Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
1. O conceito de modelo
“As matemáticas são a ontologia” (SE, p.13) - é assim que Badiou introduz a
expressão que depois seria reproduzida por seus comentadores como numa
brincadeira de telefone sem fio: a gente diz, "para Badiou, a matemática é
ontologia”, tirando o plural, o que já prepara o terreno para defender, em seguida,
que a “teoria dos conjuntos é a ontologia”, reduzindo matemática a um de seus
fragmentos. Ou ainda dando em “matemática = ontologia”, o que desfaz a tensão
entre o verbo “ser" e a ciência do “ser enquanto ser”, entre discurso e ser.
Mas por que o plural, se o resto do livro vai se concentrar sobre a teoria axiomática
dos conjuntos? E, mais, se vai se concentrar em uma versão particular da teoria, o
sistema de axiomas de Zermelo-Frankael, mais o axioma da escolha, o sistema
"ZFC"?
2
estratégia central de fundamentar a teoria dos números a partir da lógica de
predicados, partindo da tese - chamada hoje de logicismo - de que a lógica
matemática seria uma espécie de modelo fundamental, estrutura subjacente, de
toda a matemática.
Mas a força do argumento excede esse uso essencialmente crítico. Anos depois,
quando se tratava agora de propor uma nova perspectiva para a ontologia, essa
mesma crítica da apropriação filosófica - ideológica, propriamente falando - do
conceito de modelo viria novamente balizar a proposta de Badiou.
3
contestada com sucesso. Lacanianos costumam fazer isso, seguindo a tradição
estruturalista: a pulsão de morte implica em estruturas de lógica paraconsistente, e
já que os axiomas da separação e da fundação impedem conjuntos que pertencem a
si mesmos, então ZFC não poderia ser um modelo do ser enquanto ser.
Bem, se Badiou já havia criticado ambas as posições nos anos 60, e se havia
defendido a dimensão intra-matemática do conceito de modelo - e portanto a
irredutibilidade da função referencial, semântica, ao procedimento concreto das
matemáticas - então como que as matemáticas podem ver "condenadas a sustentar
o discurso ontológico”?
4
Para compreender a solução de Badiou, é preciso considerar a estratégia em três
tempos que organiza as primeiras meditações de Ser e Evento. O livro não começa,
afinal de contas, com a proposição de que as matemáticas são o discurso do ser
enquanto ser, mas com uma discussão das “condições a priori de toda ontologia
possível” (29): uma elaboração puramente filosófica sobre a questão do múltiplo e
do um. Em suma, Badiou recapitula as condições de possibilidade de uma nova
ontologia, e poderíamos resumi-las em quatro pontos: se uma ontologia é possível,
esse discurso precisaria ser capaz de não tratar o ser como existência, como
sentido, como unidade ou como objeto. E Badiou adiciona ainda uma outra
cláusula: à luz dessas condições severas, seria preciso ainda avaliar se a ontologia
poderia ser um discurso - isto é, se existe algum tipo de discursividade que poderia
respeitar essas condições. Nos termos de Badiou, seria preciso avaliar se um
pensamento do ser subtraído dessas categorias poderia ele mesmo ser consistente
enquanto forma de pensamento. Para o filósofo, a resposta heideggeriana foi “não":
todo discurso racional tem um objeto, logo a única maneira de respeitar essas
condições é através dos operadores que perturbam a discursividade consistente, em
especial a poesis. Trata-se de uma decisão filosófica de Heidegger, a respeito do que
seria a discursividade e a linguagem.
5
Mas qual a ordem das razões aqui? Primeiro passo: só pode haver um novo
discurso do ser enquanto ser se, em sua gramática, esse não confundir o ser com a
existência, com o sentido extra-discursivo de uma proposição, com a unidade e com
o objeto. Segundo passo: há um discurso que respeita essas condições - por razões
contingentes, um fragmento das matemáticas, nem mesmo o mais relevante ou
atual, responde adequadamente a essas condições. Passo final, que nos permitiria
ligar a ontologia do múltiplo puro - múltiplo sem existência, sem sentido, unidade
ou objetos definidos - à teoria axiomática dos conjuntos: se o discurso do ser
enquanto ser, condicionado de acordo com o primeiro passo, precisa abordar o ser
apenas como “nada” então é apenas se a teoria dos conjuntos pensa “nada” que ela
pensa o ser enquanto ser.
