Você está na página 1de 22

LETRAS CLÁSSICAS, n. 7, p. 77-98, 2003.

RISO INVECTIVO VS. RISO ANÓDINO E AS


ESPÉCIES DE IAMBO, COMÉDIA E SÁTIRA

JOÃO ANGELO OLIVA NETO*


Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas
Universidade de São Paulo

RESUMO: O artigo tem como objeto demonstrar que em duas passagens


da Poética (IV 1448b, 23-40 e V, 1449a, 32-35) Aristóteles assume a
existência de dois tipos de riso, o invectivo e o anódino, que correlaciona
respectivamente aos gêneros do iambo e da comédia. Partindo da lição de
texto e da interpretação da Poética feita por Gerald Else (Aristotle’s Poetics,
the argument, de 1957) tento demonstrar preferência do filósofo pelo riso
anódino e como a diferença de risos é funcional no estabelecimento de espé-
cies no iambo, na comédia e na sátira hexamétrica latina.
PALAVRAS-CHAVE: Poética de Aristóteles; riso invectivo; riso
anódino; iambo; comédia; sátira.

O objetivo deste artigo é duplo: primeiro ajudar a lembrar que as formas do


geloi=on ou ridiculum, inerentes aos gêneros ditos aristotelicamente “baixos”, não
implicam inferioridade ética dos autores, nem inferioridade poética dos poemas, e,
segundo, tentar discriminar das várias formas do riso, pelo menos duas modalida-
des que nos parecem operantes na ramificação interna de três gêneros poéticos,
iambo, comédia e sátira hexamétrica. Para tanto, partiremos da leitura de dois
trechos na Poética da Aristóteles tendo em mente algumas reflexões capitais de
Gerald Else, em Aristotle’s Poetics, the argument (1957), que tomamos a liberdade
de inserir no próprio corpo do artigo por crer que 50 anos depois devessem talvez
estar mais disseminadas entre nós.
A partir da revalorização da retórica e da poética ocorrida nos Estudos
Clássicos depois da 2a Guerra, passou ou então voltou a fazer parte do discurso

* Professor Doutor de Língua e Literatura Latina da Faculdade de Filosofia, Letras e


Ciências Humanas da Universidade de São Paulo.

– 77 –

Letras Classicas 7.pmd 77 23/9/2011, 16:24


OLIVA NETO, João Angelo. Riso invectivo vs. riso anódino e as espécies de iambo...

acadêmico a expressão de matiz peripatético “gêneros elevados” para designar a


épica heróica, a tragédia, e “gêneros baixos”, para a comédia, o drama satírico, a
poesia iâmbica e as espécies satíricas, menipéia e luciliânica: a designação não
agride o rigor filológico. O que não parece rigoroso é estender a elevação e a baixe-
za ao caráter e o engenho dos poetas como tais e concluir pela superioridade como
agenciadores de discursos, entenda-se como poetas, dos autores de epopéias e tra-
gédias em relação aos autores de comédia, iambos, sátiras etc. Ocorreu que, mercê
das ações, caracteres e afetos de seus personagens – elevadas em Ésquilo e baixas
em Aristófanes, por exemplo – têm-se entendido que Ésquilo por isso seja conside-
rado ética e poeticamente superior a Aristófanes. Ora, como dos ditos gêneros
baixos participa necessariamente, de uma forma ou de outra, o geloi=on, o ridículum
(o ridículo, o risível, o riso, ou até, conceda-se, o humor) a conseqüência inevitá-
vel, mas equivocada, é que todos os poetas dos gêneros baixos, entenda-se, os
poetas dos gêneros risíveis, seriam ética e poeticamente inferiores aos poetas dos
gêneros sérios. Em outras palavras, segundo essa leitura, o geloi=on ou ridiculum e
os gêneros que integra parecem excluir não só a excelência ética de seus autores (o
que seria absurdo, pela necessária autoridade que deve ter o poeta, quer em Ate-
nas quer em Roma), mas também a excelência póetica deles (como se pela presen-
ça do ridiculum e das ações, caracteres e afetos baixos precisassem de menos enge-
nho para compor seus poemas), quando não excluem, por pruridos de ordem espú-
ria, a idoneidade de quem os estuda. A espinhosa questão da superioridade de tal
ou qual poeta não se resolve pela comparação singela e isolada das ações, caracteres
e afetos de seus personagens, menos ainda se pertencentes a gêneros diversos, mas
antes, diga-se provisoriamente aqui, pela efetividade que o agenciamento desses
elementos têm em cada poema segundo seu gênero.
O problema tem raiz na Poética de Aristóteles, que quanto aos gêneros risí-
veis de poesia e ao próprio riso não só apresenta em âmbito grego a mais antiga
abordagem teórica, como faz da oposição “sério” / “baixo” o critério mais antigo
segundo o qual se separam os gêneros da poesia:

diespa/sqh de\ kata\ ta\ oi)kei=a h)/qh h( poi/hsij: [25] oi( me\n ga\r
semno/teroi ta\j kala\j e)mimou=nto pra/ceij kai\ ta\j tw=n toiou/
twn, oi( de\ eu)tele/steroi ta\j tw=n fau/lwn, prw=ton yo/gouj
poiou=ntej, w(/sper e(/teroi u(/mnouj kai\ e)gkw/mia. tw=n me\n ou)=n pro\
(Omh/rou ou)deno\j e)/xomen ei)pei=n toiou=ton poi/hma, ei)ko\j de\ ei)=nai
pollou/j, a)po\ de\ (Omh/rou a)rcame/noij [30] e)/stin, oi(=on e)kei/nou o(
Margi/thj kai\ ta\ toiau=ta. e)n oi(=j kata\ to\ a(rmo/tton kai\ to\
i)ambei=on h)=lqe me/tronVdio\ kai\ i)ambei=on kalei=tai nu=n, o(/ti e)n tw=?
me/trw? tou/tw? i)a/mbizon a)llh/louj. kai\ e)ge/nonto tw=n palaiw=n oi(

– 78 –

Letras Classicas 7.pmd 78 23/9/2011, 16:24


LETRAS CLÁSSICAS, n. 7, p. 77-98, 2003.

me\n h(rwikw=n oi( de\ i)a/mbwn poihtai/. w(/sper de\ kai\ ta\ spoudai=a
ma/lista poihth\j (/Omhroj [35] h)=n (mo/noj ga\r ou)x o(/ti eu)= a)lla\
kai\ mimh/seij dramatika\j e)poi/hsen), ou(/twj kai\ to\ th=j kwmw?di/
aj sxh= m a prw= t oj u( p e/ d eicen, ou) yo/ g on a) l la\ to\ geloi= o n
dramatopoih/saj: o( ga\r Margi/thj a)na/logon e)/xei, w(/sper )Iliaj \
kai\ h( )Odu/sseia pro\j ta\j tragw?di/aj, ou(tw kai\ ou(=toj pro\j taj \
kwm%di/aj (Poética, IV, 1448b, 23-40).

Utilizo a tradução de Eudoro de Souza, para ilustrar a discussão:

A poesia tomou diferentes formas, segundo a diversa índole particu-


lar [dos poetas]. [25] Os de mais alto ânimo imitam as ações nobres
e dos mais nobres personagens; e os de mais baixas inclinações vol-
taram-se para as ações ignóbeis, compondo, estes, vitupérios, e aque-
les, hinos e encômios. Não podemos, é certo, citar poemas deste
gênero dos [poetas que viveram] antes de Homero, se bem que, ve-
rossimilmente, muitos tenham existido; mas, a começar em Homero,
[30] temos o Margites e outros poemas semelhantes, nos quais, por
mais apto, se introduziu o metro jâmbico (que ainda hoje assim se
denomina porque nesse metro se injuriavam [iámbizon]). De modo
que, entre os antigos, uns foram poetas em verso heróico, outros o
foram em verso jâmbico. Mas Homero, tal como foi supremo poeta
no gênero sério, [35] pois se distingue não só pela excelência como
pela feição dramática das suas imitações, assim também foi o primeiro
que traçou as linhas fundamentais da comédia, dramatizando, não o
vitupério, mas o ridículo. Na verdade, o Margites tem a mesma ana-
logia com a comédia, que têm a Ilíada e a Odisséia com a tragédia.

