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ribeiro/>. Acesso em 02 jan 2018

Conto de Esmeralda Ribeiro:


janeiro 16, 2010

GUARDE SEGREDO

Prezada Senhora:

Recebo com surpresa sua carta perguntando-me sobre vovó. Como descobriu o meu
endereço? Vim para cá logo depois que presenciei aquela cena. Aqui ninguém sabe
quem sou, mas, mesmo assim, estou atordoada. Sim, essa é a palavra certa, atordoada. A
insônia me persegue. Sabe, fatos estranhos aconteceram enquanto morei naquela casa.
“Foi ele quem pediu pra voltar”, foi a última coisa que vovó disse.

Tudo começou quando eu, papai e mamãe fomos despejados da nossa quitinete em
Copacabana. Fui morar com vovó Olívia no subúrbio do Rio de Janeiro. Morávamos na
Rua Major Mascarenhas, no Bairro de Todos os Santos. Eu devia ter uns onze anos na
época. Apesar de mamãe ser a filha única de vovó, as duas eram geniosas. Quando
ficavam juntas, brigavam sem parar. Embora papai adorasse vovó, eles foram obrigados
a morar com um irmão de papai. A casa de vovó era antiga. Engraçado, nunca havia me
prendido a esse detalhe. Percebi isso quando fui residir lá. Era de manhã, caía uma
chuva fina. Naquele dia fui a pé pra casa dela. Queria sentir a chuva miúda caindo em
meu rosto. Demorei menos de uma hora para chegar lá. Levei comigo apenas a mochila
da escola e uma pequena trouxa de roupa. Quando cheguei para abrir o portão, ele
estava trancado e com cadeado. Não me lembro quantas vezes chamei por vovó. Parada
ali fora, observei a arquitetura da casa. O portão e o muro eram de madeira e bem altos.
As paredes de concreto eram altas também. As janelas, amplas e com cortinas. As
cortinas deviam ser muito pesadas, pois estavam todas fechadas. Conforme circulei ao
redor da casa, contei sete janelas. Uma para cada cômodo. Em alguns momentos, podia
jurar que ouvia sons vindos de um dos cômodos. Conversas, risos e um tec-tec-tec.
Porém… Batia palmas e mais palmas com força, chamava e gritava, e nada. Acho que
minha voz se perdia entre as folhas daquela jabuticabeira, porque quando tentava espiar
pela fresta do portão, as folhas da árvore se agitavam sem parar. Olhei daqui, olhei dali.
De repente uma mulher surgiu lá na esquina. A minha alegria foi logo embora. Parecia,
mas não era vovó Olívia. Tinha a mesma cor, o rosto igualmente sem nenhuma ruga.
Magra e baixinha, e cabelos de algodão. A diferença entre as duas estava nos óculos. A
firmeza e a segurança no andar daquela senhora aliviaram um pouco a minha angústia.
Fiquei muito envolvida na dança lenta da vida e, quando dei conta, ela passava por
mim, resmungando alguma coisa. Talvez consigo mesma. Meus olhos não desgrudavam
daquela mulher. A partir daí começaram a acontecer coisas estranhas. Quando virei o
corpo, vovó Olívia se encontrava ali parada. Com o susto, caí pra trás com a mochila e a
trouxa de roupa. Me recompus. Nem consegui especular por que havia demorado tanto
para me atender. Ela sorriu e disse: “Eu te esperava. Entre”. Continuei com a mochila e
a trouxa nas mãos. Ela havia dito aquilo como se já soubesse sobre o nosso despejo.
Como se estivesse nos olhando sempre. Caminhamos.
– Temos visita, vovó? – perguntei.

– Não. “Ele” já foi embora – respondeu.

– Por onde “ele” saiu, se a única saída era pelo portão? – insisti.

