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diespa/sqh de\ kata\ ta\ oi)kei=a h)/qh h( poi/hsij: [25] oi( me\n ga\r
semno/teroi ta\j kala\j e)mimou=nto pra/ceij kai\ ta\j tw=n toiou/
twn, oi( de\ eu)tele/steroi ta\j tw=n fau/lwn, prw=ton yo/gouj
poiou=ntej, w(/sper e(/teroi u(/mnouj kai\ e)gkw/mia. tw=n me\n ou)=n pro\
(Omh/rou ou)deno\j e)/xomen ei)pei=n toiou=ton poi/hma, ei)ko\j de\ ei)=nai
pollou/j, a)po\ de\ (Omh/rou a)rcame/noij [30] e)/stin, oi(=on e)kei/nou o(
Margi/thj kai\ ta\ toiau=ta. e)n oi(=j kata\ to\ a(rmo/tton kai\ to\
i)ambei=on h)=lqe me/tronVdio\ kai\ i)ambei=on kalei=tai nu=n, o(/ti e)n tw=?
me/trw? tou/tw? i)a/mbizon a)llh/louj. kai\ e)ge/nonto tw=n palaiw=n oi(
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me\n h(rwikw=n oi( de\ i)a/mbwn poihtai/. w(/sper de\ kai\ ta\ spoudai=a
ma/lista poihth\j (/Omhroj [35] h)=n (mo/noj ga\r ou)x o(/ti eu)= a)lla\
kai\ mimh/seij dramatika\j e)poi/hsen), ou(/twj kai\ to\ th=j kwmw?di/
aj sxh= m a prw= t oj u( p e/ d eicen, ou) yo/ g on a) l la\ to\ geloi= o n
dramatopoih/saj: o( ga\r Margi/thj a)na/logon e)/xei, w(/sper )Iliaj \
kai\ h( )Odu/sseia pro\j ta\j tragw?di/aj, ou(tw kai\ ou(=toj pro\j taj \
kwm%di/aj (Poética, IV, 1448b, 23-40).
1
Eudoro de Souza não apenas conhece o texto de Else, como acolhe na edição que
consultamos (Aristóteles, 1966: 112, nota ao §116) a proposta de Else para oi)kei=a,
ligando o termo a poi/esij, como acrescenta a tradução exegética para o trecho: “a
poesia tomou diferentes formas segundo as diversas espécies de caráter que naturalmente
lhe pertencem”.
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A importância da leitura de Else pode ser avaliada se se pensar, por exemplo, nas
composições de autores como Calímaco, Horácio e Sêneca à luz da interpretação
“usual” levada, como deveria ser, às últimas conseqüências: como Calímaco pôde
compor os Hinos, à maneira homérica, poemas elevados, e os Iambos, ainda que
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estes já não sejam tão invectivos quanto aos arcaicos? Como o mesmo Catulo teria
podido compor o poema 97, que é pleno de torpilóquio e o 101, que é prece diante
do túmulo do irmão? Como seria possível que o mesmo Horácio que compôs o
Carmen Saeculare, as odes civis e os poemas laudatórios a Augusto, que são eleva-
dos, tivesse composto os Epodos, em particular o epodo 8, que é abosolutamente
baixo, para não mencionar as Sátiras? Como poderia ter Sêneca, a quem se atribui
hoje a Apocoloquintose, ter composto também as tragédias?
A vinculação do gênero poema, elevado ou baixo, ao caráter do poeta como
pessoa e não como poeta exclui a poluei/deia,2 a possibilidade de cultivar vários
gêneros, que Calímaco não só endossava, mas encarecia, e que como se viu vários
poetas praticavam.