O problema todo começa no emprego de h)/qh, plural de h)=qoj, “caráter”, adjetivado


por oi)kei=a, que Eudoro de Souza traduz por “particulares” e ainda deixa entre
colchetes “dos poetas”, Ana Maria Valente (2004: 43) por ”de cada um”, Halliwell
(1999: 39) por “its creators”, Yebra (1974: 137) por “particulares”, mas Antonio
Riccoboni (apud Yebra, 1974: 137) por proprios mores. Para o problema as reflexões
de Gerald Else1 (1957) ainda hoje parecem as mais adequadas, por priorizar a in-

1
Eudoro de Souza não apenas conhece o texto de Else, como acolhe na edição que
consultamos (Aristóteles, 1966: 112, nota ao §116) a proposta de Else para oi)kei=a,
ligando o termo a poi/esij, como acrescenta a tradução exegética para o trecho: “a
poesia tomou diferentes formas segundo as diversas espécies de caráter que naturalmente
lhe pertencem”.

– 79 –

Letras Classicas 7.pmd 79 23/9/2011, 16:24


OLIVA NETO, João Angelo. Riso invectivo vs. riso anódino e as espécies de iambo...

terpretação segundo questões objetivas da própria poesia, o que é mais coerente,


pois, com a arte poetica que está a discorrer, em detrimento do caráter do autor.
Para Else (pp. 136-137) oi)kei=a não se refere ao caráter dos autores, mas ao caráter
dos gêneros de poesia:

A intrepretação usual de kata\ ta\ oi)kei=a é que a expressão se refere


a poetas individuais (“A poesia então separou-se em duas direções,
de acordo com o caráter individual dos poetas”, Butcher), que, por
sua vez, são especificados detalhadamente nas linhas seguintes (oi(
me\n ga\r semno/teroi, etc). Mas a dicotomia spoudai=oi / fau=loi é
um dado primário, objetivo, que se liga à poesia de modo inerente,
como uma representação da vida. É inerente a ela porque a poesia
representa homens em (e de) ação e homens tais são necessaria-
mente figuras elevadas ou baixas. Tal especificação não tem nada a
ver com temperamente individual. A intrepretação usual deve ser
rejeitada por quatro razões:
1. Razão gramatical: é preciso que oi)kei=a seja definido a partir de
fora da sentença, por oi(...semno/teroi e oi(...eu)tele/steroi, ao passo
que pode auferir seu sentido mais naturalmente a partir de dentro
(h( poi/hsij).
2. Razão lexical: em nenhum outro lugar na Poética oi)kei=oj significa
“individual”, “particular”, mas “próprio de”, “inerente a”, “per-
tencente à natureza de”.
3. Psicológica: se o temperamento individual fosse fator decisivo,
Homero seria um paradoxo insolúvel, para não dizer um monstro,
já que escreveu obras-primas nos dois gêneros. Ele era ao mesmo
tempo semno/teroj e eu)tele/steroj?
4. Filosófica: obras de arte são produzidas por artífices na condição de
artífices, não na condição de indivíduos. ‘É um acidente que o es-
cultor seja Policlito’. Nesta narrativa, os poetas figuram como por-
tadores das causas da poesia. Uma diferenciação permanente de-
veria ter causas da mesma ordem.
Assim, proponho tomar oi)kei=a no seu sentido usual e natural: “A
poesia dividiu-se segundo os caracteres que são inerentes a ela”, a
saber o spoudai=on e o fau=lon.

A importância da leitura de Else pode ser avaliada se se pensar, por exemplo, nas
composições de autores como Calímaco, Horácio e Sêneca à luz da interpretação
“usual” levada, como deveria ser, às últimas conseqüências: como Calímaco pôde
compor os Hinos, à maneira homérica, poemas elevados, e os Iambos, ainda que

– 80 –

Letras Classicas 7.pmd 80 23/9/2011, 16:24


LETRAS CLÁSSICAS, n. 7, p. 77-98, 2003.

estes já não sejam tão invectivos quanto aos arcaicos? Como o mesmo Catulo teria
podido compor o poema 97, que é pleno de torpilóquio e o 101, que é prece diante
do túmulo do irmão? Como seria possível que o mesmo Horácio que compôs o
Carmen Saeculare, as odes civis e os poemas laudatórios a Augusto, que são eleva-
dos, tivesse composto os Epodos, em particular o epodo 8, que é abosolutamente
baixo, para não mencionar as Sátiras? Como poderia ter Sêneca, a quem se atribui
hoje a Apocoloquintose, ter composto também as tragédias?
A vinculação do gênero poema, elevado ou baixo, ao caráter do poeta como
pessoa e não como poeta exclui a poluei/deia,2 a possibilidade de cultivar vários
gêneros, que Calímaco não só endossava, mas encarecia, e que como se viu vários
poetas praticavam.
Seguindo de perto a releitura de Else do mesmo trecho, mas passando ao
segundo objetivo deste artigo, propomos entronizar aqui a sugestão do comentador
quanto à lição do texto da Poética e apontar como a nova leitura já antecipa a
discriminação de riso que Aristóteles fará em 1449a, 32-35 (o riso sem dor, geloi=on
a)/neu o)du/nhj). Na passagem acima Else (p. 137) observa “que e)n oi(=j não pode
referir-se o( Margi/thj kai\ ta\ toiau=ta, “Margites e poemas semelhantes”, uma
vez que a adoção de verso iâmbico está ligada a propósitos satíricos (i)a/mbizon
a)llh/louj), ao passo que em 1448b, 38 Aristóteles deixa claro que considera o
Margites notável porque não era satírico”. Assim propõe (p. 138) que a passagem
tw=n me\n ou)=n pro\ (Omh/rou ou)deno\j e)/xomen ei)pei=n toiou=ton poi/hma, ei)ko\j de\
ei)=nai pollou/j, a)po\ de\ (Omh/rou a)rcame/noij [30] e)/stin, oi(=on e)kei/nou o( Margi/
thj venha após i)a/mbwn poihtai/, ou na tradução que “Não podemos, é certo, citar
poemas deste gênero dos [poetas que viveram] antes de Homero, se bem que, verossimil-
mente, muitos tenham existido; mas, a começar em Homero, [30] temos o Margites e
outros poemas semelhantes” venha após “outros o foram em verso jâmbico”, de modo
que e)n oi(=j agora tem por antecedente yo/gouj; toiou=ton poi/hma se refere a

2
ver Oliva Neto (2006: pp. 114-115): poluei/deia, de polý (polu/, “vários”) + éidos
(ei)=doj, “gênero”) [...] O termo ocorre numa diegesis, isto é, num comentário antigo a
um verso do Iambo 13 de Calímaco (frag. 203, Pfeiffer): Mou=sai kalai\ ka)/pollon, oi(=j
e)gw\ spe/ndw, “Belas Musas e Apolo, aos quais faço libações”. O comentário na Diegesis
9, 32-35 diz: )En tou/t% pro\j tou\j katamemfome/nouj au)to\n e)pi\ t$= polueidei/# w(=n /
[35] gra/fei poihma/twn a)pantw=n fhsin o(/ti/ )/Iwna mimei=tai to\n tragiko/n:/ a)ll”
ou)de\ to\n te/ktona/ tij me/mfetai polueidh= /skeu/h tektaino/menon, “Neste [poema],
[dirigindo-se] aos que o reprovam pela/ pluralidade de gêneros dos poemas que escreve,
[Calímaco] diz / que imita o tragediógrafo Íon: ninguém, de fato, / censura o artífice que
faz utensílios multígenos”.

