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Centro de Artes

Programa de Pós-Graduação em Artes

Marcos Valério Guimarães1

Nego Fugido: Inventar com a Diferença e o cinema como dissenso


O cinema como possível arte na hegemonia institucional do cinema industrial

RESUMO: Este artigo propõe discutir os parâmetros institucionais da produção


de sentidos de mundo pelas formas de narração cinematográfica, ao fazer um estudo
de caso de ações do projeto Inventar com a Diferença e analisar aspectos formais e
narrativos do curta-metragem baiano Nego Fugido (2009), utilizado nas oficinas do
projeto com estudantes do Ensino Básico de Vitória e Vila Velha, ES. O cinema é
abordado como espaço discursivo de arte pública e o projeto (2014-2017), em sua
dimensão educacional, como processo político de apropriação de linguagem e
técnica, em um devir institucional, como parte e tensão da instituição cinematográfica.

Palavras-chave: Arte e institucionalidade. Cinema-educação. Inventar com a


Diferença. Nego Fugido.

1 Aluno do Programa de Pós-Graduação em Artes, UFES. Disciplina “Estética, arte, cultura e


identidade”, 2017/1. Professora Dra. Gisele Ribeiro.

1
1. Nego Fugido: o cinema como tema

Na sequência inicial do curta Nego Fugido (2009)2, um personagem narra a sua


memória de uma situação, que descobriremos ser a vivência mais transformadora de
sua juventude. Fechando a sequência, sua fala ganha ares de epígrafe: “A Carta de
Alforria de cada um já está escrita. Quem irá ler em voz alta? Quem irá? ”3. O filme é,
mais que narrar uma história, uma proposição de jogo entre diferenças, onde
“brinquedo de nego forro fugido é abrir roda, prá mostrar que tudo é caça e caçador”4.
Ou, no jogo institucional cinematográfico, tudo seria sujeito e objeto?
A narrativa situa-se dentro de um folguedo popular, em forma de teatro de rua,
o Nego Fugido do título, que encena a caça ao escravo fugido pelo Capitão do Mato,
em ocorrência anual no distrito de Acupe, em Santo Amaro da Purificação, Bahia. À
essa camada encenada de um objeto antropológico, social e histórico, o filme articula
uma camada ficcional, onde “dois jovens artistas partem para conhecer” o ritual,
documentando-o com sua câmera portátil. Lentamente, “eles se envolvem com a
celebração de uma forma inesperada”.5
Nego Fugido (2009), entretanto, é um filme sobre cinema, ou como o cinema
pode ter outra(s) natureza(s) para além da convencionalidade institucional do filme de
continuidade e unidade tempo-espaço, seja na mise-en-scène, seja no documentário.
Questiona a relação do cinema e da arte, de suas formas de representação, com o
Real. Abre várias possibilidades de conversas entre as fronteiras: ficção e
documentário (que proporciona a discussão sobre a relação imagem - cinema - real);
passado e presente; as diferenças e as relações inter-raciais no Brasil; as
subjetividades e construção de identidades que o cinema permite: o personagem é
um branco que vai filmar uma manifestação da cultura histórico-popular referente da
luta dos negros pela abolição da escravidão. Por incompreensão dos códigos dos
brincantes, comete um erro e passa a ser forçado a vivenciar o lugar do negro na
história da escravidão. Mas o que é real, o que é representação? Em determinado

2 Nego Fugido, Brasil, 2009, 16 min. Direção Cláudio Marques e Marília Hughes. Disponível em

https://vimeo.com/23061501. Acesso em 22/08/2017.


3 Texto do personagem, em 00:02:34 no tempo do filme.
4 Texto do personagem, em 00:02:04 no tempo do filme.
5 Sinopse do filme. Disponível em: http://www.coisadecinema.com.br/www.coisadecinema.com

.br/filmes_ccinema_Nego_Fugido.html. Acesso em 03/06/2017.

