Você está na página 1de 62
Nesta obra, Pedro Demo chama a atencao para que, 140 importante quanto defender o direlto de assis- téncia nas politicas socials, é perceber que, se malfei- ta, prejudica a cidadania popular, ao estabelecer vin- culos de dependéncia clientelista. Se por um lado o reconhecimento do direito incondicional a sobrevivén- Cia foi notavel conquista no Estado de bem-estar social, if ; 6 preciso estar atento ao risco sempre presente de re- | duzir o cidadéo a mero beneficiatic. Enquanto se tenta rosolvcr algum problema material, pode-eo agravar a pobreza politica, acentuando a condicao de ignorancia do assistido. ~ EDUCACAO. ~ PELO AVESSO ASSISTENCIA COMO DIREITO E COMO PROBLEMA Um caminho possivel para reouperar o horizonte da cidadania, ¢ com ele a perspectiva de conquista da capacidade popular de fazer historia, é combiner as- sisténcia com educagdo, desde que esta se coloque a servico da cidadania € se torne instrumento central do combate a pobreza politica. I | | | 85241907395) Tao Importante quanto cefender o ai- reito de assisiéncia nas pollticas sociais, € também pereeber que, se maifeita, solapa a cidadania populer, ao estabele- cer vinculos de dependéncie clientelista. Fol notavel conquista no Estado de bem- estar o reconhecimenta do direite incon- Gicional & sobrevivéncia, mas € mister atentar para 0 risco sempre presente de Teduziro cldadéo a mero beneficiario. En- cuanto se tenta resolver algum problema Material, pode-se agravar a eobreza poll- tea, acentuando @ condigao de ignoran: cia do assistico. O ago mals forte desta ignorancia 6 aceltar que a exclusao social posse 6¢r sanada pelos que principaimen- tea causam, Enire os causadores da ex- ‘cluso social tambem esta o Estado, que, mesmo sendo correlagao de forcas, pen- de para o lado dos mais favorecidos, como 6 corrente na oritica de inspiracéio marxis- ta, As assisténoias fendem a ser multe mais negocio interessante para quem as- sisie do quo para quem 6 assistido. Como regra, o preco da assisténcia é a subelternidade, Por isso, também tornou- 0 a politica mals apregoada do Estado de bem-estar, pois Ihe € conveniente ter 0 pobre a seus pés, dopendendo ce miga- Ihas publicas. A assisténcia sempre entoa 0 tetrao dos airettos, mas ¢ cantado de preferéncia pelas primelras-damas”, en- quanto a populacao assistida permanece calada. Assim, encontramos em assistén- cias geralmente dais problemas escabro- $06) S80 infimas, menos que minimas, e eneardidamente manipulativas. Mesmo cue a cidadania assistida seja ganhe hi t6rlco, 6 preciso recuperar o hor zone da cidadania e com ele a perspectiva ce con- Quista da capacidade populer de fazorhis- ‘t6ria propria. Um caminho possivel é com binar essisténcla com educaglic, desde que esta se coloque a servigo da cidada- nia e se torneinstrumento central do corm EDUCAGAO PELO AVESSO ASIIITENCIA COMO DIREIYO. COMO PROBLEMA. NN Registro: 003493 SS OOS. 10 na Publicagao (CIP) ira do Livro, SP, Brasil) Demo, Pedro, 1941— ‘A educagiia pelo avesso: assisténcia como diteito # como problema / Pedro Demo, ~ S20 Paulo : Cortez, 2000. Bibliografia ISBN 85-249-0739-8, 1. Assisténeia social 2, Cidadania 1. Titulo, 00-1354 CDD-361.001 indices para catalogo sistomatico: 1, Assisténcia social: teorin 361.001 PEDRO DEMO EDUCAGAO PELO AVESSO ASSISTENCIA COMO DIREITO E COMO PROBLEMA SER A EDUCAGAQ PELO AVESSO: asssténcia como direito e como problema Pea Demo Capa: DAC Preparasdo de originais: Ann Masia Barbosa evisdo: Carmen ‘Tereza da Casta, Agnaldo Alves Composigao: Dany Baitora Lda Cuordenagdin edtortas Danilo. A. Q. Morales es FACULDADE MUNDO MODERNO. NP Rog, Data O10Z0 [Neahuena parte desta ba pode ser reproduvida ou dupHeada sem autrizagto expresss ito autor & do exer © by Autor Direitos para esta edigho CORTEZ FDITORA LTDA, Raa Bartiva, 317 — Perdizes Tel: (1) RGLOLIL Fax: (11) 8644200 (05009-000 — Sao Paulo-SP anil: cortex @eortereltrs.com be Empress no Brasil — abvit de 2000 Para Liicia, agradecendo sua soli- Gariedade irrestrita em Los Angeles SUMARIO Apresentagio ......... 9 1. Assisténcia como direito ...... eee! 2. Assisténcia como problema 23 3. Emancipaciio e pobreza politica .. 31 4, Defender ¢ limitar a assisténcia . 43 5. Abusos corporativistas do Estado st 6. Para combater a pobreza... cceeeeeee o 7. Desenvolvimento como oportunidade ¢ liberdade .... 83 8. Contradigdes da ajuda Seen Oe 9. Assisténcia ¢ educaglo 6. eee cece eeeeeeees 107 Para concluir 115 Bibliogratia .. 47 APRESENTAGAO, Um dos grandes achados do Welfare State foi a assisténcia social como direito da cidadania. Sua importincia dificilmente poderia ser subestimada, porque, mesmo tendo sido produto liberal, no context de cociedade liberal, teve sempre 0 pres- suposto de que 0 mercado nao pode ser a diima instancia do ser humano, Certamente, a ambiéncia também marcada pela presenca do socialismo real teve influéneia no pés-guerr porque indicava que seria possivel alternativa ao mercado liberal. A revelia do modelo defendido pelo velho Marx da Comuna de Paris, nela predominava a interpretagio leninista do socialismo, que produziu super-Estado e que imediatamente escapou ao controle do proletariado. A “ditadura do. proleta- riado”, comandada pelo Partido Comunista, sempre foi pro- priamente do partido, no do proletariado, Neste ambiente 0 Estado assumiu todas as fungSes piiblicas e avocou a si igualmente a posigiio de garante da cidadania. Nao & por outra razio que Gramsel, entre outros, tende « colocar a cidadania dentro do Estado, nao o contrario, como seria 0 caso cristaline da Comuna de Patis! Teve ainda grande influéncia © amadurecimento gradative da idéia de “direitos humanos”, tanto mais porque, no ambiente pés-guerra de conscigneia mais aguda em tomo da violéneia da guerra, tornou-se mais claro que é preciso