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Universidade Federal do Rio Grande do Sul

Instituto de Filosofia e Ciências Humanas


Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social
Disciplina: Antropologia da Ciência
Professora: Dra. Fabíola Rohden
Aluna: Bruna Klöppel – 259135

Tecnologias de visualização e políticas ontológicas: pistas para pensar o “corpo”


nas práticas de percepção da fertilidade

Bruna Klöppel

No processo de construção de meu objeto de pesquisa, passei a ver no meu


entorno uma quantidade crescente de mulheres que estavam questionando o uso dos
hormônios contraceptivos e que, assim como eu, faziam parte de uma faixa
escolarizada, a maioria branca e universitária entre 20 e 30 anos, que vinha utilizando de
métodos contraceptivos hormonais desde os seus primeiros ciclos menstruais ou do
início da vida sexual. As razões para que tivessem iniciado o uso, da mesma forma que
mostram algumas pesquisas1, eram diversas e iam além da contracepção. Dessa forma,
passei a me interessar pelas configurações que as faziam deixar de consumir tais
hormônios, atenta a esse movimento de resistência a tais agentes que, segundo minhas
interlocutoras, interferiam em seus processos corporais, o que acabava se tornando um
problema ou por terem efeitos indesejados ou por acabarem impedindo-as que
conhecessem o funcionamento de seus corpos (principalmente naquilo que se referia aos
ciclos menstruais e seus efeitos, mas não só) quando sem eles. Li e ouvi alguns relatos
em que diziam que, deixando de tomar hormônios contraceptivos, estavam finalmente

1
Refiro-me aqui ao trabalho de Emilia Sanabria (2010), que mostra como no contexto da saúde privada,
em Salvador, médicos e pacientes enfatizam os efeitos secundários dos contraceptivos hormonais, como
a supressão da menstruação e a supostamente consequente regulação de emoções associada a ela,
como irritabilidade, tristeza, raiva e letargia. E também ao trabalho de Miriam Mariano (2012) que,
quando trata dos relatos de suas interlocutoras, escreve que a “referência à pílula anticoncepcional
como remédio apareceu basicamente em duas circunstâncias: para regular o ciclo menstrual
‘desregulado’; e para diminuir os ‘sintomas’ de TPM.” (MARIANO, 2012, p. 182) Ver também: Manica
(2011), Nucci (2012) e Watkins (2012).

1
conhecendo seus corpos e processos corporais. Nesse sentido, apareciam reivindicações
de métodos contraceptivos “naturais”, que seriam aqueles que, diferente dos hormônios,
não interferem em tais processos. Tal preocupação passou a me motivar especialmente,
porque diziam respeito justamente à construção semiótico-material de um “corpo
natural”, situando-se na fronteira daquelas dicotomias extensamente tratadas pela
antropologia, como as corpo/pessoa, sexo/gênero e natureza/cultura. Fui instigada por
minhas amigas a pensar como o “corpo”, o “sexo” e a “natureza” são performados,
quais as configurações que tornam tais performances possíveis, quais interferências são
colocadas como desejáveis e quais os seus efeitos.
Buscando um campo mais específico, cheguei a um grupo na rede social
facebook que se propõe a servir como espaço de troca de informações e experiências
sobre a “contracepção natural”. O grupo reúne 113642 perfis da rede social. Segundo a
descrição, trata-se de um grupo feminista que se direciona a pessoas que buscam
entender seu ciclo menstrual e ovulatório através de métodos que se utilizam da
observação, registro e interpretação de sinais de fertilidade apresentados por seus
próprios corpos3. Segundo a mesma descrição, tais métodos podem ser utilizados com o
objetivo de contracepção, concepção e/ou monitoramento da saúde. A partir das
discussões e materiais organizados e divulgados pelas 15 administradoras4 do grupo, e
de entrevistas e conversas com quatro delas, pude aprender mais sobre essas práticas
relativas à “percepção da fertilidade” e, mais especificamente, sobre “método
sintotermal”, o mais utilizado e indicado por elas.