2
momento, sua alteridade transborda e ele procede a uma subjetivação, uma
incorporação do "ser" negro. Ele incorpora a identidade do Outro.
Penso o filme como se procedesse a esse jogo de tensão entre ficção e
documento como proposição de tensionamento do campo do cinema documentário,
aproximando-se das estratégias conceituais da arte, de questionar o estatuto da
tradição do objeto de arte, de seu aspecto aurático e privativo, de sua autonomia
enquanto detentor do sentido, trazendo junto a questão do espaço público da arte
como um espaço, ou esfera pública, do dissenso, constituído pelo antagonismo, onde
os elementos se confrontam (brinquedo de nego forro fugido é abrir roda, prá mostrar
que tudo é caça e caçador ), como nas elaborações da pesquisadora de arte Rosalyn
Deutsche. Em extensão, podemos pensar essa esfera pública para além de seu
aspecto de espaço urbano, físico, senão como um espaço discursivo, próprio à
realidade dos meios de reprodutibilidade técnica (cinema / televisão / vídeo / internet),
que produzem um estado de mobilização sensória, cognitiva, ideológica e produtora
de valores (e sentidos) de mundo, para o mundo. Daí, no embate, quem irá ler em voz
alta a alforria, a carta de autonomia e de contra-sentidos?
Assim, Nego Fugido, em meu ponto de vista, articula a discussão da relação
entre Sujeito e o Objeto, o Eu e o Outro e entre Real e Representação, apontando
para a potência do cinema como construtor de sentidos, valores de mundo e revelando
seus mecanismos construtivos. Estamos no âmbito da arte política, da esfera pública
da arte, onde, penso, encontram-se as proposições do projeto Inventar com a
Diferença6, da apropriação do cinema como lugar do embate sobre os Direitos
Humanos, tema central desse projeto do qual participo como monitor e articulador de
proposições de experiências cinematográficas por parte de alunos e alunas de escolas
básicas de Vitória e Vila Velha, aqui no ES.

6 Projeto de ativação de uma cultura de cinema nas escolas básicas, com o viés da discussão
dos Direitos Humanos, por meio da exibição de filmes, contato com cinemas e cineastas e a realização
constante de exercícios de câmera e de filmes curta metragens. Realização Depto. Cinema e Vídeo da
Universidade Federal Fluminense, no qual me insiro como monitor e articulador, atuando
principalmente na Escola estadual de Ensino Fundamental e Médio Des. Carlos Xavier Paes Barreto e
na Unidade de Ensino Fundamental Guilherme Santos, da Prefeitura Municipal de Vila Velha. O projeto
que elaborei tem o nome de Inventar Mundos em Muitos, para o qual indiquei um viés conceitual que
procura investigar, pelas práticas cinematográficas, a formação identitária em um mundo capitalista e
burguês, fragmentário e mutante.
3
2. Inventar com a Diferença: a questão institucional do cinema ou
máquina de criar mundos

É a partir dessa minha experiência que proponho a desenvolver este artigo, no


âmbito das pesquisas do mestrado no Programa de Pós-graduação em Artes, do
Centro de Artes da Universidade Federal do ES, tendo como uma das referências
teóricas o artigo Da crítica às instituições a uma instituição da crítica7.
Andrea Fraser está, em seu artigo, questionando a concepção de que a crítica
às instituições da arte só seria possível distanciando-se o artista da instituição, quando
“’arte’ e ‘artista’ geralmente figuram como contrários, antagonicamente, a uma
‘instituição’ que incorpora, coopta, transforma em mercadoria, senão usurpa, práticas
um dia radicais – e não institucionalizadas. ” (FRASER, 2008:181), propondo que, ao
contrário, é no âmbito da instituição que se processa o confronto, a crítica, os
alargamentos de seus limites e a absorção e conformação (a institucionalização) do
novo, em devires históricos.
Ela sustenta essa visão na análise de trabalhos de artistas como Michael Asher,
Marcel Broodthaers, Daniel Buren e Hans Haacke, que apontam para o fato de que
as críticas às instituições da arte – museus, galerias, mercado de vendas, escolas –
são inseparáveis da crítica às próprias práticas artísticas:

Entretanto, a ideia de que a crítica institucional opõe arte e instituição


ou supõe que práticas artísticas radicais podem existir, ou algum dia
existiram, fora da instituição da arte antes de serem “institucionalizadas”
pelos museus, é desmentida ponto a ponto pelos escritos e trabalhos de
Asher, Broodthaers, Buren e Haacke. Desde o anúncio de Broodthaers de
sua primeira exposição em galeria em 1964 – em que ele começa
confidenciando que “a ideia de inventar algo insincero finalmente passou por
minha [sua] cabeça” para então nos informar que seu marchand “levaria
30%” - a crítica do aparato que distribui, apresenta e coleciona arte tem sido
inseparável da crítica à própria prática artística. Como coloca Buren em The
Function of the Museum, de 1970, se “o Museu deixa sua ‘marca’, impõe
sua ‘moldura’ (...) em tudo que exibe, de modo profundo e permanente”, o
faz tão facilmente porque “tudo que o museu mostra só é considerado e
produzido tendo em vista sua colocação aí”. (FRASER, 2008:181-182)