Seguindo de perto a releitura de Else do mesmo trecho, mas passando ao
segundo objetivo deste artigo, propomos entronizar aqui a sugestão do comentador
quanto à lição do texto da Poética e apontar como a nova leitura já antecipa a
discriminação de riso que Aristóteles fará em 1449a, 32-35 (o riso sem dor, geloi=on
a)/neu o)du/nhj). Na passagem acima Else (p. 137) observa “que e)n oi(=j não pode
referir-se o( Margi/thj kai\ ta\ toiau=ta, “Margites e poemas semelhantes”, uma
vez que a adoção de verso iâmbico está ligada a propósitos satíricos (i)a/mbizon
a)llh/louj), ao passo que em 1448b, 38 Aristóteles deixa claro que considera o
Margites notável porque não era satírico”. Assim propõe (p. 138) que a passagem
tw=n me\n ou)=n pro\ (Omh/rou ou)deno\j e)/xomen ei)pei=n toiou=ton poi/hma, ei)ko\j de\
ei)=nai pollou/j, a)po\ de\ (Omh/rou a)rcame/noij [30] e)/stin, oi(=on e)kei/nou o( Margi/
thj venha após i)a/mbwn poihtai/, ou na tradução que “Não podemos, é certo, citar
poemas deste gênero dos [poetas que viveram] antes de Homero, se bem que, verossimil-
mente, muitos tenham existido; mas, a começar em Homero, [30] temos o Margites e
outros poemas semelhantes” venha após “outros o foram em verso jâmbico”, de modo
que e)n oi(=j agora tem por antecedente yo/gouj; toiou=ton poi/hma se refere a
2
ver Oliva Neto (2006: pp. 114-115): poluei/deia, de polý (polu/, “vários”) + éidos
(ei)=doj, “gênero”) [...] O termo ocorre numa diegesis, isto é, num comentário antigo a
um verso do Iambo 13 de Calímaco (frag. 203, Pfeiffer): Mou=sai kalai\ ka)/pollon, oi(=j
e)gw\ spe/ndw, “Belas Musas e Apolo, aos quais faço libações”. O comentário na Diegesis
9, 32-35 diz: )En tou/t% pro\j tou\j katamemfome/nouj au)to\n e)pi\ t$= polueidei/# w(=n /
[35] gra/fei poihma/twn a)pantw=n fhsin o(/ti/ )/Iwna mimei=tai to\n tragiko/n:/ a)ll”
ou)de\ to\n te/ktona/ tij me/mfetai polueidh= /skeu/h tektaino/menon, “Neste [poema],
[dirigindo-se] aos que o reprovam pela/ pluralidade de gêneros dos poemas que escreve,
[Calímaco] diz / que imita o tragediógrafo Íon: ninguém, de fato, / censura o artífice que
faz utensílios multígenos”.
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i)a/mbwn, não diretamente a yo/gouj; me\n ou)=n assume seu lugar, resumindo uma
etapa da narrativa e conduzindo à seguinte (a)po\ de\ (Omh/rou etc); ou)deno/j e
pollou/j são mais plausíveis vindo logo depois de i)a/mbwn pointai/ do que de
yo/gouj poiou=ntej, w(/sper e(/teroi u(/mnouj kai\ e)gkw/mia, pois agora referem-se a
pessoas não a gêneros. Rearranjados, o texto e tradução de Eudoro ficam assim:3
diespa/sqh de\ kata\ ta\ oi)kei=a h)/qh h( poi/hsij: [25] oi( me\n ga\r
semno/teroi ta\j kala\j e)mimou=nto pra/ceij kai\ ta\j tw=n toiou/
twn, oi( de\ eu)tele/steroi ta\j tw=n fau/lwn, prw=ton yo/gouj
poiou=ntej, w(/sper e(/teroi u(/mnouj kai\ e)gkw/mia: e)n oi(=j kata\ to\
a(rmo/tton kai\ to\ i)ambei=on h)l= qe me/tronVdio\ kai\ i)ambei=on kalei=tai
nu=n, o(/ti e)n tw=? me/trw? tou/tw? i)a/mbizon a)llh/louj. kai\ e)ge/nonto
tw=n palaiw=n oi( me\n h(rwikw=n oi( de\ i)a/mbwn poihtai/ tw=n me\n ou)=n
pro\ (Omh/rou ou)deno\j e)/xomen ei)pei=n toiou=ton poi/hma, ei)ko\j de\
ei)=nai pollou/j, a)po\ de\ (Omh/rou a)rcame/noij [30] e)/stin, oi(=on e)kei/
nou o( Margi/thj kai\ ta\ toiau=ta. w(/sper de\ kai\ ta\ spoudai=a ma/
lista poihth\j (/Omhroj [35] h)=n (mo/noj ga\r ou)x o(/ti eu)= a)lla\ kai\
mimh/seij dramatika\j e)poi/hsen), ou(/twj kai\ to\ th=j kwmw?di/aj
sxh= m a prw= t oj u( p e/ d eicen, ou) yo/ g on a) l la\ to\ geloi= o n
dramatopoih/saj: o( ga\r Margi/thj a)na/logon e)/xei, w(/sper )Iliaj \
kai\ h( )Odu/sseia pro\j ta\j tragw?di/aj, ou(tw kai\ ou(=toj pro\j ta\j
kwm%di/aj.
