uma maneira de “fundar" uma dada região
formal em princípios discretos, em “tijolos mínimos" a partir dos quais o resto da
arquitetura conceitual é derivada, deduzida - tal como os primeiros princípios das
mais diversas ontologias filosóficas ocidentais. O mesmo Daniel Smith escreve, por
exemplo, que “o papel da axiomática é codificar e solidificar as noções
problemáticas, dando-lhes um fundo teoremático, uma fundação rigorosa” (83). O
problema com essa compreensão do conceito moderno de axioma é que ela não
reconhece a diferença essencial entre a axiomática clássica - por exemplo, no caso
dos Elementos de Euclides - e a axiomática moderna. Não temos tempo para
discutir essas diferenças em detalhe aqui - ainda que uma rápida comparação das
apresentações Euclides e de David Hilbet, em seu Fundamentos da Geometria
fosse de grande ajuda - mas é importante notar que o que caracteriza a axiomática
moderna é justamente a suspensão de qualquer pretensão de fundação.

Consideremos três aspectos do conceito de axioma. Primeiro, axiomas são


proposições formais que não podem existir sozinhas: não existe sistema de um
axioma, são sempre múltiplos. Segundo, são proposições que não “fundam" nada:
alguns axiomas são condicionados a outros - têm a forma: "se existir x, então y
também existe" - outros são existenciais - por exemplo: "existe x com tal e tal
propriedade" - e nenhum dos dois tipos de proposição são essenciais em qualquer
sentido - é sempre possível retirar ou adicionar um axioma da lista de proposições
fundamentais de um sistema e avaliar as consequências dessa alteração. E terceiro,
axiomas são proposições que não tem “razão” de ser - no sentido de expressarem
um “grund”. Essa terceira propriedade é difícil de reconhecer quando traduzimos
fórmulas em termos de linguagens naturais, mas quando consideradas em seu
próprio domínio, logo vemos que axiomas não se referem a nada fora de sua

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própria enunciação - é claro podemos justificar, para nós mesmos, um axioma com
base no seu caráter intuitivo, na pragmática de um dado projeto de pesquisa, mas
essas justificativas são extrínsecas à proposição: não deixam marca alguma em sua
formulação, que é indistinguível da regra caprichosa de um jogo. Se o
fundacionismo, para a filosofia, é uma forma de pensar que visa começar pela
unidade, pelo essencial e pelo necessário, então não há nada de fundacionista na
função e forma dos axiomas matemáticos quando considerados como operadores
para a matemática. Axiomas não servem para garantir que estamos operando
dentro do sistema mais geral possível - é possível construir sistemas axiomáticos de
regime tão restrito quanto quisermos - sua principal função, como lembrava
Lautman, não é generalizar, mas dividir operadores anteriormente considerados
primitivos e indecomponíveis. Por exemplo, a adição ou remoção de um dado
axioma pode, como no caso da geometria, nos permitir explorar espaços não-
triviais que eram inacessíveis desde os postulados da geometria euclidiana, como
acontece quando suspendemos ou alteramos o famoso postulado das paralelas.

Mas esse é o momento em que é preciso criticar o próprio Badiou por não deixar
claro um aspecto essencial de seu projeto. Essa descrição do conceito de axioma:
uma proposição irredutível ao um, sem fundamento e indiferente às razões que
podemos ter para adotá-las - não é essa a definição mesma de “evento” na filosofia
badiouiana? O próprio filósofo defende que “eventos" são começos que
suplementam situações já existentes, que não introduzem nenhum ser novo nas
situações e são indiferentes às motivações para enunciá-los. Eu gostaria de
defender que não se trata de uma similaridade, como se estivéssemos lidando com
uma nova analogia.