7 FRASER, Andrea. Da crítica às instituições a instituição da crítica. Tradução Gisele Ribeiro.


Concinnitas Revista do Instituto de Artes da UERJ, Rio de Janeiro, Ano 9, Vol. 2, nº 13, dezembro de
2008.

4
A longa citação que trouxe do artigo de Andrea Fraser guarda sintonia com a
linha de criticidade do projeto – objeto e motivação desse artigo. Estamos na
abordagem crítica da instituição cinematográfica, produtora das imagens de mundo
para mundos possíveis. Estamos na instituição, somos institucionais, na medida em
que fazemos parte de uma máquina que produz imagens constantemente, com a
posse de toda uma tecnologia pessoal de produção de imagens, principalmente a
difusão em larga escala dos telefones inteligentes, capazes de darem conta, assim
como o cinematógrafo dos Lumière, de toda a cadeia da realização da imagem
(produzir, editar – isto é, presentificar, o equivalente ao revelar químico e a montagem
da película – e difundir, via redes sociais).
Essa tecnologia traz possibilidades transformadoras na relação da escola –
espaço social que acolhe as práticas do projeto - com o cinema, por exemplo. E é na
instância da escola que o Inventar com a Diferença se coloca como crítica ao cinema
industrial, à sua forma historicamente hegemônica de organização da narrativa
cinematográfica, que se coloca como matriz para as mídias audiovisuais. A tal ponto
que percebemos nos trabalhos audiovisuais dos estudantes o modo narrativo
naturalista e em continuidade de tempo-espaço característico dessas mídias –
cinema, televisão, internet. O acesso mais permanente aos aparelhos digitais, sejam
as pequenas câmeras, sejam os telefones inteligentes, e a proliferação de projetos de
oficinas de cinema nas escolas, tem proporcionado um crescimento da produção de
filmes escolares, filmes simples, e ficções, documentários, animações, em iniciativas
que:

[...] pretendem aproximar, de um modo cada vez mais contundente, a


experiência do cinema e a educação formal. O aumento do espaço para
essas produções em festivais evidencia um crescimento dos trabalhos
audiovisuais realizados em escolas, o que contrasta com sua qualidade. A
maioria delas evoca as novelas ou comerciais do momento. (FRESQUET,
2013:40)

Ainda seguindo o raciocínio da pesquisadora em cinema-educação Adriana


Fresquet (da Faculdade de Educação da UFRJ), se olharmos essa realidade sob a
ótica das teorias e práticas de cinema que o vislumbram como um lugar do exercício

5
da arte como problematização de mundo8, o desencontro entre a “perspectiva do
‘cinema como arte’” (FRESQUET, 2013:40) e a escola é patente.
Nesse ponto, o projeto Inventar com a Diferença, e a minha proposição Inventar
Mundos em Outros ocupam esse espaço de crítica, a que podemos chamar
institucional, na medida em que atravessa os processos estabelecidos do cinema e
da escola, propondo a perspectiva da experiência / experimentação do cinema, da
descoberta das máquinas das imagens de mundo. Propõe gerar um estado de cultura
de cinema na escola, o cinema como arte, a arte como um outro na escola.
Um estado de cultura de cinema refere-se à proposição de implementarmos e
consolidarmos o cinema como um campo de pesquisa e prática autônomo dentro das
escolas, como, na concepção de Alain Bergala9, um diferente no cotidiano didático,
como um outro, um estrangeiro dentro da escola, pois “leva para tal contexto algo que,
tradicionalmente não é próprio dele: a criação” (FRESQUET, 2013:40). Cinema e arte
como criação, postura de desobediência, negando-se a repetir, questionando antes
de aceitar. Cinema e arte como política de resistência e criação de alargamentos das
margens da instituição.
No viés da formação identitária, tema de ativação das ações do projeto nas
escolas capixabas, é também uma experiência de alteridade de mundo e por isso o
lugar de encontro de diferentes, da compreensão do outro, e de si, em seu direito de
existência, com seus processos identitários próprios, valores próprios. Assim, também
o cinema como um ato criativo que provoca um desmonte das relações de saber na /
da escola, de possibilitar a impregnação do cotidiano da escola pelo cinema.
É o ato de desaprender, isto é, questionar as verdades aprendidas, questioná-
las: “Desaprender é, também, fazer o esforço de conscientizar todo o vivido na
contramão, evocando o impacto histórico e emocional que teve aquela aprendizagem
que hoje deseja ser modificada” (FRESQUET, 2007:49). E reaprender, criar modos
do fazer que sejam elaborações próprias, autônomas, em dialética com as formas