3
Else (p. 137) entende que oi( me\n ga\ r oemno/teroi (pessoas de mais alto ânimo)
oi( de\ eu\tele/oteroi (“as de mais baixas inclinações”) dizem respeito ainda ao estágio da
improvisação, não a poetas propriamente ditos, de que se falará só a partir de kai\
e)ge/nonto tw=n talaiw=n...toihtai/ (“entre os antigos uns foram poetas”). Uilizei chaves
nas adaptações de texto necessárias para diferençiá-las das marcas de Eudoro de Souza,
que utiliza colchetes e sublinhei em grego e em português a passagem deslocada para
facilitar a compreensão das diferenças que produz.
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Else, pp. 144-145, confirma: “De fato Aristóteles trai aqui, se não um interesse maior na
parte cômica, ao menos preocupação maior com ela. Havia pequena evidência
documental da história mais antiga dos fau=la, como ele admite nos seus momentos
mais cândidos; pior ainda, o termo e o conceito ‘comédia’ cobriam dois tipos totalmente
diferentes de performance e de humor. Como se poderiam arrolar o Margites e Arquíloco,
Epicarmo e Crátino na mesma série, como se fossem todos uma coisa só? As idéias
apriorísticas de Aristóteles modelam sua ‘história’ ao ponto da efetiva distorção.
Yo/goj, invectiva ou sátira, o ponto de partida, é para ele o tipo errado de graça, algo a
ser abandonado. Pela mesma razão, to\ geloi=on, humor inofensivo, é o te/loj em direção
do qual toda a criação cômica se move. O drama satírico estava ainda engatinhando em
Atenas muito tempo depois de poder ter aberto caminho ao tipo correto de farsa, e por
outro lado, a verdadeira postura cômica estava embaraçosamente atrasada para fazer
sua aparição. Aristóteles agarra-se no Margites com alguma urgência como um dos poucos
fenômenos que se ajustavam à sua teoria. Parece de fato que a necessidade de evidência
para escorar a teoria obnubilou-lhe o senso crítico, pois o homem que percebeu que
eram espúrios alguns ou todos os poemas atribuídos a Orfeu deveria ter sido capaz de
detectar que o Margites não era do autor da Ilíada. Mas Aristóteles precisava, para o
espírito da comédia, de um impulso remoto o bastante para exercer influência na comédia
dórica, e por meio dela, na comédia ática. A única literatura [sic] que oferecia qualquer
possibilidade semelhante eram os pai/gnia da tradição épica e aos olhos de Aristóteles
o fato de deterem-se no ‘risível’ e não na invectiva pessoal era conquista tão elevada,
considerada em oposição ao legado dos yo/goi primitivos, que não poderia ter sido
atribuída a ninguém a não ser a Homero. Daí, o divino Homero, supremo poeta no
campo da poesia elevada dever levar os louros do gênero baixo também”.
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no Margites foi ter estabelecido as bases da comédia por ter acolhido o riso
sem dor.5
Aristóteles volta à comédia logo a seguir e o que até aqui implicara passa a
explicitar, discriminando de fato agora modalidades dois tipos de riso:
Essa passagem é a mais antiga discriminação no torpe ou no vício, que assim pode
ser ou pode não ser ridículo. Associada ao final da passagem anterior, indica-se
aqui que para Aristóteles há, de um lado, um riso dolorido e prejudicial: este riso
integra os vitupérios ainda não poéticos, que poderíamos inferir que são rituais, e
também, mais tarde, a configuração poética deles, que outra coisa não é do que a
poesia iâmbica: deve assumir-se aqui a correlação vitupério-riso. E há, de outro
5
Assim procedendo, Aristóteles inevitavelmente desentroniza a figura de Arquíloco, como
eu(reth=j do gênero iâmbico. Else (p. 148) nota que na história aristotélica da comédia,
há um grande vazio entre Homero do Margites e o início da comédia e nota que não há
lugar para Arquíloco: “Se Arquíloco deve ser posto depois de Homero (e é a única
datação plausível) sua obra deverá figurar não mais como a inovação inequívoca em
que estamos acostumados a pensar, mas um remanescente desgastado dos yo/ g oi
primitivos. Arquíloco não será mais o Homero da poesia iâmbica, mas um seguidor, um
renegador da luz, e por isso, sem importância. O paradoxo é surpreendente, mas, creio,
corolário inevitável de teoria de Aristóteles, pois não pode coerentemente permitir que
o espírito “iâmbico” atinja o clímax depois que Homero já tenha mostrado o caminho
em direção ao verdadeiro espírito cômico, o geloi=on. Assim, o estranho caso de Arquíloco
mostra vivamente quão arbitrário e abstrato é o critério de Aristóteles. A própia existência
de Arquíloco, todo o caráter de sua obra, era ameaça implícita à história da comédia tal
como Aristóteles a via, isto é, um desenvolvimento consistente e contínuo em direção
ao ideal de humor inofensivo”. Aristóteles não cita Arquíloco na Poética.