saber contrapor-se as selvagerias hist6ricas, sobretudo Aquela do mercado unica- mente orientado pelo luero © Aquela do Estado unicamente L. DEMO, P, 1999, Puatcipagdo & eanguista — Mugdes de pottica social pantcipativa, 4 ed, Sio Panto, Corter, DEMO, P. 1997. Cidadania utetada e eidadania ‘asisida, Campinas, Autones Associices orientado pela usurpagio do poder. Democracia ¢ direitos humanos passaram a fazer dupla natural, como contrapartida 40 mercado. Este teria come fungiio bisiea resolver o problema da produgiio, enquanto aguelas 0 problema da redistribuigao. Percebeu-se, ademais, que a simples “distribuigdo” de renda ndo basta, porque no atinge a dindmica ceniral dos processos de concentragio. B mister chegar A redistribuigdo, significando inverter a ordem vigente, de modo favoriivel aos exclufdos. Com isto, penetrou na politica social a idéia decisiva de que nilo poderia apenas aliviar a miséria, mas redefinir os acessos € as oportunidades. Politica social somente & “social” se for redistibutiva de renda e poder, ou seja, emancipatdria Por conta de momento favordvel, chamado geralmente de “os gloriosos trinta (anos)”, onde se péde verificar a univer- salizagdo qualitativa da educagdo bisica, bem como expressivo crescimento econémico, as preméncias maiores se tornaram tendencialmente residuais no centro do sistema capitalista. Na confluéncia entre democracia e mercado foi possivel criar sociedades mais equilibradas, que deram origem a. sistemas impressionantes de assisténcia social, de tal sorte que, a falta de insergio adequada no mercado, 0 Estado assumia o problema da sobrevivéncia de maneira por vezes notoriamente digna. Isto ocorreu, porém, no centro do sistema. Na periferia, chamada vulgarmente de Terceiro Mundo, as duas condigSes nunca se efetivaram minimamente (democracia popular e mercado pro- dutivo). 0 que também aearreton entendimento encurtado de assisténcia social, transformada em signo de politica social funcionalista. Serve tendencialmente para “enquadrat” os pobres, agravando como regra sua pobreza politica e por vezes até mesmo a pobreza material. Neste texto buscamos, de modo preliminar, relevar, de um lado, a assisténcia social como dircito, e, de outro, discutir sua tendéneia a tomar-se problema, Porque tem Ihe faltada, sistematicamente, a vinculagio eman- cipatéria. Entretanto, a visfo critica aqui desenhada nada tem a ver com o questionamento neoliberal da assisigncia € muito menos com qualquer preiensio de invalidar a assisténcia. Pelo 10 contririo, busca apontar seu lugar insubstituivel no. contexto emancipatorio. ; A assisténcia malposta pode ter efeito deseducativo tipico, porque “educa para a submissio”, 2 medida que, em vez de reforgar © desafio da emancipagio, solapa a competéncia politica de se fazer sujeito capaz. de historia propria. Em vez de suportar © projeto da autonomia, pode mergulhar © pobre em dependéncia irreversivel, confirmando nele a idéia perversa de que a opressfio somente pode ser superada pelo proprio opressor. B preciso, pois, questionar aquela assisténcia que estiola ou mata a cidadania. 2, PEREIRA, PA, P. 1996, A avelsenela sora na perspectiva dos direitos certtica eos padres dominantes de protecto aos pobres no Rail. Brasiia, Thesaurus. ret 1 ASSISTENCIA COMO DIREITO © lado atraente € fundamental da assisténcia social € relembrar sempre que a relagdio de mercado nao pode ser a mais importante na vida das pessoas © sociedades, em termos de fins. © que nao significa que a relagio de mercado scja dispensavel ou necessariamente perversa, mas que € meio. Esti idéia também entrou em nossa legislagée, como € de praxe. Com efeito, qualquer nogio mais substancial de democracia e direitos humanos vai reconhecer que o direito vida vem antes de todos. Sem ele, nao ha como efetivar os outros. Neste sentido, a assisténcia cumpre 0 papel de direito radical a sobrevivéncia ¢ que pode ser visualizado claramente, por exem- plo, no direito i vida que tm os excepcionais, as criangas, os idosos. ou seja, gente dispensivel aos olhos do mercado, mas portadores dos mesmos direitos para qualquer sociedad minimamente digna, O uso insirumentalizado que 0 mereado faz das pessoas, e que Marx captou classicamente na idéia do trabalho abstrato da sociedade da mercadoria, contraria fron- talmente as pogées de democracia € direitos humanos, trans- formando-as também em mercadoria. No capitalismo é impra- ticdvel 0 “pleno emprego”, por mais que a idéia tenha sido perseguida até mesmo por préceres do sistema como Keynes © executada tentativamente em alguns momentos, mas apenas no centro do sistema, porque primeito nfo vém as pessoas, B mas 0 lucro, ou, na Tinguagem mar de toca, no de uso!. ista, primeiro yer © valor Por mais que tudo isso possa ser facilmente ridicularizado, porque estamos entrando no século XXI com processos per- sistentes de concentragzo da renda, inclusive em muitos pontos do centro do sistema, ¢ cultivando estilo de globalizagiio que de modo algum coincide com oportunidades mais bem redis- tribufdas globalmente, ha que acentuar a importincia pelo menos simbélica da assisténcia social come direito da cidadani porque realga, antes de mais nada, a perspectiva da cidadania, no do emprego. Os direitos humanos sio inaliendveis e devidos por natuzezs, Deveriam ser garantidos para além de qualquer condig&o que néo seja o simples fato de ser humano. Sempre intriga que esta nogio tenha se desenvolvido na sociedade liberal 4 sombra do conceito de cidadania, sobretude que hoje seja proclamada e verbalmente exigida pelas sociedades liberai Que os Estados Unidos se tenham por garantes destacados dos direitos humanos é algo que “clama aos céus” e pode nos amargurar até ao fundo da alma, mas nfo impediria de reco- nhecer que, mesmo em sociedade tio pouco exemplar como @ norte-americana, as pessoas se sentem mais amparadas pelos direitos humanos. Cultivam-se formas de assisténcia social ostensivamente, ainda que a relagio fundamental seja de mer- cado. Nenhuma outra sociedade leva tio a sério esta relacdo, pelo que tem side o modelo consumado do neoliberalismo. Todavia, também af a idéia de assisténcia mantém a bandeira do direito desfraldada. Nao é benquista, em nome do mercado, mas € pelo menus llerada, reconhecendo-se que nem todos podem se auto-sustentar ou que, em certas circunstincias, nao € © caso esperar que certos segmentos sociais possam ou devam se auto-sustentar. Aparecem dois niveis de reconhecimento: hé pessoas que niio podem se auto-sustentar por intermédio da insergio no 1. KURZ, R. 1996. © calapso da moemizagto: de derrocada do sacialisme ide casera a crise da economia month. Rio de Janis, Poa e. Tena, KURZ, R 1991. Os sittnay eombates. Petnépolis, Vozes. DEMO, P, 1998, Charme de exritts seriad. Carmpinas, Autores Associads, 14 mercado de trabalho e ha pessoas que niio poderiam ser empurradas a inserir-se no mercado. Ne segundo caso esto todos os que nio dispdem de condigSes fisicas ¢ psiquicas minimas para trabalhar produtivamente, como excepcionais, invélidos, idosos, criangas. No primeiro caso, sobressaem ado- lescentes, cuja fungio’ principal € educar-se, idosos que jé deixaram o mercado e necessitam descansar, bem como outros setores que deveriam ser preservados da pressio do mercado, como pessoas e grupos vulnerveis cm termos de satide fisica @ mental, ou de capacidade de inserir-se adequadamente no mercado. Por trés emerge sempte a idéia de que 0 ideal nao & ser assistido, mas manter-se com pernas proprias, sempre que possivel. Nao sendo possfvel, a sociedade precisa ser cupaz de resolver 0 problema para além do mercado. Tais reconhe- cimentos tornaram-se relativamente comuns, sobretudo em cons- tituigdes claboradas sob o signo do Welfare State, como é a brasileira. Nio so propriamente mais problema, Problema é seu cumprimento ¢ sua interpretagio. Na perspectiva leninista de assist@ncia social, busca-se atribuir-lhe fungiio bisica na sociedade para além da protegiic da sobrevivéncia, insistinda em sua caracteristica universal © estatal. Vai a ponto de conceber politica social como coisa tipica do Estado, praticamente exclusiva, repassando a expec- tativa abusivamente ingénua de que o Estado teria algo parecido com “vocagio social”. Caber-Ihe-ia cuidar da questiio social, niio mais como conquista por parte do controle democratico, mas como oficio natural. Mesmo quando se concebe 0 Estado como “‘correlagio de forgas", part superar com boa razdo sta interpretacio unilateral como mero reprodutor das desigualdades ja implantadas, supde-se — muito gratuitamente — que ul correlagio se resolve em favor dos pobres, via assisténcia. Olvida-se que a qualidade do Estado néo esti nele, mas no controle democritico, ou seja, na cidadania, Nao é 0 Estado que garante a qualidade da cidadania, mas é esta que pode garantir Estado mais qualitativo. Na visio da Comuna de Paris, aposta-se muito mais no associativismo dos trabalhadores do que em qualquer pretensa disponibilidade do Estado, que tomado como tendencialmente mancomunado com a burguesia, 15 Assim, uma coisa é evitar afirmagées extremas de que o Estado somente serve burguesia, outra é reconhecer que sua tendéncia mais visivel servir & burguesia. Como concentragio de forga. que o Estado certamente é sua tendéncia mais natural nio sera postar-se do lado dos pobres, mas dos ricos. Estes o ocupam muito mais facilmente que aqueles. Exatamente por conta disso, a assisténcia tende a tormar-se residual, pois & com residuos que se trata a populaglo também. considerada residuo, Em nossa realidade sobretudo, & muito dificil encontrar qualquer politica de assisténcia social que nfo revele tal pecha?. Ademais, a universalidade da assisténcia, no fundo, apenas (enta imitar a posigtio reconhecida & educagéo basica — mas cuja universalidade € ctariamente limitada —, incidindo em percalgos muito contraditérios, entre cles: induz a pensar que fodos, sem excegiio, seriam merecedores de assisténcia, inclusive aqueles que concentram renda; trata de modo igual aos desiguais, tendendo a reforgar as desigualdades; insinua a idéia devassa, Tibertina de universalidade, mais ampla mesmo que a de emaneipaciio, como se pudéssemos um dia viver em sociedade exclusivamente de assistidos. Ainda creio que € muito mais importante suber dispensar a assisténcia do que dela depender, a niio ser quando indispensdvel. Encontrar-se nessa situagio de dopendéncia nio € necessariamente algo infame, mas imposto por vicissitudes da hist6ria ou da natureza, como nascer portador de necessidades especiais. Além disso, as pessoas podem, no decurso da vida, passar por tais situagdes, de modo natural ou eventual — por excinplo, sec gesuame vulnerdvel — ou de modo social — por exemplo, ser obrigado a migrar para lugar desconhecide © em condigdes de extrema precariedade. Esta consideragio leva a distinguir dois tipos mais notérios de assisténcia: aquela devida de modo permanente, para 08 seg- mentos que nvio podem se auio-sustentar caracteristicamente; e aguela devida de modo provisdrio, para as pessoas que 2. Veja dissertagio de mestrado de Matia Raquel Lino de FREITAS, 1909. “LOAS — A luz do enfoque integrado — Uma visio erica. Brasilia, Departan {de Seevigo Social, Unb 16 sofrem de vulnerabilidade intermitente ou ocasional. Neste segundo caso, a finalidade da assisiéncia é recuperar as condigGes de autonomia, io logo seja possivel, nfo de instituir situagdo definitiva de dependéncia. Em nosso contexto, fazemos mal as duas vertentes: assistimos muito precariamente as pessoas que necessitam de assisténcia de modo permanente e transformamos facilmente