Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Resumo: Este estudo é fruto de uma pesquisa realizada em âmbito acadêmico e interdiscipli-
nar que tem como proposta discutir e analisar a performance “The artist is present”, de Marina
Abramovic, a partir da perspectiva pós-estruturalista e da noção de direitos da pessoa humana,
presente na Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948). O objetivo é desvendar os
possíveis discursos denotados pela obra e seus impactos no processo de reflexão dos sujeitos.
69
Cristiane Marques de Oliveira
Adriana do Carmo Figueiredo
Thaís Eleutério Miranda de Oliveira
A obra “The artist is present”, de autoria Emmanuel Zagury Tourinho (2007); “Inter-
de Marina Abramovic, foi apresentada no national / Intertextual Relations – post-mo-
MoMA - Museu de Arte Moderna de Nova dern readings of world politics”, de Michael,
Iorque, em 2010. Tomando como referência F. Shapiro (1989); “Language, agency and
o caráter performático-performativo desta politics in a constructed world”, de François
obra, pretendemos verificar sua capacida- Debrix (2003); e “The Study of Discourse in
de e potencial de atuar como exercício de International Relations: a critique of research
alteridade e reconhecimento do outro como and methods”, de Jennifer Milliken (1999).
igual, ao explorar, por meio de sua práti-
ca, os fundamentos básicos de liberdade e A arte performática é apresentada a par-
igualdade dispostos na Declaração Univer- tir do texto “Performance como linguagem
sal dos Direitos Humanos, de 1948, proble- – criação de um tempo-espaço de experi-
matizando, assim, a compreensão desses mentação”, de Renato Cohen (2002), e do
valores de acordo com seus processos de artigo “Performance e direitos humanos:
constituição nas diferentes sociedades. discursos pela tolerância em Marina Abra-
movic”, de Christina Fornaciari (2010).
Abordamos a concepção da Declaração Além disso, foram analisados os vídeos da
Universal dos Direitos Humanos para, em obra “The artist is present”, disponíveis no
seguida, expor o desenvolvimento da Teoria site do MoMA, e também o site do projeto
Pós-estruturalista das Relações Internacio- “Terra Comunal”, evento realizado recente-
nais, abraçando seus conceitos de discur- mente no SESC São Paulo (março/ 2015).
so, identidade, conhecimento, linguagem e
realidade. Posteriormente, apresentamos o Nas considerações finais, abarcamos a dis-
contexto de surgimento da performance art, cussão se a arte performática e os discursos
seus conceitos e características predomi- denotados pela obra são capazes de im-
nantes, seguidos de breve apresentação da pactar o processo de reflexão do indivíduo
artista Marina Abramovic. A análise da per- sobre seu comportamento, a compreensão
formance “The artist is present” contempla da sociedade e da realidade, influencia-
as formas de interação utilizadas pela artista dos por sua percepção sobre os princípios
em sua relação com o espectador, inquirin- elementares da igualdade e da liberdade.
do sobre o papel deste no processo de cons-
trução da obra, dando ênfase aos possíveis A arte, o humano, o tempo e o discurso
discursos denotados pela performance.
“Todas as artes contribuem para a
O referencial teórico adotado parte da con- maior de todas as artes, a arte de viver.”