Os “métodos baseados em sinais primários de fertilidade”5 envolvem, além da


observação e registro da duração do ciclo menstrual, a observação e registro cotidiano
dos chamados sinais primários de fertilidade, manifestos no/pelo corpo ao longo do
ciclo6. Dessa forma, a constatação do período fértil é feita a partir desses sinais, o que
permite individualizar cada ciclo através do seu acompanhamento diário, não

2
No dia 09/07/2016.
3
Trata-se dos “métodos baseados nos sinais primários da fertilidade”, como indicado em um dos sítios
indicados pelas administradoras. Fonte: http://www.ladoocultodalua.com/. Acesso em 11/07/2016.
4
Estou considerando aqui administradoras aquelas que contribuem ativamente compartilhando
materiais e experiências, e que estão citadas em uma das postagens principais do grupo ou como
“moderadoras” (11) ou como “colaboradoras” (4).
5
Os “métodos baseados nos sinais primários da fertilidade” são parte dos “métodos baseados na
percepção da fertilidade”. Esses últimos incluem métodos como o “método de Ogino-Knaus” (conhecido
também como “método rítmico” ou “tabelinha”), não abarcado pelos primeiros.
6
A maior parte das informações desse parágrafo também estão no sítio ://www.ladoocultodalua.com/.
Acesso em 11/07/2016.
2
dependendo de uma previsão com base em ciclos anteriores. São três os sinais
considerados primários por minhas interlocutoras: fluido cervical, temperatura basal e
colo do útero. O fluido cervical (chamado correntemente de “muco” nas postagens do
grupo sobre o tema no facebook) seria proveniente do colo do útero, podendo ser
sentido e visto ao longo do dia por chegar até a vulva. Sua presença ou ausência, além
das mudanças em suas características ao longo do ciclo, permitiriam indicar o momento
da ovulação (se está próxima, prestes a ocorrer ou se já ocorreu). Já a temperatura basal
trata da temperatura do corpo quando em repouso e, portanto, deve ser medida por um
termômetro de maior precisão diariamente, em um mesmo horário, após o despertar.
Um aumento no padrão dessa temperatura indicaria que a ovulação já teria ocorrido em
um ciclo menstrual. Por fim, a posição, textura e abertura do colo do útero também
indicam se a ovulação está próxima ou se já aconteceu em determinado ciclo. Segundo
as interlocutoras, são cinco os tipos de métodos baseados em sinais primários de
fertilidade”: o método da ovulação Billings, o modelo Creighton, o método dos dois
dias (esse três baseados apenas no acompanhamento do fluido cervical), o método da
temperatura basal (baseado apenas no acompanhamento da temperatura basal) e o
método sintotermal (que se utiliza do acompanhamento tanto da temperatura basal
quanto do fluido cervical). Esse último é o mais incentivado – e utilizado - pelas minhas
interlocutoras e tem adquirido, portanto, centralidade na minha pesquisa.

É em meio a esse campo já muito mais específico que me proponho a descrever


(parte das) configurações e efeitos das práticas relativas à “percepção dos sinais
primários de fertilidade”. Minha preocupação aqui tem a ver com os entendimentos
semiótico-materiais de corpo/pessoa e sexo/gênero7 e, para isso, tenho como ponto de
partida duas categorias centrais a essas práticas, e que em grande medida se sobrepõem:
ciclo menstrual e ciclo ovulatório. A seguir, exploro algumas perspectivas teórico-
metodológicas, indicando algumas questões nas quais podem vir a ser úteis na
continuidade de minha pesquisa.