situagdes provisérias em definitivas, implantando dependéncia irreversivel. Mas 0 abuso nio tothe © uso. B certo que assisténcia niio € politica emancipatéria, porque se volta para a sobrevivéncia © nisto se realiza plenamente. Isto. mostra que tem espago proprio © que sua justificativa nao carece de qualquer outra apelagdo. Af reside sua radicalidade propria e € nisto, somente, que € condigdo prévia para as outvas politicas sociais. A idéia comum entre assistentes sociais de que assisténcia é a “rainha” das politicas sociais, apenas trai sua decadéneia no assisten- cialismo, porque, mesmo a revelia, passa a dispensar a vinculagzo emaneipatéria ou a mantém apenas no discurso. A assisténcia € direito radical da cidadania, mas nao “faz” cidadania, E efeito, nflo causa. Se quisermos chegar aos patamares da emancipagio, serd mister apelar para outras politicas sociais que trabalham melhor a autonomia das pessoas ou a isto especificamente se dirigem, como € educagio*, Assisténcia social no é politica social central, mais importante, paradig- mitica, ou coisa que 0 valha, mas simplesmente politica social com objetivo proprie, plenamente justificada em si mesma, Daf no segue que assisténcia d4 conta de tudo — seria fantistico assistencialismo —, até porque nenhuma politica social, tomada isoladamente, é efetiva. Mas hé aquelas que so mais agluti- nadoras, ou estratégicas, como é o caso reconhecide da educagio 3. TORRES, C. A. 1998, Demacimey, education, and muliculturalisn — Dilemmas Of citicenship ina globel world. Nova York, Rownan & Litofield Publishers. MORROW. R.A. de TORRES, C, A, 1999, “The Stale, social movements, and felucational reform. In: ARNOVE, &, F. & TORRES, C. A. (ed.). 1999. Cumparative etucation — The dialectic of the global and the local. Nova York, Rowman & Littlefield Publishers, p. 91-113 17 isica, pois condiciona mais visivelmente a cidadania © até certo ponto a produtividade competitiva’. Nao se pode dizer isso da assisténcia: sua possivel vinculagio com a produtividade 6 distante ¢ ocasional e, quanto a cidadania, se malfeita reproduz seu avesso, ou a dependéncia. © superdimensionamento da assisténcia revela, também, pouca sensibilidade pela pobreza politica, neste caso seguindo pegada marxista considerada ultrapassada: a base material como mais essencial que as outras. A necessidade material, geralmente, 6 mais imediata © pode matar rapidamente. Mas daf nao segue que seja mais importante. Mais importante ser aquilo que mais condiciona o todo, nio apenas certas partes. Passar fome 6 grande miséria, mas miséria ainda mais comprometedora € ndo saber que a fome imposta, inventada, cultivada ¢ que aqueles que passam fome sustentam 0 esbanjamento dos ricos. Embora a assisténcia contenha também dimensdes que ultra- passam as necessidades materiais — por exemplo, assisténcia a alcodlatras, drogados, a familias desajustadas etc. —, tende a restringir-se a auxilios materiais, e € por isso que a sua cara € da cesta bisica ou da renda minima. Tais auxilios podem ser muito decisivos na vida das pessoas, mas niio geram emancipagiio, Sua finalidade € outra e suficiente em si, Langa-se esperanga excessiva € no fundo contradiléria sobre a renda minima, como se isto resolvesse © problema. Dentro do sistema neoliberal, um minimo de conseigncia critica vai reconhecer gue, quando renda minima se torna politica do sistema, ja significa que foi accita porque permite cultivar 0 problema, © sistema se benelicia da renda minima muito mais que os pobres. Mas mesmo em situagdo idealizada, na qual a renda minima € bem aplicada, deveria ser concebida como passagem necesséria para superé-la. Este tipo de asistencia s6 6 coerente. se souber extinguirse intrinsecamente. Por isso, a vinculagdo facil que se admite entre assisténcia c cidadania é falsa, porque se perde de vista que tais assisténcias tendem a cultivar 4. DEMO, P. 1999, Eawenga ¢ desemvotvinentar mito © realidude de relagto possi « jauasiasa. Campinas, Paps 18 foriemente a dependéncia. Se houvesse vinculago correta, Preveria, desde logo, seu término, A renda minima coerente 86 pode ser interliidio provisério para favorecer sua dispensa. E necessario distinguir acuradamente entre fazer assisténcia por direito da cidadania & acabar com a cidadania ao fazer assis- téncia, Em nosso ambiente predomina a segunda parte abusi- vamente. Basta colocar a pergunta: que assisténcia existe na sociedade que redunda em cidadania naturalmente? O proprio fato de serem tio residuais escancara que tendem a ser a pi de cal da cidadania. Necessariamente nao precisa ser assim, porque assisténcia € diteity da cidadania, Ais cesta basiea pode ser justificada, dependendo da condigio social de quem necesita dela, Renda minima € dircito da grande maioria que vive na miséria. O erro € inferir daf que estamos resolvendo os problemas sociais que implicam emancipagio. Nem sequer € correto afirmar que a assisténeia promove cidadania, porque seu objetivo é pro- priamente a sobrevivéncia. Fazendo isto, cumpre dever de cidadania, niio a “faz”, O correto seria dizer que a assisiéncia cumpre a cidadania, B isto é fundamental. E toda a dignidade da assisténcia. Mas é sobrecarga esiranha, mal inventada, pretendé-la como carro-chefe da cidadania ou das_politicas sociais, como seria ridfculo pretender que cesta basica fosse politica social central. Quando se torna politica social central, como & hoje no Brasil, significa seu abuso — h4 quem retire maior proveito dela do que o pobre. A histéria brasileira do tratamento de adolescentes infratores, sob as asas do Estatuto da Crianca e do Adolescente (ECA), é flagrante ern demonstrar esta precariedade e contradigtio. Enquanto vende a imagem de lei pedagégica, no fundo 6 s6 assistencial, exatamente no sentido mais residual imagindvel. Na