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HEGEL EO HISTORICISMO Jorge Grespan* Resumo, Este artigo constitui-se como exposigio ¢ uso do métode dialético com 6 objetivo de localizagao de termos centzais tanto da relagao de Hegel com o historicismo como de uma atualizagio do propria hegelianismo. Palavras-chave: Histori smo, métado dialético, Hegel Dificil de definir de modo preciso, o “historicism madamente nas primeiras décadas do século XIX, como d das técnicas de andlise ¢ eritica das fontes documentais utilizadas pelos historiadores. Inegavelmente, sua inspirag2o deita rafzes no século anterior, na historiografia de carater iluminista~lembremos de autores como Gibbon, Voltaire e Hume -, de onde procede o ideal de um saber fiel a seu objeto, cuja verdade pode ser representada adequadamente, No entanto, talvez mais importante seja a influéncia oposta das varias formas de reacao ao Iuminismmo nascidas ainda no século XVIII, como © Romantismo e até 0 Pietismo, De fato, ha notéveis paralelos entre a concepgao de historia elaborada nessa época © alguns dos’ principais elementos da eritica ao Tuminismo, especialmente a valorizagdo da subjetividade individual, operada, por exemplo, pela literatura romantica * Professor da Universidade de $0 Paulo. do grupo de jovens escritores alemaes reunidos sob a bandeira do “Tempestade ¢ Impeto”, ou pela busca pietista da presenga divina no mais profundo e intimo sentimento religioso. Se a filosofia das “Luzes” procurava conhecer os fenémenos humanos, inscrevendo-os em leis universais de que eles seriam mero caso singular, se ela concebia mesmo a existéncia de uma “natureza” do homem, permanente e imutvel, seus crfticos apelaram para a importancia infinita do individuo, impossivel de determinar completamente, de reduzir a generalizagdes. individual é 0 que no se repete, 0 tinico que nfo se submete a regularidades pass{veis de conformar uma “natureza” para além das suas modificagdes histéricas. Na énfase sobre o indiv{duo assim caracte- rizado, portant, conjugaram-se os esforgos do escritor romantico, interes- sado em sondar a alma de suas personagens, e os de toda uma escola juridica que comegava a recusar a eternidade das normas do direito, atribuindo sua origem e validade a circunstancias sociais perfeitamente datadas. Desse modo, sobre a critica ao jusnaturalismo iluminista, com suas leis e deveres universais, que se assentam os fundamentos comuns tanto da chamada “escola histérica do direito” alemé, quanto da pritica de historiadores como Niebuhr, Mommsen, Ranke ¢ Droysen Hegel 6 contemporaneo de todo esse embate de idéias, movendo- se em seu meio e nele interferindo ativamente. Como se sabe, ele inicia sua trajetéria intelectual com reflexdes ditas “teol6gicas”, mas que realmente perguntavam pela dimensio hist6rica da religio, assim limitada e constitufda pela sua existéncia social, mundana. Converte-se depois 4 filosofia, concebendo-a, entretanto, como, processo, como “fenome- nologia” das varias formas de configurago do espirito. E, por fim, retoma na maturidade as preocupagdes com a histéria, em cursos monumentais ministrados na Universidade de Berlim, onde era catedratico. E nesse ponto culminante de seu itinerdrio que Hegel dialoga mais intensamente com 0 historicismo em formagio, elaborando conceitos de grande importéneia no conjunto de sua propria obra e também como referéncia para perspectivas até certo ponto antag6nicas as suas, mais tarde formuladas claramente. £ para esse momento, entao, representado pela publicagéio postuma de suas Ligaes sobre a Filosofia da Histéria Universal, ou mais simplesmente, da Razio na historia, que voltaremos a atengao, GRESPAN, Jonge. Hegel e 0 hostorieismo no intuito de melhor recuperar a amplitude © agudeza de tal didlogo, crucial para 0s rumos da historiografia contemporinea, Hist6ria e filosofia da historia Prenunciando seu tempo, Hegel foi um dos primeitos mais contundentes criticos da doutrina jusnaturalista, hegemnica desde 0 debate politico travado durante as revolugdes na Inglaterra do século XVI, Embora li Hobbes ¢ Locke tenham se opasto ao significado do “estado natural” instituinte do “direito das gentes”, ambos concordavarn em basear suas teorias sobre a sociedade ¢ a Estado nesse nt vel elemen- tare fundante da sociabilidade, concebido como o da propria natureza humana. Sua influéncia sobre o século seguinte foi decisiva, articulando as concep¢es do direito e da politica, ¢ limitando, conseqiientemente, 0 espaco da hist6ria: as modificagdes sociais registradas nesta tiltima nunca poderiam ser profundas a ponto de alterar algo na esséneia humana eterna. Para a filosofia da histéria de Hegel, portanto, era imperioso realizar um ajuste de contas com semelhante doutrina, Assim, ele a apresenta logo no inicio de suas prelegdes, antes de tornd-la objeto de critica: [J quando se falou de natureza humana, pensou-se, sobretudo, em algo de permanente. A exposigio da natureza humana deve ajustar-se 4 todos os homens, aos tempos pissados ¢ presente, Esta representacio universal pode sofier infinitas modificagées; mas de {aio 0 universal é uma e a mesma esséncia nas mais diversas modificagtes, (RH, p. 50[51]) O elemento aqui descrito como caracteristico dos homens de qualquer época ou lugar 6 0 que o Tuminismo ainda chamava de “estado natural” da humanidade, justamente por se assemelhar & natureza em geral, na constancia e “universalidade” com que suas leis se aplicariam 0s casos individuais. Ele corresponde a uma “esséncia” sempre idéntica cm “tempos passados ou presentes”, ou seja, inalterével e inalterada pelos acontecimentos, que tocariam apenas na superficie do ser humano, Nesse sentido, prossegue 0 texto, através de toda a histéria, encontra- riamos nas varias formas de eriagdo artistica, adoragtio religiosa, perspec- Historia Revista, 7 (1/2) + 55-78, jan/éex, 2002 37 tiva filoséfica, que “s6 os objetos sdo diferentes; mas o sentimento subjetivo € um s6 e 0 mesmo” (RH, p. 50 (51]) Atentemos, neste iiltimo techo, 2 estratégica distingdo entre os “objetos” varidveis e 0 lado “subjetivo” que se mantém idéntico: é a recusa dessa dicotomia que levard Hegel 2 critica do jusnaturalismo. Agui hé uma passagem crucial que vai de uma mere diferenga entre 0 mutavel e 0 permanente para uma oposigao entre o que muda, como “objeto”, © o que permanece, como “sujeito”. Para o Tuminismo, a diferenga entre os “objetos” nada tem a ver com a identidade do “sentimento”, gue os adota ou percorre indiferente @ qualquer um em particular. A censura hegeliana se baseia na concepgao de que os dois termos no so, contudo, simplesmente diversos, mas sim opostos, numa dialética em que cles se determinam reciprocamente mediante a sua miitua negacao, O “sentimento” deveria diferir, entio, conforme