sulta à Declaração Universal dos Direi- Bertolt Brecht
tos Humanos, presente na carta da ONU
(1948), e do livro “Direitos Humanos”, de A Declaração Universal dos Direitos Hu-
Marco Mondaini (2006). A abordagem so- manos, promulgada pelas Nações Unidas,
bre a Teoria Pós-Estruturalista das Rela- surge no período após a Segunda Guerra
ções Internacionais toma como referências Mundial, em 1948. Este foi um momento
os textos: “Linguagem e instituições sociais marcado pelo ódio e intolerância, exem-
em Skinner e Austin”, de Peter Endemann e plificados no horror do holocausto, que
70
A arte, o humano, o tempo e o discurso: a performance de Marina Abramovic e os
direitos humanos à luz do pós-estruturalismo
71
Cristiane Marques de Oliveira
Adriana do Carmo Figueiredo
Thaís Eleutério Miranda de Oliveira
significados aos processos e fenômenos
O pós-estruturalismo nas Relações Interna- sociais e, quanto a esse aspecto, não há
cionais é a contribuição do campo da filoso- domínio absoluto sobre a produção de
fia e das teorias sociais para a necessidade significado. O discurso é compreendido
de superação dos limites impostos pelas como intermediário entre agência huma-
teorias tradicionais da área, a fim de melhor na e estrutura. Para tanto, não importa a
entender as transformações no sistema in- intenção do agente para que se produza
ternacional (NOGUEIRA; MESSARI, 2005). um determinado discurso, ou seja, o dis-
curso sempre será produzido. Entretanto,
A teoria surge com o advento linguístico o discurso nunca é neutro, de forma que a
conhecido como “virada linguística” (DE- partir de um statement ou afirmação pode
BRIX, 2003), e seus estudos implicam a ser e é utilizado como recurso político.
preocupação com o sentido, valores, e
suas capacidades de produzir práticas na Endemann e Tourinho (2007, p. 208), a
linguagem, promovendo discussões sobre partir de conceitos propostos por Austin,
esses aspectos na disciplina, tendo em vis- em sua obra “Quando dizer é fazer: pala-
ta compreender a política internacional sob vras e ação”3, explicam que as “práticas”
o prisma das estratégias de uso dos discur- tratam de “proferimentos performativos”,
sos, suas leituras e escritos, e como estes enquanto que as “declarações” são com-
recursos são reproduzidos na estrutura. preendidas como “proferimentos consta-
tativos”. Tais proferimentos trabalhariam
A respeito dos conceitos chave dessa teoria, linguisticamente para sustentar as práticas
vamos nos ater ao estudo da linguagem, do e produções de sentido delas decorren-
discurso, das práticas e declarações (pro- tes, e que são mantidas por um critério de
ferimentos), a relação entre conhecimento funcionalidade, ou seja, conforme a exis-
e poder, identidade e também realidade. tência de um como e por quê. Igualmente,
as práticas e declarações dependeriam do
A linguagem é compreendida como forma contexto em que ocorre seu proferimento,
de ação social e concreta, e que atua sobre de forma que o dito tem relação com o ato
a realidade, constituindo uma relação cultu- e sua intencionalidade (idem). Dito isto, “o
ralmente datada e determinada, sendo as- proferimento da sentença é, no todo ou
sim, algo que se impõe à realidade e a con- em parte, a realização de uma ação, que
figura a partir dessas redes de significação, não seria normalmente descrita consistin-
ou seja, a partir das diferentes práticas de in- do em dizer algo” (AUSTIN, 1990, p. 24).
teração, de acordo com Endemann e Touri-
nho (2007, p. 02). Conforme Shapiro (1989, Esses conceitos estão relacionados aos
p. 11), a linguagem é uma ferramenta trans- “atos convencionais”, que seriam “procedi-
parente que serve como um discreto condu- mentos convencionalmente aceitos e que
tor entre pensamentos, conceitos ou coisas.
3 Título original “How to do things with words”, obra
de John Langshaw Austin, publicada em 1962, e tra-
Com relação ao discurso, este é apresen-
duzida para o português, em 1990, pelo professor
tado como sendo qualquer prática sobre Danilo Marcondes de Souza Filho. A obra é resultan-
o mundo. Ele é elemento de atribuição de te de uma série de conferências proferidas pelo autor
existem informações que comprovem essa autoria. em 1955. (Cf.: ENDEMANN E TOURINHO, 2007).
72
A arte, o humano, o tempo e o discurso: a performance de Marina Abramovic e os
direitos humanos à luz do pós-estruturalismo
73
Cristiane Marques de Oliveira
Adriana do Carmo Figueiredo
Thaís Eleutério Miranda de Oliveira
scripts inerentes e adquiridos, circun- sacralizar a arte, deslocando-a de sua pers-
dados por condições linguísticas e pectiva estética elitista e colocando-a numa
culturais (...) e a realidade é mediada categoria modificadora (COHEN, 2002).
por modos de representação enquan-
to caminhos de fazer a facticidade.