A questão que me coloco se insere no debate antropológico em torno da


dicotomia natureza/cultura e outras dela decorrentes, que tem tido certa centralidade nas
pesquisas antropológicas e feministas (e antropológicas feministas). Em relação à
dicotomia sexo/gênero, Gayle Rubin (1993) é das primeiras a sistematizar, em seu

7
Em grande medida, essas categorias se sobrepõem e essa separação é apenas provisória e se refere
mais ao campo teórico antropológico.
3
artigo clássico, a questão de como a fêmea da espécie humana (natureza) se transforma
em uma mulher domesticada (cultura), em um modelo que performa fronteiras ainda
bastante rígidas e deixa espaço para certo determinismo biológico - o que acabou sendo
revisto também pela própria autora mais tarde8. Como colocam Stacy Alaimo e Susan
Hekman (2008), com o advento do pós-modernismo e do pós-estruturalismo,
identificou-se que toda a série de dicotomias presente no pensamento hegemônico (e em
parte significativa da vida cotidiana) do Ocidente também são gendradas: o binômio
masculino/feminino se reflete em vários outros, como cultura/natureza, mente/corpo,
sujeito/objeto, racional/emocional e até mesmo no gênero/sexo. Inicia-se então uma
série de tentativas de implosão dessas dicotomias, indo em direção a entendimentos não
fundamentados em cima de tais oposições, já que, ainda que existam e tenham efeitos de
realidade, são localizadas e não universais. Entretanto, Alaimo e Hekman entendem que
uma dessas dicotomias continuou sendo adotada sem maiores questionamentos: a
oposição entre linguagem/discurso e realidade/materialidade. Para as autoras, devido à
rejeição da epistemologia moderna fundada em uma crença na viabilidade do acesso
direto à realidade, que tinha como um de seus efeitos um determinismo biológico que
limitava especialmente as possibilidades das mulheres (e de outros grupos “marcados”),
muitas autoras passaram a projetar o polo discursivo como fonte exclusiva da
constituição da natureza, da sociedade e da realidade. Nesse contexto, passa-se a
enfatizar a ideia de “construção social da realidade” que, em sua versão mais radical, é
alvo de críticas de Donna Haraway (1995).
Haraway (1995) chama a atenção para os perigos e riscos de um
construcionismo social radical tendo como ponto de partida a discussão sobre ciência e
tecnologia. Como ambas são partes fundamentais da configuração da qual emergem o
“corpo” e o “sexo” nas práticas relativas à “percepção dos sinais primários de
fertilidade”, essa autora é uma referência importante para o meu trabalho. Segundo ela,
é a partir da disponibilização do argumento, pelos estudos sobre ciência e tecnologia, de
que todas as formas de conhecimento – principalmente o científico – são construídas
socialmente, que a ciência passou a ser vista por parte de feministas e outros teóricos
8
Em entrevista concedida a Judith Butler (2003), Rubin comenta como se afastou “da visão de um
estruturalismo de primeira hora centrado nos aspectos binários da linguagem, como as oposições
binárias tão presentes em Lévi-Strauss e Lacan, orientando-se para os modelos posteriores, mais
discursivos, do pós-estruturalismo ou do pós-modernismo.” Ela enfatiza que passou a considerar
necessário “um modelo que não seja binário, porque a variação sexual é um sistema de muitas
diferenças, não apenas um par de diferenças conspícuas.” (BUTLER e RUBIN, 2003, p. 168)