fosse suscitado por um “objeto” especifico, e vice-versa, existindo um nexo entie eles que os relaciona € ao mesmo tempo os distingue. No entanto, a diferenciagiio dicotémica entre “objeto” e “sujeito”, nna qual eles nao se determinam como termos unidos por uma relagao, & propria da atitude intelectual iluminista, caracterizada por Hegel como “reflex pensante [...] que deixa de lado as distingdes e fixa o universal, que deve ser operante de igual modo em todas as circunstancias”, de modo “que neste tipo de consideragio se abstrai do contetido, dos fins daatividade humana”, Assim, para esse “universal [..] abstrafdo”, seria indiferente o “contetido” especifico por ele adotado; haveria uma certa indeterminago do conteddo pela forma, dos “objets” pelo “sentimento subjetivo”, e nao a firme definigdo proporcionada pela dialética Novamente, ambos seriam apenas diversos € ndo opostos. A “reflexaio pensante”, dessa maneira, procura um métado aplicdvel “de igual modo” a qualquer assunto, numa “elegante indiferenga face & objetividade (que] pode encontrar-se principalmente entre os franceses & ingleses, os quais lhe dio o nome de historiografia filoséfica” (RH, p. 50 [S2]) — referéncia clara aos dois grandes centros irradiadores do Huminismo, mas que também vateria para Kant, cujo pensamento foi muitas vezes denominado por Hegel “Filosofia da reflextio” A objecdo hegeliana, contudo, ndo decorre da simples aplicagao de uma outra Iégica a um mesmo problema, até porque este seria um procedimento aprioristico, condendvel do seu prdprio ponto de vista, GRESPAN, Jorge. Hegel e 0 hestoricismo Ela remete, antes, a uma questo relativaa propria disciplina da histéria, pois a “indiferenga’ iluminista impediria o conhecimento do seu objeto especifico. No caso da histéria, € preciso apreender ndo o inva- ridvel, mas as mudangas; ¢ preciso “estabelecer diferengas”, pois 0 espirito humano tem um “interesse [que] é, de forma substancial ¢ determinada, uma determinada religido, ciéneia, arte” (RH, p. 50-51 [521). Se a historia se define pelo curso das transformagoes do ser humano de sua sociabilidade, o que nela imteressa ¢ justamente o particular nos varios modos de ser. Mais que a diferenga em si mesma, importa analisar a diferenciacio, pela qual cada “religio, cigncia, arte” se “determinam” em contetidos tinicos. A incapacidade de a “clegante indiferenga” conceber a diferenciagaio, pois esta preocupada s6 em “fixar o universal”, condena-aa uma visti superficial da histériae, portanto, a ser abandonada pelos historiadores de oficio. E porque o ser humano nao “é” de maneira imutdvel, no sentido de ter uma “natureza”, mas se constitui historica- mente, que a filosofia hegeliana rejeita as dicotomias da “reflexao pen- sante” e as define pela dialética em que elas se determinam por sua oposigao. A propria “natureza” do homem se wansforma na histéria portanto. Ou melhor, a“natureza’’ ou “esséncia” do homem ¢ justamente 0 transformar-se, e no “algo de permanente”. B essa historicidade imanente ao ser humano que deve ser apreendida c exposta e néo tanto os acontecimentos acidentais, contingentes ao desenvolvimento da humanidade. Como “a contingéncia é 0 mesmo que a necessidade externa, isto é, uma necessidade que remonta a causas que sZo apenas circunstancias exteriores”, ela deve ser “removida” (RF, p. 32 [29)) Entenda-se bem: Hegel ndo afirma que acidentes nao tém importancia na determinagaio do curso dos acontecimentas. Mas é sintomatico que ele defina a “contingéncia” como “necessidade externa”, ou seja, coma uma “necessidade” to imperiosa quanto a do desdobramento interno da “esséneia”, mas que parece meramente casual por ser “externa” a essa “esséncia”. Acidentes e fatores naturais, bem como invasdes on emigragées inesperadas de povos estrangeiros, por exemplo, so “cireunstancias exteriores” que influem na historia de um povo. Essa influéneia sé é relevante, porém, na medida em que age conforme as tendéncias internas da vida do povo em consideragio, reforgando, mitigando ou desviando essas tendéncias de alguma maneira; em outras Historia Revista, 7 (1/2) : $5-78, jandez. 2002 59 palavras, na medida em que ela é interiorizada. Esse € 0 sentido da “remogaio" da contingéncia pela filosofia da hist6ria. ‘Também nesse ponto, Hegel acompanha o movimento historicista que se formava, ao criticar a atitude intelectual predominante do século XVIII =mas nao s6 dele! — que reduzia a histéria a mudangas superficiais na vida da humanidade, ao exame dos acidentes e das “cireunstancias exteriores”, que nada alterariam da “natureza” profunda e imutavel do homem, esta, sim, objeto da filosofia. Hegel € tio critico dessa posiciio quanto 0 historicismo. Ele também refuta a “reflexdo pensante” que contrapée a contingéncia, como tema da histétia, & necessidade, como objeto da filosofia; yue distingue a modificago, superficial e propria ao campo do hist6rico, do perene, nobre matéria da filosofia. A partirdagui, contudo, Hegel diverge do historicismo em algumas questdes fundamentais. Ecerto que cle chega quase a formular a posterior exigéncia de Ranke, sobre conceber a historia “como ela foi”,* ao dizer que “devemos tomar a hist6ria como ela é; temos de proceder de modo hisiérico, empirico” (RH, p. 33 [30]),° destacando assim a importancia do objeto, do contetdo da histéria, diante da “reflexdo” iluminista que priorizava a “natureza” humana como generalidade definida subjctiva- mente, “abstratamente”. Mas ele continua: Como primeira condigao poderiamos formular a de conceber fielmente 0 histérico; s6 que em expressdes to gerais como ficlmente” e “conceber” reside a ambighidade. Também 0 historiador corrente ¢ mediano, que intenta e pretende conduzir- se apenas a mancira de inventariante, entregando-se somente 20 que € dado, nio € passive no seu pensar; trax consigo as suas categorias e vé através delas o existente. (RH, p. 33(31]} Esta passagem crucial revela no historicismo 0 mesmo erro que ele censurava no Thuminismo, a saber, a concepgio de uma dicotomia entre sujeito e objeto do conhecimento, Examinemos com cuidado essa importante questi. Hluminismo priorizava, por um lado, a dimenstio subjetiva sobre a qual se assentaria a universalidade humana, “o sentimento” idéntico nas varias crengas ou artes, para além da diversidade de seus “objetos” Em sintonia, a “reflexdo pensame” devia operar ume “abstragZo” das particularidades histéricas dos povos, encontrando esse elemento comum 60 GRESPAN, Jorge. Hegel e 0 hostovicism a todos cles, concebido como a “natureza” humana, Entretanto, essa operaciio mesma era considerada capaz de proporcionar uma repre- sentacio adequada ao seu objeto, no sentido de corresponder ao seu contetido; ela seria, portanto, “objetiva”. E claro que, como fendmeno