Uma das características dessa forma de
(SHAPIRO, 1989, p.11, tradução livre)
arte é a busca por uma obra não decora-
tiva. Além disso, é uma arte que permite
Nesse contexto, o espaço-tempo é con-
hibridismos de linguagem. A performance
siderado crucial, na medida em que, a
também apropria-se de atos da vida co-
partir do agora, temos o conteúdo sim-
tidiana, transformando-os, possibilitan-
bólico que também constitui o real.
do, assim, intensa ressignificação destes.
No campo da arte, esse período histórico
Essa prática se insere no contexto de nos-
é marcado pelo pós-modernismo, que foi
so estudo ao fazer uso da linguagem e do
um movimento de ruptura com antigos pa-
discurso na busca por criar não somente
drões, tendo em vista produzir mudanças,
outras interpretações da realidade, mas
e é nesse cenário que se insere a arte da
por sua busca por criar outras realidades,
performance. Da mesma forma, é nesse
e por ser capaz de produzir novos sentidos,
momento em que há grande desenvolvi-
mesmo que o faça sem intencionalidade.
mento do pós-estruturalismo, mas este,
diferentemente do movimento pós-moder-
A performance trabalha com a intera-
no, não está comprometido em produzir
ção social, permitindo novas formas de
tais transformações, mas, sim, empenha-
apropriação do tempo e do espaço, pro-
do em interpretar criticamente as implica-
pondo práticas que alteram as ações
ções resultantes dessas transformações,
comumente aceitas e compreendidas
e, para tanto, propõe inquirir o mundo por
como arte, promovendo deslocamen-
meio das práticas textuais numa aborda-
tos do olhar e do lugar do espectador.
gem empírica e interpretativa (SHAPIRO,
1989, p.18) fazendo uso desses conceitos.
Não se trata de uma proposta artística que
a priori se preocupa em criticar ou levan-
A Performance Art
tar questionamentos sobre a realidade
ou estabelecer posicionamentos e emitir
“A arte diz o indizível, exprime o
discursos políticos, entretanto, ao abor-
inexprimível, traduz o intraduzível”
dar a vida e suas facetas, acaba por pro-
Leonardo da Vinci
duzir discursos que provocam reflexão e
novas leituras sobre a realidade, o coti-
O termo performance art, derivação da live
diano, o poder, as questões sociais, en-
art ou “arte viva”, surgiu nos anos 1960 como
tre outros aspectos que permeiam a vida.
um movimento da contracultura4. Essa forma
de arte se destaca por sua concepção apro- associada à arte ativista que busca novas relações
ximada da própria vida e se esforça por des- entre arte e política, além da produção de um dis-
4 O movimento nasce conjuntamente à ideia de curso crítico sobre a realidade, tendo como ponto
“autonomia política”, com ênfase nas lutas sociais de tensão uma “cultura de oposição ao estágio do
dos anos sessenta, associadas ao movimento dos capitalismo em que vivemos” (MESQUITA, 2011
trabalhadores italianos autônomos. Está também p.12). Trata-se da busca por uma arte revolucionária.
74
A arte, o humano, o tempo e o discurso: a performance de Marina Abramovic e os
direitos humanos à luz do pós-estruturalismo
75
Cristiane Marques de Oliveira
Adriana do Carmo Figueiredo
Thaís Eleutério Miranda de Oliveira
comportamento, o valor (artístico, ideológi- pelo museu, estaríamos falando de muitos
co e econômico) de suas obras, e enseja potenciais artistas. Dessa forma, compreen-
reflexões sobre o mundo e o mercado da demos que o título da obra, ao evocar tal ato
arte. Na verdade, não se trata de um fato performativo, trabalha com a ideia de des-
isolado, no entanto, é visto como um dos mitificar a ideia de artista, ao mesmo tem-
casos mais emblemáticos da atualidade. po em que cria uma situação de encontro.