8 Jacques Aumont define o cinema, em seu Dicionário Teórico e Crítico de Cinema (Campinas,
SP: Papirus, 2003, pp. 289-291), como “substituto do olhar, arte, linguagem, escrita, pensamento, ou
manifestação de afeto e simbolização do desejo”. Além, há inúmeros cineastas (alguns que são
também teóricos) e teóricos que ampliam o escopo do Cinema como arte e produção de valores. J.L.
Godard, Glauber Rocha, Eisenstein, J.C. Bernardet, Jean-Marie Straub & Danièle Huillet, [...].
9 Alain Bergala é cineasta, teórico, crítico e professor de cinema, foi conselheiro do Ministro da

Educação da França, Jack Lang, em 2.000, quando foi responsável pelo projeto de cinema nas escolas
de um programa do ministério de implantar arte na escola. Bergala escreve e formula proposições a
partir dessa experiência em A Hipótese-cinema. Pequeno tratado de transmissão do cinema dentro e
fora da escola. Rio de Janeiro: Booklink, Cinead-Lise-FE/UFRJ, 2011.
6
hegemônicas. Criar é, nesse sentido, colocar em situação de crise os modos vigentes
de produção de sentidos de mundo.

3. Nego Fugido como proposição de crise

Uso sempre a exibição / vivência de Nego Fugido (2009) nas aulas do projeto,
por que parto dele para discutir cinematógrafo e cinema como potências de crise das
institucionalidades do cinema. O filme propõe essa discussão institucional,
tensionando o cinema convencional, da encenação, entre outros motivos, por colocar
o contraste das formas ficção e documentário.
Um: o jogo de enquadramentos. O quadro inicial é da câmera dos diretores.
Nele, a jovem artista está despertando de um sono/sonho, em um tempo ralentado,
nos remetendo às formulações de Jean Epstein do cinema como o “lugar de um
aprendizado específico: ele é a via de acesso para uma nova e mais verdadeira
percepção do espaço-tempo em que estamos inseridos” (XAVIER, 2008:109).
Enquanto se revira na cama, seu namorado lhe pergunta: “’tava sonhado com que,
hoje? ” Tempo de respiro e expectativa pela sua resposta. Que chega nessa
perspectiva: o cinema é sonho, fantasia ou realidade? Longa e antiga discussão.
No corte, ela começa a sua resposta. O quadro vira plano, pois que agora está
em relação com outro quadro. Um devir entre cinematógrafo e cinema. Muda-se do
quadro / plano diegético (Fig. 1.a) para outro quadro / plano (Fig. 1.b), o de uma
câmera que ela utilizará na sua abordagem do folguedo. Ela segura a câmera contra
si (num ato próprio dos atuais selfies), buscando o quadro justo para a sua interação
com o namorado, o outro artista jovem (Godard em Vento Leste: “não é uma imagem
justa. É justo uma imagem”. Essa discussão também perpassa nosso trabalho de
monitores do projeto, assim como o filme). Ajustado o quadro, tem início o plano. Em
linha diagonal, ela e o namorado tocam e cantam Perseguição, de Sérgio Ricardo e
Glauber Rocha. Do cinema-sonho, passamos ao Cinema Novo brasileiro, com o canto
crítico, ácido e libertário de Glauber Rocha em Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964),
já interpondo o contraste entre as duas câmeras, as duas instâncias narrativas, que
instituem o debate entre real e representação. No entanto, ela estaria passando a
descrever, com uma câmera (cinema) o suposto sonho? Voltamos ao sonhar? Ou
passamos para um “isso é um filme”?