4
como um jogo retórico, no qual fatos e artefatos foram transformados em “partes da
poderosa arte da retórica” e o conhecimento em “um nódulo condensado num campo de
poder agonístico.” (HARAWAY, 1995, p. 10) Para a autora, pouco adianta termos
criticado essas doutrinas por serem reducionistas e ameaçarem “nosso nascente
sentimento de subjetividade e atuação histórica coletiva e nossas versões
‘corporificadas’ da verdade” (idem, p. 13) se caímos em um outro polo, no qual tudo é
redutível a jogos de poder e retórica.
Ela nos oferece então uma saída que contorna tal dicotomia, fazendo uma
releitura de uma metáfora cara à ciência tradicional, a metáfora da visão. Em sua versão
clássica, a visão foi associada a “um salto para fora do corpo marcado, para um olhar
conquistador que não vem de lugar nenhum” e que torna possível para a categoria não
marcada (posições como de Homem e Branco) “alegar o poder de ver sem ser vista, de
representar, escapando à representação.” (idem, p. 18). Contudo, a autora sublinha que
essa associação da visão à des-corporificação, levada às últimas consequências por uma
“ciência vinculada ao militarismo, ao capitalismo, ao colonialismo e à supremacia
masculina” (idem, p. 19), também foi composta pelas tecnologias de visualização dessa
época, como os sistemas de sonografia, imagens de ressonância magnética, sistemas de
manipulação gráfica, microscópios, scanners, sistemas de tomografia, sistemas de
vigilância, câmeras para fins diversos, dentre outros. Nessa configuração, Haraway
entende que “todas as perspectivas cedem passagem a uma visão infinitamente móvel,
que parece ser não mais apenas a respeito do truque mítico de deus de ver tudo de lugar
nenhum, mas da transformação do mito em prática comum.” (ibidem, p. 19) Ainda que
não negue que a mobilidade exista e que defenda que ela é mesmo necessária, considera
inadmissível que não se reconheça sua limitação.
Dessa forma, a metáfora proposta por Haraway insiste “na particularidade e
corporificação de toda visão” (ibidem, p. 20), incluindo aí também a mediação
tecnológica como corpórea, e não transparente, como muitas vezes nos foi apresentada.
Nesse sentido, a visão, para Haraway, não é passiva; pelo contrário, “esses artifícios
protéticos nos mostram que todos os olhos, incluídos os nossos olhos orgânicos, são
sistemas de percepção ativos, construindo traduções e modos específicos de ver, isto é,
modos de vida.” (ibidem, p. 22) Isso nos leva à responsabilização pelas nossas práticas
visuais e por aquilo que aprendemos a ver, pois as “fotografias” que temos do mundo
são alegorias “da elaborada especificidade e diferença e do amoroso cuidado que as

5
pessoas têm de ter ao aprender como ver fielmente do ponto de vista do outro, mesmo
quando o outro é a nossa própria máquina.” (ibidem, p. 22) Dessa forma, Haraway
defende que apenas a perspectiva parcial, limitada e localizável pode se comprometer
com a objetividade, sendo capaz de prestar contas por estar apoiada em redes de
conexão parcial com o objeto, construídas a partir de multiplicidades heterogêneas
presentes tanto no interior dos sujeitos quanto entre eles. A visão em Haraway (e logo, o
conhecer e o fazer científico) é, portanto, sempre mediadora, orgânica e maquínica,
semiótica e material; trata-se de tecnologias, próteses, da “construção de significados e
corpos, não para a transcendência, mas para a comunicação carregada de poder.”
(ibidem, p. 18) Tais tecnologias são variadas, e as disputas em torno do que é
considerado como explicação racional do mundo “são lutas a respeito de como ver.”
(ibidem, p. 28) Contudo, é apenas a partir da nossa inserção em meio a tais tecnologias
de visualização que podemos encontrar

metáforas e maneiras de entendimento dos e de intervenção nos padrões de


objetificação no mundo, isto é, os padrões de realidade pelos quais devemos
ser responsáveis. Nessas metáforas, encontramos modos de apreciar
simultaneamente ambos, o aspecto concreto ‘real’ e o aspecto de semiose e
produção no que chamamos de conhecimento científico. (ibidem, p. 30)

Assim, Haraway nos convida a colocar o discurso moral e político como o próprio
“paradigma do discurso racional nas imagens e tecnologias de visão” (ibidem, p. 28), a
fim de nos responsabilizarmos por nossas tecnologias de visualização e pelo que vemos
e criamos quando produzimos conhecimento científico, já que nossas imagens são
sempre limitadas e provisórias, enquanto o mundo tem potências semiótico-materiais
infinitas. Nesse sentido, a autora me ajuda a pensar tanto a responsabilidade pelas
tecnologias de visualização que utilizo para os enquadramentos que produzo desde meu
lugar específico quanto os modos de conhecer e, por conseguinte, de viver daquelas
com quem realizo essa pesquisa. Isso tendo em mente que a relação eu-elas gera
interferências mútuas que muitas vezes desestabiliza essa fronteira precária da qual
partimos, embora às vezes seja também reforçada.