Mencionei acima que a identidade entre as matemáticas e a ontologia é garantida,


para Badiou, não pela relação de modelagem entre os dois campos, mas pelas
qualidades da relação de modelo interna à própria prática matemática - uma região
da matemática interpreta a outra, de maneira criativa, experimental e que pode
produzir, através dessas misturas, novas proposições sobre a generalidade,
extensão e infra-estrutura de estruturas e operações matemáticas. O filósofo não
precisaria “filosofar" a matemática porque a produção de proposições sobre a
generalidade das estruturas matemáticas faz parte da própria prática formal - resta
ao filósofo reconhecer seu “ser” fora de si mesmo e oferecer alguma solidariedade,
esforçando-se por resguardar a autonomia dessa prática.

Mas para entender a qualificação da teoria axiomática dos conjuntos como uma
região da matemática em que esse tipo de relação de modelagem implica a
solidariedade não de qualquer filósofo, mas do ontólogo, é preciso considerar não
apenas o papel dos modelos na matemática, mas especificamente dos axiomas na
teoria dos conjuntos.

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Isso nos traz à importância da hipótese do contínuo na filosofia de Badiou.
Novamente, não vou entrar nos meandros da questão matemática, mas gostaria de
apontar um detalhe muito importante, que raramente é mencionado, seja por
comentadores, seja pelo próprio Badiou. A saber, o papel das provas de
consistência no estabelecimento do que se chama de a “independência" da hipótese
do contínuo.

O que nos interessa aqui é a forma como tanto Kurt Gödel quanto Paul Cohen
produziram seus resultados. A hipótese do contínuo é, informalmente falando, a
hipótese de que não existe um conjunto x tal que sua cardinalidade seja maior que
a do infinito contável dos números naturais e menor do que a do infinito incontável
dos números reais. Ou seja, o próximo "tamanho" de infinito após aquele que pode
ser transformado numa lista infinita, mas ordenada, é o infinito denso e incontável
isomórfico ao número de pontos num segmento de linha. Bem, essa hipótese foi
formulada por Georg Cantor, que no entanto não conseguiu derivar o resultado a
partir da teoria dos conjuntos tal como essa havia sido construída.

Nos anos 40, Gödel demonstrou que a hipótese do contínuo era consistente com a
teoria axiomática dos conjuntos - o que significa isso? Significa que ele não
produziu um teorema “não há x tal que x tenha cardinalidade maior que o infinito
contável e menor que o infinito incontável”, ao invés, sua estratégia foi adicionar
um novo axioma a lista de proposições fundamentais de ZFC - o "axioma da
construtibilidade”, que restringe a criação de novos conjuntos, de modo que só é
possível construir um novo conjunto a partir das partes bem definíveis dos
conjuntos já existentes - e mostrou que ZFC mais o axioma da construtibilidade
permanece um sistema formal internamente consistente, isto é, sem contradição.
Como a hipótese do contínuo pode ser reformulada em termos desse novo axioma
adicionado por Gödel, demonstrar a consistência relativa desse novo sistema
formal é demonstrar que a hipótese do contínuo é válida. Mas não é a mesma coisa
de derivá-la teoremicamente: o que Gödel fez foi adicionar o que queria provar de
maneira totalmente desmotivada, sem fundamento ou razão, ao sistema original, e
demonstrar que essa adição não implica em nenhuma contradição. A hipótese do
contínuo é pensável nos termos de ZFC.

Um pouco mais de vinte anos depois, um aluno seu, Paul Cohen, faria uso da
mesma estratégia, mas com o propósito oposto, adicionando aos axiomas de ZFC a
proposição que nega a hipótese do contínuo e demonstrando que essa
suplementação é igualmente consistente. A grande novidade de sua proposta é que,
para avaliar suas consequências, Cohen precisava ser capaz de incluir em sua
descrição do universo dos conjuntos um conjunto que tivesse essa cardinalidade
especial: nem redutível ao contável, nem contido no conjunto das partes do infinito