Conforme explicitado pela artista, em di- Entretanto, é curioso observar que, no âm-
versas entrevistas8, suas obras partem de bito da realidade particular da artista, o que
questões e práticas de ordem transcen- se tem como resultado é que a obra “The
dental, explorando a energia, a espiritu- artist is present” transforma completamente
alidade, a autoconsciência e a interação seu status de existência enquanto identida-
com o outro; esta última, sendo prática de Marina, pois o sucesso da obra acaba
cultivada na obra “The artist is present”. por lhe dar caráter ainda mais célebre, le-
vando-a de volta ao panteão do artista-mito
A referida performance foi realizada no e, mais ainda, apresenta-a como símbolo
MoMA – Museum of Modern Art, em Nova afirmativo dos valores poder-mercado-ca-
Iorque, no período de 14 de março a 15 pital, preconizados pelo sistema capitalista.
de maio de 2010. Durante o evento, a ati-
vidade foi transmitida ao vivo pelo site da Temos como fator que evidencia isso o dis-
instituição e pode ainda ser vista, inclusi- curso veiculado pela revista Time, ícone re-
ve, no documentário “The artist is present”. presentativo desse sistema de poder, quan-
do expressa a capacidade de influência da
Nesse trabalho, a artista passou quase artista no mundo. Assim, sob a perspectiva
três meses sentada em uma cadeira, doze pós-estruturalista, podemos dizer que esta-
horas por dia, seis vezes por semana, à mos tratando de um proferimento consta-
disposição do público. A performance tra- tativo, que, neste caso, atua no sentido de
tou-se da simples ação de o espectador manutenção de uma determinada ordem, ao
sentar-se à frente da artista e ali perma- difundir e perpetuar tais valores embutidos
necer o tempo que desejasse, em silêncio. discursivamente, fazendo uso da imagem
da artista como suporte para legitimação
Partindo de uma análise simbólica sobre o desse discurso que reafirma tais valores.
título da obra: “O artista está/ é presente”
(tradução livre), pois o verbo ser/estar em Ainda relacionado à questão do termo
inglês não apresenta diferenciação, o nome existencial-temporal, invocado no título, a
da performance parece propor uma chara- ideia de “presença” nas artes diz respeito
da existencial e temporal, porque coloca em ao exercício do indivíduo em manter-se no
questão quem é o artista, o que poderia ser momento presente com toda sua integrida-
compreendido como sendo a própria Marina, de, sendo também um desafio que evoca
ou o espectador que ali se senta à sua fren- a metafísica da meditação, esta compre-
te, ou, mais provavelmente, ambos. Confor- endida como ação de olhar para si e para
me a enorme fila de pessoas que passaram dentro, tendo em vista alcançar um profun-
8 Cf.: <http://terracomunal.sescsp.org.br/ do estado de concentração, sensibilidade
7-conversas> / Acesso em: 28 abr. 2015.
76
A arte, o humano, o tempo e o discurso: a performance de Marina Abramovic e os
direitos humanos à luz do pós-estruturalismo
e abertura energética para interagir com o cia diferente do habitual, na busca por um
outro. No entanto, neste caso, não se trata tipo de transe, conforme ocorre geralmente
de um ato solitário, mas constitui uma ação em rituais, assim, levando o indivíduo au-
que deve ser compartilhada com o outro por -delà10 da percepção cotidiana do tempo.
meio da ação proposta pela performance.