Ademais, para romper com as reduções discursivas (construcionismo social


radical) e materiais (realismo positivista), a autora defende que repensemos nossos
objetos de conhecimento como nunca inertes e passivos. O primeiro, reduzindo os
corpos a páginas em branco prontas a serem colonizadas pelo discurso humano, nega as
agências não humanas e a capacidade que têm de desestabilizar fronteiras que tomamos

6
como rígidas. Por outro lado, a ideia de que podemos ter acesso sem mediações à
realidade também incorre no mesmo erro, ao tomar o mundo e seus objetos como
recursos, limitando-os a uma determinação final e única. A autora evoca a figura do
Trickster para pensar as dinâmicas do mundo, aquele que está sempre violando o que
temos como princípios e fronteiras rígidas em nossas “naturezasculturas9”. É a sua
forma de nos convocar a “nos desvencilharmos da ideia de dominação mas
continuarmos à procura de fidelidade, sabendo todo o tempo que seremos enganados.”
(ibidem, p. 38) Nós, vivendo em meio às configurações mais ou menos provisórias
pelas quais o mundo toma diversas formas, podemos apenas tentar “estabelecer
conversas não inocentes através das nossas próteses, incluídas aí nossas tecnologias de
visualização.” (ibidem, p. 38)

Para minha pesquisa, isso implica em reconhecer como actantes10 aqueles que
deixam rastros na vida de minhas interlocutoras, dentre eles termômetros, aplicativos de
celular, gráficos, computadores, internet, redes sociais, manuais, artigos científicos,
hormônios, ovários, hipófises, óvulos, mucos vaginais, sangue menstrual, dentre muitos
outros. Em meio a uma configuração bastante complexa, embora não seja a minha
pretensão dar conta de todas as tecnologias de visualização envolvidas no processo de
enquadramento (mais ou menos provisório) semiótico-material desses corpos, descrever
os traços e efeitos que podem ser rastreados desde as minhas posições é o meu objetivo.
Sendo assim, o conceito de “aparato de produção corporal” apresentado por Haraway
também me parece profícuo, entendido como uma matriz a partir da qual corpos e
objetos se tornam realidade enquanto “projetos de fronteiras”, ou seja, são
materializados provisoriamente quando em interações no mundo, mas permanecendo,
enquanto atores materiais-semióticos, gerativos, “produtor[es] de significados e
corpos”. (ibidem, p. 41) Manter-se atenta mais às interferências, que nunca têm fim, do
que às fronteiras, bastante instáveis, parece ser a lição de Haraway.