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contável, isto é, em seu conjunto potência, que é incontável e pertence ao infinito
superior, dos números reais. Para demonstrar que existe um modelo do universo
dos conjuntos que atende a esse requisito especial, Cohen inventou um método
chamado de “forçamento" ou “forcing”, que nos permite construir, a partir do
universo de conjuntos contavelmente infinitos, conjuntos que são irredutíveis a essa
cardinalidade, mas também não possuem o tamanho do infinito dos reais. Badiou
explora em detalhes a sutileza do método de Cohen e a infra-estrutura desses
conjuntos, ditos "genéricos", em Ser e Evento, mas aqui eu estou tentando chamar
atenção para outra coisa: o caráter especial das duas provas, que giram em torno da
adoção de axiomas adicionais - axiomas que, em sua forma, são indistinguíveis dos
axiomas já aceitos de ZFC - e que expressam matematicamente diferentes
compromissos com o que é e não é possível, com o que pode e não pode ser
pensado consistentemente no universo dos múltiplos infinitos da teoria dos
conjuntos.

Quando falamos que a matemática é capaz, em suas relações regionais, de


“filosofar" sobre o que pode e não pode existir, é justamente disso que falávamos:
admitir o axioma da construtibilidade ou o axioma que nega a hipótese do contínuo
não é derivar um resultado, tanto quanto afirmar de dentro da matemática o que é
pensável e, em seguida, explorar de maneira experimental as consequências - nem
sempre consistentes - dessas asserções. Gödel produziu, com sua prova, uma visão
do universo de ZFC em que não pode existir um conjunto cuja regra de construção
não seja formulável em termos de predicados de conjuntos já construídos. E
demonstrou que essa visão é consistente - é possível adotá-la sem nunca entrar em
contradição com ZFC. Cohen construiu um modelo que demonstra a consistência
de afirmar axiomaticamente a existência de um conjunto cuja regra de construção é
impredicativa - ele não deduziu essa afirmação como um teorema: ele admitiu a
proposição e demonstrou o método de construção de um conjunto com essa
propriedade paradoxal.

O que eu quero enfatizar aqui é que esses axiomas adicionais são indistinguíveis de
axiomas “principais" - formalmente, não há nada que distinga as afirmações que
compõem o sistema ZFC das afirmações que condicionam as estratégias de Gödel e
Cohen, respectivamente. Todo axioma, em sua gramática, é um convite à
experimentação da consistência de seus efeitos - isso não é uma propriedade que
distingue qualitativamente alguns axiomas de outros. Essa afirmação, no entanto,
me parece abrir assim uma outra maneira de entender uma formulação importante
de Badiou, a saber, de que a ontologia “proíbe" eventos. Acredito que Badiou
preserva aí uma ambivalência que é desnecessária e que convida criticas
igualmente improdutivas.

2.1 O conceito de axiomas em Ser e Evento

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Do ponto de vista de ZFC, onde não é possível construir conjuntos que pertençam
a si mesmos, é verdade que, se definimos o “matema do evento”, tal como faz
Badiou em Ser e Evento, como um conjunto que apresenta essa exata propriedade,
podemos seguramente dizer que ZFC interdita os eventos. Mas duas perguntas são
importantes aqui: por que Badiou introduziu a consideração do evento na forma de
um “matema” - isto é, usando um termo inventado por Jacques Lacan para
denominar formalizações a partir das quais nada é derivável ou dedutível - se, por
um lado, eventos não são da ordem da ontologia e, por outro, eventos estão
intimamente ligados à constituição de um novo espaço de implicações lógicas? E,
segundo, porque introduzir a questão do evento dessa maneira quando a prática
matemática já tem seu próprio nome para enunciados não-deriváveis, sem unidade
ou relevância própria, cuja consistência se decide apenas a posteriori, desde o
exame de suas consequências - que é justamente o que chamamos de axioma?