A duração da performance não é pré-de-
Outra informação pertinente quanto a isso terminada, ou seja, não há início ou fim da
é o fato de a presença ser prática-chave ação (para cada participante), dependen-
na metodologia criativa de Marina, esta do da vontade e do desejo do performer/
composta para auxiliá-la no preparo técni- espectador o quanto pretende vivenciar o
co para execução de suas performances. ato performativo. O tempo, neste caso, se-
ria capaz de transformar a experiência do
A ideia de presença traz também outros espectador/ performer num tipo de “salto
proferimentos constatativos e performati- pós-moderno”, que, sob a perspectiva pós-
vos: Quem está presente? O artista, a ce- -estruturalista, ocorreria quando a forma
lebridade, a entidade, o espectador que de viver e produzir a vida rompe com qual-
se transforma em artista? Presença é an- quer paradigma ou convenção moderna.11
títese de ausência, e compreende-se por
ausência a invisibilidade, aquilo que não No caso da performance “The artist is
é visto, contrariamente ao presente, que present”, esse fenômeno ocorreria a par-
se apresenta de forma eficaz e eficien- tir do momento em que se rompe com a
te, que afirma não somente sua existên- maneira de vivenciar o tempo, conforme
cia, mas sua forma de existência, e, as- convenção estabelecida pelo paradigma
sim, evoca a atenção daquele que olha. moderno, o qual está associado à produ-
tividade e também com a ideia de corpos
O “artista presente” é o outro, e seu du- disciplinados a serviço de determinada or-
plo, pois um não existe sem o outro em dem (leia-se capitalismo) em função de
dada situação, e uma vez que o espec- uma utilidade, conforme proposto por Fou-
tador/ performer junta-se à performance cault12. Dessa forma, o novo paradigma
(ato performativo), este passa a ser tam- que se apresenta é a experimentação do
bém potencialmente artista, assim, com- tempo do ócio, em que o espectador está
partilhando do mesmo status que Mari- comprometido e envolvido pela ação de
na, nem que seja por alguns instantes. compartilhamento desse tempo com o ou-
tro para exercício de sua contemplação.
Outro aspecto fundamental da obra é a tra-
tativa dada ao elemento tempo, sendo este
10 Do francês: do outro lado (tradução livre).
tipo de performance caracterizada como du- 11 Cf.: Leandro de Alencar Rangel, disciplina Teorias
racional9. Neste caso, o tempo exerce papel Contemporâneas de Relações Internacionais, mi-
importante na medida em que potencializa nistrada no UniBH, Belo Horizonte, 1º semestre de 2015.
a emergência de um estado de consciên- 12 Conceito de ‘corpos dóceis’: é aquele que
se manipula, se modela e se treina; aque-
9 Performance em que o tempo constitui a mate- le que obedece. O corpo é objeto e alvo de po-
rialidade do trabalho. Disponível em: <https://su- der, é manipulável, fruto da submissão em fun-
perficiedosensivel.wordpress.com/category/perfor- ção da utilidade. FOUCAULT, Michel. Vigiar e
mance-duracional/>. Acesso em: 28 de abr. 2015. Punir, Ed. Vozes -19º Edição. São Paulo, 1989.
77
Cristiane Marques de Oliveira
Adriana do Carmo Figueiredo
Thaís Eleutério Miranda de Oliveira
Essa ação pode ser ainda compreendi-
da como um ato de resistência ao discur- A tolerância é um dos valores que podem
so dominante, determinado pelas estru- ser percebidos nos proferimentos consta-
turas de poder, agindo a performance, tativos presentes na Declaração Universal
então, na direção de desconstrução de dos Direitos Humanos, quando evidencia,
tal discurso por meio de uma prática, ou no artigo 1º, que todos os seres humanos
proferimento performativo, que abre es- “são dotados de razão e consciência e de-
paços de divergências sobre o modo de vem agir em relação uns aos outros com es-
se vivenciar o tempo, atuando, assim, pírito de fraternidade” (ONU, 1948, art. 1°).
na construção de uma outra realidade.
É importante destacar que a performance
Com a permanência e o desenrolar da não é uma representação da realidade,
ação, aprofunda-se o estado de quietu- mas é a própria vida em acontecimento,
de e há o afloramento de uma percepção e, no caso da obra “The artist is present”,
mais refinada. A partir da contemplação o foco de atenção está na interação en-
do outro, podemos dizer que se torna tre dois indivíduos no momento presente.