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lado, um riso anódino, inocente, sem dor, que teria sido primeiro “dramatizado”
por Homero no Margites, que por sua vez, relaciona-se com a origem da comédia,
assim como a Ilíada e a Odisséia com a origem da tragédia. A relação consiste
precisamente em que no Margites e na comédia há igualdade de objetos (ações,
caracteres e afetos baixos) e diferença de modo e de meio. O riso anódino Aristó-
teles explicita ligar-se ao Margites e por meio dele à comédia, e o riso dolorido o
filósofo implica por oposição estar ligado ao vitupério, que já vinculara à poesia
iâmbica.
Como está claro, não se trata aqui de endossar acriticamente a teoria
aristotélica para reafirmar que na comédia antiga o riso é anódino. Se o riso em
Aristófanes é anódino ou deletério não é objeto desse artigo, embora se possa
conjecturar que Aristóteles retrospectivamente considere o gênero a comédia, tendo
em mente a espécie da comédia nova escrita em grego, como será a de Menandro,
que lhe é practicamente contemporânea. O que nos importa em primeiro lugar é
dizer que Aristóteles é o primeiro teórico a esboçar dois tipos de riso, um riso
vituperioso, que pressupõe por necessidade a invectiva pessoal, e um riso sem vitu-
pério, sem dor, que o filósofo vincula de modo arbitrário à comédia, mas que é
exatamente aquele que se encontra documentado em forma narrativa no Hino
homérico a Deméter, no episódio de Iambe (vv. 192-205), epônimo do gênero da
poesia iâmbica. Esse riso podemos chamar regenerador. Em segundo lugar importa-
nos postular que essa diferença, entendida como conceito, é operante no ulterior
estabelecimento de ramificações, por assim dizer, no interior do próprio iambo, a
comédia e a sátira. Na comédia e na sátira trata-se mesmo de espécies no interior
do gênero. Esboçaremos o problema na comédia e no iambo e nos deteremos na
sátira hexamétrica latina.
No caso do iambo, não fosse por admitir a existência de ramificações, com
extrema dificuldade poder-se-ia associar no mesmo gênero o vitupério, mesmo quando
risível, (mediante o qual fontes antigas e comentadores modernos caracterizam o
gênero) àquele riso com que Iambe traz Deméter de volta à vida. Para que a eponímia
Iambe / iambo tenha alguma relevância filológica, é necessário, primeiro, que o vitu-
pério iâmbico seja risível, e, segundo, que haja, pois, dois tipos de riso. No riso
regenerador de Deméter ninguém é injuriado, não se ri a expensas de nenhuma
figura que justa ou injustamente ali se torna vítima: há riso, motivado por obscenida-
de que seja, mas não há derrisão. Muito da poesia iâmbica arcaica que restou é
vituperiosa e eventualmente risível, mas alguns fragmentos pressupõem dimensão
festiva no âmbito da mesma Deméter e de Dioniso (West: 1974, 24-25), em parti-
cular o fragmento 215, em que ocorre por primeiro o termo i)/amboj:
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Degani (apud De Martino, F., Vox, O, 1995: 4-5) afirma: Na iambografia arcaica podem-
se de fato distinguir dois filões substancialmente análogos aos que caracterizam o gênero
literário [sic] que se deve considerar o mais vizinho dela, que é a comédia. Nascidos de
modo e circunstâncias afins, com efeito não eram poucos os elementos que iambo e
comédia tinham em comum, de natureza não apenas formais (a começar pelo metro)
mas também substanciais. Temas e conteúdos são amiúde os mesmos: descrição de
ambientes esquálidos e personagens vulgares, apelo insistente ao ventre e ao sexo (donde
elencos de alimentos e glutoneria, de um lado, e obscenidade, de outro), e ainda
escatologia, turpilóquio, paródia mítica e literária [sic], ataque pessoal e político, derrisão
de categorias bem definidas (profetas, médicos, avarentos, pintores, escultores e outros).