– 81 –

Letras Classicas 7.pmd 81 23/9/2011, 16:24


OLIVA NETO, João Angelo. Riso invectivo vs. riso anódino e as espécies de iambo...

i)a/mbwn, não diretamente a yo/gouj; me\n ou)=n assume seu lugar, resumindo uma
etapa da narrativa e conduzindo à seguinte (a)po\ de\ (Omh/rou etc); ou)deno/j e
pollou/j são mais plausíveis vindo logo depois de i)a/mbwn pointai/ do que de
yo/gouj poiou=ntej, w(/sper e(/teroi u(/mnouj kai\ e)gkw/mia, pois agora referem-se a
pessoas não a gêneros. Rearranjados, o texto e tradução de Eudoro ficam assim:3

diespa/sqh de\ kata\ ta\ oi)kei=a h)/qh h( poi/hsij: [25] oi( me\n ga\r
semno/teroi ta\j kala\j e)mimou=nto pra/ceij kai\ ta\j tw=n toiou/
twn, oi( de\ eu)tele/steroi ta\j tw=n fau/lwn, prw=ton yo/gouj
poiou=ntej, w(/sper e(/teroi u(/mnouj kai\ e)gkw/mia: e)n oi(=j kata\ to\
a(rmo/tton kai\ to\ i)ambei=on h)l= qe me/tronVdio\ kai\ i)ambei=on kalei=tai
nu=n, o(/ti e)n tw=? me/trw? tou/tw? i)a/mbizon a)llh/louj. kai\ e)ge/nonto
tw=n palaiw=n oi( me\n h(rwikw=n oi( de\ i)a/mbwn poihtai/ tw=n me\n ou)=n
pro\ (Omh/rou ou)deno\j e)/xomen ei)pei=n toiou=ton poi/hma, ei)ko\j de\
ei)=nai pollou/j, a)po\ de\ (Omh/rou a)rcame/noij [30] e)/stin, oi(=on e)kei/
nou o( Margi/thj kai\ ta\ toiau=ta. w(/sper de\ kai\ ta\ spoudai=a ma/
lista poihth\j (/Omhroj [35] h)=n (mo/noj ga\r ou)x o(/ti eu)= a)lla\ kai\
mimh/seij dramatika\j e)poi/hsen), ou(/twj kai\ to\ th=j kwmw?di/aj
sxh= m a prw= t oj u( p e/ d eicen, ou) yo/ g on a) l la\ to\ geloi= o n
dramatopoih/saj: o( ga\r Margi/thj a)na/logon e)/xei, w(/sper )Iliaj \
kai\ h( )Odu/sseia pro\j ta\j tragw?di/aj, ou(tw kai\ ou(=toj pro\j ta\j
kwm%di/aj.

A poesia tomou diferentes formas segundo a diversa espécies de ca-


ráter que naturalmente. [25] Pois pessoas de mais alto ânimo imi-
tam as ações nobres e dos mais nobres personagens; e as de mais
baixas inclinações voltaram-se para as ações ignóbeis, compondo,
estes, vitupérios, e aqueles, hinos e encômios. Nos vitupérios {oi(j}
por mais apto, se introduziu o metro jâmbico (que ainda hoje assim
se denomina porque nesse metro se injuriavam [iámbizon]). De modo
que, entre os antigos, uns foram poetas em verso heróico, outros o
foram em verso jâmbico. Não podemos, é certo, citar poetas deste gêne-
ro {= do gênero jâmbico} entre os [poetas que viveram] antes de Homero,

3
Else (p. 137) entende que oi( me\n ga\ r oemno/teroi (pessoas de mais alto ânimo)
oi( de\ eu\tele/oteroi (“as de mais baixas inclinações”) dizem respeito ainda ao estágio da
improvisação, não a poetas propriamente ditos, de que se falará só a partir de kai\
e)ge/nonto tw=n talaiw=n...toihtai/ (“entre os antigos uns foram poetas”). Uilizei chaves
nas adaptações de texto necessárias para diferençiá-las das marcas de Eudoro de Souza,
que utiliza colchetes e sublinhei em grego e em português a passagem deslocada para
facilitar a compreensão das diferenças que produz.

– 82 –

Letras Classicas 7.pmd 82 23/9/2011, 16:24


LETRAS CLÁSSICAS, n. 7, p. 77-98, 2003.

se bem que, verossimilmente, muitos tenham existido; mas, a começar em


Homero, [30] temos {o seu próprio, e)kei/nou} Margites e outros poe-
mas semelhantes. Mas Homero, tal como foi supremo poeta no gêne-
ro sério, [35] pois se distingue não só pela excelência como pela
feição dramática das suas imitações, assim também foi o primeiro
que traçou as linhas fundamentais da comédia, dramatizando, não o
vitupério, mas o ridículo. Na verdade, o Margites tem a mesma ana-
logia com a comédia, que têm a Ilíada e a Odisséia com a tragédia.

Segundo esta disposição do texto, justamente na disjunção adversativa já men-


cionada, – a)po\ de\ (Omh/rou a)rcame/noij “mas, a começar em Homero” – com
que se percebe que Aristóteles arremata a mudança de assunto – sair dos yo/goi
para passar ao Margites é que então, com a autoridade da autoria homérica,
o Margites significa, na história dos gêneros em Aristoteles, recusa ao vitupé-
rio iâmbico na gênese da comédia, o que corresponde, na sua teoria, não só ad-
mitir que há dois tipos de riso,4 como também implicar que a excelência homérica

4
Else, pp. 144-145, confirma: “De fato Aristóteles trai aqui, se não um interesse maior na
parte cômica, ao menos preocupação maior com ela. Havia pequena evidência
documental da história mais antiga dos fau=la, como ele admite nos seus momentos
mais cândidos; pior ainda, o termo e o conceito ‘comédia’ cobriam dois tipos totalmente
diferentes de performance e de humor. Como se poderiam arrolar o Margites e Arquíloco,
Epicarmo e Crátino na mesma série, como se fossem todos uma coisa só? As idéias
apriorísticas de Aristóteles modelam sua ‘história’ ao ponto da efetiva distorção.
Yo/goj, invectiva ou sátira, o ponto de partida, é para ele o tipo errado de graça, algo a
ser abandonado. Pela mesma razão, to\ geloi=on, humor inofensivo, é o te/loj em direção
do qual toda a criação cômica se move. O drama satírico estava ainda engatinhando em
Atenas muito tempo depois de poder ter aberto caminho ao tipo correto de farsa, e por
outro lado, a verdadeira postura cômica estava embaraçosamente atrasada para fazer
sua aparição. Aristóteles agarra-se no Margites com alguma urgência como um dos poucos
fenômenos que se ajustavam à sua teoria. Parece de fato que a necessidade de evidência
para escorar a teoria obnubilou-lhe o senso crítico, pois o homem que percebeu que
eram espúrios alguns ou todos os poemas atribuídos a Orfeu deveria ter sido capaz de
detectar que o Margites não era do autor da Ilíada. Mas Aristóteles precisava, para o
espírito da comédia, de um impulso remoto o bastante para exercer influência na comédia
dórica, e por meio dela, na comédia ática. A única literatura [sic] que oferecia qualquer
possibilidade semelhante eram os pai/gnia da tradição épica e aos olhos de Aristóteles
o fato de deterem-se no ‘risível’ e não na invectiva pessoal era conquista tão elevada,
considerada em oposição ao legado dos yo/goi primitivos, que não poderia ter sido
atribuída a ninguém a não ser a Homero. Daí, o divino Homero, supremo poeta no
campo da poesia elevada dever levar os louros do gênero baixo também”.

– 83 –

Letras Classicas 7.pmd 83 23/9/2011, 16:24


OLIVA NETO, João Angelo. Riso invectivo vs. riso anódino e as espécies de iambo...

no Margites foi ter estabelecido as bases da comédia por ter acolhido o riso
sem dor.5
Aristóteles volta à comédia logo a seguir e o que até aqui implicara passa a
explicitar, discriminando de fato agora modalidades dois tipos de riso:

h( de\ kwmw?di/a e)sti\n w(/sper ei)/pomen mi/mhsij faulote/rwn me/n,


ou) me/ntoi kata\ pa=san kaki/an, a)lla\ tou= ai)sxrou= e)sti to\ geloi=on
mo/rion. to\ ga\r geloi=o/n e)stin [35] a(ma/rthma/ ti kai\ ai)=sxoj a)nw/
dunon kai\ ou) fqartiko/n, oi(=on eu)qu\j to\ geloi=on pro/swpon ai)sxro/
n ti kai\ diestramme/non a)/neu o)du/nhj (Poética, V, 1449a, 32-35)

A comédia é, como dissemos, imitação de homens inferiores; não,


todavia, quanto a toda a espécie de vícios, mas só quanto àquela
parte do torpe que é o ridículo. O ridículo é [35] apenas certo defei-
to, torpeza anódina e inocente; que bem o demonstra, por exemplo,
a máscara cômica, que, sendo feia e disforme, não tem [expressão
de] dor.