7
Estamos, assim, na tensão entre os procedimentos da transparência, quando
uma dada realidade diegética nos é entregue como natural, e a opacidade10, em que
os mecanismos de produção da imagem cinemática são explicitados, que marcam
uma histórica tensão institucional no âmbito do cinema, desde a sua natureza
industrial e mercadológica, que padroniza uma forma de espetáculo, aos possíveis
formatos das pesquisas de narrativas e outras articulações de códigos e mesmo de
exploração da própria materialidade do cinema, a película, a luminosidade e a
ausência da luz e mesmo a virtualidade no digital contemporâneo, nos processos de
contaminações entre cinema e procedimentos e meios da arte.

Fig. 1.a – sequência de fotogramas do quadro diegético.

Fig. 1.b – sequência de fotogramas dentro do quadro da câmera portátil, que é inserido dentro da
diegese em Nego Fugido (2009). Na trilha, Perseguição, de Sérgio Ricardo e Glauber Rocha.

Ao longo do filme essa discussão é acentuada. Retomando a ideia inicial do


filme como lugar público / político de arte, como espaço discursivo, esse jogo que se
dá na forma do filme repercute o embate cultural, social e histórico que está na
diegese, no embate entre narrativa e História. Os dois jovens querem filmar (“para
mim, para teatro” diz a moça) um folguedo popular, que por sua vez é uma

10 Conceitos apresentados pelo pesquisador Ismail Xavier em sua obra referência para a teoria
de cinema no Brasil, O discurso cinematográfico, Opacidade e Transparência. Rio de Janeiro: Paz &
Terra, 2008.
8
representação da luta entre senhores escravocratas e o povo negro escravizado,
sintetizada no ato da fuga e da perseguição dos fugidos pelo Capitão do Mato, que
sua vez era um papel frequentemente assumido por outros negros, num outro jogo de
assimilação entre senhores e escravos, uma sobreposição de identidades. No
entanto, qual o nível de consciência dessas representações?

4. Dispositivos: mediação da representação

A metodologia do Inventar com a Diferença está sustentada no conceito do


dispositivo como ativador de situações a serem filmadas, articulando, nesses
instantes, os códigos cinematográficos à temas dos Direitos Humanos. Que poderia
ser qualquer tema: a questão é o dispositivo como método para problematizar o
sentido de representação do real, transformando o ato de encenação do cinema
narrativo em um gesto de provocação de um acontecimento no real, que escape ao
controle do autor e possa ter um estatuto de autonomia frente ao processo
hegemônico de produção da imagem de mundo. O dispositivo como agenciador de
uma imagem, de uma representação do real:

Trata-se aqui de discutir a noção de dispositivo como estratégia narrativa capaz de


produzir acontecimento na imagem e no mundo. Pensar de que forma as novas
tecnologias do audiovisual são organizadas em dispositivos de criação é pensar
também o estatuto da imagem contemporânea, a possibilidade e o sentido da
produção de novas imagens. (MIGLIORIN, 2005:01)