possível vivenciar o statement filosófico
proposto no artigo 6º da Declaração dos A diferença elementar entre represen-
Direitos Humanos, que diz: “todo homem tação e performance é que esta última
tem direito de ser” (ONU, 1948, art. 6°). constitui-se do caráter vivo da ação, de
forma que não se pretende dizer algo
Esse acontecimento permite o estabeleci- dado, mas trata-se de algo que ocorre, e,
mento de um diálogo sensível, que se re- a partir disso, constrói-se no tempo-espa-
vela na forma de “escuta ao outro”, e que, ço real um determinado discurso que não
por meio do exercício do olhar, verifica não é previamente controlado ou manipula-
somente as diferenças, mas também permi- do, tal como sucede na representação.
te o reconhecimento das semelhanças en-
tre os indivíduos envolvidos na ação. Nesse A ação proposta pela performance e os
momento, transparece a latência da alte- diferentes scripts que dela decorrem apre-
ridade, pois se reconhece o direito de ser/ sentam uma gama de possibilidades inter-
estar do outro, e deste existir à sua maneira. pretativas no que consiste à discussão so-
bre a linguagem e o texto. Essa afirmativa é
Esse fenômeno não ocorre com todos os premissa mesmo da própria arte, de acordo
espectadores/ performers, mas, confor- com Shapiro, que assevera que “a arte tem
me demonstrado pela documentação da a capacidade em denotar maneiras e produ-
performance, no site do MoMA e no docu- ção de resposta não sobre a realidade so-
mentário, acontece com a grande maioria cial, mas sobre outras convenções que as
deles. Fornaciari (2010) nos diz que esse governam” (SHAPIRO, 1989, p.11, tradução
fenômeno é intrínseco ao ato performá- livre), e a isso ele nomeia “intertextualidade”.
tico, na medida em que a performance
apresenta a capacidade de ser um dis- Podemos ainda apontar que o terceiro
curso pautado nos pilares da tolerân- olhar (ou olhar daquele que contempla a
cia, embora com uma linguagem própria. performance) cria sua própria intertextu-
78
A arte, o humano, o tempo e o discurso: a performance de Marina Abramovic e os
direitos humanos à luz do pós-estruturalismo
alidade com relação ao ato performativo. que a performance art ou live art seria,
por excelência, a linguagem da arte viva.
A obra “The artist is present” foi realiza-
da em um dos museus mais importantes As ações realizadas no MoMA, com a per-
do mundo, e este pode ser compreendido formance “The artist is presente”, tiveram
também como fator que confere à obra sua como participantes milhares de homens,
notoriedade e legitimidade, pois se trata de mulheres, crianças, idosos, os quais apre-
uma instituição que é locus de reconheci- sentaram as mais diversas reações. Outra
da autoridade que estabelece conceitos e característica foi que eram originários de di-
tendências no mundo da arte, além de di- versas regiões do mundo. Contudo, indepen-
tar comportamentos, tanto para o métier13 dente das diferenças entre eles, o desloca-
artístico, quanto para o próprio espectador, mento de papéis ocorrido entre os agentes,
controlando esse mercado. Assim, estamos a transcendência espaço-temporal atingida
aqui falando também de uma convenção, por meio da vivência e o diálogo silencioso
e, por isso, estaríamos diante de um agen- de escuta sensível ao outro, proposto pela
ciamento dos discursos de poder e domi- performance, criaram espaço para emissão
nação sobre a compreensão do que seja a de diferentes discursos e seus respecti-
arte, e o estabelecimento de identidades e vos proferimentos performativos revela-
papéis sobre quem é o artista e quem é o dos em sorrisos, espantos e/ ou lágrimas.
espectador, e o que se espera de cada um
deles. A partir dessa constatação, como se- Na obra, a liberdade de expressão está
ria o encontro de dois indivíduos proposto em exercício, a partir do momento em que
no mesmo formato, partindo das mesmas a artista provoca os espectadores/ perfor-
indicações, porém deslocado de tal am- mers a serem emissores e não apenas re-
biente? Seria este ato performativo, com- ceptores do discurso, durante a execução
preendido como obra de arte? Seria este da própria obra, assim, de forma singela
ainda um proferimento performativo? Se ou aterrorizante, Marina trata de fazer um
sim, qual discurso a ação poderia denotar? convite ao indivíduo para este tomar parte
na produção artística, por meio da ressig-
Como estamos tratando da interpreta- nificação da vida, ao propor outras formas
ção de texto, cada detalhe pertinente à de interação com o outro, rompendo pa-
ação deve ser verificado, a fim de perce- radigmas, e esforçando-se para produzir
ber qual discurso está sendo produzido. outros discursos sobre a realidade. Quan-
to a esse aspecto, destacamos o artigo 27
Considerações finais da Declaração dos Direitos Humanos que
diz: “toda pessoa tem o direito de tomar
“O corpo é o lugar onde as coisas acontecem” parte livremente na vida cultural da co-
Marina Abramovic munidade, de fruir as artes e de participar
no progresso científico e nos benefícios
A definição de linguagem proposta por que deste resultam” (ONU, 1948, art. 27).