6
E há realmente um outro ponto de inserção para a filosofia aqui que não é fazer-se
de modelo da sintaxe conjuntista, mas antes reconhecer que ao fazer de si mesma
um modelo, uma região da matemática “filosofiza" a outra. Quando uma região da
matemática serve de modelo para a outra, está em jogo aí uma operação que
apresenta todas as propriedades que estamos acostumados a reconhecer nos
debates metafísicos - e cujos "índices epistemológicos”, já dizia Badiou nos anos 60,
são as relações de modelagem intra-matemáticas.
2. O conceito de axioma
7
vinte - significaria também a desqualificação das expectativas da ontologia
matemática de Badiou. No entanto, não é disso que se trata.
Assim como argumentei acima que a posição de Badiou não pressupõe como
necessário o aparecimento de um fragmento das matemáticas que respondesse
adequadamente às condições de uma nova ontologia, também não pressupõe que
esse fragmento tenha um papel especial - de redução ou unificação - para a própria
matemática. A teoria dos conjuntos é, para ir direto ao ponto, uma região da
matemática que lida com a problemática do infinito: ela surge com o desafio de
pensar o infinito sem recursos à geometria e à intuição, e ela permanece ativa até
hoje não por ser uma teoria capaz de absorver todo o resto da matemática, mas
porque a problemática do infinito - por exemplo, a questão dos grandes cardinais -
permanece igualmente em aberto.
8
própria enunciação - é claro podemos justificar, para nós mesmos, um axioma com
base no seu caráter intuitivo, na pragmática de um dado projeto de pesquisa, mas
essas justificativas são extrínsecas à proposição: não deixam marca alguma em sua
formulação, que é indistinguível da regra caprichosa de um jogo. Se o
fundacionismo, para a filosofia, é uma forma de pensar que visa começar pela
unidade, pelo essencial e pelo necessário, então não há nada de fundacionista na
função e forma dos axiomas matemáticos quando considerados como operadores
para a matemática. Axiomas não servem para garantir que estamos operando
dentro do sistema mais geral possível - é possível construir sistemas axiomáticos de
regime tão restrito quanto quisermos - sua principal função, como lembrava
Lautman, não é generalizar, mas dividir operadores anteriormente considerados
primitivos e indecomponíveis. Por exemplo, a adição ou remoção de um dado
axioma pode, como no caso da geometria, nos permitir explorar espaços não-
triviais que eram inacessíveis desde os postulados da geometria euclidiana, como
acontece quando suspendemos ou alteramos o famoso postulado das paralelas.
Mas esse é o momento em que é preciso criticar o próprio Badiou por não deixar
claro um aspecto essencial de seu projeto. Essa descrição do conceito de axioma:
uma proposição irredutível ao um, sem fundamento e indiferente às razões que
podemos ter para adotá-las - não é essa a definição mesma de “evento” na filosofia
badiouiana? O próprio filósofo defende que “eventos" são começos que
suplementam situações já existentes, que não introduzem nenhum ser novo nas
situações e são indiferentes às motivações para enunciá-los. Eu gostaria de
defender que não se trata de uma similaridade, como se estivéssemos lidando com
uma nova analogia.
Mas para entender a qualificação da teoria axiomática dos conjuntos como uma
região da matemática em que esse tipo de relação de modelagem implica a
solidariedade não de qualquer filósofo, mas do ontólogo, é preciso considerar não
apenas o papel dos modelos na matemática, mas especificamente dos axiomas na
teoria dos conjuntos.
