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Leia 0 texto abaixo, uma tira de As cobras, de Luis Fernando Verissimo: Cee J iP > leitura do primeito quadrinho, isolado do segundo, deixaria o presidente Fernando Henrique Fat Cguipe muito gratificados, ja que sua administrago recebe nota méxima (dez) na avaliagdo de um dos interlocutores do didlogo ai transcrito. Zero Hora. Segundo Cademo, 13 fev. 1995, Confrontado com o segundo, no entanto, 0 significado do quadrinho um se altera consideravelmente e provoca decepeo. Dez passa a ser lido como um indicador de velocidade ¢ nio como a nota méxima de uma escala convencional. Com a quebra de expectativa ertada pelo quadrinho um, produz-se um efeito de humor, ¢ 0 texlo, no seu todo, passa a ser um satira ¢ lentidio com que se tomam as decisdes do governo, Essa tirinha é exemplar para demonstrar dois dados importantissimos na leitura de um texto: ) num texto, o significado de uma parte nao é auténomo, mas depende das outras com que se relaciona. Tanto ¢ verdade que, no caso da tirinha acima, fomos obrigados a reinterpretar o sentido do quadrinho um, quando 0 confrontamos com 0 dois. b) 0 significado global de um texto no é 0 resultado de mera soma de suas partes, mas de uma certa combinagao geradora de sentidos. Nao fosse esse dado, 0 pequeno texto humoristico admitiria a seguinte leitura: que 0 governo de FHC merece nota deze que anda a dez quilémetros por hora. Qualquer leitor médio de texto diria que interpreté-lo dessa forma significa nfo té-lo entendido Em sinfese, num texto o sentido de cada parte ¢ definido pela relacdo que mantém com as demuis constituintes do todo; 0 sentido do todo nao é mera soma das partes, mas é dado pelas miltiplas relagdes que se estabelecem entre elas. Ao explicar o sentido da tira aqui reproduzida, usamos diversas vezes a palavra texto. Mas 0 que € um texto? Essa palavra & bastante usada na escola € mesmo fora dela. E muito frequente Ouvirmos frases como seu texto ficou muito bom; 0 texto sobre 0 qual versaram as questoes da brova de Portugués era muito longo ¢ complexo; os atores de novela devem decorar textos Comecenmos por definir quais sio as propriedades de um texto: A primeira é que ele tem coeréncia de Sentido. Isso quer dizer que ele nao é um amontoado de frases, ou seja, nele, as frases nao estio Pura ¢ simplesmente dispostas umas apés as outras, mas estao relacionadas entre si, E Por isso que, nele, 0 sentido de uma frase depende do sentido das demais com que se relaciona. O exemplo do texto com que iniciamos esta ligdo mostra de maneira simples ¢ clara que o sentido de qualquer Passagem de um texto é dado pelo todo. Se nio levarmos em conta as relagdes de uma frase com as Outras que compéem o texto, corremos o "isco de atribuir a ela um sentido oposto aquele que ela efetivamente tem. Uma mesma frase pode ter sentides distintos dependendo do contexto dentro do qual esta inserida. Precisemos um pouco melhor o conceito de contexto F a unidade maior em que uma ix, Para a frase, etc. O contexto pode ser explicito, quando ¢ expresso com palavras, ou implicito, quando esti embutido na situagdo em que o texto é produzido. Quando Lula disse a toce era colorido por fora, mas caiado por dentro, todos os brasileiro, entenderam que essa frase mio queria dizer Vocé tem cores por fora, mas é revesiide da cal por dentro, mas Vocé nlender a frase dessa maneira? Porque ela foi colocada dentro do contexto dos discursos da campanha presidencial. Nele, o adjetivo collorido significava “rela-tivo « Color”, “adepto de Collor’; Collor apresentava-se como um renovador, como alguém que pretendia modernizar o Pais, melhorar a distribuigio de renda, combater os privilégios dos mais favorecidos; Ronaldo Caiado era 0 candidato mais a direita, defendia a manutengao do stare quo, etc. As frases ganham sentido, porque esto correlacionadas umas as outras, © principio da coeréncia de sentide pode ser observade mesmo em quadros construidos a Partir de fragmentos Home m da Eescscgcanexes. Nesta