É de notar, porém, que toda a comédia encontra na iambografia seus modelos: não só a
que é intérprete e herdeira das antigas falofórias, mas também aquele filão – representado
na Sicília por Epicarmo, na Ática por Crates e depois por Menandro – que renunciou à
invectiva e à escrologia, apegando-se a temas mitológicos, mu=qoi ligeiros, toques
paródicos, sentenças agudas, e mais tarde à representação da vida cotidiana”. In: De
Martino, F., Vox, O., p. 4-5.
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“O tema do cômico é a integração da sociedade: toma usualmente a forma da incorporação,
nela, de uma personagem fundamental”. Em Frye (1984: 49). E também (p. 165) “A tendência
da comédia é incluir tanta gente quanto possível em sua sociedade final: as personagens
obstrutoras são mais amiúde reconciliadas, ou convertidas, do que simplesmente repudiadas”
(itálicos do original). A afirmação de Frye é verdadeira quanto a qualquer comédia nova, de
Menandro, Terêncio e Plauto, mas não a qualquer comédia de Aristófanes.
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Agressivo como touro do qual é mister fugir, o poeta satírico não poupará
nem mesmo os amigos, desde que vingue produzir em si mesmo ou para seu deleite
o riso, que outro não pode ser senão o de escárnio, o vituperioso. Pouco à frente na
mesma sátira, o interlocutor lhe diz: laedere gaudes [...] / et hoc studio prauos facis
(vv. 78-79, “tu te comprazes em ferir [...] e, perverso, o fazes de propósito”), com
8
Facetiae são concretamente atitudes, em geral ditos, cheios de vivacidade; facetus, quem
a tem, donde infacetus e inficetus; ver Catulo, 12, 9; 36, 19; 43, 8; 50, 8. Quintiliano
(Instituiões oratórias 6, 3, 19) assere: Facetum quoque non tantum circa ridicula opinor
consistere. Neque enim diceret Horatius facetum carminis genus natura concessum esse Vergilio,
“e facetum não considero aquilo que diga respeito ao riso, pois Horácio não diria que um
gênero faceto de poesia teria sido concedido a Virgílio pela natureza”.
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que torna patente a acusação por ratificar a destrutividade do riso. A persona satí-
rica então defende-se alegando9 (vv. 81-85):
Como dissemos, Horácio não chega ao limite de propor a substituição do riso satí-
rico, que em princípio trazia consigo algo de agressão deletéria, por aqueloutro
anódino, mas, segundo pensamos, postula a possibilidade de coexistirem. Assim,
se é recusada a solitária presença de um riso apenas corrosivo (ver acima v. 81
rodit, de rodere, “corroer”), é de esperar que defenda para a sátira certa liberdade
derrisória contra o vicioso, função precípua do gênero, verificável ainda pela fala
de Horácio, aqui provavelmente por trás da máscara satírica, em excertos logo à
frente dos já mencionados (vv. 91-93 e vv. 103-106):
9
Acreditamos que essa fala pertença à persona satírica, não ao interlocutor. Todavia,
ainda que assim fosse, Horácio continuaria a propor acrescentar-se ao riso deletério,
originariamente solitário na sátira hexamétrica, o riso sem dor.
10
dicacis, genitivo de dicax, “mordaz”, “o que diz ditos mordazes”. Comentando a qualidade
por meio do cognato dicacitas, Quintiliano (Instituições oratórias, 6, 13, 21) confirma o
cunho eversor do riso: Dicacitas sine dubio a dicendo, quod est omni generi commune, ducta
est, proprie tamen significat sermonem cum risu aliquos incessentem, “Dicacitas [“dicacidade”,
“mordacidade”] sem dúvida provém de “dizer”, que é comum a todo gênero [de risível],
mas propriamente significa o discurso que, com riso, ultraja algumas pessoas”.
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11
São extraordinários porque, em vez desfiar censuras, a sátira, no trecho, arrola conselhos;
ver Marcos Martinho dos Santos (1997: 136): “Se lá, porém, [Epistolas e Sátiras] se
distinguem por serem estas sermo [“conversa”, “diálogo”] propriamente dito, e aquelas
metade de um, aqui, distinguem-se, a meu ver, por se aterem as Epístolas, precipuamente,
à persuasão, bem entendido, da uirtus, e as Sátiras, à dissuasão, bem entendido do uitium”.
