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É popularmente conhecido por «Passarinho», mas o canto nunca foi o seu forte.

O que
deu fama ao bejense Carlos Gonçalves é o jeito com que dedilha a guitarra portuguesa e como
para ela compõe temas que foram celebrizados por grandes vozes. Guitarrista de Amália
durante 31 anos, musicou diversos poemas da diva, tais como “Lágrima”, “Grito” ou “Gostava
de ser quem era”, que são hoje clássicos do reportório fadista. O peso dos 77 anos já não lhe
permite uma atividade profissional regular, mas ainda participa em espetáculos para os quais é
convidado e dá aulas de guitarra em sua casa. E continua a compor, sempre que uma melodia,
algo assim como o trinado dum passarinho, lhe assalta o espírito e insiste em sair dali e pousar
nas cordas duma guitarra.
«Essa de me chamarem “Passarinho” vem dos tempos das brincadeiras de criança com
a rapaziada da minha rua», recorda Mestre Carlos Gonçalves. «Como eu e o meu irmão
corríamos mais depressa que os outros, diziam que voávamos como passarinhos. Foi daí que
veio o nome.» Filho de um polícia que também tocava bandolim, nasceu em 1938, em Beja, na
Rua de S. Sebastião. «Tive uma infância maravilhosa. A cidade era pacata e o tempo que
sobrava da escola era passado na brincadeira. Chegava a levantar-me da mesa para ir brincar,
só porque a sopa estava quente…»
A vocação para a música revelou-se espontaneamente. «Um dia “roubei” o bandolim
ao meu pai. Sentei-me debaixo duma figueira e daí a dez minutos estava a tocar o “Bailinho da
Madeira”… Continuei com o bandolim durante uns tempos, mas quando ouvi pela primeira vez
o som da guitarra portuguesa, teria os meus 13 anos, pu-lo de parte. A guitarra é que era um
instrumento bonito, pensava eu.»
Perdido de amores pela guitarra, ia todos os dias a uma taberna perto da sua casa para
ouvir os programas de fados e guitarradas que passavam na Emissora Nacional. «O meu ídolo
era o José Nunes, um dos melhores guitarristas de sempre. Fixava as músicas dele e tentava
tocá-las numa guitarra que me emprestavam na adega do Ceguinho. Aprendi a tocar de
ouvido, pois não existiam professores. Nessa fase não conhecia bem o reportório dos fados
tradicionais – que são dezenas-, mas já executava as “variações” do José Nunes».
Como tinha talento para a música em geral, Carlos Gonçalves chegou a tocar clarinete
na banda da Sociedade Filarmónica Capricho Bejense. «Gostava e ainda hoje gosto muito de
bandas filarmónicas. Em Beja, fiz umas procissões, uns concertos no jardim público, mas o meu
instrumento eleito era a guitarra.»
Com 18 anos foi viver para Lisboa, com os pais e o irmão. Arranjou trabalho «a vender
porta a porta livros em fascículos e folhetins, que eram o equivalente às atuais telenovelas.
Fiquei a conhecer a cidade por dentro e por fora». Mas o gosto pela música não o largava.
Pouco tempo depois de estar em Lisboa comprou a sua primeira guitarra, na Casa Santos
Beirão, no Rossio. Começou a frequentar os ambientes fadistas e a aparecer nos sítios onde
havia fado amador. «Ninguém me introduziu no meio. Ia aparecendo nas tascas, ouvia os
guitarristas, falava com um e outro e assim fui aprendendo o reportório. Professores não tive.»
O Café Lisboa, na Avenida da Liberdade, era muito concorrido pela gente do fado. «Ali arranjei
alguns contratos e o meu nome começou a ser falado. Tocava bem, e além disso “era bom
rapaz”, como se exigia naquela altura», ironiza o guitarrista.
Aos 20 anos decide profissionalizar-se. «Estreei-me na Adega da Anita, que pertencia à
fadista Anita Guerreiro e ficava no Parque Mayer. Seguiu-se o restaurante típico Lobos do Mar,
na Calçada de Carriche. O serviço militar veio atrapalhar-me um bocado, mas consegui manter
o contrato que tinha com A Viela.»