Essa passagem é a mais antiga discriminação no torpe ou no vício, que assim pode
ser ou pode não ser ridículo. Associada ao final da passagem anterior, indica-se
aqui que para Aristóteles há, de um lado, um riso dolorido e prejudicial: este riso
integra os vitupérios ainda não poéticos, que poderíamos inferir que são rituais, e
também, mais tarde, a configuração poética deles, que outra coisa não é do que a
poesia iâmbica: deve assumir-se aqui a correlação vitupério-riso. E há, de outro

5
Assim procedendo, Aristóteles inevitavelmente desentroniza a figura de Arquíloco, como
eu(reth=j do gênero iâmbico. Else (p. 148) nota que na história aristotélica da comédia,
há um grande vazio entre Homero do Margites e o início da comédia e nota que não há
lugar para Arquíloco: “Se Arquíloco deve ser posto depois de Homero (e é a única
datação plausível) sua obra deverá figurar não mais como a inovação inequívoca em
que estamos acostumados a pensar, mas um remanescente desgastado dos yo/ g oi
primitivos. Arquíloco não será mais o Homero da poesia iâmbica, mas um seguidor, um
renegador da luz, e por isso, sem importância. O paradoxo é surpreendente, mas, creio,
corolário inevitável de teoria de Aristóteles, pois não pode coerentemente permitir que
o espírito “iâmbico” atinja o clímax depois que Homero já tenha mostrado o caminho
em direção ao verdadeiro espírito cômico, o geloi=on. Assim, o estranho caso de Arquíloco
mostra vivamente quão arbitrário e abstrato é o critério de Aristóteles. A própia existência
de Arquíloco, todo o caráter de sua obra, era ameaça implícita à história da comédia tal
como Aristóteles a via, isto é, um desenvolvimento consistente e contínuo em direção
ao ideal de humor inofensivo”. Aristóteles não cita Arquíloco na Poética.

– 84 –

Letras Classicas 7.pmd 84 23/9/2011, 16:24


LETRAS CLÁSSICAS, n. 7, p. 77-98, 2003.

lado, um riso anódino, inocente, sem dor, que teria sido primeiro “dramatizado”
por Homero no Margites, que por sua vez, relaciona-se com a origem da comédia,
assim como a Ilíada e a Odisséia com a origem da tragédia. A relação consiste
precisamente em que no Margites e na comédia há igualdade de objetos (ações,
caracteres e afetos baixos) e diferença de modo e de meio. O riso anódino Aristó-
teles explicita ligar-se ao Margites e por meio dele à comédia, e o riso dolorido o
filósofo implica por oposição estar ligado ao vitupério, que já vinculara à poesia
iâmbica.
Como está claro, não se trata aqui de endossar acriticamente a teoria
aristotélica para reafirmar que na comédia antiga o riso é anódino. Se o riso em
Aristófanes é anódino ou deletério não é objeto desse artigo, embora se possa
conjecturar que Aristóteles retrospectivamente considere o gênero a comédia, tendo
em mente a espécie da comédia nova escrita em grego, como será a de Menandro,
que lhe é practicamente contemporânea. O que nos importa em primeiro lugar é
dizer que Aristóteles é o primeiro teórico a esboçar dois tipos de riso, um riso
vituperioso, que pressupõe por necessidade a invectiva pessoal, e um riso sem vitu-
pério, sem dor, que o filósofo vincula de modo arbitrário à comédia, mas que é
exatamente aquele que se encontra documentado em forma narrativa no Hino
homérico a Deméter, no episódio de Iambe (vv. 192-205), epônimo do gênero da
poesia iâmbica. Esse riso podemos chamar regenerador. Em segundo lugar importa-
nos postular que essa diferença, entendida como conceito, é operante no ulterior
estabelecimento de ramificações, por assim dizer, no interior do próprio iambo, a
comédia e a sátira. Na comédia e na sátira trata-se mesmo de espécies no interior
do gênero. Esboçaremos o problema na comédia e no iambo e nos deteremos na
sátira hexamétrica latina.
No caso do iambo, não fosse por admitir a existência de ramificações, com
extrema dificuldade poder-se-ia associar no mesmo gênero o vitupério, mesmo quando
risível, (mediante o qual fontes antigas e comentadores modernos caracterizam o
gênero) àquele riso com que Iambe traz Deméter de volta à vida. Para que a eponímia
Iambe / iambo tenha alguma relevância filológica, é necessário, primeiro, que o vitu-
pério iâmbico seja risível, e, segundo, que haja, pois, dois tipos de riso. No riso
regenerador de Deméter ninguém é injuriado, não se ri a expensas de nenhuma
figura que justa ou injustamente ali se torna vítima: há riso, motivado por obscenida-
de que seja, mas não há derrisão. Muito da poesia iâmbica arcaica que restou é
vituperiosa e eventualmente risível, mas alguns fragmentos pressupõem dimensão
festiva no âmbito da mesma Deméter e de Dioniso (West: 1974, 24-25), em parti-
cular o fragmento 215, em que ocorre por primeiro o termo i)/amboj:

– 85 –

Letras Classicas 7.pmd 85 23/9/2011, 16:24


OLIVA NETO, João Angelo. Riso invectivo vs. riso anódino e as espécies de iambo...

a)lla/ m” o( lusimelh/j, w)=taire, da/mnatai po/qoj


kai\ m” ou)/t” i)a/mbwn ou)/te terpwle/wn me/lei.

mas quebra-membros, ó companheiro, doma-me o desejo


e de iambos e de festas já não cuido.

West (1974: 25) sobre o fragmento observa:

i)/amboi tem algo relacionado a terpwlai/, “festa” e tem algo em


que Arquíloco poderia ter algum interesse, se é que não estava ofen-
dido. São mais que apenas versos, são uma ocasião. Seus poemas
conhecidos como iambos devem ter sido assim chamados porque
foram associados a tais ocasiões.

No gênero cômico, tal como no iâmbico, mais de um elemento e de vária ordem


está na raiz da diferença entre a comédia antiga e a comédia nova, mas tendo em
vista a importância estrutural do riso como afeto intrínseco ao gênero, a exclu-
são do vitupério e do que riso que produzisse é das mais notáveis.6 Sabemos que
na comédia nova o corpo coletivo é a familía no espaço da casa, em vez dos
cidadãos no espaço da cidade, como em Aristófanes. Não obstante, o ataque que
agora “o pai de comédia” (personatus pater), como diz Horácio (Sat. 1, 10, 56), e
personagens similares recebem, o riso que daí advém, correlato ao desenlace
pacificador, engendra a salvação, a regeneração do corpo coletivo por cura e

6
Degani (apud De Martino, F., Vox, O, 1995: 4-5) afirma: Na iambografia arcaica podem-
se de fato distinguir dois filões substancialmente análogos aos que caracterizam o gênero
literário [sic] que se deve considerar o mais vizinho dela, que é a comédia. Nascidos de
modo e circunstâncias afins, com efeito não eram poucos os elementos que iambo e
comédia tinham em comum, de natureza não apenas formais (a começar pelo metro)
mas também substanciais. Temas e conteúdos são amiúde os mesmos: descrição de
ambientes esquálidos e personagens vulgares, apelo insistente ao ventre e ao sexo (donde
elencos de alimentos e glutoneria, de um lado, e obscenidade, de outro), e ainda
escatologia, turpilóquio, paródia mítica e literária [sic], ataque pessoal e político, derrisão
de categorias bem definidas (profetas, médicos, avarentos, pintores, escultores e outros).
É de notar, porém, que toda a comédia encontra na iambografia seus modelos: não só a
que é intérprete e herdeira das antigas falofórias, mas também aquele filão – representado
na Sicília por Epicarmo, na Ática por Crates e depois por Menandro – que renunciou à
invectiva e à escrologia, apegando-se a temas mitológicos, mu=qoi ligeiros, toques
paródicos, sentenças agudas, e mais tarde à representação da vida cotidiana”. In: De
Martino, F., Vox, O., p. 4-5.