colagem do inicio do séeulo, a profusio de elementos tradue o atordonternes a homem da época diante do massacre, por vezes indiseriminado, de informagses Um texto é pois, um todo organizado de sentido. Dizer que ele é¢ um todo organizado de Sentido implica afirmar que o texto € um conjunto formado de partes solidérias, ou seja, que o sentido de uma depende das outras Que € que faz que um conjunto de frases forme um texto ¢ nao um amontoado desorganizado? Sio varios os fatores. Citemos por enquanto dois. O primeiro é a coeréncia, isto 6 a harmonia de sentido de modo que nio haja nada ilégico, nada contraditério, nada desconexo, que nenhura parle mo se solidarize com as demais. A base da coeréncia é a continuidade de sentido, ou seja, @ auséncia de discrepancias. Em prineipio, seria incoerente um texto que dissesse Pedro esta muito doente. O quadrado da hipotenusa é igual d soma do quadrado dos catetos. Essa incoeréncia seria dada pelo fato de que nio se percebe a relagdo de sentido entre as duss frases aie Compocm o texto, Um outro fator ¢ a ligagdo das frases por certos elementos que recuperam PaSsagens Jé ditas ou garantem a concatenagao entre as partes. Assim, em Nao chove hd varios meses. Os pastos néio poderiam, portanto, estar verdes, 0 termo portanto estabelece uma relago de decorréncia logica entre uma e ot © Primeiro, pois, mesmo sem esses elementos de conexao. um Dean’ ; Por conseguinte, um todo organizado de sentido. Observe o texto abaixe Drummond de Andrade: O QUESE DIZ Que frio! Que vento! Que calor! Que caro! Que absurdo! Que bacana! Que tristeza! Que tarde! Que amor! Que besteira! Que esperanga! Que modos! Que noite! Que graca! Que horror! Que docura! Que novidade! Que susto! Que pao! Que vexame! Que mentira! Que confus%io! Que vida! Que talento! Que alivio! Que nada... Assim, em plena floresta de exclamagdes, vai-se tocando pra frente. (Cores Drammon de Andrade, Pera erase Rio de anit. Nova Api, 183.139, Faltam elementos de ligacdo entre as partes no primeiro pardgrafo, mas a ultima frase, Assim, om plena floresta de exclamagées, vai-se tocando pra frente, produz a unidade de sentido. O texto deixa de ser un amontoado aleatério de exclamagses, adquirindo coeréncia e, dessa forma, mostrando cardter estereotipado de nossa linguagem cotidiana, A segunda caracteristica de um texto & que ele ¢ delimitado por dois brancos. Se o texto é um ‘odo organizado de sentido, ele pode ser verbal (um conto, Por exemplo), visual (um quadro), verbal ¢ visual (um filme) ete, Mas, em todos esses casos, sera delimitad por dois espagos de nao sentido, dois brancos, um antes de comesar 0 texto ¢ outro depois. E 0 espaco em branco no Papel antes do inicio e depois do fim do texto; & o tempo de espera para que 0 filme comece e 0 ue esté depois da palavra Fim; € 0 momento antes que o maestro levante a batuts ¢ © momento depois que ele a abaixa, ete Durante séculos, a moldura dos quadros cumpriu a fungio de isoli-los do entorno, visando a estabelecer com nitidez entautPe para o alliar, ou seja, um espago de signifieagao, da mesma forma que os brancos antes depois de um texto verbal, O texto 6 produzido por um sujeito num dado tempo e num determinado espaco. Esse sujeito, por pertencer a um grupo social num tempo e num espaco, expde em seus textos as ideias, os anseios, os temores, as expectativas de seu tempo e de seu grupo social. Todo texto tem um carter hist6rico, nao no sentido de que narra fatos historicos, mas no de que revela os ideais ¢ as concepgdes de um grupo social numa determinada época. Cada periodo histérico coloca para os homens certos problemas ¢ os textos pronunciam-se sobre eles. Por exemplo, em nossa época, em que 0s recursos naturais do planeta correm o risco de esgotar-se, aparece o discurso ecologista que mostra a necessidade de preservar a natureza com vistas & manutenco da espécie humana. Sea ea ES ese seaeved © proprio fato de escother um produto de consumo didria — no caso, uma lata de sopa — para com ele const pintura é