Deu uma pausa, fez um muxoxo e retrucou: “Vê se não me amola”. Procurei com os
olhos, mas não o encontrei. Elas tinham o mesmo gênio. Mamãe também era firme e
autoritária. É, vovó não respondeu. O silêncio prevaleceu naquele momento. A cozinha
e o quarto estavam limpos e arrumados. Parecia que sempre estivera sozinha. Usávamos
apenas a cozinha e um quarto. Por causa da imensidão dos cômodos, sussurrávamos
para evitar eco. Os outros quartos da casa estavam abandonados. Não. Não tão
abandonados. Vovó guardava, além de cacarecos, algum segredo, porque eram todos
trancados. Andava com o molho de chaves no bolso, não o largava nem para dormir. Eu
achava essa atitude estranha, porém se a interrogasse, com certeza ela diria: “Vê se não
me amola”. Sempre dizia essa frase. Acordávamos cedo um dia sim, outro não. Eu
varria e passava vermelhão nos dois cômodos e lavava o banheiro. Só não limpava o
quintal, porque vivia sempre coberto por folhas e flores das árvores. Depois da faxina,
cuidava da horta, apanhava algumas mangas e brincava no balanço, na gangorra.
Brincava sozinha. Sozinha, não. Um homem sempre aparecia pra gente brincar. Como
surgia, também sumia, de repente. Parecíamos velhos conhecidos. Quem é ele? –
pensava. Vovó Olívia costurava uma colcha de retalhos. Costurava ponto por ponto.
Não tenho certeza, pois nunca vi a colcha pronta.

Certa vez, limpando o nosso quarto, olhei pra cima e lá estava, bem no alto da parede,
um pequeno quadro. Apesar de empoeirado, reconheci os mesmos cabelos, rosto e terno
daquele homem das brincadeiras no quintal. Vovó se encontrava no banho. Então
aproveitei a oportunidade, subi na cadeira mas, quando estiquei a mão para pegar e ver
melhor a foto, só consegui ler as iniciais L.B. Bati o corpo no prato de uvas pendurado
um pouco mais abaixo. A porcelana se espatifou no chão. Vovó chorou e me xingou
tanto por causa do incidente! Depois disso, fui cuidar dos meus afazeres e brincar lá
fora, como de hábito. Eu não disse: a janela do nosso quarto era voltada para o quintal.
Como dormíamos no mesmo espaço, conseguimos levantar a janela até a metade.
Porém, quando olhei lá dentro, no lugar de vovó costurando sobre a mesinha, vi o
mesmo homem do quadro e que brincava comigo. Ele datilografava alguma coisa
apressadamente. Espiei pela janela, ele conversava e ria sozinho. Percorri o olhar pelo
quarto e não a vi. Fui correndo para lá. Entretanto, quando cheguei, vovó Olívia
costurava seus retalhos. Gritei não sei quantas vezes o seu nome, mas sua voz saiu baixa
e abafada: “O que foi, menina?” Talvez fosse impressão, porém ela tinha no rosto o
mesmo sorriso daquele homem.

– Quem é o homem do quadro, vovó? – perguntei.

Ele foi uma pessoa muito importante para mim. Seu nome era Lima Barreto –
respondeu, com a voz embargada de emoção.

Aproveitei a sua disposição e bombardeei-a com perguntas: “Por que a senhora nunca
disse isso antes? Por que ele ainda vem aqui em nossa casa?”
Foi processando uma pergunta de cada vez. Fez um muxoxo. Quando ia responder,
chegou um telegrama dizendo que mamãe havia passado mal. Fomos correndo para o
hospital. Nós duas não tínhamos o hábito de ir à casa de ninguém. Apesar da crise
financeira ter levado papai a perder o emprego de carteiro e deixá-lo muito doente, ele
aparecia uma vez ou outra para nos visitar. Sabíamos de mamãe através de papai.

Os anos foram passando, eu estava com dezessete anos, mas meu corpo parecia de uma
mulher. Estudava à tarde no Ginásio Nacional e chegava à noitinha. Certa vez, quando
voltava da escola, surgiu à minha frente aquele rapaz. Ficamos conversando horas e
horas. Depois de alguns dias começamos a namorar. Cassi Jones era sardento, usava
goma nos cabelos e andava bem vestido. Íamos para lanchonetes e barzinhos. Ele
morava num bairro de classe média no Rio de Janeiro, entretanto não acreditei quando
contaram que não gostava de trabalhar. Não o amava, mas não conseguia resistir a todo
aquele charme. Havia dias e semanas que não assistia às aulas. Não comentei com vovó
sobre o meu romance, mas acho que já sabia. Um dia de manhã, me disse: “Como vai
Cassi Jones?” Fiquei apavorada e não lhe respondi. Ela também não insistiu. Porém eu
não conseguia entender.

***

Nunca mais esquecerei aquele dia, porque tudo aconteceu tão rápido. Era Dia de Todos
os Santos. Começou de manhã, quando tomávamos chá. Vovó se encontrava numa total
absorção. Ficou assim por minutos, meia hora, não sei. O corpo estava ali sem alma.
Suas mãos contornavam lentamente a xícara na boca. Ora os lábios davam a impressão
de pronunciar frases, bem baixinho, ora ela abria a boca para engolir o líquido. Nunca
havia reparado, já não controlava com firmeza os seus movimentos.