Wittgenstein é destacada no texto de En-
demann e Tourinho (2007) como ação ou Compreendemos que a performance, ao
“forma de vida”. Assim, podemos concluir ser capaz de trazer à tona a expressão de
13 Do francês: ofício profissional.
79
Cristiane Marques de Oliveira
Adriana do Carmo Figueiredo
Thaís Eleutério Miranda de Oliveira
sentimentos diversos, expõe a fragilidade nos diz algo sobre a sociedade, nossos pa-
humana, fator que sobremaneira promove râmetros de comportamento e convenções.
o processo de identificação entre os indi-
víduos, responsável por suscitar também Concluímos que, ao atingir e inquietar um
sentimentos como fraternidade e tolerân- grande número de pessoas, entre partici-
cia, assim, ascendendo aos valores, ou pantes e interessados, a performance “The
proferimentos constatativos presentes na artist is present” foi capaz de transformar os
Declaração Universal dos Direitos Huma- indivíduos, no sentido de ser motor poten-
nos, conforme explicitado anteriormente. cial para promover a reflexão destes sobre
Resta a questão: seria o fator transforma- seu comportamento, o outro, e a construção
dor da experiência a própria Marina, ou da realidade que somos obrigados a com-
o formato de encontro proposto por ela? partilhar cotidianamente. A obra também
promove o proferimento performativo de um
Não sabemos se a ação deslocada de seu discurso pela tolerância, de resistência às
ambiente convencional, ou seja, num local convenções pré-determinadas, seja sobre
que não carrega o status de lugar onde a a forma de interação entre os indivíduos ou
arte acontece, seria capaz de ativar esse sobre as formas que concebemos o tempo-
processo tão singular. Porém, a experiência -espaço; enseja o sentimento de alteridade
em si do encontro, mesmo na vida cotidia- e o reconhecimento do outro como igual em
na, é compreendida como capaz de produzir sua humanidade, além disso, proporciona a
resultados não imaginados ou esperados. vivência da liberdade por meio do ato criativo.
80
A arte, o humano, o tempo e o discurso: a performance de Marina Abramovic e os
direitos humanos à luz do pós-estruturalismo
sidade Federal do Pará, 2007, pp. 207-228. present. Nova Iorque: Jason Persse, 2010.
The artist is present – Hotsite da exposição
FORNACIARI, Christina. Performance da artista Marina Abramovic realizada no
e direitos humanos. Discursos pela to- MOMA. Disponível em: < http://www.moma.
lerância em Marina Abramovic. In: Con- org/interactives/exhibitions/2010/marina-
gresso internacional - Deslocamentos na abramovic/ > Acesso em: 25 de abril de 2015.
arte. Instituto de Filosofia da UFOP, Ouro
Preto: Universidade Federal de Ouro Pre- MONDAINI, Marco. Direitos Huma-
to – Minas Gerais, 2010, pp. 507-527. nos. São Paulo: Editora Contexto, 2006.
81
Cristiane Marques de Oliveira
Adriana do Carmo Figueiredo
Thaís Eleutério Miranda de Oliveira
vić + MAI no Sesc Pompeia é uma ex-
posição da aclamada artista sérvia Ma-
rina Abramović. Disponível em: <http://
terracomunal.sescsp.org.br/7-conver-
sas/> Acesso em: 07 de junho de 2015.
82