– 86 –

Letras Classicas 7.pmd 86 23/9/2011, 16:24


LETRAS CLÁSSICAS, n. 7, p. 77-98, 2003.

conseqüente reintegração do membro nocivo e já não mais, como ocorre em


algumas peças de Aristófanes (Lâmaco n’Os acarnninses e Paflagônio n’Os cava-
leiros) pelo rebaixamento a uma condição vil, que na verdade significa ablação,
extirpação, simbólica que seja, desse membro. Como na medicina antiga, purifi-
ca-se o corpo ou pela ablação da parte doente ou pela sua cura e reintegração à
inteireza do corpo.7
A ramificação análoga ocorrerá na sátira latina nas espécies luciliânica e
horaciana, quer diretamente, o que suporia a discutível recepção da própria Poéti-
ca, quer indiretamente, supondo-se no tempo de Horácio o mais provável debate
de idéias concernentes à questão. Como se verá adiante, Horácio por duas vezes
trata da relação do riso com a comédia antiga, e se parece contradizer-se quanto a
que tipo de riso ela continha, é inequívoco que assume a existência de pelo menos
esses dois tipos e o fato de que o riso anódino será responsável, entre outros fato-
res, pelo que passou a ser a subespécie horaciana da sátira hexamétrica.
Na sátira 1, 1, o símile com que Horácio admite o riso é exemplar (vv. 23-27):

Praeterea ne sic, ut qui iocularia, ridens


percurram – quamquam ridentem dicere uerum
quid uetat? Vt pueris olim dant crustula blandi
doctores, elementa uelint ut discere prima;
sed tamen amoto quaeramus seria ludo

Além disso, não devo sobre esses assuntos discorrer


rindo tal como quem conta anedotas – embora o que proíbe alguém
de, rindo, dizer a verdade, tal como, às vezes, mestres gentis, que
dão biscoitos às crianças
para que queiram aprender as primeiras letras?
Porém, brincadeiras à parte, examinemos as coisas sérias.

7
“O tema do cômico é a integração da sociedade: toma usualmente a forma da incorporação,
nela, de uma personagem fundamental”. Em Frye (1984: 49). E também (p. 165) “A tendência
da comédia é incluir tanta gente quanto possível em sua sociedade final: as personagens
obstrutoras são mais amiúde reconciliadas, ou convertidas, do que simplesmente repudiadas”
(itálicos do original). A afirmação de Frye é verdadeira quanto a qualquer comédia nova, de
Menandro, Terêncio e Plauto, mas não a qualquer comédia de Aristófanes.

– 87 –

Letras Classicas 7.pmd 87 23/9/2011, 16:24


OLIVA NETO, João Angelo. Riso invectivo vs. riso anódino e as espécies de iambo...

Paradigmática, a passagem mostra a oposição do jocoso (multiplicado em três ter-


mos: iocularia, de iocularium, -i, “anedota”, cognato de iocus, -i, “gracejo”; ridens,
particípio de ridere, “rir”, e ludo, de ludus, -i, “brincadeira”) às coisas sérias, seria
(neutro plural do adjetivo serius, -a, -um), depois de permitir a utilização do riso
com fins veristas, dicere uerum. Entretanto, a relação do jocoso com o sério nesta
passagem de Horácio é ambígua, e é bem a ambigüidade que a faz notável. Ali, o
jocoso é primeiro inserido por meio de autoproibição da persona satírica (subjunti-
vo negativo de exortação ne percurram), comparada também a quem faz piadas
(pelo símile ut qui iocularia [dicit / dicunt]), para depois vir concedido pela oração
propriamente concessiva (quamquam) e ratificado pela pergunta retórica quis uetat,
que equivale a nemo uetat (“ninguém proíbe”). Um segundo símile (Vt pueris...),
que enaltecia pedagogicamente a eficácia do riso por compará-lo aos presentes de
professores gentis, é interrompido pelo tom corretivo da persona satírica, que reto-
ma então o assunto sério. Percebe-se, em suma, que Horácio pede permissão, con-
cessão, digamos assim, ao gênero satírico, para acrescentar uma certa jocosidade,
que, portanto, não é, em princípio, própria deste gênero. Na sátira 4, vv. 1-10, a
questão prossegue:

Eupolis atque Cratinus Aristophanes poetae


atque alii, quorum comoedia prisca uirorum est,
siquis erat dignus describi, quod malus ac fur,
quod moechus foret aut sicarius aut alioqui
famosus, multa cum libertate notabant.
Hinc omnis pendet Lucilius, hosce secutus
mutatis tantum pedibus numerisque, facetus,
emunctae naris, durus componere uersus;
nam fuit hoc uitiosus; in hora saepe ducentos,
ut magnum, uersus dictabat, stans pede in uno

Êupolis, Cratino, Aristófanes, poetas,


e outros homens a que pertence a comédia antiga,
sempre que alguém era digno de ser censurado por ser mau, ladrão,
adúltero, sicário e, por qualquer outra razão, famigerado,
eles o maculavam com grande franqueza.
Daí provém todo Lucílio; ele os seguiu mudando só pés e metros,
espirituoso,
de ar refinado, duro ao compor seus versos,
pois nisso foi vicioso: numa hora, amiúde ditava duzentos versos,

– 88 –

Letras Classicas 7.pmd 88 23/9/2011, 16:24


LETRAS CLÁSSICAS, n. 7, p. 77-98, 2003.

como se fosse algo grandioso, num só pé.

No passo Horácio vincula Lucílio, criador da sátira hexamétrica latina, aos


comediógrafos da comédia ática antiga e o vínculo é duplo: há em ambas a indica-
ção dos elementos viciosos e a permissão de alvejá-los com liberdade (libertas,
“liberdade de falar”, “falta de freio”), isto é, com grande franqueza, que significa
vitupério e o riso vituperioso. Horácio insinua o jocoso na vinculação entre comé-
dia e sátira e na menção, brevíssima, de facetus,8 “faceto”, “cheio de facécia”, “es-
pirituoso”. É tão breve o registro quão técnico é o termo: facetus, se não adentra
ainda o risível, já o toca de soslaio. Adiante, no diálogo com o fictício interlocutor
na sermocinatio, este faz ressalvas contra a verve do poeta satírico (vv. 34-38), e o
cerne da ressalva é precisamente a agressividade da derrisão:

Faenum habet in cornu, longe fuge; dummodo risum


excutiat sibi, non hic cuiquam parcet amico,
et quodcumque semel chartis illeuerit, omnis
gestiet a furno redeuntis scire lacuque
et pueros et anus.

[o poeta satírico] tem feno no chifre [i. e. vem identificado como,


em Roma, os touros bravios para prevenir transeuntes] e tu, foge
para longe: contanto que faça eclodir em si mesmo o riso, não pou-
pará nenhum amigo e tudo aquilo que uma vez tiver lavrado no
papel ansiará que saibam todos, meninos e idosas, enquanto voltam
do forno e da fonte.

Agressivo como touro do qual é mister fugir, o poeta satírico não poupará
nem mesmo os amigos, desde que vingue produzir em si mesmo ou para seu deleite
o riso, que outro não pode ser senão o de escárnio, o vituperioso. Pouco à frente na
mesma sátira, o interlocutor lhe diz: laedere gaudes [...] / et hoc studio prauos facis
(vv. 78-79, “tu te comprazes em ferir [...] e, perverso, o fazes de propósito”), com

8
Facetiae são concretamente atitudes, em geral ditos, cheios de vivacidade; facetus, quem
a tem, donde infacetus e inficetus; ver Catulo, 12, 9; 36, 19; 43, 8; 50, 8. Quintiliano
(Instituiões oratórias 6, 3, 19) assere: Facetum quoque non tantum circa ridicula opinor
consistere. Neque enim diceret Horatius facetum carminis genus natura concessum esse Vergilio,
“e facetum não considero aquilo que diga respeito ao riso, pois Horácio não diria que um
gênero faceto de poesia teria sido concedido a Virgílio pela natureza”.