As sátiras 1, 10 e 1, 4, por eleger, como vicioso, procedimentos poéticos de um poeta
satírico, são auto-referentes, isto é, tratam da própria sátira como gênero. Daí decorre a
semelhança da passagem com o teor prescritivo da Arte poética.
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existência também (quoque) nesse riso deletério de certo “mérito”, certa “virtude”
(quaedam uirtus), que consiste, efetivamente, em conter a carga de punição neces-
sária e obrigatória do gênero satírico. O poder corretivo da sátira fora referido na
passagem pela expressão sale multo urbem defricuit, “esfregou com muito sal a cida-
de”,12 que, referente a Lucílio, designa o gênero satírico originário em sua função
profilática. A permanência na sátira dessa virtude necessária garante-lhe, mesmo
alterada, sua continuidade como gênero. Assim, obtida a certeza de que o gênero
persevere, Horácio prescreve-lhe o acréscimo do riso anódino (que nessa passa-
gem é relacionado com o riso cômico), indicado pelos termos iocoso e ridiculum e
referendado pelo exemplo dos varonis autores (uiris) da comédia antiga. A inclu-
são do riso inocente, mirando mitigar o sarcasmo próprio do riso satírico, opera
menos na matéria e fim satíricos – vale dizer, no indiciamento e correção do vici-
oso – do que no público, ou para ser exato, na sua capacidade de atenção. A
inclusão do riso anódino pretende assim vingar no discurso o deleite retórico. Por
isso, a irrisão sem dor não só é proposta logo após a prescrição de brevidade como
também é o elemento com o qual deve vir alternado o discurso grave. A gravidade
– referida pelos termos sermone tristi e acri – e já associada a pesantes palavras
(uerbis onerantibus), segundo o poeta, não resolve (secat, de secare, literalmente
“parte”, “corta”) a grandeza das questões, melhor do que o jocoso, cuja inserção na
sátira quer alcançar também o convencimento do ouvinte, mouere, que, caro a
Quintiliano nas questões forenses, o fará muito provavelmente aludir à prescrição
do ridiculum horaciano.13 Pode-se dizer em suma que Horácio, sem desfigurar a
sátira, tornou-a menos agressiva com importar-lhe a derrisão indolor.
12
aqui defricare pontua com precisão a limpeza decorrente do ato não muito delicado de
“esfregar” (de ex + fricare), ofício do poeta satírico. Sale é sinédoque da pureza
conservante do sal e, sobretudo, termo técnico indicativo do modo picante, saboroso
com que o poeta desempenha esse ofício: o sabor é justamente o riso; ver Quintiliano,
6, 3, 18, salsum.
13
Huic diuersa uirtus, quae risum iudicis mouendo et illos tristes soluit adfectus et animum ab
intentione rerum frequenter auertit et aliquando etiam reficit et a satietate uel fatigatione
renouat. [...] Cum uideatur autem res leuis et quae ab scurris mimis, inspicientibus denique
saepe moueatur, tamen habet uim nescio an imperiosissimam et cui repugnari minimi potest.
Erumpit etiam inuitis saepe, nec uultus modo nec uocis exprimit confessionem, sed totum
corpus ui sua concutit. Rerum autem saepe (ut dixi) maximarum momenta uertit. (Institutiones
oratoriae, 6, 3, 1 e 6, 3, 9). “Agora [trato de] uma outra virtude, que, movendo o riso do
juiz, desfaz as afecções pesadas, com freqüência desvia sua atenção das acusações da
causa e às vezes até o torna refeito, revigorando-o do enfado e do cansaço. [...] Embora
pareça coisa ligeira, amiúde movida por bufões, mimos e tolos, o riso, porém, possui
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uma força que julgo imperiosíssima, à qual é difícil resistir. Com freqüência, irrompe até
contra nossa vontade e extrai nossa confissão não só pelo rosto e pela voz mas também
agita todo o corpo com sua força. Como disse, o riso reverte os momentos culminantes,
como quando quebra o ódio e a raiva”. A alusão, pensamos, apóia-se no uso, aqui e em
Horácio, de uirtus, de tristes, na menção de mimus e da semelhança entre secare e frangere
(“cortar” e “quebrar”) referentes às “grandes questões”, momenta maximarum aqui, e
magnas res em Horácio.