complexo, o Huminismo também permitiv o desenvolvimento de um certo ceticismo, que problematizava essa pretensiio de vbjetividade do saber, Mas a sua vertente principal era otimista quanto as possibilidades de 0 método correto conduzir & correspondéncia entre o enunciado subjetivo e seu objeto, E dessa vertente, reforgada pelo sucesso da “ciéneia” do século XIX, que se desenvolverd historicismo mais tarde. O método deveria, de acordo coma exigéncia de objetividade do saber, neutralizar o sujeito do conhecimento, fazendo-o deixar de lado suas préprias condi- es, para refletir a verdade do tema estudado. Como vimos, Hegel concorda parcial mente com essa exigéncia, a0 propor “tomar a histéria como ela é” ¢ ao recomendar, em seguida, que “nao devemos decerto acorrer com reflexdes unilaterais, pois Gesfiguram a hist6ria e brota de falsas opinides subjetivas. A filosofia, porém, nada tem a ver com elas” (RH, p. 34 [32]). Se 0 Huminismo e 0 historicismo esto certos em rejeitar essa subjetividade “unilateral”, erram emestender essa concepgaio estrita do sujeito a todo 0 dominio de signi- ficados que ele possa ter. O que Hegel considera como “filosofia’ correta no pode coneeher a existéncia prévia do sujeito, independente de seu objeto, mas sim sua mitua determinagdo. Assim, necessariamente hé uma relagao entre ambos que néio pode desaparecer com a pretendida neutralizagao do sujeito, Mantendo esse prinefpio de neutralizag0, ao contrario, dele decorre uma definigado do “conceber” como reflexo do objeto na repre- sentacio, E mais: um reflexo “fiel”, no qual a propria representagao nada apresentaria senao o seu objeto “tal como cle é”, ou “foi”, no caso dahistéria. Maso significado do“sujeito” nao se esgota na unilateralicade possivel das “falsas opinides”: cle tamhém é constitutdo pelo objeto, deter- minando-se diferentemente & medida que varia sua relacao com este Ultimo. Dai Hegel afirmar que o “conceber" ¢ 0 “fielmente” siio expres- ses problematicas ¢ “ambiguas”, se deixadas no nivel de “generalidade’ préprios a abordagem historicista. Bsta abandona, junto com a universa- lidade abstrata da “natureza” humana, também a subjetividade do conhe- cer. E preciso entiio resolver tal “ambigitidude”, distinguindo as duas Historia Revista, 7 (1/2 1 55-78, janfdea. 2002 61 dimensdes do “sujeito”: deve-se recusar a da existéncia real de uma “natureza” subjetivamente construida, sem negar, com isso e por isso, a constituigao do sujeito do conhecimento pelo préprio ato de conhecer. Em outras palavras, erro iluminista seria imaginar que, se 0 historiador deixasse de lado as particularidades de sua propria condigtio hist6rica, ele conseguiria encontrar como verdadeiro objeto o ser humano universal, abstrato, Este tiltimo nao existe, pelo simples fato de ser, justamente, abstrato. O homem € mutdvel, hist6rico; mas © € tanto o homem, como objeto da hist6ria, quanto o proprio historiador, Para que a historicidade do primeiro seja alcangada, a do segundo também tem de seraceita, isto 6, o historiador tem de saber-se hist6rico, determinado na sua particularidade subjetiva. Este seria o erro propriamente do histori- cismo, Donde & objego hegeliana ao historiador “que intenta e pretende conduzir-se apenas 4 maneira de inventariante, entregando-se somente 0 gue ¢ dado” — ou seja, aquele que segue # exigéncia historicista da objetividade do saber -, pois ele também “nao € passivo no seu pensar” Ele sempre ¢ um sujeito ativo, determinando seu objeto, porque “traz, consigoas suas categorias e vé através delas oexistente”, Ao no admitir essa sua condigao é que ele se engana sobre o seu saber. Consegilentemente, Hegel adverte: [...] entre outras coisas, também no devemos deixar-nos seduzir pelos historiadores de oficio; com efeito, pelo menos entre os historindores alemaes, inclusive os que posse uma grande antoridade ¢ se ufanam do chamado estudo das fontes, ha os que fazem aquilo que censuram aos fildsofos, a saber, fazem na histGria fieges aprionisticas.” (RH, p. 33 [30-31)). Inconsciente da interferdncia inevitavel e imprescindivel de sua subjetividade no ato de reconstituir 2 hist6ria, 0 historiador “de oficio”, ‘corrente ¢ mediano”, que se pretende mero “inventariante” neutro dos acontecimentos, acaba por incorrer exatamente no erro que quer evitar com seu método: imiscui “ficgdes aprioristicas”, isto ¢, “Falsas opinides unilaterais” que “desfigurama hist6ria”, E ¢ isso mesmo que ele “censura a0 filésofo”. Uma das principais caracteristicas do historicismo, de fato, a critica as concepedes teleoldgicas ca histéria, conforme as quais esta 62 GRESPAN, Jorge. Hegel ¢ © hostoricismo transcorte cumprindo um sentido gue poderia ser apreendido a priori pelo historiador. Se este se esquecer de si mesmo, porém, representando seu objeto apenas como ele se deixa captar pelos documentos, proce- dendo, portanto, empiricamente, nao serd possivel vislumbrar nenhum sentido atuando & maneira de causa final, Nos préprios acontecimentos tomados em sua singularidade, pensa o historivista tipico, nada se encontra sendo eles mesmos ¢, no maximo, um encadeamento funcionando como causa eficiente. Uluapassar esse limite seria entrar no terreno da metafisica, regiao nebulosa situada além da realidade acesstvel ao conhecimento empirico. Por isso os historiadores do século XIX foram tao hostis a reflexdes filosdficas sobre a histéria, cujo fulero era justamente a teleologia dos fatos, opondo-se com especial veeméneia a obra de Hegel, em que esse conceito é crucial. A resposta dele, contida ja na iltima passagem citada, é que, devido a inevitavel relagio entre sujeito e objeto, que define 6 saber em geral, também o historiador “inventariante” introduz seus pressupostos tedricos no material que investiga, projeta suas expectativas quanto ao sentido dos acontecimentos como iélos sub-repticio. $6 que niio o faz conscientemente, e daf incorre em auténtico subjetivismo. Ou seja, a atitude de tal historiador se baseia naquela concepgio do conhecimento marcada pela dicotomia em que 0 sujeito é apenas sujeito, nao objeto, ¢ este € s6 objeto, ¢ nao também sujeito. E assim como desconhece ser cele mesmo produto histérico objetivo, ignora também que uma sociedade no 6 simples coisa, mas possui movimento e consciéneia, articulando ela mesma suas finalidades prdprias; ele ndo propée seu objeto, portanto, como sujeito. E nessa subjetividade objetiva, entdo, chamada por Hegel de “espirito”, que deve ser buscado © félos teal da histéria de cada povo. O conceito de “espitito” se define nfo 36 pela contraposig&o & “natureza”, como na tradig&o romantica e idealista em geral, mas também pela capacidade humana de continuamente transformar-se: 0 “espfrito” 6 autoconsciéncia e autodeterminacio; ou melhor, € 0 determinar-se conforme a consciéncia que se tenha de si, e o saber a si mesmo de acordo com o que se produz na realidade.