– 89 –

Letras Classicas 7.pmd 89 23/9/2011, 16:24


OLIVA NETO, João Angelo. Riso invectivo vs. riso anódino e as espécies de iambo...

que torna patente a acusação por ratificar a destrutividade do riso. A persona satí-
rica então defende-se alegando9 (vv. 81-85):

Absentem qui rodit amicum


qui non defendit alio culpante, solutos
qui captat risos hominum famamque dicacis,10
fingere qui non uisa potest, comissa tacere
qui nequit, hic niger est; hunc tu, Romane, caueto

Quem corrói um amigo ausente,


quem não o defende quando outro o acusa,
quem busca obter a gargalhada dos homens e a fama de mordaz,
quem é capaz de inventar coisas que não viu,
quem não consegue calar o que lhe foi confiado, este é de espírito
negro; contra este, romano, tu deverás acautelar-te.

Como dissemos, Horácio não chega ao limite de propor a substituição do riso satí-
rico, que em princípio trazia consigo algo de agressão deletéria, por aqueloutro
anódino, mas, segundo pensamos, postula a possibilidade de coexistirem. Assim,
se é recusada a solitária presença de um riso apenas corrosivo (ver acima v. 81
rodit, de rodere, “corroer”), é de esperar que defenda para a sátira certa liberdade
derrisória contra o vicioso, função precípua do gênero, verificável ainda pela fala
de Horácio, aqui provavelmente por trás da máscara satírica, em excertos logo à
frente dos já mencionados (vv. 91-93 e vv. 103-106):

ego si risi, quod ineptus


pastillos Rufillus olet, Gargonius hircum,
liuidus et mordax uideor tibi?
liberius si

9
Acreditamos que essa fala pertença à persona satírica, não ao interlocutor. Todavia,
ainda que assim fosse, Horácio continuaria a propor acrescentar-se ao riso deletério,
originariamente solitário na sátira hexamétrica, o riso sem dor.
10
dicacis, genitivo de dicax, “mordaz”, “o que diz ditos mordazes”. Comentando a qualidade
por meio do cognato dicacitas, Quintiliano (Instituições oratórias, 6, 13, 21) confirma o
cunho eversor do riso: Dicacitas sine dubio a dicendo, quod est omni generi commune, ducta
est, proprie tamen significat sermonem cum risu aliquos incessentem, “Dicacitas [“dicacidade”,
“mordacidade”] sem dúvida provém de “dizer”, que é comum a todo gênero [de risível],
mas propriamente significa o discurso que, com riso, ultraja algumas pessoas”.

– 90 –

Letras Classicas 7.pmd 90 23/9/2011, 16:24


LETRAS CLÁSSICAS, n. 7, p. 77-98, 2003.

dixero quid, si forte iocosius, hoc mihi iuris


cum uenia dabis; insueuit pater optumus hoc me
ut fugerem exemplis uitiorum quaeque notando.

Eu, se ri porque Rufilo, inepto,


tem hálito que cheira a pastilhas, e Gargônio, hálito que cheira a
bode,
pareço-te invejoso e mordaz?
Se eu com maior liberdade,
se talvez mais jocosamente disser algo, um pouco desse direito
e indulgência me darás; a isso meu pai, homem excelente, habituou-me,
de modo que, ressaltando com exemplos cada um dos vícios, eu os
evitasse.

Na sátira 1, 10, peça nitidamente prescritiva, articulada assim com a 1, 4, que


temos lido, Horácio, admitindo já ter tratado da matéria, torna a ela, e ora não só
patenteia as duas modalidades do riso, como preceitua incluir-se no gênero satíri-
co a modalidade anódina, que aqui vincula à comédia (vv. 1-17):

Nempe incomposito dixi pede currere uersus


Lucilii. Quis tam Lucili fautor inepte est,
ut non hoc fateatur? “At idem, quod sale multo
urbem defricuit, charta laudatur eadem”.
Nec tamen hoc tribuens dederim quoque cetera; nam sic
et Laberi mimos ut pulchra poemata mirer.
Ergo non satis est risu diducere rictum
auditoris; et est quaedam tamen hic quoque uirtus.
Est breuitate opus, ut currat sententia neu se
impediat uerbis lassas onerantibus auris,
et sermone opus modo tristi, saepe iocoso,
defendente uicem modo rhetoris atque poetae,
interdum urbani, parcentis uiribus atque
extenuantis eas consulto. Ridiculum acri
fortius et melius magnas plerumque secat res.
Illi, scripta quibus comoedia prisca uiris est,
hoc stabant, hoc sunt imitandi.

– 91 –

Letras Classicas 7.pmd 91 23/9/2011, 16:24


OLIVA NETO, João Angelo. Riso invectivo vs. riso anódino e as espécies de iambo...

Falei sim que correm com pé desregrado os versos


de Lucílio. Quem é tão ineptamente partidário de Lucílio
que não admita isso? ‘Mas ele mesmo, por ter com muito sal
esfregado a cidade, é louvado na mesma página.’
Mas não é porque lhe atribuí esse mérito que eu deveria também
ter-lhe concedido outras coisas; pois assim
também teria de admirar os mimos de Labério como belos poemas.
Logo, não basta com o riso fazer contrair-se o ricto [isto é, arreganhar a
boca]
do ouvinte, se bem que haja aí certa virtude.
É preciso brevidade para que o pensamento corra e não
tropece em palavras que pesem sobre ouvidos cansados,
e a fala é preciso ora grave, amiúde jocosa,
tal que sustente ora a parte do orador e a do poeta,
e às vezes a de um homem urbano que poupa suas forças ou
as extenua de propósito. O ridículo, mais do que o acerbo,
na maioria das vezes resolve mais fortemente e melhor as grandes
questões.
Era nisso que aqueles homens que escreveram a comédia antiga
se regiam e nisso devem ser imitados.
(Destaques nossos).

Os extraordinários11 preceitos positivos desse entrecho acentuam o que pretende-


mos estabelecer: não bastar (non satis est) para a sátira, segundo Horácio, o escár-
nio, aqui referido pela perífrase risu diducere rictum, literalmente “contrair o ricto
pelo riso”, isto é, “arreganhar a boca”. Como se buscasse captar certa benevolência
para a inovação que vai efetuar, antes de propor enfim o acréscimo do riso inocen-
te ao escárnio satírico, prestes então a perder a primazia, Horácio deixa clara a

11
São extraordinários porque, em vez desfiar censuras, a sátira, no trecho, arrola conselhos;
ver Marcos Martinho dos Santos (1997: 136): “Se lá, porém, [Epistolas e Sátiras] se
distinguem por serem estas sermo [“conversa”, “diálogo”] propriamente dito, e aquelas
metade de um, aqui, distinguem-se, a meu ver, por se aterem as Epístolas, precipuamente,
à persuasão, bem entendido, da uirtus, e as Sátiras, à dissuasão, bem entendido do uitium”.
As sátiras 1, 10 e 1, 4, por eleger, como vicioso, procedimentos poéticos de um poeta
satírico, são auto-referentes, isto é, tratam da própria sátira como gênero. Daí decorre a
semelhança da passagem com o teor prescritivo da Arte poética.