verdade, & espantoso que queiramos nos confrontar com problemiiica tio complexa, intrincada e dura como esta, por meio de iniciativas assistenciais € outras de teor pedagégico fantasioso e superficial. O resultado € piblico © notérie, mesmo em govemnos de esquerda. Este fracasso da assisténcia nao revela apenas falta de politica, comprometimento, recursos, mas igualmente erro na propria concepgio, quando se langa sobre assisténcia expectativa im- 19 propria e no fundo falaz. Tomando outro problema durissimo: € possivel recuperar presos na cadeia, mas nio sera pela via preferencial da assisténcia. Jamais. Em certa medida, a cadeia € a escola do crime, pois confia em excesso na assisténcia, sem falar que estamos chamando de assisténcia o que nem sequer seria caricatura dela. Garantir 0 direito de: sobrevivéncia 6 fundamental, mas € s6 0 primeiro passo. Ninguém quer apenas sobreviver. niretanto, hd assist@ncias mais préximas da emancipagio, quando se conjugam com outros esforgos orquestrados © es- tratégicos, como € 0 caso da “bolsa-escola”, por exemplo, ou quando (ein carter preventive, como pods ser © cuidado com criangas na primeira infancia, tendo em vista poderem crescer em condigdes mais favordveis. No caso brasileiro, a politica dedicada a infincia acabou sendo codificada na Lei de Diretrizes © Bases (LDB) da educagdo como “educagao infantil”, na tentativa de conotar seu compromisso educative em primeiro lugar. Tyata-se de idgia pertinente e que em nada desmerece a assistGncia, que também & necesséria para oferecer cuidado mais amplo as criangas nos primeiros anos de vida, B sufi- cientemente sabido que crescer de modo adequado na primeira infaincia possui valor preventivo inestimével. Este reconheci- mento, todavia, contrasta com a pritica comum, que geralmente oferece assisténcias isoladas © nisto ja assistencialistas, tendo também contribuido para tanto o percalgo incrivel da Lei Organica de Assisténcia Social (LOAS) que adotou a proposta de combate & pobreza em seu corpo, dando a entender que pobreza se vence com assisténeia, Supina ingenuidade, com- paravel & outra que imagina ser o Estado — logo o capitalista — naturalmente propenso a postar-se do lado dos excluidos. Foi um dos golpes mais sagazes da direita: conseguir empurrar © combate & pobreza para a lei de assisténcia, tornando-o definitivamente residual. Tanto é ingénuo imaginar o combate A pobreza orquestrado pela assisténcia, sobretudo com respeito 4 necessidade de comprometer a economia, quanto & ingénuo assumir que o Estado capitalista destinaria a esta intengio mais que recursos residuais. E-s6 observar atentamente a LOAS para notar, com total clarividéneia, que nela a pobreza inteira 20 FACULDADE MUNDO MODERNO” Biblioteca Ihe é cometida com recursos absolutamente residuais. No nego que esta lei tenha significado avanco, em particular por re~ presentar perewrso de luta notivel, mas por enquanto € mais retrica que real. Ademais, no capitalismo a assisténcia tem tido influéncia relevante quando se destina a pobrezas residuais, dentro do teorema social liberal: os recursos sio inversamente propor cionais ao tamanho da miséria. Quando parcela pequena da populagio ativa € desempregada, © seguro-desemprego pode set mais facilmente instalado, além de poder assumir valores relativamente clevados. Quando, poném, os exeluidos do mercado vio se tornando populacio significativa, a cobertura tende a esconder-se atris de critérios seletivos, aparentemente para ser mais precisa © mais bem planejada, mas, na pritica, para evitar ter de atender a muita gente, Tomemos o caso da “bolsa-escola” no Distrito Federal no governo Buarque: 0 programa foi destinado a familias que tinham filhos entre sete © quatorze anos © moravam hé mais de cinco anos no DF, além de estarem incluidas dentro de limites de pobreza. Tais critérios representam também procedimentos racionais — por exemplo, no aumentar a pressio migratsria —, mas obedecem sobretudo 40 teorema social liberal, permitem diminuir a populagao a ser atendida ¢ poupar recursos. Mas a ironia nao acaba ai: quando © governador Buargue destinou um salério mfnimo para cadw familia, independentemente do niimero de filhos atingfveis, houve, de um lado, reclimagées por ser destinagao muito pequena, tomando-se em conta que a renda minima tinha sido calculada, anteriormente e dentro da proposta do senador Suplicy, como mais de duas vezes acima, De outso lado, houve vores que julgaram a soma exagerada, diamte da dificuldade de obter recursos, No andar da histéria, reconhecendo-se cada vez mais que a bolsa-escola poderia ser uma idgia boa, 0 governo federal a adotou, juntamente com o Congreso, mas ai, para © Nordeste, a bolsa adotou como teto minimo RS 15,00, podendo ser reduzido A metade quando o municipio oferece servigos. Sem comentirios! Recentemente, ¢ por inerivel que parega, a direita também passou a oferecer seu projeto de combate & pobreza, ndo porque 2 esteja realmente interessada em combater a pobreza, mas porque necessita de megaprojeto social para chegar A presidéncia da Repiiblica. De novo e sempre, as estratégias aparecem variad: mas se Concentram no campo das assisténeias, porque a direita — por vezes secundada entusiasticamente por certa esquerda — conseguiu implantar a idéia, ja constitucional, que pobreza se combate com assisténeia, O projeto de combate & pobreza do senador Antonio Carlos Magalhies divulga menos o entendi- mento de que pobreza jf ests demais, do que a expectativa fitil de que pobreza € coisa ficil de combater. Quer dizer: basta tapar a boca do pobre. 