No trabalho do projeto, o dispositivo ganha contorno de jogos, brincadeiras com


regras específicas que aliam a prática do código cinematográfico à noção de seus
resultados em termos de produção de sentido, da percepção da dimensão mediada
na construção da representação do Outro. No exercício dos dispositivos está a
possibilidade do exercício e experimentação da crise da linguagem institucionalizada
e a sua rearticulação em projetos de linguagem autônomos.
Um de seus mais potentes dispositivos é o Minuto Lumière, que nos remete ao
gesto ativador do cinema: enquadrar, recortar o mundo em uma imagem que
transforma a percepção, transforma o estatuto do espaço pictórico fixo (a tradição da
pintura) em um espaço cinemático ao incorporar a dimensão temporal, o movimento.
Observar um recorte do mundo em movimento é poder relacionar esse quadro com o
seu entorno, pois “ [...] a dimensão temporal define um novo sentido para as bordas
9
do quadro, não mais simplesmente limites de uma composição, mas ponto de tensão
originário das transformações na configuração dada. ” (XAVIER, 2008:21).
Se em nossa brincadeira de cinema na escola temos as regras de câmera sobre
eixo fixo, um minuto, sem som, a questão central é a percepção e apreensão da
importância do enquadrar. É um gesto político, pois escolho o ponto de vista
privilegiado em relação ao entorno, referencial. É um gesto político pois, como imagem
temporal, tenho que decidir o momento de iniciar e finalizar a apreensão do fato /
objeto a ser filmado. É a partir dessa apreensão que poderemos dar sentido ao
conceito de montagem como articulação de códigos cinematográficos que relacionam
os lugares do enunciador e do enunciado (“ a carta de alforria de todo mundo já está
escrita: quem irá ler em voz alta? Quem irá? ”) em um projeto de linguagem (OMAR,
1993). O mundo é linguagem?
Assim, tensionar o ato inaugural do cinema no Minuto Lumière é poder
compreender o funcionamento da mecânica mediadora da produção da
representação. O que pode nos preparar para empreender atos de criação,
sustentados num desaprender o "cinema" como expressão de uma cultura audiovisual
contemporânea ligada à hegemonia política da indústria cultural capitalista, e
empreender outra atitude de percepção do funcionamento do aparelho, ao se
encontrar no cerne de um ato fílmico, e do caráter singular deste ato. O cineasta e
artista Arthur Omar, ao relacionar as diferenças de atitude de um realizador diante de
uma câmera mecânica - que utiliza um material, a película, cuja disponibilidade física
(e temporal) é bem menor do que o que se tem de fluxo de real para filmar - e de uma
câmera digital - que pode estar ligada em fluxo contínuo com o real, em sua
transmissão direta e simultânea, por exemplo, ou das quase infinitas capacidades de
armazenamento dos dispositivos digitais - chama a atenção para o cuidado em
elaborar o quadro, aguardar o momento preciso de acionamento das mecânicas de
funcionamento das máquinas, para usá-las "apenas para dar forma a algo que possa
ter sentido posteriormente, a algo que venha a significar dentro de uma obra, algo que
diga alguma coisa e que funcione dentro de um projeto de linguagem" (OMAR, 1993.
p. 140). O que vem de encontro à argumentação do cineasta e ensaísta Alain Bergala
sobre o ato de criação cinematográfica, articulado em três operações mentais, que se
combinam dialeticamente no processo da fabricação de um plano: a eleição - a
escolha de um objeto; a disposição - enquadramento significativo; e o ataque, o

10
momento decisivo da produção de um plano. Assim, quando atuamos com estudantes
em nossas oficinas, devemos ter em mente que:

Rodar um plano é colocar-se no coração do ato cinematográfico, descobrir


que toda a potência do cinema está no ato bruto de captar um minuto do mundo; é
compreender, sobretudo que o mundo sempre nos surpreende, jamais corresponde
completamente ao que esperamos ou prevemos, que ele tem frequentemente mais
imaginação do que aquele que filma [...] O ato aparentemente minúsculo de rodar
um plano envolve não só a maravilhosa humildade que foi a dos irmãos Lumière,
mas também a sacralidade que uma criança ou adolescente empresta a uma
primeira vez levada a sério, tomada como uma experiência inaugural decisiva”.
(BERGALA, 2008, P. 210).

O gesto explícito de enquadrar da jovem artista, no início de Nego Fugido


(2009), é a consciência desse recorte e sua potência de produzir sentido de mundo,
ao agregar, inclusive, a trilha sonora de um filme que é, na cultura cinematográfica
brasileira, um gesto político de afirmação de um ponto de vista autônomo de uma
Cultura em relação à dominação estrangeira, especialmente o cinema de Hollywood
e sua forma de encenação articuladora de um mundo idealizadora dos valores de uma
sociedade norte-americana.
Há ainda a questão da cinemática como a relação dos espaços interno e
externo de um quadro. Há uma ligação dinâmica entre esses movimentos vistos e os
desprezados pelo enquadramento, que nos filmes dos Lumière, com os quadros fixos
e suas decisões de enquadramento se abrem “para um engajamento dos sujeitos ali
colocados em suas decisões estéticas [...], bem como para uma relação entre o que
é visto e o que não é visto [...], uma atualidade e uma virtualidade” (MIGLIORIN,
2015:132-133). Uma política de reconhecer o devir da história:

Num caso, o fora de campo designa o que existe algures, ao lado ou à volta:
num outro, o fora de campo designa uma presença mais inquietante, de que
nem sequer se pode dizer que ela exista, mas que ela ‘insiste’ ou ‘subsiste’,
um Algures mais radical, fora do espaço e do tempo homogêneo.
(DELEUZE, Gilles, apud MIGLIORIN, 2015:132)