* Nesse jogo vai emergindo uma finalicade espee‘fica que constitui um povo em sua diferenca para com outros, ¢ que © historiador nao pode deixar de considerar como principio e fim do desenvolvimento do pavo em questio, Se ele recusar aexisténcia de toda c qualquer finalicade na histéria por receio de “fazer HistOria Revista, 7 (1/2) : $5-78, jandilez. 2002 63 fiegdes apriorfsticas”, desprezaré inclusive o iélos real e reduzird sua histdria a um amontoado de fatos sem sentido. O defeito dessa critica a filosofia da historia consistiria, desse modo, em ser feita em nome do empirismo, que s6 consegue apreender ‘0s acontecimentos cm sua singularidade, sem penetrar além deles para captar a relacio, a sintese efetiva dos eventos, o principio operatério que hes confere significado, Se por filosofia entendermos a reflexaio sobre o permanente, 4 maneira do Iluminismo, entao evidentemente ela no tem nada a ver com a histéria, e a objegao historicista sera correta. Mas nao é assim que Hegel define a filosofia, como vimos, abandonando: também o horizonte iluminista e sua metafisica, Para ele, em contrapartida, o que a flosofia entende par conceito 6 algo de diferente; aqui conceber € a atividade do proprio conceito, ¢ no a concorténcia cle matéria ¢ forma, que provém de lados diversos. [0 conceito na filosoiia] toms essencialmente de si mesmo a sua matéria e contetido, [..,] 0 sucedido e a independéncia do conceito encontram-se numa oposigio reeiproca. (RH, p. 28 [26]) Ao inves de dividiras tarefas de tal modo que a histéria coubesse investigar sé a “matéria”, o “contetido” dos acontecimentos, ea filosofia se limitasse & “forma” das categorias cognitivas, pelas quais se estabe- lece a conexio entre eles, Hegel propde uma perspectiva dialética em que ambas as dimensdes se definem por sua “oposigiio recfproca”. A “forma” das categorias, portanto, se determina de acordo com o “con- tetido" do “sucedido” historicumente, ¢ este, inversamente, pela “forma” Filosofia ¢ hist6ria se distinguem ainda, mas ndo como “Iados diversos”, justapostos, ¢ sim numa complementaridade negativa. A finalidade, nesse sentido, nao é simples categoria lgica “independente” dos eventos reais; ela é forma do préprio real, do contetide dos fatos em seu desenvol- vimento, que vai desdobrando um sentido, revelando um félos efetivo. Em si mesma, a diseiplina da hist6ria se restringiria & mera existéncia dos acontecimentos. Estes, concebidos como realizacao do seu sentido imanente, no entanto, definem-se como efetividade, isto é, resultado de um pracesso teleolégico dle autodeterminagiio, Nesses dois niveis de apreensao da realidade, distinedo fundamental no pensamento hegeliano, configura-se 0 campo da filosofia da histéria propriamente dita, Em outras palavras, a passagem do nivel da existéncia imediata, 64 GRESPAN, Jorge. Hege! e 0 hostoricisms simplesmente dada ao registro hist6rico, para o da efetividade, em que 0 real é efeito, produto de suas proprias tendéncias evolutivas, implica uma reflexdo que ultrapassa necessariamente o marco daquele registro. Aqui é importante recordarmos que para a filosofia da hist6ria, conforme a definicio de Hegel, importa descobrir a historicidade constitutiva do homem, interessa muito mais a diferenciagio do que a constatagio da diferenga em si mesma, O prineipio da diferenciagao é justamente o que explica o surgimento da diferenga, matéria da histéria, pelo qual diferente no apenas existe, mas € efeito da atuacdo do prinespio. Bessa atuacdo, essa relaciio entre 0 “conceito” e o “sucedido”, gue a filosofia da historia hegeliana se dispOe a esclarecer. Mas para pensar tal relagio, isto é, onexo entre historicidade e os acontecimentos, entre a diferenciagao e a diferenea, é preciso superar as duslidades caracterfsticas da filosofia da histéria iluminista. Mais do que objeto existente, 0 “sucedido” & também a realizagao de um “conceito”, 6 a alividade de um sujeito, ¢ a historia € esse proceso que se completa com a efetividade plena do télos. Aqui a superaciio das dicotomias sujeito e objeto, efetividade e existéncia, ocorte ao se tentar explicar a propria Giferenga entre ambos os termos, ¢ niio aceité-los como simplesmente dados. Eles também sio diferentes como pélos de uma relac0 que os unifica e faz de sua diferenga uma oposigao reofproca: por serem opostos, eles tanto se diferencia como se interpenctram, de modo que o sujeito também existe objetivamente ¢ 0 objeto também se tornaefetivo a partir Ge sua atuacao subjetiva. A abjetividade do sujeito significa que o prine‘pio operante das modificagdes hist6ricas € (Go real quanto clas mesmas, 20 passo que a subjetividade do objeto implica que o real nfio & “matéria jnerte e passiva, mas “contetido” vivo, que determina sua existéncia em formas especificas que forja para si. Tal € adefinigdo hegeliana do “espfrito” dos povos, como vimos Em vez de um “sentimento [...] abstrafdo” dos “objetos” »speefficos da crenga ou expresso artistica, uma “natureza” profunda, mas inefetiva, conforme o concebe o jusnaturaiismo iluminista, o “universal” & 0 que existe nas diferengas como principio diferenciador. Ele nao pode ser uma esséncia indiferente aos sous modos de existéncia, como se somente estivesse num nivel diverso destes, mas deles difere como oposto. constituindo-os necessatiamente como 0 seu negativo. Ele s6 pode existit de modo determinado, entao, como forga autodeterminadora. Nas Historia Revista, 7 (1/2) : 53-78, janidez. 2002 65 palayras de Hegel, “o universal deve ingressar na realidade efetiva mediante o particular” (RH, p. 76 [85]). A diferenciagao dos modos de existéncia, a modificagiio hist6rica, é expressdio de essa necessidade do universal determinar-se, para ser. Assim, também a universalidade ¢ a particularidade esto numa relagdo dialética, como opostos que se dife- reneiam um do outro, um pelo outro: em todo elemento universal existente hd uma determinagio particular, e em qualquer particularidade reside 0 universal como prineipio transformador, de auto-superagaio. Lembremos que a hist6ria no se interessa pelas generalidades vazias, mas pelo que tem uma “forma substancial ¢ determinada; uma determinada religigo, cigncia, arte”. ‘Dessa maneira, & filosofia da histéria cabe enfim esclarecer essa aulodeterminagao que define 0 “espirito”, abandonando as perspectivas que separam os dois termos num dualismo ¢ em seguida optam unila- teralmente por um deles. E 6 caso do Tuminismo, por um Iado, cuja “teflexdio pensante” busca 0 universal “abstraindo-o” das condigdes particulares. E também € 0 caso inverso do Romantismo, que, a0 enfatizar 0 indivfduo em sua particularidade, mantém a separacao dicotémica que se propunha a