uma forma de representar certo estigio de desenvolvimento atingido por uma sociedade. Nao ha texto que no mostre 0 seu tempo. Cabe lembrar, no entanto, que uma sociedade nio produz uma tinica forma de ver a realidade, um tiiico modo de analisar os problemas colocados num dado momento. Como cla é dividida em grupos sociais, que tém interesses muitas vezes antagénicos, produz ideias divergentes entre si. A mesma sociedade que gera a ideia de que é preciso pér abaixo a floresta amazénica para explorar suas riquezas, produz a ideia de que preservar a floresta & mais rentivel. Cabe lembrar, no entanto, que algumas ideias, em certas €pocas, exercem dominio sobre outras, ganhando o estatuto de concepgao quase geral na sociedade. E necessario entender as concepgdes existentes na época e na sociedade em que o texto foi produzido para nio correr o risco de compreendé-lo de maneira distorcida Como as ideias sé podem ser expressas por meio de textos, analisar a relacdo do texto com sua época é estudar as relagdes de um texto com outros. Poderiamos dizer que um texto é, pois, um todo organizado de sentido, delimitado por dois brancos e produzido por um sujeito num dado espago e num dado tempo. Duas conclusdes podemos tirar dessa nogéio a) uma leitura nao pode basear-se em fragmentos isolados do texto, j4 que 0 significado das partes & determinado pelo todo em que estio encaixadas; b) uma leitura, de um lado, nao pode levar em conta 0 que nio esté no interior do texto e, de outro, deve levar em consideragao a relagdo, assinalada, de uma forma ou de outra, por marcas textuais, que um texto estabelece com outros. Texto COMENTADO CARROS QUE DURAM. PELO MENOS 20 ANOS. Anineio crindo pel agénein Young & Rubican, de 1950 O texto que segue ¢ um antineio publicitario publicado pela revista Veja. O produto anunciado so os carros russos Lada, que acabavam de entrar no mercado brasileiro, APROVEITE QUE OS RUSSOS NAO ENTENDEM NADA SOBRE LUCRO. ELES AINDA FAZEM CARROS QUE DURAM PELO MENOS 20 ANOS. Se existe alguma coisa que os russos ndo sabem fazer direito ¢ ganhar dinheiro. Eles ainda pensam que é um bom negécio fazer um carro moderno, confortivel, resistente, com chapa de ago belga, um motor simples, em que qualquer mecdnico mexe ¢ que ainda por cima nio da manuteng4o. E que os russos que fabricam os Lada esto acostumados a consumidores que ficam de 10a 15 anos como mesmo carro, que vendem para outros consumidores que também ficam um tempiio com o mesmo carro, que vendem para outros. Na Riissia, o carro que nao resistir a tantos consumidores nao é bom. E olhe que nio deve ser ficil fazer um carro que funcione perfeitamente por tantos anos em um pais onde s6 15% das estradas so pavimentadas. Mas vocé nfio mora na Riissia e, com certeza, no tem um carro russo. Entio, vocé deve estar pensando em trocar de carro daqui a pouco. Espere s6 até novembro ¢ compre os primeiros Lada que vio chegar ao Brasil. Porque, do jeito que os russos aprendem rapido, logo, logo eles podem aprender a ganhar dinheiro. 4,7 20%. 1990. Para demonstrar que, num texto, significado de uma parte depende de suas relagdes com as outras, vamos interpretar, isoladamente, o significado das duas primeiras linhas do texto acima. Quando se diz “Aproveite que os russos ndo entendem nada sobre lucro”, a frase remete para 0 fato de que a Riissia era o pais lider do bloco socialista ¢ de que ld, portanto, ndo havia necessidade de buscar 0 lucro, como nos paises capitalistas. Como esse texto é de 1990, quando eram notérias as dificuldades econdmicas por que passava a entio Unido Soviética, pode-se pensar que a concepgdo sobre a qual o texto vai trabalhar ¢ a da superioridade da economia capitalista sobre a socialista, ou seja, pode-se imaginar que 0 texto consideraré negativo 0 fato de os russos nao entenderem nada sobre lucro. ‘As duas linhas seguintes comegam a mostrar que essa hipdtese interpretativa nao é verdadeira Seus carros nio estio submetidos obsolescéncia crescente planejada pela industria capitalista