2 2 ASSISTENCIA COMO PROBLEMA Assisténeia como problema tem tradigio liberal, facilmente visivel em pais como os Estados Unidos, onde pobre € em primeiro lugar figura suspeita c desprezivel. Os assi precisam ser rigorosamente controlados, nao s6 para evil desperdicio de recursos, mas sobretudo para no facilitar aco- modagiio, Embora a nogtio de direitos humanos tenha algum aleance, predomina de longe a relagio de mercado e que sempre acaba tendo a ditima palavra. A erftica que pretendo fazer aqui A assisténcia em nada tem a ver com este pano de fundo liberal, porque adota como fulero central a idéia de cidadania autOnoma. A cidadania assistida €, como regra, problemtica, porque tende a definir a pessoa como beneficidria, iio como cidada, 3 revelia de discursos alternativos altissonantes, além de atrelé-la a auxilios estatais residuais © intermitentes. A cidadania tutelada submete a pessoa ao mercado, transfor- mando este como parimetro definitivo, inclusive da sobrevi véncia. Cidadania tutclada & contradigdo nos termos, jé que cidadania significa sempre libertagdo da tutela, apontando para idade de autonomia, Na pritica, porém, 6 ‘© que mais comumente ocorre, no sentido de que a cidadania € trocada pela tutela, usando-se nesta transagio sobrelude formas de assistencialismos, Na cidadania tutelada predomina a falsificagdo da cidadania, porque 6 destrufda na propria tutela. Na cidadania assistida predomina a farsa, porque se usa a 23 OO cidadania como isca, para, logo a seguir, reduzi-la aos trapos dos auxilios oficiais, Nesta também se pede submissio — traduzida quase sempre no voto © na ordem —, mas existe lastro concreto de direito. Por isso, nfo nega propriamente a cidadania, mas & capciosa, 4 medida que retira pela direita o que dé pela esquerda. Com isto pretendo dizer, ademais, que focar a assi como problema no implica negar seu substrato de cidadar Primeiro, as assisténcias permanentes sio devidas de modo continuado e definitive, por conta da democracia € dos direitos humanos, e se ligam ao diteito de sobrevivéncia. Neste espago io existiria, pelo menos em principio, assisténcia como pro- blema. Poderfamos, no maximo, vé-la problemitica se se bastasse a si mesma, imaginando que sobrevivéncia & tudo que cabe. Segundo, © problem aparece caracteristicamente na assist@n proviséria, quando deixa de ser provis6ria € pende para a tutela, gerando nos assistidos dependéncia irveverstvel. Trata-se. do flagelado que passa a viver indefinidamente & sombra do Estado, do migrante que se debaixo da ponte, recebe casa, vende © vai para outra cidade recomegar 9 mesmo ciclo, do “sem-terra” que se profissionaliza em invadir terra, vivendo dos mais yariados subsidios, sobretudo piiblicos, do “sem-teto” que incorporou em sua vida a sopa da primeira-dama © assim por diante, Temos ai pelo menos dois problemas graves agravantes: a) Geralmente os auxilios sZio residuais, proporcionais & condigao residual da respectiva populacaio, Oferecem-se barracas precarias para morar, Lote pequeno, no fim do mundo © sem a devida urbanizacio, terra piiblica devohuta, geralmente muito pouco produtiva, cestas basicas, roupa usada, recursos fin: ceiros infimos e assim por diante. Isto s6- nfo sucede quando populagio se torna capaz de reagir A altura, como tem ocorrido com © Movimento dos Sem-Terra (MST) — que tem conseguido terra de boa qualidade € desapropriagSes relevantes, Ji 08 outros fazem parte da menoridade dos minimos sociais, de tal sorte que receber assisténcia piblica implica, como regra, ser estigmatizado pela exclusio social oficializada. 2 b) Fomenta-se a dependéncia inreversivel, sendo este, de longe, © problema mais grave; em troca de beneficios ridiculos, exige-se dos pobres que abdiquem de sua autonomia, deixando as soluges de seus problemas nas méos dos outros, Desistem de ser sujeitos de hist6ria propria, esperando que outros pensem e ajam por eles. Mesmo que tenham alguma consciéneia de que a ajuda que recebem Thes & devida por direito de cidadania, este auxilio revertide em arapuca para minar as bases da cidadania, & medida que do direito vai restando apenas a ajuda. © resultado classico 6 que os problemas dos pobres nao se resolvem, enquanto o sistema os tem definitivamente na mio. Oferecendo auxilios itrisérios, 0 sistema consegue que os pobres agradegam © votem. Existiria incompatibilidade entre assisténcia e emancipa- gio? De modo algum. Mas existe, isto sim, relagdo dialética, tipicamente contriria e complexa. Nao é dificil mostrar que todo proceso emancipatério necessita de apoio externo, como € © caso not6rio da crianga que nasce em siluagio de total desamparo social € necessita, para tudo, do cuidado dos outtos. Para conquistar a antonomia é necessirio, em condigdes normal ser “ajudado”. Em termos coneretos, todo proceso emaneipa- t6rio, sendo social, realiza-se junto © em confronto com os ‘outros, Podemos fazer paralelo com a educagiio: por mais que imaginemos a educagao como caminho da autonomia, necessita de professor, pai, guia, orientador, A libertagio que se espera de processos educativos nfo se faz sem “intelectuais organicos”, para usar esta expressiio gramsciana, 0 que nos leva a ter de aceitar que a educagio libertadora também esconde laivos manipulatives. Todo carinho paterno também cerceia, mas, tendo consciéneia disso, procura reduzir 0 cerceamento © au- mentar a autonomia, Normalmente, a familia sabe bem disso: criam-se os filhos para 0 mundo, Crescendo, precisam desen- volver © senso pela autonomia, a ponto de deixar a familia dos pais, para constituir familia propria. Se 0 filho permanecer na familia dos pais, algo saiu errado no processo educativo: a tutela prevaleceu sobre a libertagao. Esta mesma légica dialética carece ser aplicada a assis- téneia, Existe aquela que abafa, apequena, humilha, © existe 25 outra que eleva, edifica, motiva. Esta é peregrina, rarfssima, muito exigente. A outra ¢ comum, quase a regra, E muito difieil estabelecer limite visivel entre uma e outra, pois nas bordas se mesclam € se confundem. Por exemplo, quando damos esmola — digamos, recolhemos roupa usada para dar aos pobres —, podemos estar fazendo boa agiio, impelidos pelo sentiment de que é mister fazer alguma coisa, Nao deixa de ser algo pertinente, sobretudo quando somos capazes de aceitar que nosso bem-estar nos incomoda diante do mal-estar dos pobres. Mas este € 0 nosso lado. Do lado dos pobres, 0 que sucede &, primeiro, ter de conformar-se com os restos da parte nobre. e. segundo, ficar 1 mercé da caridade alhein. 