Minha tese é que há aí uma equivocidade desnecessária, e o enunciado de que o


evento diz respeito aquilo que “não-é-o-ser-enquanto-ser” funciona em diferentes
registros simultaneamente. Por um lado, se refere àquilo que a ontologia determina
estar interditado e, por outro, àquilo que a ontologia é interditado de determinar. É
verdade que o axioma da fundação "proíbe" a existência de conjuntos de
Mirimanoff - conjuntos auto-pertencentes - e que, portanto, “a ontologia declara
que o evento não é” ou “não tem ser” - o que é uma interdição positiva - mas
quando Badiou diz, em outro momento, que a “ontologia não tem nada a dizer
sobre o evento”, me parece que há aqui uma interdição diferente, negativa, uma
interdição a respeito da ontologia. Em outra passagem, ele escreve “a ontologia
demonstra que o evento não é, no sentido de que é um teorema da ontologia que
toda auto-pertença contradiz a ideia fundamental do múltiplo” - ou seja, a ontologia
tem poder de expressar, de determinar, que múltiplos que pertencem a si mesmos
estão excluídos daquilo que é consistentemente pensável. Mas, logo em seguida,
Badiou diz que “assim emerge o que não-é-o-ser-enquanto-ser, como o ponto de
impossibilidade do discurso do ser enquanto ser” - o que é uma asserção não sobre
a força da teoria axiomática dos conjuntos, mas sobre a sua fraqueza, sua
incapacidade de determinar alguma coisa.

Poderíamos arriscar, assim, a distinção de que, para a situação da ontologia, isto é,


para a prática matemática que se adequa às propriedades decididas meta-
ontologicamente como relevantes, a interdição positiva é válida - e é respeitada por
Badiou, que marca o conceito de evento com um formalismo inconsistente do ponto
de vista de ZFC e, na verdade, totalmente inútil para sua própria teoria - porém, ao
mesmo tempo, para a situação histórica da matemática, e da teoria dos conjuntos
especificamente, a forma que essa interdição toma é negativa. O sistema ZFC é
“fraco" demais para derivar teoremicamente resultados que, extraindo da

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multiplicidade um novo princípio de inteligibilidade, decidiriam criativamente
sobre a existência ou não de uma proposição cujas consequências devem ser
checadas experimentalmente. Ora, o que é a independência da hipótese do
contínuo, que mencionei acima, senão um exemplo de como axiomas podem
intervir exatamente no ponto de fraqueza de ZFC? Provas de consistência - que
não são nada mais do que casos extremos do argumento pelo absurdo - jogam
simultaneamente com a interdição positiva - que garante a consistência lógica do
formalismo - e com a interdição negativa - sua incapacidade de impedir a adição de
novas proposições bem-formadas, mas sem motivação.

Se estamos corretos nessa interpretação, e se Badiou realmente mistura sua


discussão da interdição positiva que rege o discurso axiomático conjuntista,
impedindo a construção de certos conjuntos - mas conjuntos que, reforço, não
teriam de qualquer maneira nenhum caráter evental para a matemática - com a
questão da interdição negativa, que impede que a ontologia tenha algo a dizer
contra a produção de novas afirmações não-motivadas e sem fundamento, mas
potencialmente cheias de consequências interessantes, então poderíamos talvez
reformular a questão do evento da seguinte maneira. Não existem eventos no
pensamento do ser enquanto ser porque esse pensamento é ele mesmo feito - em
sua gramática - de eventos. Outra maneira de dizer, que condensa a questão do
modelo e do axioma: a razão pela qual a situação da ontologia “não tem Estado" -
isto é, contém em sua própria estrutura imanente a relação instável entre estrutura
e metaestrutura, que é o que o conceito de modelo nos ensina - é a mesma razão
pela qual a “ontologia não tem nada a dizer sobre o evento” - que é porque todas as
suas proposições são pós-eventais, isto é, dependentes da gramática axiomática. Se
a ontologia é toda construída a partir de axiomas, por essa exata razão ela está
condenada a ser compatível com novos axiomas.