ultrapassar. Critico da universalidade abstrata do Tlumi- nismo, o romantico rejeita toda a universalidade e define 0 individuo ‘como mera particularidade isolada dos demais, privilegiado em seu cardter de tinico, em seus direitos de exce¢do as regras sociais. Mas, com isso, sua prépria excepcionalidade fica inexplicada; ou seja, o prinefpio pelo gual se tomou diferente € deixado de lado, pois pertence ao terreno do universal que se desprezou. No fundo, temos aqui um individuo to distinto €, portanto, tao abstrato, quanto o universal do Iluminismo.? De qualquer forma, chegamos agora a uma Gltima caracteristica fundamental do historicisimo, tributirio da énfase particularista de sua época romantica: a recusa das grandes filosofias da historia 0 conduz a critica das chamadas leis gerais, do sentido teleolégico dos fatos, ¢ 4 concentagao no individual. Sobre esse ponto, como veremos a seguir, Hegel também tem algo a dizer, A astticia da razio na historia Examinamos até aqui algumas caracterfsticas do historicismo paralelamente & sua eritica por Hegel — saber, a oposigo ao jusnatura- 66 GRESPAN, Jonge. Hegel ¢ 0 hostoricismo Jismo, a discussio da teleologiae da filosofia da historia, Faltou considerar ainda uma das mais importantes, até por estar na base das demais. que € a€nfase no individual, na diferenca, na singularidade do Gnico, como elemento distintivo tanto dos fatos quanto dos agentes histéricos. A ja analisada relacio entre o particular e 0 universal vale para entender a posigao hegeliana sobre a singularidade dos fatos, que tem seu sentido determinado somente no quadro dessa relacao e nd em sua existéncia isolada. Ea realizagdo dos principios de um povo cumprindo sua finalidade que confere significado aos acontecimentos: [..]a sua agdo [do espirito de um povo} consiste em fazer de si uum mundo real [...}. a st religifio, 0 seu cullo, os seus usos, os seus costumes, asus arte, a sua constituigto, as suas leis politicas, todo o ambito das suas instituicbes, os seus acontecimentos ¢ feitas, eis asua obra." (RH, p. 62 (671) O “espirito” é um sujeito que se objetiva, “fazendo de si um mundo real”. B dentre as vrias formas sociais e “instituigdes” que assim, o realizam numa “obra”, figuram os “acontecimentos feitos” que sio tao “seus”, to marcados por sua particularidade, quanto aquelas. Nao se pode, ento, simplesmente registré-los como se fossem iguais a todos 08 outros, ou compreensiveis por si mesmos, independentemente do “espirito” cujas disposigdes especfficas eles executam. Cada povo teria a sua historia propria, inclusive no plano dos fatos, até certo ponto irredutiveis aos dos demais povos. A ser correta essa interpretagio, a “universalidade” da histéria na concepsio hegeliana esté distante de uma homogeneidade do acontecer de todas as épocas. Encretanto, 0 mais interessante nesse problema da singukaridade se refere & atuagio dos individuos, essencial pelo menos para 0 histo- ricismo do século XIX. Do mesmo modo que, no caso da teleologia, Hegel foi criticado por ter feito os individuos se dissolverem na coletividade, como se esta pars quais eles estivessem completamente submetidos. E, realmente, lemos nas aulas hegelianas que “os individuos desaparecem perante o substancial universal, ¢ este forma os individuos de que necessita para o seu fim. Mas os individuos nao impedem que acontega © que tem de acontecer” (RH, p. 57 (60). iiss suas prdprias leis de movimento as. Hisiéria Revista, 7 (1/2) + 85-78, jan /éex, 2002 67 Este ¢, contudo, apenas um aspecto da relagdo, que tem outros aspectos distintos © chega até cles através de mediagées dialéticas. Consideremos um pouco mais de perto a questéo. Em primeiro lugar, devemos recordar a proposigao de que “o universal tem de entrar na efetividade mediante o particular”, pois sendo ele seria mera generalidade abstrata, separada dos individuos reais. O existente sempre tem uma forma determinada, de modo que, para Hegel, passar a existir implica determinar-se. Mais exatament [1 08 fins, 05 prinefpios, existem nos nossos pentsamentos $6 na intengiio interna ou também nos livros, mas ainda nai realidade efetiva; ou o que s6 em si constitu: urna possibitidade, uma poténcia, mas nfo passou ainda da sua interioridade a existéncia, Tem de ocorrer um segundo momento para a sua realidade efetiva, ¢ tal momento € a atuagao, a realizagao, cujo principio € a vontade, a atividade dos homens no mundo em geral."" (RH, p. 74181). io na A “atuagio” é justamente o colocar em “ato” a disposigao constitutiva de um povo, definida inicialmente como simples “poténcia”. Como tal, ela esté numa “interioridade” que necesita da “vontade” e da “atividade” dos indivfduos, membros desse povo, para que possa existir “realidade efetiva”. Se nao for objeto da“vontade” deles, coincidindo com seus interesses particulares e daf sendo posto em pratica, o prinefpio do povo permanecer como “intengao interna’, como letra morta, como ideal inefetivo Assim, j4 se configura um papel fundamental para a atuagaio dos individuos, iinico meio possivel para que um povo exista, para que a histéria espectfica desse povo transcorra como processo de realizagéio os seus fins determinados. Nas ages dos membros de um povo, as leis edeveres siio executados, as crengas ¢ valores adquirem vida, os conhe- cimentos ¢ a sensibilidade se traduzem em obras. Conforme Hegel, “a atividade dos individuos consiste em tomar parte na obra comum ¢ ajudar a ptoduzi-la nas suas espécies particulares; tal € a conservacao da vida Gtica” (RH, p. 85 196]). O que ele chama de “vida ética” aqui corresponde 0 que acima foi referido como leis, usos e costumes, religiio, valores, arte etc., que formam o solo espiritual em que consiste um povo. Mas. 0 contrétio do que pode indicar o termo “conservagiio”, ela nao se na 68 GRESPAN, Jorge. Hegel ¢ 0 hostoricisno mantém por inércia, nem por qualquer tipo de continuidade correndo numa esfere puramente coletiva, mas por ser reposta em cada aco individual que a reitera. Se a partir de um certo momento cessasse essa reiterago, a tradi¢ao “ética” simplesmente se intetromperia, talvez deixando de existir. E claro que, para que ela permanega, todas as socie- dades criam suas instituigdes educecionais, o que no invalida, porém, a importincia do ato deliberado de rep6-La. No entanto, a atuagiio dos individuas é “conservadora”, no sentido de que eles se mantém dentro dos pardmetros espirituais do seu povo e se limitam a perseguir uma “obra comum” ~ 2 consecugio das suas finalidades “universais” -, nela somente “tomando parte”. Aqui Hegel segue a ligfo aristotélica, para quem o homem é um “animal politico”, ao afirmar que L.