14
Cícero no tratado Sobre os deveres (De officiis) 1, 136, deixa clara a intenção corretiva
por inclusão [...] maxime curandum est ut eos quibuscum sermonem conferemus et uereri et
diligere uideamur. Obiurgationes etiam nonnumquam incidunt necessariae, in quibus utendum
est fortasse et uocis contentione maiore et uerborum grauitate acriore, id agendum etiam ut ea
facere uideamur irati. Sed ut ad urendum et secandum sic ad hoc genus castigandi raro inuitique
ueniemus nec umquam nisi necessario, si nulla reperietur alia medicina; sed tamen ira procul
absit, cum qua nihil recte fieri, nihil considerate potest. Magnam autem partem clementi
castigatione licet uti, grauitate tamen adiuncta, ut seueritas adhibeatur et contumelia reppelatur,
atque illud ipsum quod acerbitatis habet obiurgatio, significandum est, ipsius id causa, qui
obiurgetur, esse susceptum [...], “Importa muito que as pessoas com quem estamos falando
percebam que lhes temos respeito e consideração. E há ocasiões em que é necessário dar
alguma repreensão, levantar a voz e falar um pouco asperamente, e até mesmo agir, de
modo a parecer que estamos irados. Mas só raramente e contra a vontade chegaremos
àquele gênero de castigo, e nunca o faremos a não ser se for inevitável e se não se achar
outro remédio, tal como quando é necessário amputar e cauterizar. Mas repito que se
deve reprimir a ira, com a qual não pode haver justiça nem acordo. As repreensões leves
são as que quase sempre convém usar; é necessário que haja nelas certa gravidade, sem
nos recearmos de insultos. E todo rigor que houver nessas ocasiões é preciso mostrar
que é para benefício de quem se repreende”.
15
Instituições oratórias, 6, 3, 1 e 6, 3, 9, Huic diuersa uirtus, quae risum iudicis mouendo et
illos tristes soluit adfectus et animum ab intentione rerum frequenter auertit et aliquando
etiam reficit et a satietate uel fatigatione renouat. [...] Cum uideatur autem res leuis et quae
ab scurris mimis, inspicientibus denique saepe moueatur, tamen habet uim nescio an
imperiosissimam et cui repugnari minimi potest. Erumpit etiam inuitis saepe, nec uultus modo
nec uocis exprimit confessionem, sed totum corpus ui sua concutit. Rerum autem saepe (ut
dixi) maximarum momenta uertit, ut cum odium iramque frequentissime frangat, “Agora [trato
de] uma outra virtude, que, movendo o riso do juiz, desfaz as afecções pesadas, com
freqüência desvia sua atenção das acusações da causa e às vezes até o torna refeito,
revigorando-o do enfado e do cansaço. [...] Embora pareça coisa ligeira, amiúde movida
por bufões, mimos e tolos, o riso, porém, possui uma força que julgo imperiosíssima, à
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qual é difícil resistir. Muitas vezes, irrompe até contra nossa vontade e extrai nossa
confissão não só pelo rosto e pela voz, mas também agita todo o corpo com sua força.
Como disse, o riso reverte os momentos culminantes, como quando desfaz o ódio e a
raiva”.
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Para cinaedus, ver Oliva Neto (2006: p. 119, nota 83): “Kinai/doj é o que pratica relação
homossexual passiva. Na origem o termo significa “dançarino”, “o que se mexe” (kine/w,
“mover-se”), passando a indicar um tipo de prostituto. “O kináidos, a bem dizer, não é
um ‘homossexual’, nem, porém, uma pessoa comum que vez ou outra decide praticar
um ato ‘cinédico’. Kináidos era um homem socialmente desviante em todo o seu ser,
cujo desvio era observável sobretudo no comportamento que flagrantemente violava e
contravinha a definição social dominante de masculinidade. (É claro que é outra questão
se, fora das arenas de discurso jocoso ou vituperioso onde se acha o kináidos, houve de
fato kináidoi reais)”, Winkler (1990: 177). Cinaedus na poesia latina tem acepção
semelhante e em Catulo, particularmente, designa o praticante da felação”.
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[...]
É possível que um homem normal zombe de um coxo, e um branco,
de um etíope; mas quem suportaria os Gracos reclamar de sedição?
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