9
HARAWAY, Donna. Cyborgs to Companion Species: Reconfiguring Kinship in Technoscience. In:
HARAWAY, Donna. Haraway Reader. New York: Routledge, 2004.
10
Aqui faço referência a Latour (2005) que vai ao encontro das compreensões de Haraway quando
defende que sejam considerados actantes todos aqueles (humanos e não-humanos) que façam alguma
diferença no curso de ação de outro agente. Segundo o autor, não se trata de causalidade plena, mas
daquilo que Annemarie Mol (2007) chama de “interferência”: para Latour, ainda que não determinem,
os actantes podem “autorizar, permitir, conceder, estimular, ensejar, sugerir, influenciar, interromper,
possibilitar, proibir etc.” e, ao fazerem isso, deixam rastros que podemos seguir. (LATOUR, 2005, p. 108-
9)
7
Seguindo a mesma direção e contribuindo para pensarmos como a “realidade” e
a “política” estão mutuamente implicadas, John Law (2004) e Annemarie Mol (2007)
nos oferecem a noção de “políticas ontológicas”. Como aponta Mol, se na linguagem
filosófica corrente ontologia “define o que pertence ao real”, os dois termos, quando
juntos, sugerem-nos “que a realidade não precede às práticas banais nas quais
interagimos com ela, antes sendo modelada por essas práticas.” (Mol, 2007, p. 2) Já há
algum tempo, algumas perspectivas teórico-metodológicas estariam entendendo que a
realidade não pode ser determinada e nem estabilizada definitivamente, pois “é
localizada histórica, cultural e materialmente.” (idem, p. 3) Em decorrência disso, a
autora conclui que a realidade é múltipla, já que está sempre sendo feita e performada11.
Sublinha, no entanto, que não se trata de diversos pontos de vista sobre uma mesma
realidade, mas de como a própria “realidade é manipulada por meio de vários
instrumentos, no curso de uma série de diferentes práticas.” (ibidem, p. 6) Nessas
diferentes práticas, não vemos a mesma essência em um dado objeto, nem revelamos
seus vários atributos; ao invés disso, Mol refere-se a “diferentes versões do objecto,
versões que os instrumentos ajudam a performar [enact]. São objectos diferentes,
embora relacionados entre si. São formas múltiplas da realidade – da realidade em si.”
(ibidem, p. 6)
A autora, partindo de sua pesquisa sobre a multiplicidade da anemia, pontua que
a organização da detecção da doença também tem efeitos de realidade, fazendo
diferença no modo que a doença é performada. Os objetos performados nunca estão
sozinhos, trazendo “consigo modos e modulações de outros objectos” (ibidem, p. 12), e
é por esse motivo que a ideia de “interferência” é fundamental no trabalho da autora.
Como exemplo, Mol trata de duas formas diferentes pelas quais o nível normal de
hemoglobina pode ser definido: estatística ou patofisiologicamente, que podem estar
sobrepostos ou não. O que ela chama atenção, no entanto, é para um “efeito secundário”
da diferença entre ambas. A partir da epidemiologia, são estabelecidas e projetadas
diferentes populações, submetidas a referências diferentes quanto ao nível de
hemoglobina. Tal diferenciação é justificada por uma suposta melhora desses valores de

11
A ideia de performance [enactment] é central para o entendimento de realidade oferecido pelos
autores que trabalham com a ideia de “políticas ontológicas”. Cito aqui a definição oferecida por John
Law (2004): “a afirmação que relações, e também as realidades e representações da realidade (ou mais
genericamente, ausências e presenças) estão sendo constante ou cronicamente trazidas à existência em
um processo contínuo de produção e reprodução, e não há posições, possibilidades ou realidade fora
desses processos.” (LAW, 2004, p. 159, tradução minha)
8
referência, porém tem como efeito performar as categorias “homem” e “mulher” como
biológicas e corporais, além de colocar as pessoas de cada um desses grupos como
tendo mais em comum entre si do que com qualquer outro. Diferentemente, no modo
patofisiológico de se definir a anemia, leva-se em conta a comparação entre os
diferentes níveis de hemoglobina de um indivíduo, tendo como efeito uma história
corporal à qual é atribuída uma identidade. A divisão entre homens e mulheres, no
entanto, não é performada real aqui. É disso que se trata o fenômeno da interferência
para Mol, e em suas palavras:

Na política ontológica da anemia, não é simplesmente a realidade da doença


que está em jogo, a dos sexos também está. (...) Com efeito, esta
consideração nunca chegará a nenhum termo estável, porque há elementos a
mais. Tal implica que é pouco provável que a política ontológica estabilize,
uma vez concluídas as descrições que dela sejam feitas – porque jamais serão
concluídas. Tolerar fins em aberto, enfrentar dilemas trágicos e viver sob
tensão, é mais isto que se passa. (ibidem, p. 14-15)
Ainda fundamental para a ideia de multiplicidade em Mol, tem-se que esses
objetos múltiplos não são entidades separadas: as diferentes anemias performadas se
relacionam de diversas formas, não sendo exteriores umas às outras e, embora possam
colidir, “as várias performances de um objecto podem colaborar e mesmo depender
umas das outras.” (ibidem, p. 15) Além disso, em se tratando de políticas ontológicas
relativas a cuidados de saúde, Mol nos leva a questionar se é suficiente que nos
centremos na questão de como os doentes devem fazer as escolhas. Isso porque tais
modelos (ela cita dois, o do mercado que coloca o doente como cliente e o estatal que o
coloca como cidadão) pressupõem que a informação está disponível e necessita apenas
ser repassada ao doente, quando o que está em jogo é justamente o fato de que não há
uma realidade única, dada e determinada que pode ser acessada apoliticamente pelos
cientistas. Segundo a autora,

o que se tornou contestável não são apenas as representações da realidade,


sob a forma de informação que circula sob a forma de palavras e imagens;
mas também a própria modelação material da realidade no diagnóstico, nas
intervenções e práticas de investigação. Por isso, se é importante ter em conta
as formas como os pacientes se representam (como clientes ou como
cidadãos), é pelo menos importante também perguntar como são eles
representados nas práticas de conhecimento. Que parâmetros substituem e
denotam as nossas preocupações? Quais são os pontos que marcam uma
“melhoria” ou “deterioração” da condição de saúde ao longo do tempo? (...)
Porque há outra questão que deve ser colocada à partida: quais são os efeitos
que devíamos procurar? As respostas a esta questão estão incorporadas na
informação, mas também nas técnicas com que vivemos actualmente.
Tendem a estar implícitas, misturadas e irremediavelmente ligadas às várias
performances de qualquer doença. Por isso, é bastante superficial escolher

9
“depois dos factos”, tendo em conta a informação e as técnicas que ajudaram
a criá-los. (ibidem, p. 19-20)
Dessa forma, Mol chama atenção para as práticas de conhecimento que geram certos
enquadramentos em detrimento de outros, com efeitos de realidade sobre nossas vidas,
nunca de maneira fechada, determinada e nem única, mas aberta, múltipla e sujeita a
inúmeras interferências.

Pode-se dizer que esse é também o caso em relação às práticas de conhecimento


dos ciclos menstruais e ovulatórios, inseridos que estão em emaranhados de tecnologias
materiais-semióticas que se interferem mutuamente. As práticas de percepção da
fertilidade são práticas de conhecimento. Olhar para esses ciclos em sua multiplicidade
significa atentar para os vários instrumentos pelos quais vão sendo moldados enquanto
realidade; e considerar que diferentes relações performam diferentes versões desses
ciclos, sem pressupor a priori de que se trata da mesma coisa. Isso porque tal
pressuposição apagaria o trabalho de coordenação realizado para que várias
performances coexistam não como entidades separadas, mas como versões que podem
ter pontos em comum ou não, que se relacionam e interferem umas às outras de diversas
maneiras. John Law et al (2013) chamam a coordenação dessas “não-coerências” de
“modos de sincretismo”. Se, nas práticas do método sintotermal, as temperaturas tiradas
e registradas cotidianamente performam uma história individual de um ciclo menstrual,
a análise e registro da evolução do muco vaginal performa outra. Ainda outros “sinais”
são levados em conta. Como são “purificados” em um mesmo ciclo menstrual? Modos
de sincretismo como o cuidado, mas também de negação aparecem em diferentes
situações, dependendo do que está em jogo.12
Ainda, a partir do exemplo da hipoglicemia, Annemarie Mol e John Law (2004)
tratam do corpo de maneira diferente e inspiradora. Questionando-se acerca dos modos
de conhecer das práticas médicas e sobre o que é um corpo nas condições de
possibilidade do início do século XXI, defendem a saída da dicotomia entre duas visões
do corpo (o corpo-que-somos e o corpo-que-temos) para pensá-lo como o corpo-que-
fazemos – informado pela ideia de performance antes apresentada. Trazendo as práticas
para o primeiro plano, Mol e Law levam adiante a questão formulada por Haraway em
seu manifesto ciborgue (2009): “Por que nossos corpos devem terminar na pele?”