-J aconsciéncia de um povo [...] € 0 substancial do espirito do povo, mesmo quando os indiyidnos niio o sabem, mas ai surge constituido um pressuposto. F como uma necessidade; o indivi- duo educa-se nesta atmosfera, ndo sabe de nenhuma outra. [..] © individuo existe nesta substincia. (RH, p. 56-57 [59)).. Ou seja, os membros de um povo “necessitam” dele como de uma “substancia’”, determinando todo 0 terreno sobre o qual eles podem agire ser alguma coisa, Nao se pode conceber 0 individuo isolado, como faz o liberalismo, para imaginar a constituigo social como algo posterior, resultado de um pacto. Esta ¢ uma perspectiva jusnaturalista, com a qual Hegel rompe, invocando a precedéncia da soviedade perante os indivicuos, ja que todo nao é a mera soma das partes. Por isso, talvez a propria individuagao seja um fendmeno definido pela “vida ética” espe- cffica em que ocorre, fazendo variar o significado mesmo de “individuo” de um contexto “espiritual” para outro De qualquer modo, a “substncia” se impde aos individuos que a cla se conformam, sem alternativa; ela os cireunda e vivifica, como uma “atmosfera” imprescindivel. A “necessidade” é aqui to imperiosa que (0s membros de um pavo “n‘io sabem de nenhuma outra”, pois os prinefpios de qualquer outro povo thes parecem carentes de sentido. A educagao é © mecanismo mencionado por Hegel como capaz de reproduzir tal “atmosfera”, condicionando a reiteraeao individual das normas e valores, a ponto de poder dispensar a conscigncia desse ato, Por ele, os individuos Hiscéria Revista, 7 (1/2) 55-78, jan Alex. 2002 69 apenas realizam as disposig&es essenciais da “subst4ncia” em que vivem, uma vez. que cla também precisa dessa atividade para passar a efeti- vidade. E 0 seu papel se restringe, portanto, a fazer valer esse “pressu- posto”, 0 espirito de seu povo, o que sem dtivida é muito pouco. Dentro dessa rest , poderiamos pensar que o individuo hegeliano esté mesmo mergulhado numa totalidade que 0 subordina, exatamente de acordo com a objegao historicista, $6 que ele ja nao desaparece nessa totalidade, pois ela propria sequer existe sem a sua atividade individual. Mais ainda hé casos especiais: [...] face a este universal, que cada vm deve manifestar mediante uma atividade pela qual se conserva o todo da eticidade, existe, porém, um segundo universal, que se expressa na grande histéria e que origina a dificuldade de se conduzir em consonancia com a eticidade. (RH. p.85[96]) Além da simples “conservagao” dos prineipios de um povo mediante sua realizacio, existe também a possibilidade de ocorrer ‘crepancias entre a “eticidade” ¢ 0 comportamento de individuos que cém “dificuldade de se conduzir” pelos pardmetros dela. Especialmente nos momentos crueiais da vida de um povo, na “grande histéria” que ultrapassa a “conservagiio” cotidiana, tais indivéduos aparecem propondo mudangas radieais na “eticidade” tradicional, transgredindo-a, Sao, por isso, geralmente incompreendidos e perseguidos, pois suas agdes escapam dos padrdes de reconhecimento aceitos pelos demais membros do seu povo. Estariam pelo menos eles, assim, livres da submissao & totalidade espiritual que aprisiona os “conservadores”? De certa forma, sim. Todavia, cles também desempenham um papel em “um segundo universal”, o da" grande histéria”. Um momento histérico crucial impée deveres e valores mais abrangentes, mai “universais” do que os que norteavam a existéncia do povo até entio, Nas palavras de Hegel Jos grandes individuos na hist6ria universal séo, pois, os que apreendem este tmniversal superior ¢ 0 convertem em fim seu: so 1s que realizam o fim conforme ao conceito superior do espicito. Devem, nesta medida, chamar-se herdis, [...] A sua justificagio ndo reside na sittrago existente, mas vo buscé-la a uma outra 70 GRESPAN, Jonze. Hegel ¢ 0 hostoricismo fonte. Esta & o espitito oculto, que bate & porta do presente, 0 espirito ainda subterrnco, que ainda odo chegou a um ser determinado atual ¢ quer surgir, 0 espirito para o gual o mundo presente € apenas uma casea que contém em si um outro cere diferente do que perience a casca (RH, p. 86 [97)}. Essa riqussima passagem sintetiza aspectos fundamentais da con- cepefio hegeliana da historia, devendo ser analisada com algum detalhe. O descompromisso dos “grandes homens” para com a ordem espiritual em que vivem nao implica a rojeigio de qualquer outa. Diante da crise em que se envontra a “substincia” espiritual do seu tempo, € preciso buscar as solugdes em “uma outra fonte”, que ainda nfo é vistvel para 0 homem mediano, simples “conservador” do existente, pois ela apenas latente, uma “poténcia” que precisa justamente dla atuaciio deles para alcangar a efetividade. Dafa metifora do “espfrito subterraneo”, mais tarde inspiradora de outros autores, como o que tem de emergir; € também a da “casea” ¢ do “cere”, carogo ou semente escondida no interior do fruto ¢ que s6 vird & luz com a destruigéo deste tiltimo, O “cerne” é ainda s6 um “conceito”, mas jé de um “universal superior”, vindouro, que constituiré um novo pove quando “chegar a um ser deter- minado atual”, efetivo. A grandeza dos individuos que realizar tal passa- ‘gem este! om ter “apreendido este universal superior” invisivel em sew tempo, opondo-se ao “mundo presente” Apesar de eles, aparentemente, lirarem de si mesmos o universal que realizaram, este, porém, no foi por eles inventado [..] Porque 0 vio buscar no fntimo, em uma Fonte que antes niio existia, parecem tiré-lo simplesmente de si mesmos; ¢ as novas circunstincias do mundo, 05 feitos que levam a cabo, aparecem como produtos seus, como interesse & obra sua, Mas [...] sabem o que é a verdade do seu mundo, da Epoca. (RH, p.87 (98) ua Por um lado, os “grandes individuos” de fato encontram no sen “intimo”, na particularidade dos seus fins ¢ interesses, as novas dispos ges espirituais com as quais transgridem x “situagio existente” e propdem outras, O momento logico do pélo particular é tao importante quanto 0 do universal, sem 0 que nfo haveria aqui dialética alguma. Mas a Histéria Revista, 7 (1/2) + $5-78, janJdez, 2002 i particularidade é 0 momento do outro pélo, ou seja, € 0 oposto dele, €0 negativo complementar, mediante qual a universalidade consegue vir existéncia, Daf a completa autonomia do individuo nao passar de “aparéneia, embora seja forma imprescindfvel de realizagto do processo como um todo. A “fonte” inspiradora desse individuo revalucionério & inacess(vel aos demais, reforgando sua independéncia espiritual que, até certo ponto, é real. Por essa ambigtiidade é que eles “devem chamar-se herdis”, expresso em que ecoa o mito grego antigo: 0 heréi é 0 Semideus, 0 ser hibrido em quem converge a dupla natureza de particular da mortalidade =e de universal — do ser imortal. Como simples humano, ele tem fins ¢ interesses prdprivs, que associa ao “universal que realiza”; mas, na medida em que dat surge o universal, ele se