– O que a senhora tem hoje, vovó? – perguntei.

– Hoje é o Dia D – respondeu.

– Como? – insisti.

– Gosto da morte porque ela é o aniquilamento de todos nós – disse.

Ela falou todas essas coisas sem olhar pra mim. Procurando entender tudo aquilo, me
distraí. Quando percebi, estava na hora de ir para o ginásio. Peguei minha mochila e
corri pra escola. Era gostoso sentir a chuva miú-da caindo no rosto. Justamente naquele
dia não havia ninguém no colégio. Aproveitei e fui buscar umas coisas que mamãe tinha
comprado para mim. Presenteou-me com um pacote de roupa. Quando voltava pra casa
de vovó, fui interpelada por uma senhora gorda. Parecia muito com Cassi Jones. Ela
cruzou o meu caminho e ficou parada na minha frente. Insultou-me tanto!… Disse
coisas horríveis do tipo: “Você é a quinta negra que meu filho deflorou e também não
vai ficar com ele. Nesse exato momento está com outra garota”. Além de outros
absurdos, cuspiu em mim e eu também cuspi nela. Odiei aquela mulher e seu querido
filho. Todos saberiam que eu não poderia olhar mais para a minha família. Não iria
deixar por menos. Então fui ao mercado e comprei uma faca. Não tomaria nada,
coragem eu tinha de sobra. Procurei, igual uma louca, o desgraçado. Encontrei-os na
saleta de um hotelzinho. Ela fugiu, mas ele não teve tempo de reagir. Foram tantas
facadas!… Parei quando caiu aos meus pés. Também arranquei de seu pescoço um
cordão de ouro. Guardei a faca no pacote de roupa e saí tranqüilamente. Demorei menos
de uma hora para chegar à casa de vovó. Foi daí que vi, tenho certeza. A sala, antes
trancada a chave, estava aberta. Escutava um tec-tec-tec. Entrei pela cozinha, passei
pelo quarto e parei em frente à porta da sala. Gritei, chamando vovó. Fui entrando,
entrando e ouvi o Lima Barreto escrevendo à máquina. Conversavam e riam muito. Por
um momento, juro tê-lo ouvido dizer: “Esperávamos por você. Entre”. Eu pensava:
“Tudo está acontecendo ao mesmo tempo”.

– Você matou Cassi Jones? – ele interrompeu o meu devaneio.

– Matei – respondi. “Como soube disso?”, interroguei-me.

– Bravo! Esse era o outro final que eu queria para o cafajeste do Cassi Jones.

O escritor tirou da máquina o papel, rasgou em pedacinhos e jogou no lixo. Olhou para
vovó e disse: “Obrigado. Eternamente obrigado”. Então vovó Olívia falou aquilo:
“Tinha de ser assim, minha neta”, e continuou: “Nós não devemos aceitar o destino com
resignação”. Fiquei parada, olhando para os dois. Vovó prosseguiu: “Não tive culpa, foi
ele quem pediu pra voltar”.

– Como o trouxe de volta? – perguntei à queima-roupa.

Ela fez um muxoxo, resmungou consigo mesma. Quando ia me responder, escutamos


um barulho de sirene bem longe dali. Alguém mandou: “Vá esconder a faca no pé da
jabuticabeira! Vá depressa!” Eu estava muito nervosa, mas fui. Quando voltei, eles não
se encontravam mais lá. Vi uma caveira perto da estante. Uma coisa branca, quase do
tamanho da sala, vinha pra cima de mim. Não sei como consegui escapar. Só deu tempo
de sair correndo do recinto e trancar a porta. Eu tinha de sair daquela casa rapidamente.
Chamava por vovó, gritava, gritava e ela não me ouvia. Uma voz cantava uma música
na cozinha. Cada vez que a chamava, a canção aumentava de tom. Não tenho certeza,
mas senti as paredes vibrarem. Corri, corri, quando cheguei na esquina percebi que
havia deixado a mochila e o pacote de roupas lá na sala. Depois daquele dia, nunca mais
voltei àquela casa. Nunca mais soube de vovó Olívia. Sei que ainda existe o balanço e a
gangorra, apesar do mato ter tomado conta de tudo.

Tenho muito medo. A insônia me persegue. Aqui onde moro ninguém sabe desse fato.
Troquei meu nome.

Obrigada por ter escrito. Foi melhor ter contado isso a alguém.

Não sei como conseguiu me achar. Mas, por favor,

guarde eternamente este segredo.

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