– 92 –

Letras Classicas 7.pmd 92 23/9/2011, 16:24


LETRAS CLÁSSICAS, n. 7, p. 77-98, 2003.

existência também (quoque) nesse riso deletério de certo “mérito”, certa “virtude”
(quaedam uirtus), que consiste, efetivamente, em conter a carga de punição neces-
sária e obrigatória do gênero satírico. O poder corretivo da sátira fora referido na
passagem pela expressão sale multo urbem defricuit, “esfregou com muito sal a cida-
de”,12 que, referente a Lucílio, designa o gênero satírico originário em sua função
profilática. A permanência na sátira dessa virtude necessária garante-lhe, mesmo
alterada, sua continuidade como gênero. Assim, obtida a certeza de que o gênero
persevere, Horácio prescreve-lhe o acréscimo do riso anódino (que nessa passa-
gem é relacionado com o riso cômico), indicado pelos termos iocoso e ridiculum e
referendado pelo exemplo dos varonis autores (uiris) da comédia antiga. A inclu-
são do riso inocente, mirando mitigar o sarcasmo próprio do riso satírico, opera
menos na matéria e fim satíricos – vale dizer, no indiciamento e correção do vici-
oso – do que no público, ou para ser exato, na sua capacidade de atenção. A
inclusão do riso anódino pretende assim vingar no discurso o deleite retórico. Por
isso, a irrisão sem dor não só é proposta logo após a prescrição de brevidade como
também é o elemento com o qual deve vir alternado o discurso grave. A gravidade
– referida pelos termos sermone tristi e acri – e já associada a pesantes palavras
(uerbis onerantibus), segundo o poeta, não resolve (secat, de secare, literalmente
“parte”, “corta”) a grandeza das questões, melhor do que o jocoso, cuja inserção na
sátira quer alcançar também o convencimento do ouvinte, mouere, que, caro a
Quintiliano nas questões forenses, o fará muito provavelmente aludir à prescrição
do ridiculum horaciano.13 Pode-se dizer em suma que Horácio, sem desfigurar a
sátira, tornou-a menos agressiva com importar-lhe a derrisão indolor.

12
aqui defricare pontua com precisão a limpeza decorrente do ato não muito delicado de
“esfregar” (de ex + fricare), ofício do poeta satírico. Sale é sinédoque da pureza
conservante do sal e, sobretudo, termo técnico indicativo do modo picante, saboroso
com que o poeta desempenha esse ofício: o sabor é justamente o riso; ver Quintiliano,
6, 3, 18, salsum.
13
Huic diuersa uirtus, quae risum iudicis mouendo et illos tristes soluit adfectus et animum ab
intentione rerum frequenter auertit et aliquando etiam reficit et a satietate uel fatigatione
renouat. [...] Cum uideatur autem res leuis et quae ab scurris mimis, inspicientibus denique
saepe moueatur, tamen habet uim nescio an imperiosissimam et cui repugnari minimi potest.
Erumpit etiam inuitis saepe, nec uultus modo nec uocis exprimit confessionem, sed totum
corpus ui sua concutit. Rerum autem saepe (ut dixi) maximarum momenta uertit. (Institutiones
oratoriae, 6, 3, 1 e 6, 3, 9). “Agora [trato de] uma outra virtude, que, movendo o riso do
juiz, desfaz as afecções pesadas, com freqüência desvia sua atenção das acusações da
causa e às vezes até o torna refeito, revigorando-o do enfado e do cansaço. [...] Embora
pareça coisa ligeira, amiúde movida por bufões, mimos e tolos, o riso, porém, possui

– 93 –

Letras Classicas 7.pmd 93 23/9/2011, 16:24


OLIVA NETO, João Angelo. Riso invectivo vs. riso anódino e as espécies de iambo...

É precisamente a ausência de dolor na sátira de Horácio o que a difere da


sátira de Juvenal, que, um século depois, desconsiderando as prescrições de Cícero14
e Quintiliano,15 volta a cumprir o modelo de Lucílio. Por brevidade, veja-se o
mínimo preceito (1, 1, vv.165-168):

uma força que julgo imperiosíssima, à qual é difícil resistir. Com freqüência, irrompe até
contra nossa vontade e extrai nossa confissão não só pelo rosto e pela voz mas também
agita todo o corpo com sua força. Como disse, o riso reverte os momentos culminantes,
como quando quebra o ódio e a raiva”. A alusão, pensamos, apóia-se no uso, aqui e em
Horácio, de uirtus, de tristes, na menção de mimus e da semelhança entre secare e frangere
(“cortar” e “quebrar”) referentes às “grandes questões”, momenta maximarum aqui, e
magnas res em Horácio.
14
Cícero no tratado Sobre os deveres (De officiis) 1, 136, deixa clara a intenção corretiva
por inclusão [...] maxime curandum est ut eos quibuscum sermonem conferemus et uereri et
diligere uideamur. Obiurgationes etiam nonnumquam incidunt necessariae, in quibus utendum
est fortasse et uocis contentione maiore et uerborum grauitate acriore, id agendum etiam ut ea
facere uideamur irati. Sed ut ad urendum et secandum sic ad hoc genus castigandi raro inuitique
ueniemus nec umquam nisi necessario, si nulla reperietur alia medicina; sed tamen ira procul
absit, cum qua nihil recte fieri, nihil considerate potest. Magnam autem partem clementi
castigatione licet uti, grauitate tamen adiuncta, ut seueritas adhibeatur et contumelia reppelatur,
atque illud ipsum quod acerbitatis habet obiurgatio, significandum est, ipsius id causa, qui
obiurgetur, esse susceptum [...], “Importa muito que as pessoas com quem estamos falando
percebam que lhes temos respeito e consideração. E há ocasiões em que é necessário dar
alguma repreensão, levantar a voz e falar um pouco asperamente, e até mesmo agir, de
modo a parecer que estamos irados. Mas só raramente e contra a vontade chegaremos
àquele gênero de castigo, e nunca o faremos a não ser se for inevitável e se não se achar
outro remédio, tal como quando é necessário amputar e cauterizar. Mas repito que se
deve reprimir a ira, com a qual não pode haver justiça nem acordo. As repreensões leves
são as que quase sempre convém usar; é necessário que haja nelas certa gravidade, sem
nos recearmos de insultos. E todo rigor que houver nessas ocasiões é preciso mostrar
que é para benefício de quem se repreende”.
15
Instituições oratórias, 6, 3, 1 e 6, 3, 9, Huic diuersa uirtus, quae risum iudicis mouendo et
illos tristes soluit adfectus et animum ab intentione rerum frequenter auertit et aliquando
etiam reficit et a satietate uel fatigatione renouat. [...] Cum uideatur autem res leuis et quae
ab scurris mimis, inspicientibus denique saepe moueatur, tamen habet uim nescio an
imperiosissimam et cui repugnari minimi potest. Erumpit etiam inuitis saepe, nec uultus modo
nec uocis exprimit confessionem, sed totum corpus ui sua concutit. Rerum autem saepe (ut
dixi) maximarum momenta uertit, ut cum odium iramque frequentissime frangat, “Agora [trato
de] uma outra virtude, que, movendo o riso do juiz, desfaz as afecções pesadas, com
freqüência desvia sua atenção das acusações da causa e às vezes até o torna refeito,
revigorando-o do enfado e do cansaço. [...] Embora pareça coisa ligeira, amiúde movida
por bufões, mimos e tolos, o riso, porém, possui uma força que julgo imperiosíssima, à

– 94 –

Letras Classicas 7.pmd 94 23/9/2011, 16:24


LETRAS CLÁSSICAS, n. 7, p. 77-98, 2003.

ense uelut stricto quotiens Lucilius ardens


infremuit, rubet auditor cui frigida mens est
criminibus, tacita sudant praecordia culpa.
Inde irae et lacrimae.

toda vez que, como que agarrando a espada, inflamado, um Lucílio


brame, enrubesce o ouvinte cuja mente se enregela
pelos crimes, o peito sua da secreta culpa:
daí a ira e as lágrimas.

No passo, Lucilius por antonomásia significa “autor de sátira” e, designando espe-


cificamente o próprio Juvenal, acusa sua filiação ao gênero da sátira hexamétrica.
A imagem de vingador inflamado, que, espada na mão, produz no ouvinte afecções
sintomáticas dos crimes e sua culpa, opõe-se à busca horaciana de, com o riso,
evitar a gravosa acerbidade. Juvenal pode assim documentar alguns aspectos da
sátira de Lucílio dos quais Horácio se afastou. Em Juvenal, riso e ridículo podem
provir da exclusão que, naquela sociedade estratificada e nos que são como que
seu porta-voz, antes imputa ao pobre senão a culpa ao menos o fardo de sua pobre-
za do que acusa as condições sociais que o empobrecem (1, 3, vv. 147-153):

Quid quod materiam praebet causasque iocorum


omnibus hic idem, si foeda et scissa lacerna,
si toga sordidula est et rupta calceus alter
pelle patet, uel si consuto uulnere crassum
atque recens linum ostendit non una cicatrix?
Nil habet infelix paupertas durius in se,
quam quod ridiculos homines facit.