para que o consumo seja sempre maior: eles duram pelo menos vinte anos. © texto em letras menores confirma essa ultima hipétese de leitura: os russos no sabem ganhar dinheiro, porque pensam que bom negocio ¢ fabricar um carro moderno, confortavel, resistente (com chapa de aco belga, que dura muito tempo e passa de um dono a outro, que suporta estradas nao pavimentadas), com motor simples (em que qualquer mecanico mexe), que nao dé manutengio. Agora o sentido se apresenta em toda a plenitude e é contrario ao que as duas primeiras linhas, isoladas do contexto, davam a entender. Bom negocio, para o industrial capitalista, é fabricar um carro que nao dure muito tempo e, por conseguinte, precise ser trocado, Dai decorre que o lucro, segundo 0 texto, é algo que se obtém 4 custa do consumidor, é fruto da gandncia. O lucro é a mola do capitalismo. Ja os russos, por nao serem capitalistas, no visam ao lucro ¢ fabricam, por isso, produtos de grande durabilidade. O lucro e, por extensao, o sistema que o produz so negativos para 0 consumidor, enquanto nfo entender de lucro é positivo para ele, pois néio o submete & obsolescéncia planejada. O texto é uma publicidade dos carros russos Lada, veiculada na época em que comegaram a ser vendidos no Brasil. A estratégia de persuasio do texto é transformar o que sempre se considerou um ponto negativo da economia socialista em ponto positive para o consumidor. A iiltima frase conclama o comprador potencial a efetuar o negdcio rapidamente, acenando com o perigo das transformagdes por que passa a Rissia, Transformando-se em economia submetida as chamadas leis do mercado, os russos aprenderao a ganhar dinheiro e, por conseguinte, 0 consumidor estar submetido a obsolescéncia planejada, nao tendo mais bens bastante duraveis. OH eExercicios O texto que segue & o capitulo LXVIII do livro Memérias péstumas de Brés Cubas, de Machado de Assis. O VERGALHO. Tais eram as reflexdes que cu vinha fazendo, por aquele Valongo fora, logo depois de ver e ajustar a casa. Interrompeu-mas um ajuntamento; era um preto que vergalhava outro na praca. O outro nao se atrevia a fugir; gemia somente estas tinicas palavras: — “Nao, perdao, meu senhor; meu senhor, perdio!” Mas 0 primeiro nao fazia caso, e, a cada splica, respondia com uma vergalhada nova. — Toma, diabo! dizia ele; toma mais perdio, bébado! —Meu senhor! gemia 0 outro. — Cala a boca, besta! replicava 0 vergalho. Parei, olhei... Justos céus! Quem havia de ser 0 do vergalho? Nada menos que o meu moleque Prudéncio, — o que meu pai libertara alguns anos antes. Cheguei-me; ele deteve-se logo ¢ pediu- me a bénedo; perguntei-lIhe se aquele preto era escravo dele. —B, sim, nhonhs, — Fez-te alguma coisa? — Bum vadio e um bébado muito grande. Ainda hoje deixei ele na quitanda, enquanto eu ia 1a embaixo na cidade, ¢ ele deixoua quitanda para ir na venda beber. — Est bom, perdoa-Ihe, disse cu. — Pois nao, nhonhé. Nhonhé manda, nao pede. Entra para casa, bébado! Sai do grupo, que me olhava espantado e cochichava as suas conjeturas. Segui caminho, a desfiar uma infinidade de reflexdes, que sinto haver inteiramente perdido; aliés, seria matéria para um bom capitulo, © talvez alegre. Eu gosto dos capitulos alegres, é 0 meu fraco Exteriormente, era torvo o episédio do Valongo; mas s6 exteriormente. Logo que meti mais dentro a faca do raciocinio achei-lhe um miolo gaiato, fino, ¢ até profundo. Era um modo que 0 Prudéncio tinha de se desfazer das pancadas recebidas, — transmitindo-as a outro. Eu, em crianga, montava-o, punha-lhe um freio na boca, e desancava-o sem compaixdo; ele gemia ¢ sofia. Agora, porém, que era livre, dispunha de si mesmo, dos bragos, das pernas, podia trabalhar, folgar, dormir, desagrilhoado da antiga condigdo, agora é que ele se desbancava: comprou um escravo, ¢ ia-lhe pagando, com alto juro, as quantias que de mim recebera. Vejam as sutilezas do maroto! Machado desis. Mon dvas pists de Bris Cubes, Sto Pl, As, 195. p 100-1

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