0 “bem” que se faz aos pobres pode niio compensar o estigma cada vez mais definitivo, no no sentido neoliberal do recoio de que os pobres se tornem mal-acostumados, mas no sentido social de cassagio da cidadania. Este tipo de assisténcia pode sepultar de vez © horizonte de allemativas que poderia ser descortinado, caso o pobre descobrisse que, se houver salvagio, dependerd principalmente dele. Sobretudo em situagdes extremas, torna-se dificil — praticamente impossivel — esperar que o pobre “filosofe” sobre emancipacdo. Mas & nesses casos que © doudor, se no possuir consciéneia critica, principalmente autocritica, produz, dialeticamente falando, o contririo do que se propde. A doagio mais facilmente confirma a pobreza do ‘que a combate. A assisténcia_nlo & incompativel com a emancipagao, mas a trai facilmente, porque pode introduzir 0 componente — por vezes sub-repticio — de subserviéncia, trocando a autonomia pelo beneficio, Esta é a dialética do beneficio: & melhor para 0 beneficente, porque dele nfo precisa; pode ser péssimo para o beneficidrio, porque dele passa a depender. E este € © drama da assisténcia: fabrica beneficidrios ou pelo menos confirma a situagio de beneficidrio, Na dialética contréria e complexa entre assisténcia e emancipagio, esta comeca a surgir quando se consegue dispensar a ajuda. Assim, ninguém se emancipa sem ajuda, mas emancipar-se & especificamente saber dispensar ajuda. Sobretudo na esfera pilblica de estilo liberal, a proposta de assisténcia dificilmente consegue revestir-se 26 do signo de sua propria dispensa, Torna-se com isto tanto mais contraditéria, porque, além de oferecer beneficios infimos e geralmente intermitentes, dotados de provisoriedade lancinante, espera estabelecer no pobre necessitaco permanente, criando miséria que se alimenta da prépria miséria. Mais que ajudar, trata-se de “saber ajudar’, em mao dupla: no ajudado, € preciso emergir a capacidade critica e autocritica dos riscos da ajuda, de sua necessidade e de sua dispensa; no doador, € necessario haver a mesma consciéncia para evitar a estigmatizagio do pobre e para sair da cena, Porquanto, querer a emancipagio do outro nao € fendmeno natural na sociedade, assim como Yio & fenémeno natural encontrar governante que queira ser controlado. A assisténcia envolve-se em extrema ingenuidade, quando ignora que a dialética da ajuda tende a ser a da influéncia que pede subservigneia, em particular no interior do Estado movido fundamentalmente pelo mercado neoliberal. Como regra, niio passa de proposta cristalina funcionalista, que alivia a miséria para encaixd-la no sistema, Nao tem nogio correta concreta de conflito social ¢ muito menos de “classe social”, Ainda que este conceito seja hoje tomado com maior cautela, porque ha niveis de conilites sociais mediados por outras categorias nfo ccondmicas, nito poderia ser descartado por quem imagina cultivar visio eritica da sociedade. Na visio da ‘Comuna de Paris, trata-se de construir a capacidade de confronto auténomo nos excluidos, a partir da qual toda ajuda jé seré olhada como procedimento relativamente secuadétio, Nio seri dispensada, mus 0 fendmeno central € saber dispensiela, por conta da dialética frontal entre proletirios ¢ burguesia. De onde viria a ajuda? Do algoz, certamente, seja corporificada na primeira-dama, nos clubes cristios de benemeréncia, em pe- quenos circulos da burguesia contrita, ou no Estado. Marx falava, por isso mesmo, de ditadura do proletariado, querendo significar que o prolctério ndo pede assisténeia publica ou privada, mas quer tomar as rédeas da sociedade, ou seja, do Estado e da economia, O Ieninismo transformou este grito de Hibertacao em subservigncia estatal, porque o “partido” usurpou a voz do proletirio em troca de assisténcias minimas de toda 27 ordem. A partir daf os donos do partido cafram nas malhas eternas do poder, cuidando mais de si mesmos do que dos proletitios. A emancipagio foi trocada pelos beneficios cada vex mais decadentes. Patece-me impressionante e suspeita a confianga que certa esquerda deposita no Estado. Num passe de magica, esquece-se que se trata de Estado capitalista liberal, que também na assisténcia reaparece sempre a relagdo de classe, que a dialé do poder é a da usurpagiio, sobretudo que a qualidade do Estado nao pode estar nele mesmo, mas em seu controle popular ferrenho. Por certo, Marx alimentava a vistio anarquista do Bstado, tondia a ver nele quase que exelusivamente a relagio de exploragio, pregava sua tedugdo ao minimo dos minimos, como se fosse, no maximo, mal necessirio. Esta perspectiva no cabe mais. Mas continua de pé, mais do que nunca, que toda visio genuiinamente democratica é insistentemente critica do Estado € dos governos, mesmo que néio seja inspirada no marxismo. A idéia da Comuna de Paris, de que Estado é instdincia delegada de servic piiblico, permanece como sua definigéo mais certeira: no possui autoridade nem recursos proprios @ s6 faz sentido se for servico piiblico!. Nao & mais © caso defendé-lo como minimo, mas como necessiirio para realizar os servigos piblicos que a populugdio, como seu man- dante fundamental, the comete. Continua extremamente saudiivel suspeitar do Estado, manté-lo sob a mais severa vigilincia, cobrar rigidamente prestagio de contas, também quando esta sendo getido por governo de esquerda. Como regra, pobre entregue a assisténcia estatal esté inreversivelmente condenado & pobreza. Para reverter isso, nfio adianta renovar a confianga leninista no Estado, pois & mister resgatar a capacidade de controle democratic por parte da populagio. Ai esté o problema maior: © controle democritico, tio bem descrito na Comuna de Paris, tipicamente de baixo para cima e politicamente bem organizado, orient-se na diregio da autonomia, nao da assis- 1. 