12
Esses são alguns dos “modos de sincretismo” trabalhados por Law et al (2013). A negação seria uma
recusa à não-coerência, acontecendo em relações assimétricas. (p. 5) Já o cuidado tem a ver com os
ajustes, é experimental e está constantemente sopesando já que se sabe que novas configurações
podem surgir. (p. 8)
10
(Haraway, 2009, p. 92) Corpos, enquanto “projetos de fronteira” (Haraway, 1995), estão
em diversas relações com o entorno, e um “corpo-na-prática” acaba por incorporar parte
do mundo ao seu redor, ao mesmo tempo em que sua ação pode ser deslocada para fora,
“ex-corporada”. Suas fronteiras, portanto, “são parcialmente permeáveis.” (p. 12) Tal
“corpo-em-ação” tem como atividade paradigmática, para tais autores, não mais a
observação, mas a metabolização. Essa atividade vai ao encontro do entendimento de
corpo com fronteiras permeáveis, já que o movimento (ou a ação) é central aqui e, por
conseguinte, “dentro” e “fora” já não são tão estáveis. Nesse “corpo metabólico,
incorporação e excorporação são essenciais.” (p. 12)

Os autores conseguem descrever como o corpo e a hipoglicemia, em


interferências mútuas, ajudam um ao outro a performar suas realidades, de maneira
bastante específica, algumas entre as várias maneiras de se performarem corpos. Tais
corpos, emaranhados de múltiplas formas a diabetes, não são, entretanto, um todo
coerente, mas um “conjunto de tensões.” (p. 13) Tensões que se dão entre os interesses
de diferentes órgãos, que podem colidir, e também tensões entre a necessidade de se
controlar esse corpo ao mesmo tempo em que se deve reconhecer sua inconstância, já
que há sempre variáveis faltando, seja por sua ação ser imprevisível ou desconhecida.
Além dessas, há tensões que surgem porque uma “variedade de necessidades e
aspirações deve ser realizada em conjunto e incorporada ‘single-bodiedly’.” (p. 14,
tradução minha) Os corpos nunca são apenas corpos-com-diabetes, são também vividos
e performados com outras especificidades, que devem ser coordenadas com as
relacionadas à doença. Disso, os autores concluem:

O que isso sugere é que a pressuposição de que nós temos um corpo coerente
ou somos um todo esconde muito trabalho. Trata-se de trabalho que alguém
tem que fazer. Você não tem e nem é um corpo-que-se-encaixa,
naturalmente, por si mesmo. Manter-se como um todo é uma das tarefas da
vida. Não é algo da qual se parte, mas algo que deve ser alcançado na prática,
tanto sob quanto além da pele. (Law e Mol, 2004, p. 15, tradução minha)
Dessa forma, os autores questionam a autoevidência do corpo como um “todo
orgânico”, entendendo-o como uma “configuração complexa” com fronteiras
semipermeáveis e cheio de tensões com as quais podemos – e precisamos - lidar.

Tal entendimento me estimula a partir desse corpo-em-ação (nas práticas de


percepção da fertilidade) para descrever os processos pelos quais é moldado e se torna
possível e visível enquanto tal. Quais as tecnologias de visualização que, em suas
interferências, permitem a materialização de corpos e ciclos menstruais/ovulatórios?
11
Como interferem em construções semiótico-materiais de corpo, sexo e natureza? Como
são vividos e performados nas práticas de percepção da fertilidade? Quais as tensões e
as formas cotidianas de lidar com elas? Quais os modos sincretismo? Quais actantes
estão em jogo nessas materializações e quais seus efeitos? Quais traços/rastros deixam?

Referências

ALAIMO, Stacy; HEKMAN, Susan. Introduction. In: ______. Material Feminisms.


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