vincula ao “conceito superior do espirito”, assumindo uma dimensio eterna, divina. Seguindo o destino dos herdis miticos, porém, o lado humano € castigado pelo divino, ¢ os “grandes individuos” geralmente vivem tragédias similares as de Prometeu ou Sisifo, condenados a sentir na carne da sua particularidade um sofrimento sempre repetido pelo lado imortal. De modo semelhante, Hegel interpreta a Paixdo de Cristo, reelaborando essas imagens da tradiciio cultural do Ocidente, para apresentar dialeticamente o hibridismo da condigo dos “heréis” hist6ricos. A incompreensdo e a perseguigaio que eles sofrem por parte de seus contemporineos, incapazes de ver © que eles j4 véem, ¢ a eventual derrota de seus planos particulares nao conseguem destruir a universalidade de sua obra, evidente s6 mais tarde, Este é precisamente o conceito de “astiicia da razia”, que arre- mata toda essa passagem das prelegdes hegelianas. O universal da “grande histéria” precisa nao s6 da atuagdo desses homens como também do seu sacrificio, para que a morte da particularidade realee a vida infinita do conceito. Pois “justamente na luta, na rufna do particular, € que se produz o universal"? (RH, p. 92 [105]). Este nao €, portanto, algo que existia antes © que permaneceré para além da morte dos individuos, como se apenas estivesse num nivel mais elevado ¢ inatingfvel, numa esfera abstrata Mais que isso, o universal s6 se afirma pela negagaio do particular; ele é “produto” dessa negagfo, dessa “rufna”. E quando sucumbe 0 “grande homem”, quando também os ideais do seu povo perdem a forga, que aparece o universal como transigao para um “espirito superior”, um ideal mais abrangente. 72 Hegel e o hostoricismo O particular tem, assim, um papel ainda mais importante nesse movimento do que na jéexaminada realizagio “conservadora” do espirito de um povo. Inclusive a transigio de uma determinagao espiritual para outra s6 pode ocorrer mediante sua atuago, langando novas idéias e se sacrificando por clas, até que clas obtenham gradativamente a adesao de seus contempordneos e venham a se converter em novo principio orientador e finalidade, Mas, apesar disso, 0 que a “astiicia da razao” evidencia é que o individuo acaba se sacrificando pelo universal, que a totalidade se afirma fazendo sucumbir o particular, A agZo e os proprios interesses deste diltimo s6 contam para a hist6ria na medida em que so instrumentos para a realizago de um fim maior, que os transcende e pelo qual eles devem morrer. Parece que, apesar dos inegaveis avangos e dos matizes dialéticos, a posigdio de Hegel nao é muito diferente da que [he atribui a critica historicista Devemos atentar para o fato, no entanto, de que o individuo também satisfez seu proprio interesse particular quando realizou 0 universal. E aqui pode ocorrer um mal-entendido, Essa satisfagiio nao quer dizer que, de algum modo, a vontade individual tenha de se render um imperativo mais alto, adotando-o como se fosse determinado por ela mesma, Nao € desse sactificio, até da vontade, que depende © universal, E preciso que um interesse universal e urn particular, distintos vm do outro, coincidentemente possam ser realizados através da mesma ago do individu. Bste quase nunca visa diretamente & realizagio do universal, mas o faz ao buscar satisfazer suas finalidades particulares, Isto é 0 Hegel chama de “direito infinito do sujeito”,”* sempre presente de alguma forma na historia, mas s6 convertido em principio orientador na época moderna, presidida pelo espirito critien ¢ por uma forma burguesa de individuagio, baseada na propriedade e nos interesses privados, Dai a énfase do texto: “nada acontece, nada se leva a cabo sem que os individuos que em tal atuam se satisfagam também a si mesmios ~ a si: so individuos particulares” (RH, p. 75 [82]). Portanto, a0 sacrificar-se na realizagao do universal, 08 “herdis” esto também, € principalmente, se sacrificando por si mesmos, o que em nada diminui o mérito e a relevncia de sua agao na histéria, ‘Além disso, ao considerar o aspecto negativo desse sacrificio, no qual os “grandes homens” sao usados ¢ depois abandonados pela Hist6ria Revista, 7 (1/2) : 53-78, jan dex. 2002 73 universalidade, Hegel problematiza a relagao instrumental af presente. Se os individuos fossem simples meios para fins “superiores”, realmente estariam subordinados a totalidades tiranicas. Mas a propria légica dessa instrumentalizagdo é mais complexa do que isso: [..-] quando falamos de um meio, representamo-lo primeiramente com exterior ao fim, que nZo tem nele parte alguma, Na realidade, porém, jé as coisas naturais em geral, mesmo os seres inanimados mais comuns que so usados como meios, devem ser de indole tal que correspondam ao fim, tenham em si algo que Ihes seja comum como fim, (RH, p.93 [106-107)) Aqui de novo, meio ¢ fim nao podem ser considerados termos dicotémicos, “exteriores” mutuamente, como se um ndo tivesse no outro “parte alguma”. Ha uma “correspondéncia” entre eles, uma relagio que os diferencia e une, presente na propria idéia de adequacdo dos meios aos fins. Eles esto, desse modo, em oposigiio. Por isso, deve-se coneluir, prosseguc 0 texto anterior, que os homens [...] nunca se comportam coma meios para o fim da azo; nilo s6 satisfazem, ao mesmo tempo com este ¢ por ocasiao ele, também os fins de sua particularidade [...| mas partieipam no proprio fim da razio e sao, precisamente por isso, fins em si. Na dialética entre meios c fins, os fins so também meios ¢ vice-versa; © que significa, no caso da histéria, muito mais do que no dos “seres inanimados mais comuns”, que os instrumentos do universal se clevam & condigo de finalidade, O “fim em si” é0 homem, e nZio uma disposigao abstrata qualquer concebida como universal, pois o homem é também 0 fim de si mesmo: ele se faz meio para chegar a si como meta, numa mediagao consigo que corresponde aos processos da autocons- ncja ¢ da autodeterminagio. Assim, completa o texto anterior, “o homem € fim em si mesmo unicamente pelo que de divino 4 nele — pelo que desde o inicio se chamou raziio e, na medida em que esta é em si ativa, autodeterminante, a liberdade”, O lado “divino” que o “heréi” encontra em si proprio, 0 “espirito superior” que se realiza através dele na nova configuracio de um povo, é a caracteristica profunda de todo o humeno, A meta suprema 14 GRESPAN, Jorge, Hegel e 0 hostoricismo do universal coincide agora com o interesse maximo do particular, nfo tendo outro atributo sendo o de garantir a realizagao desse interesse, 0 “direito infinito do sujeito”. Em sua particularidade, em sua mais radical humanidade, este apreende ser determinante de si, ser 0 “sujeito” ativo de suas transformag6es infinitas, ter 0 “divino” dentro desi como poténcia de se assenhorear da sua prépria histéria. Quando