5. Jogos de inventar

Dois: a prática do Inventar, em minha percepção, é política. Implantar a cultura


do cinema na escola é criar um campo de tensão entre a lógica do entretenimento,

11
com sua montagem invisível e imenso aparato industrial, e o desvelamento do cinema
como construção, como imagem (e som) discursiva que tem processos e intenções
de construção de sentidos específicos e não uma verdade dada. Chamando o
Professor Ismail Xavier novamente à conversa:

Num extremo, há o efeito-janela, quando se favorece a relação intensa do


espectador com o mundo visado pela câmera – este é construído mas guarda a
aparência de uma existência autônoma. No outro extremo, temos as operações que
reforçam a consciência da imagem como um efeito de superfície, tornam a tela
opaca e chamam a atenção para o aparato técnico e textual que viabiliza a
representação. (XAVIER, 2008:9)

O embate entre cinema-janela e cinema-desvelado, entre a transparência e a


opacidade (XAVIER, 2008) marca o desenrolar da relação entre os jovens artistas e a
figura do Capitão do Mato de Nego Fugido. Já estamos na contemporaneidade, onde
a inocência da imagem já foi esgarçada. O filme, ao trabalhar a tensão entre as
dimensões da encenação e da documentação, coloca em cena a câmera de vídeo da
artista e, no duelo entre as texturas de imagem com a câmera diegética (inclui até
mesmo um defeito de varredura) (Fig. 2), nos propõe problematizar os estatutos da
imagem pela apreensão dos mecanismos de funcionamento do aparelho.
Mais que isso, a câmera da artista é confrontada pelo fuzil (E-Jules Marey?)
(Fig. 3) do Capitão-do-Mato, confronto que ganha contornos políticos pelos direitos da
imagem e da identidade no escopo do texto travado entre as personagens:
CM: Ô sinhá, que rede é essa, sinhá? Hein?
ART: Não é prá rede não...
CM: A senhora não entendeu não? E que TV é essa, então?
ART: Isso aqui não é TV não...isso aqui não é televisão não...
CM: E é prá que isso aí, sinhá?
ART: É prá teatro, é prá mim...
CM: É prá você?
ART: É...
CM: É ?
CM: Mas, sinhá, fique sabendo que, prá filmar aqui, tem que tê moneys, Money,
sinhá...é muito moneys...

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Fig. 2 – Vídeo versus cinema em Nego Fugido (2009)

Fig. 3 – Fuzil versus câmera em Nego Fugido (2009): “prá filmar, tem que ter moneys, é muito
moneys” (sic).

Uma forte apreensão do processo do aparelho cinematográfico está nessa


sequência. Além das máquinas, o dinheiro (elemento relacionado à Trabalho, já bem
explicitado no jogo de submissão do fugido com o capitão) e o domínio sobre a
potência política da imagem. A hegemonia que é construída entre o convencimento e
a opressão violenta do poder de polícia.

Três: nessa sequência, a partir dela, dentro dela, temos vários elementos para
discutir o cinema como potência discursiva, quando se faz a transformação do
cinematógrafo dos Lumière em Cinema, quando a câmera, desde suas distâncias dos
objetos (as alturas ou escalas de planos), ganha diferentes pontos de vista, ângulos e
movimentos, articulados pela montagem em espaços-tempos específicos, quando o
quadro (a imagem) vira plano (unidade fílmica):

É a partir da noção de plano, como unidade fílmica de base, que podemos falar de
“linguagem cinematográfica”. [...] Antes de aparecer, de durar um tempo e
desaparecer, na tela, pelo efeito da passagem, à razão de 24 por segundo, de todos
os fotogramas que a compõem, foi preciso que essa imagem, seja ela o quer for,
tenha primeiro sido enquadradano olho da câmera, assim fixado segundo certos
limites espaciais, em superfície e em profundidade, filmado, em movimento ou não,
segundo certos limites de tempo, depois montado com outras imagens, no rolo de
película. (BONITZER, 2007:02).