Livre da tropa, integra-se no circuito das melhores casas de fado da época. «Trabalhei
na Márcia Condessa, A Toca, Severa, Folclore, Taberna do Embuçado, Arreda, Picadeiro…»
Nesses recantos acompanha os grandes nomes do fado: Lucília do Carmo, Maria Teresa de
Noronha, Beatriz da Conceição, Argentina Santos, Alfredo Marceneiro, Carlos Ramos,
Fernando Farinha, Max e outros. «Eram muito bons fadistas, mas havia uma que era um caso à
parte: Amália. Não podia comparar-se com ninguém, nem em Portugal nem no mundo.»
Carlos Gonçalves ouvia Amália desde miúdo. «Ainda não tinha conhecimentos para a
apreciar devidamente, mas qualquer um notava que havia ali qualquer coisa de diferente.
Continuei a seguir a sua carreira, mas nunca pensei que chegaria a acompanhá-la. Embora
fosse extremamente modesta, Amália vivia noutro mundo…» O convite para integrar o
quarteto de músicos que acompanhava a fadista, liderado por Fontes Rocha, aconteceu em
1968. «Mantive-me com ela até ao fim da sua carreira, 30 anos depois», conta. Nos anos 80
substituiu Fontes Rocha como responsável pelo grupo de acompanhantes.
Com Amália viajou pelo mundo, do Japão aos EUA, da Índia à Austrália. «Todos os
públicos têm o seu interesse, mas os mais entusiastas são o italiano, o japonês e o holandês.
Os italianos ainda podem perceber algumas palavras, mas como se explica que os holandeses e
sobretudo os japoneses tivessem tal devoção por Amália? Lá está, a música é uma linguagem
universal. Só é preciso senti-la.»
Além de exímio executante da guitarra portuguesa, Carlos Gonçalves é autor de
dezenas de temas para aquele instrumento. A sua música «vestiu» dezenas de conhecidos
poemas escritos e interpretados por Amália - «Lágrima», «Grito», «Amor de mel, amor de fel»,
«Ai, minha doce loucura», «Gostava de ser quem era», etc. -, bem como doutros poetas. No
entanto, diz, «se me derem a escolher, prefiro a minha faceta de guitarrista à de compositor,
nome que até nem gosto muito que me chamem…». A «Lágrima» nasceu numa madrugada em
que saía duma casa de fados. Fui compondo a melodia no caminho para casa, e quando lá
cheguei telefonei a Amália. Ouviu-a, fez um rascunho e não demorou muito a ter a letra feita.»
Quando Amália começou a cantar letras de poetas eruditos, entre os quais Luís de
Camões, os tradicionalistas do fado arrepiaram-se. Carlos Gonçalves achou natural. «Querem
maior fadista do que Camões? Os seus sonetos são verdadeiras letras de fado, a emoção que
nos transmitem é tipicamente fadista…» O guitarrista musicou dois temas camonianos, «Alma
minha» e «Sete anos de pastor», sem nenhuma relutância. No caso deste último, explica,
«inspirei-me na música árabe, de que gosto muito. Em minha opinião, ela é uma das fontes do
fado.»
Após a morte de Amália, em 1999, Carlos Gonçalves inicia uma atividade de
concertista de guitarra portuguesa, a solo ou acompanhado. Grava em 2004 o CD «A Essência
da Guitarra Portuguesa», súmula do seu trabalho musical e homenagem aos mestres que o
precederam. «Nesse álbum toco apenas um tema meu, a “Lágrima”. O resto das obras que
interpreto é de grandes mestres: José Nunes, Armandinho, Jaime Santos, etc.» O mérito do
guitarrista bejense foi reconhecido pela Presidência da República em 2013, com a atribuição
da Ordem do Infante.
O fado é um dos géneros musicais da moda. Surgiu nos últimos anos uma leva de
novos cantores e guitarristas que garantem o futuro do canto que há três anos foi declarado
Património Imaterial da Humanidade. Carlos Gonçalves reconhece que «existem hoje bons
técnicos da guitarra, como existem algumas boas vozes. Falta-lhes, no entanto, a alma. As
vozes têm qualidade, mas as interpretações são quase sempre iguais. Ouve-se um disco de
uma vedeta e canta-se como ela… De todos os fadistas, talvez se aproveite o Ricardo Ribeiro. O
ambiente também mudou, a meu ver para pior. Antes, a cidade cheirava a fado. Agora a
tecnologia invadiu tudo, não há genuinidade.»

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