a racionalidade dialé- tica desse proceso historico é percebida ndo somente como meio que percorte, como modus operandi, mas também como sendo o proprio objetivo do proceso, ela passa a se chamar de “liberdade”. ‘Seo contetido do universal é 0 “dircito infinito” para que o indivi- duo desenvolva plenamente suas potencialidades e realize suas particula- ridades, entéo todo o sacrificio apaixonado feito por isso é meio legitimo e racional de se conguistar a autodeterminagao, a liberdade; ja 6, alids, exercicio dessa liberdade, A autonegagdo do particular no sacriffcio pela humanidade € simultaneamente afirmacio do homem individual. No pode haver #éios mais concreto do que esse, em que se conciliam o universal eo particular. Sc assim se define a finalidade, por um lado, ela estd totalmente inscrita no fato objetivo, no ato de se objetivar. Por outro lado, 0 individual 6 mais bem apreendido por essa teleologia da sua liberdade do que por qualquer método empirista. A filosofia da hist6ria para Hegel s6 pode ser, nesse sentido, historicista, Mas, em contrapartida, © historiador deve aprender a filosofar, para, através dessa disciplina dialética c critica, purgar-se de seduges cientificistas, Abstract This paper investigates Hegel's relationship with historicism by the dialetical method, including the anal; of the hegelian central terms. It also seeks the recognition of the actuality of Hegelianism. Key words: Historicism, dialetical method, Hegel. Notas 1. Um livro sempre recomendavel para a caracterizagio do historicismo, por sua discusso profunda e abrangente, é © de Meinecke (1936), traduzido para o espanhol em 1943, Apesar das dificuldades de definigao, € importante Historia Revista, 7 (1/2) : 35-78, jon Jdez. 2002 75 6 76 advertir que o sentido do termo no presente texto no tem a ver como de Popper (1980), como ja assinalava criticamente Sérgio Buarque de Holanda as), Asaulas de Hegel sobre filosafia da hist6ria, ministradas entre 1822 ¢ 1830, foram publicadas somente em 1837, por um de seus alunos, em 1840 ~ depois de sua morte, portanto, por seu fillo, . Depois da edicfo completa das Licdes foi publicada separadamente também 2 longa introdugao a esse texto, como titulo de A razdo na histéria, devido ao interesse despertado pela discusso de carter mais te6rico af feita por Hegel. Os textos desse autor citados no presente trabalho vém de Hegel (1994), eotejados com a edigflo portuguesa (1995). A partir daqui, as notas os citaro simplesmente pela sigha RH seguida pela piigina da edicdo portuguesa e, entre colchetes, 4 pagina na edigdo alem’. Seguiremos em geral a tradugéo indicada, reservando-nos, contudo, o direito de modificar algo caso nos parega necessario pata o melhor entendimento, Antes, dizia o texto: “quando, porexemplo, vemos urn homem ajoelhar-se ¢ rezar diante de um fdolo, [...] podemos ater-nos ao seu sentimento, que ai esid vivo, e dizer que tal sentimento tem um valor idéntico ao do crist que adora o reflexo da verdade, e20 do fildsofo, que mergulha coma razdo pensante na verdade eterna” (RH, p. 50 [51)) Wie exeigentlich gewesen, principio formulado jem 1824, no preficio de sua Hist6ria dos povos latinos e germanicos e retomado outras vezes cepois, Para uma discussio detalhada do significado dele, cf. 0 texto de Sérgio Buarque de Holanda, ja citado na nota 1 E possivel que Hegel conhecesse a exigéncia de Ranke, j4 que seus cursos sobre filosofia da hist6ria em Berlim datam de 1828 ¢ 1830, c estivesse de certo modo se referindo a eles nesta passagem, Se néo, visava pelo menos A pritica desse prinefpio, que ja estava claramente presente na prética dos historiadores alemaes da época. Para os que aqui escutarern uma ressondneia husserliana, lembremos que foi Hegel o autor da primeira fenomenologia em (807. E Hegel esté pensando em casos especificns, ajuntando & margem dessa adverténcia a seguinte nota: “por exemplo, Niebuhr, cam seu governo de sacerdotes na histéria romana; também [Karl Ottfried] Miiller, nos seus Dérios [2 v. 18247" Nas palavras de Hegel, o espitito “nao € uma abstragio da natureza humana, [..] 6 uma conscigneia, mas também seu objeto [...} isto é, $6 sei de um. objeto na medida em que nele sei tambéin de mim mesmo, sei que a minha doterminagao consiste em que 0 que sov é também objeto para mim, em que GRESPAN, Jorge. Hegel e 0 hostoricismo eu no sou simplesmente isto ou aquilo, mas sou aquile de que sei” (RI, p. 52 [54). Ouainda, “o espitito é 0 que se produz, converte-se no que é, Por isso, a primeira configuragdo para que ele seja efetive € apenas a auto- atividade” (RH, p. 68 [74)). 9, Para um exame mais detalhado da critica de Hegel ao Romantismo, em sua dimensio moral ¢ politica, ver a tiltima parte (“A conviceao”) da sectio 3 (A moralidade”) do capitulo sobre o espftito, na Penomenologia do espirito, de Kegel (1970) 10. O proprio conceito de “povo” é uma sfntese do universal e do particular: “0 espirito na histéria uin individuo de natureza universal, mas que nels é determinado, isto é,um povo” (RH, p. 56 [59]). Desse modo, a histéria “tem aver com indivfduos que si1o povos” (RH, p. 40 [40]). Um povo é universal como espago de sociabilidades constitutivas, que tem, no entanto, um caréter determinado, diferente do de outros povos. Essa sua individuagio se dd, assim, pelo conteido especifico que nele assume a universalidade sob a forma de um prinetpio. IL, Na seqiiéncia, o texto reafirma: “As leis ¢ os prinefpics ao vivem e no vigoram imediatamente por si mestnos. A atividade que os pdemem obra e no ser-af a necessidade, o impulso do homeme, além disso, a sua inclinagio epaixdo”. 12. B continua: “Pode-se chamar astiicia da razio ao seguinte: a raz faz que as paixGes atuem por ela e que aquilo gragas ao qual ela chega a existEncia se perca e sofra dano. [..] © particular é quase sempre demasiado tcivial face ao universal; os indivfduos sfo sacrificados e abandonados”. 13, “Eis diteito infinito do sujeito, o segundo momento essencial da liberdacte: que © sujeito encontre a sua satisfagZo propria numa atividade, num trabalho” (RH, 74 [82]). Referéncias HEGEL, J. W, Phdnomenologie des Geistes. Frankfurt: Ullstein Verlag, 1970. ___. Vorlesungen tiber die Philosophie der Weligeschichie. Tomo 1. Hamburgo: Felix Meiner, 1994. A raziio na historia. Li HOLANDA, Sérgio Buarque de, O atual e 0 inatual em Leopold von Ranke. Revista de Hist6ria, So Paulo, n. 100, 1974. Hist6ria Revisto, 7 (1/2) 7 55-78, jan Alex MEINECKE, Friederich. Die Entstehung dés Historismus. Munique: Olecemburg Verlag, 1936. El historicismo y su génesis. México: Fondo de Cultura Bcondmica, 1943 POPPER, Karl R. Miséria do historicismo. Sao Paulo: Cultrix, 1980. 78 GRESPAN, Jonge. Hegel € 0 hosiorieismo

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