13
Assim, a discussão dessa realidade fílmica é feita, nas oficinas do Inventar com
a Diferença, na aplicação dos diferentes dispositivos de sua metodologia, com os
quais apreendemos e nos apropriamos desse poder de construir planos constituídos
de imagens e sons. Perceber os sinais de mundo e potencializá-los em planos
fílmicos, em narrativas diversas, experimentadas. Com os dispositivos, que são
conjuntos de regras que incitam uma situação de onde extraímos imagens e
sonoridades, aprendemos os códigos, e com eles desenvolvemos projetos de
linguagem. O que é real ou representação, qual o estatuto de cada um? Como nosso
real, desde as subjetivações às objetivações, é representação ou realidade física?
Na intensidade do jogo de submissão de Nego Fugido, o artista não entende o
valor da representação, o corpo como máquina de trabalho e configuração de mundos
possíveis dentro do conflito da História de Senhores feudais e escravidões. Oferece
apenas cinco centavos à “nega” (sic)11, figura de submissão do escravo fugido e
apreendido. É obrigado a experimentar essa representação, vira também “nega” (Fig.
4) e, imergindo na experiência, processa essa outra subjetivação, em extrema
alteridade.

Fig. 4 – A alteridade em Nego Fugido.

Ao final, num plano-sequência de forte impacto visual, o rapaz lava-se na beira


de um rio (Fig. 5). O plano é composto com a sua imagem refletida na água, suas
mãos levando água ao rosto. O reflexo da água caindo do rosto gera um
estranhamento, pois parece “cair para cima”. Uma lenta panorâmica para cima
reenquadra seu rosto. Esse conflito de movimentos, dentro da imagem e da câmera,
esse retorno ao Eu, pedido para o Outro, se faz em movimentos contraditórios. É o
desaprender e o reaprender as imagens do cinema (FRESQUET, 2008) que nos
propõe o Inventar com a Diferença: fazer outros mundos e depois mais outros. Devir.

11 O uso desse termo, no filme, carrega uma alta energia de denúncia de diferentes formas de
opressão.
14
O rapaz olha para a sua namorada em busca de um olhar que o confirme, o valide.
Ainda seria ele mesmo? Ou, o que é ser algo, alguém? Como se dá a relação de
construção de identidades no mundo?

Fig. 5 – Contradição e síntese em Nego Fugido (2009).

6. A crise da instituição: fábrica de aparências

Entretanto, a própria institucionalização que marcou esse fracasso se tornou


a condição da crítica institucional. Ao reconhecer esse fracasso e suas
consequências, a crítica institucional deixou de lado os esforços, cada vez
mais mal-intencionados, das neovanguardas em desmantelar ou escapar da
instituição da arte e tomou como meta, ao contrário, a defesa da própria
instituição que a institucionalização do “autocriticismo” da vanguarda tinha
propiciado: uma instituição da crítica. (FRASER, 2008:187)

A conclusão do artigo da artista Andrea Fraser indica uma postura que está
subjacente ao projeto Inventar com a Diferença, na medida em que se propõe uma
crise dos valores do cinema hegemônico, sem, no entanto, perder de vista a condição
de que estamos, professores, alunos, monitores-cineastas, festivais de filmes de
escola, internet e telefones espertos, parte de uma máquina que intermedia a
produção de mundos aparentes. Eduardo Coutinho, um de nossos principais
documentaristas e criadores, disse certa vez sobre o seu trabalho: “Eu quero as
aparências! Esse é o lugar em que o cinema me interessa” (COUTINHO, 2008, apud
MIGLIORIN, 2015: 134), apontando que é o cinema um campo de intensa política de
produção de sinais de mundo, para o mundo e modos de mundos.

15
Nesse artigo, busquei conectar os campos teóricos da arte e do cinema como
um campo de lutas políticas de enfrentamento das máquinas com outras máquinas,
dentro da fábrica das aparências de mundo, nos posicionando dentro dela. Inventar
com a Diferença é colocar o cinema dentro do cotidiano da escola como arte e como
proposição de criação, interferência nos ciclos institucionais da sociedade.

7. Referências:

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cinema dentro e fora da escola. Tradução: Mônica Costa Netto, Silvia Pimenta. Rio de
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Hipótese-Cinema: Pequeno Tratado De Transmissão do Cinema Dentro e Fora da
Escola, in FRESQUET, Adriana (org.). Dossiê cinema e educação # 1. Rio de Janeiro:
Booklink - CINEAD-LISE-FE/UFRJ, 2011.

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FRESQUET, Adriana. XAVIER, Márcia. Novas Imagens do Desaprender. Rio


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