9
Isso nos traz à importância da hipótese do contínuo na filosofia de Badiou.
Novamente, não vou entrar nos meandros da questão matemática, mas gostaria de
apontar um detalhe muito importante, que raramente é mencionado, seja por
comentadores, seja pelo próprio Badiou. A saber, o papel das provas de
consistência no estabelecimento do que se chama de a “independência" da hipótese
do contínuo.
O que nos interessa aqui é a forma como tanto Kurt Gödel quanto Paul Cohen
produziram seus resultados. A hipótese do contínuo é, informalmente falando, a
hipótese de que não existe um conjunto x tal que sua cardinalidade seja maior que
a do infinito contável dos números naturais e menor do que a do infinito incontável
dos números reais. Ou seja, o próximo "tamanho" de infinito após aquele que pode
ser transformado numa lista infinita, mas ordenada, é o infinito denso e incontável
isomórfico ao número de pontos num segmento de linha. Bem, essa hipótese foi
formulada por Georg Cantor, que no entanto não conseguiu derivar o resultado a
partir da teoria dos conjuntos tal como essa havia sido construída.
Nos anos 40, Gödel demonstrou que a hipótese do contínuo era consistente com a
teoria axiomática dos conjuntos - o que significa isso? Significa que ele não
produziu um teorema “não há x tal que x tenha cardinalidade maior que o infinito
contável e menor que o infinito incontável”, ao invés, sua estratégia foi adicionar
um novo axioma a lista de proposições fundamentais de ZFC - o "axioma da
construtibilidade”, que restringe a criação de novos conjuntos, de modo que só é
possível construir um novo conjunto a partir das partes bem definíveis dos
conjuntos já existentes - e mostrou que ZFC mais o axioma da construtibilidade
permanece um sistema formal internamente consistente, isto é, sem contradição.
Como a hipótese do contínuo pode ser reformulada em termos desse novo axioma
adicionado por Gödel, demonstrar a consistência relativa desse novo sistema
formal é demonstrar que a hipótese do contínuo é válida. Mas não é a mesma coisa
de derivá-la teoremicamente: o que Gödel fez foi adicionar o que queria provar de
maneira totalmente desmotivada, sem fundamento ou razão, ao sistema original, e
demonstrar que essa adição não implica em nenhuma contradição. A hipótese do
contínuo é pensável nos termos de ZFC.
Um pouco mais de vinte anos depois, um aluno seu, Paul Cohen, faria uso da
mesma estratégia, mas com o propósito oposto, adicionando aos axiomas de ZFC a
proposição que nega a hipótese do contínuo e demonstrando que essa
suplementação é igualmente consistente. A grande novidade de sua proposta é que,
para avaliar suas consequências, Cohen precisava ser capaz de incluir em sua
descrição do universo dos conjuntos um conjunto que tivesse essa cardinalidade
especial: nem redutível ao contável, nem contido no conjunto das partes do infinito
10
contável, isto é, em seu conjunto potência, que é incontável e pertence ao infinito
superior, dos números reais. Para demonstrar que existe um modelo do universo
dos conjuntos que atende a esse requisito especial, Cohen inventou um método
chamado de “forçamento" ou “forcing”, que nos permite construir, a partir do
universo de conjuntos contavelmente infinitos, conjuntos que são irredutíveis a essa
cardinalidade, mas também não possuem o tamanho do infinito dos reais. Badiou
explora em detalhes a sutileza do método de Cohen e a infra-estrutura desses
conjuntos, ditos "genéricos", em Ser e Evento, mas aqui eu estou tentando chamar
atenção para outra coisa: o caráter especial das duas provas, que giram em torno da
adoção de axiomas adicionais - axiomas que, em sua forma, são indistinguíveis dos
axiomas já aceitos de ZFC - e que expressam matematicamente diferentes
compromissos com o que é e não é possível, com o que pode e não pode ser
pensado consistentemente no universo dos múltiplos infinitos da teoria dos
conjuntos.