Isso nos permite fazer uma outra distinção que nos ajudaria a trazer ainda mais
clareza para a afirmação de que "as matemáticas são a ontologia”. Dado tudo o que
discutimos até aqui, podemos dizer que existem três tipos de condições para que
um dado discurso sirva como discurso ontológico: existem as condições que
determinam o que esse discurso precisa ser capaz de não fazer, as condições que
determinam o que esse discurso precisa ser capaz de fazer e àquelas que dizem
respeito ao que esse discurso precisa não ser capaz de fazer.

Pois bem, mencionei quatro condições metaontológicas do que um novo discurso


ontológico precisa ser capaz de não fazer: precisa ser capaz de evitar dizer o ser
como existência, como sentido, como unidade e como objeto. E vimos que a
axiomática conjuntista é capaz de não fazer isso. Mas isso não é suficiente - a
crítica de Markus Gabriel que nós discutimos anteriormente aponta para ainda
uma outra condição, uma condição sobre aquilo que esse discurso precisa ser capaz

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de fazer: ele precisa ser capaz de conter de maneira imanente a relação entre sua
sintaxe formal e seu regime semântico - ou seja, ele precisa ser capaz de relacionar
regiões de sua interioridade de maneira a legislar sobre o alcance, sentido e valor
de suas próprias estruturas - condição que Gabriel associa, de maneira um pouco
apressada, ao papel da filosofia para a ontologia matemática. Com nossa discussão
do conceito de modelo, tentei mostrar como essa condição adicional é respeitada
por Badiou, para quem a teoria dos conjuntos não é nem uma pura sintaxe para a
qual toda a realidade é um modelo, nem um modelo estrutural capaz de apreender
o que é relevante em qualquer contexto empírico. Essa capacidade de criar relações
entre regiões formais distintas, de experimentar de forma imanente à prática
matemática com a extensão de um conceito, é uma condição sem a qual um
discurso não poderia ser o discurso da ontologia.

O conceito de axioma também é um exemplo dessa capacidade positiva da prática


matemática de intervir sobre seus próprios limites, mas, além disso, ele serve ainda
de "índice epistemológico” do terceiro tipo de condição que mencionei: as
condições do que um discurso precisa não ser capaz de fazer para poder fazer
ontologia. Quando Badiou diz, na introdução de Ser e Evento, que “a essência do
famoso problema do contínuo era que tocávamos aí num obstáculo intrínseco ao
pensamento matemático, em que se dizia o impossível próprio que lhe funda o
domínio” (14), ele se refere justamente à impossibilidade intrínseca ao sistema
ZFC de decidir teoremicamente sobre a existência ou não de um conjunto de uma
dada cardinalidade. É muito importante notar, no entanto, que não se trata para
Badiou de “denunciar” assim os limites da matemática ou da teoria dos conjuntos,
por ser um discurso incapaz de apreender alguma coisa - pelo contrário: essa
fraqueza ou “obstáculo intrínseco” é mais uma condição metaontológica para
qualquer ontologia possível. É necessário que, em sua extensão potencialmente
infinita de resultados, determinações e proposições, o discurso do ser nunca incorra
na dedução daquilo que pode ser. Que a decisão quanto à existência de um certo
tipo de infinito dependa de uma intervenção experimental - como vimos, dependa
de provas de consistência, ao invés de derivações de teoremas diretamente de ZFC
- atesta que, por mais que a teoria dos conjuntos seja capaz de muita coisa, a força
daquilo que podemos expressar a partir de seus axiomas não limita a fraqueza
desse sistema, que é incapaz de impedir que adicionemos novos axiomas e
experimentamos com suas consequências.

“As matemáticas são a ontologia” somente se atendem à conjunção de três


condições qualitativamente diferentes: as matemáticas são a ontologia se existe pelo
menos uma região da matemática que é capaz de não fazer referência ao existente,
ao sentido empírico, à unidade imediata e a determinação de seus objetos, se
também é capaz de estabelecer relações experimentais entre regiões do formalismo,
interpretando e avaliando o alcance e consequência de suas proposições, e se é

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incapaz, em sua própria gramática, de impedir a suplementação de suas
proposições por outras de extensão e consequência indeterminadas.

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