Que dizer do quem dá matéria e motivos de gozações


a todos, se a capa está feia e rasgada,
a toga já sujinha, se um pé do calçado, rompido o couro,
já se abre, ou se mais de uma cicatriz mostre o cordão grosso

qual é difícil resistir. Muitas vezes, irrompe até contra nossa vontade e extrai nossa
confissão não só pelo rosto e pela voz, mas também agita todo o corpo com sua força.
Como disse, o riso reverte os momentos culminantes, como quando desfaz o ódio e a
raiva”.

– 95 –

Letras Classicas 7.pmd 95 23/9/2011, 16:24


OLIVA NETO, João Angelo. Riso invectivo vs. riso anódino e as espécies de iambo...

com que há pouco foi suturado o ferimento?


Nada mais duro carrega consigo a infeliz pobreza
do que aquilo que faz ridículos os homens.

A despeito do fardo que é o ridículo, seria possível, porém, perceber no trecho


certa ironia que, atestando pelos signos de pobreza a miserabilidade do pobre,
denunciasse tacitamente quiçá a causa pelo efeito. Conceda-se. Todavia, numa
expressiva metáfora em que invectiva homossexuais, Juvenal ao vicioso prescreve
dorida cura (1, vv. 9-13 e 23-24):

Frontis nulla fides; quis enim non uicus abundat


tristibus obscaenis? Castigas turpia, cum sis
inter Socraticos notissima fossa cinaedos?
Hispida membra quidem et durae per brachia saetae
promittunt atrocem animum, sed podice leui
caeduntur tumidae medico ridente mariscae.
[...]
Loripedem rectus derideat, Aethiopem albus;
quis tulerit Gracchos de seditione querentes?

Nada de confiar no rosto; que viela não transborda


desses obscenos de ar grave? Castigas a torpeza, quando és
o buraco mais conhecido entre os socráticos passivos?16
De fato, os cabeludos membros e a dura pelosidade nos braços
prometem espírito atroz, mas no ânus depilado
túrgidas hemorróidas são extirpadas pelo médico que ri.

16
Para cinaedus, ver Oliva Neto (2006: p. 119, nota 83): “Kinai/doj é o que pratica relação
homossexual passiva. Na origem o termo significa “dançarino”, “o que se mexe” (kine/w,
“mover-se”), passando a indicar um tipo de prostituto. “O kináidos, a bem dizer, não é
um ‘homossexual’, nem, porém, uma pessoa comum que vez ou outra decide praticar
um ato ‘cinédico’. Kináidos era um homem socialmente desviante em todo o seu ser,
cujo desvio era observável sobretudo no comportamento que flagrantemente violava e
contravinha a definição social dominante de masculinidade. (É claro que é outra questão
se, fora das arenas de discurso jocoso ou vituperioso onde se acha o kináidos, houve de
fato kináidoi reais)”, Winkler (1990: 177). Cinaedus na poesia latina tem acepção
semelhante e em Catulo, particularmente, designa o praticante da felação”.

– 96 –

Letras Classicas 7.pmd 96 23/9/2011, 16:25


LETRAS CLÁSSICAS, n. 7, p. 77-98, 2003.

[...]
É possível que um homem normal zombe de um coxo, e um branco,
de um etíope; mas quem suportaria os Gracos reclamar de sedição?

Tendo elegido a homossexualidade passiva como objeto vicioso a invecti-


var, o poeta labora no campo semântico doença / medicina. Peludos e másculos
nas partes visíveis e ilusores assim dos desavisados, os cinaedi simulam feminili-
dade por depilar as nádegas, de costume invisíveis. Praticados os atos contra a
natureza, a contrariedade manifesta-se pelas conseqüentes hemorróides (maris-
cae), maladia incidente no ânus (podice, de podex), na parte com que se cometeu
a falta. Para efeito de cura, as excrescências são extirpadas, cortadas (caeduntur,
de caedere, termo médico, “cortar”, como o grego te/mnw) pelo cirurgião, identi-
ficado à persona satírica exatamente por meio da inverossímil derrisão. A cirur-
gia é moral, como a sátira. Punitivo e proveniente de quem cura, o riso incide no
paciente/ vicioso e é diretamente proporcional à dor. Para o médico satírico é
dor irrisória, decerto porque é alheia. Para o paciente, é riso dolorido, decerto
porque é sem graça. Assim, conclui-se que na sátira a cura do morbo social ocor-
re não por incluir o vicioso, purificado em correto ou virtuoso por uma qualquer
mezinha, mas por sua mera amputação. Esse caráter ablativo da sátira de Juve-
nal, por meio de seu riso específico é o que, por seu turno, a assemelha à espécie
luciliânica e distingüe da espécie horaciana. Se ambas as espécies se ocupam da
moral, se são assim ambas moralizantes, por reconhecer o vicioso, e se em ambas
há ridículo, diferem, por outro lado, pela natureza e fim do ridículo e sobretudo
pelo fato de que a sátira horaciana não extirpa o vicioso, mas, tendo-o purifica-
do, busca incluí-lo.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ARISTÓTELES. Poética. Tradução, comentários e apêndices de E. de Souza. Por-
to Alegre: Editora Globo, 1966.
____. Poética. Tradução e notas de A. M. Valente. Lisboa: Serviço de Educação e
Bolsas / Fundação Calouste Gulbenkian, 2004.
____. Peri\ poihtikh/j, Ars poetica, Poetica. Edición trilingüe por V. G. Yebra. Madrid:
Gredos, 1974.
ARISTOTLE. Poetics. Edited and translated by S. Halliwell. Cambridge/ London:
Harvard University Press, 1999.

– 97 –

Letras Classicas 7.pmd 97 23/9/2011, 16:25


OLIVA NETO, João Angelo. Riso invectivo vs. riso anódino e as espécies de iambo...

____. Aristotle’s Theory of Poetry and Fine Art. With critical text and translation
and commentary of the Poetics by S. H. Butcher. 4 ed. London: 1932.
DE MARTINO, F.; VOX, O. La musa e il canto. Antologia di lirici greci. Roma / Bari:
Editori Laterza, 1995.
ELSE, G. F. Aristotles’s Poetics, the argunment. Cambridge: Harvard University Press,
1967. [1ª ed. 1957]
FRYE, N. Anatomia da crítica. 2 ed. São Paulo: Cultrix, 1984.
MARTINHO DOS SANTOS, M. “O monstro da Arte poética de Horácio”, Letras
Clássicas, São Paulo, n. 4, p. 191-265, 2000.
OLIVA NETO, J. A. Falo no jardim, Priapéia grega, Priapéia latina. Cotia: Ateliê
Editorial, Campinas: Editora da Unicamp, 2006.
WEST, M. Studies in Greek elegy and iambus. Berlin / New York: Walter de Gruyter,
1974.
WINKLER, J. “Laying down the law: the oversight of men’s sexual behavior in
classical Athens”. In: HALPERIN, D.; WINKLER, J.; ZEITLIN, F. I. (org.).
Before sexuality: the construction of erotic experience in the ancient Greek world.
Princeton: Princeton University Press, 1990. p. 171-209.

OLIVA NETO, João Angelo. Invective humor or harmless humor: the


species of iambus, comedy and satire.
ABSTRACT: The article’s goal is to make clear that in Poetics, IV
1448b, 23-40 and V, 1449a, 32-35, Aristotle takes for granted the exist-
ence of at least two kinds of humor, invective and harmless, which he
correlates to the iambus and comedy respectively. On the grounds of Gerald
Else’s reading and interpretation of those passages (Aristotle’s Poetics,
the argument, 1967), I try to show that the philosopher subscribes the
harmless humor rather than the invective one and how the difference
between them produces species in the iambus, comedy and hexametrical
satire.
KEY WORDS: Aristotle’s Poetics; invective humor; harmless humor;
iambus, comedy, satire

– 98 –

Letras Classicas 7.pmd 98 23/9/2011, 16:25

Você também pode gostar