O que eu quero enfatizar aqui é que esses axiomas adicionais são indistinguíveis de
axiomas “principais" - formalmente, não há nada que distinga as afirmações que
compõem o sistema ZFC das afirmações que condicionam as estratégias de Gödel e
Cohen, respectivamente. Todo axioma, em sua gramática, é um convite à
experimentação da consistência de seus efeitos - isso não é uma propriedade que
distingue qualitativamente alguns axiomas de outros. Essa afirmação, no entanto,
me parece abrir assim uma outra maneira de entender uma formulação importante
de Badiou, a saber, de que a ontologia “proíbe" eventos. Acredito que Badiou
preserva aí uma ambivalência que é desnecessária e que convida criticas
igualmente improdutivas.
11
Do ponto de vista de ZFC, onde não é possível construir conjuntos que pertençam
a si mesmos, é verdade que, se definimos o “matema do evento”, tal como faz
Badiou em Ser e Evento, como um conjunto que apresenta essa exata propriedade,
podemos seguramente dizer que ZFC interdita os eventos. Mas duas perguntas são
importantes aqui: por que Badiou introduziu a consideração do evento na forma de
um “matema” - isto é, usando um termo inventado por Jacques Lacan para
denominar formalizações a partir das quais nada é derivável ou dedutível - se, por
um lado, eventos não são da ordem da ontologia e, por outro, eventos estão
intimamente ligados à constituição de um novo espaço de implicações lógicas? E,
segundo, porque introduzir a questão do evento dessa maneira quando a prática
matemática já tem seu próprio nome para enunciados não-deriváveis, sem unidade
ou relevância própria, cuja consistência se decide apenas a posteriori, desde o
exame de suas consequências - que é justamente o que chamamos de axioma?
12
multiplicidade um novo princípio de inteligibilidade, decidiriam criativamente
sobre a existência ou não de uma proposição cujas consequências devem ser
checadas experimentalmente. Ora, o que é a independência da hipótese do
contínuo, que mencionei acima, senão um exemplo de como axiomas podem
intervir exatamente no ponto de fraqueza de ZFC? Provas de consistência - que
não são nada mais do que casos extremos do argumento pelo absurdo - jogam
simultaneamente com a interdição positiva - que garante a consistência lógica do
formalismo - e com a interdição negativa - sua incapacidade de impedir a adição de
novas proposições bem-formadas, mas sem motivação.
Isso nos permite fazer uma outra distinção que nos ajudaria a trazer ainda mais
clareza para a afirmação de que "as matemáticas são a ontologia”. Dado tudo o que
discutimos até aqui, podemos dizer que existem três tipos de condições para que
um dado discurso sirva como discurso ontológico: existem as condições que
determinam o que esse discurso precisa ser capaz de não fazer, as condições que
determinam o que esse discurso precisa ser capaz de fazer e àquelas que dizem
respeito ao que esse discurso precisa não ser capaz de fazer.
13
de fazer: ele precisa ser capaz de conter de maneira imanente a relação entre sua
sintaxe formal e seu regime semântico - ou seja, ele precisa ser capaz de relacionar
regiões de sua interioridade de maneira a legislar sobre o alcance, sentido e valor
de suas próprias estruturas - condição que Gabriel associa, de maneira um pouco
apressada, ao papel da filosofia para a ontologia matemática. Com nossa discussão
do conceito de modelo, tentei mostrar como essa condição adicional é respeitada
por Badiou, para quem a teoria dos conjuntos não é nem uma pura sintaxe para a
qual toda a realidade é um modelo, nem um modelo estrutural capaz de apreender
o que é relevante em qualquer contexto empírico. Essa capacidade de criar relações
entre regiões formais distintas, de experimentar de forma imanente à prática
matemática com a extensão de um conceito, é uma condição sem a qual um
discurso não poderia ser o discurso da ontologia.
14
incapaz, em sua própria gramática, de impedir a suplementação de suas
proposições por outras de extensão e consequência indeterminadas.
15