0 Reiado hoje ndo se restringe 20 servigo pablica, elaramente. Neste semi, hilo busco agi esgorar, de modo alum, a8 miliplas facia do Estcl, mas apenas realgar soa relagao mais visivel em termos de poliieas socials piblicas, 28 eo téncia, O Estado — sobretudo seus governantes — percebe que a assisténcia, em particular quando evacionada liricamente como direito universal, pode ser 0 caminho mais répido para restabelecer a dependéncia. Um dos resultados mais. pargdig- miiticos da assisténcia estatal 6 minar 0 controle demoeritico popular. © beneficio gera o adesismo conformista. 29 FACULDADE MUNDO MODERN, Biblioteca 3 EMANCIPAGAO E POBREZA POLITICA Ha mais de uma década, busquei defi como conquista, para dar a entender que se trata de competéncia politica em primeiro lugar. Dito de outro modo, no é gerada pela via da assisténeia, ainda que a assisténcia bem-feita a possa favorecer. Hé pelo menos duas questées a ser levadas em conta: de uma parte, assisténcia volta-se, como objeto proprio, para a sobrevivéncia, onde encontra seu espago niio concorrencial e adequado, exarando direito radical, como vimos; as pessoas, porém, pretendem da vida muito mais que apenas sobreviver; de outra, a dialética entre beneficente e beneficidrio facilmente se perverte, transformando a ajuda em “presente de grego", Para se contrapor a tais limitagdes ¢ riscos, é neces especifica competéneia politica, no sentido da formagio do sujelto capaz de histéia propria, mareada pela autonomia no contexto social. Por certo, esta autonomia nunca é total, porque esté inserida na estrutura de cada sociedade, 0 que significa reconhecer que meu espago & sempre limitado pelo do outro. No espago do poder néo existe “terra devoluta”, porque esté toda ocupada, usurpada, Qualquer privilégio € feito a custa dos outros. Nio & possivel inventar privilégio que no lese os outros. Neste sentido, para reduzir os privilégios usurpados & mister contrapor-se frontalmente, impor-se, conquistar. Precisamente 6 este 0 desafio de redistribuir renda. Quando apenas se distribui renda, deixa-se a desigualdade tal qual esti, participagio 31 Porque tomamos em conta apenas recursos devolutos, residuos disponiveis. Passamos para os pobres as sobras do sistema, esperando que se “amansem”. J4 redistribuir significa tomar de quem tem em excesso, partindo-se do ponto de vista de que a concentragao de renda € fenémeno que agride os direitos humanos ¢ a democracia. Podemos visualizar tal distingZo claramente no MST, sem com isto necessariamente apadrinhar fudo o que este movimento inventa: néo se contenta com distribuigio de terra, como sempre foi, porque se restringe a terras devolutas, mal localizadas, improdutivas, sobrantes; pre- tende apropriar-se de terra produtiva, forgando a rever todo o processo de apropriagdo da terra. Neste processo descobre-se logo que grande parte foi “griluda” pelos nobres, continua improdutiva e, na maioria dos casos em que se diz ser produtiva, serve apenas para evitar a desapropriagdo. Emblematicamente, © MST nfio confia no Estado, porque sabe que esté manco- munado com os grandes proprietérios. Se persistisse em confiar no Estado, receberia dele os restos de terra e que jamais colocariam em isco os privilégios dos grandes usurpadores, E, pois, correto cm principio, do ponto de vista do excluido, invadir a terra dita produtiva, porque apenas esta interessa ¢ est em jogo. Que a lei coloque nisto limites, também & correto, mas nio simplesmente rétulo vazio de’ “produtiva” com fins escusos de proteger apropriagdes usurpadas. Nao basta que a terra soja produtiva atualmente, porque seria o caso ainda verificar como se obteve a terra, qual scu tamanho, se © dono jé no latifundidrio desmesurado, se as condigdes de trabalho so digas, e assim por diante. © MST, como todo movimento complexo de cidadania, nem sempre tem controle de iniciativas localizadas, além de gerar facilmente invasores profissionais, que passam a manipular privilégios pessoais ¢ grupais. Afinal de contas, como mostra qualquer sociologia, igualmente na favela existe estratificagio social. Lé também hi “pobres” que sabem viver da pobreza dos outros. Mesmo assim, este movimento sinaliza uma diregio inovadora ‘ao postular a redistribuigio das terras, tocando no pilar sagrado liberal que 6 a propriedade privada. Af est sua forga © seu susto, O liberalismo teima cm transformar a 32 apropriago privilegiada em mérito. Nao se apropria apenas das terras. Apropria-se também do Estado. Esbulha-o ostensi- vamente. Privatiza-o em nome do mercado. Este ¢ 0 “sangue- frio” desta elite perversa: considerar normal, mérito histérico, que 10% das pessoas concentrem em suas mios por volta da metade da renda nacional. Diante disso, é inevitével a pergunta: como desconcentrar renda? Dificilmente pela via da solidarie- dade... Impossivel pela via da assisténcia... Nio quer dizer que © caminho violento seja o dinico, porque a histéria mostra outras iniciativas possiveis, ainda que “radicais”. Radicais: nao no sentido da violéncia, mas no sentido de tocar as ma profundas raizes da concentragio da renda, No Welfare State este intento foi logrado, pelo menos em parte, sob a acto concertada dos sindicatos ¢ governos social-demoeriticos. No Plano Real também ocorreu algum efeito de redistribuigio de renda, sob o impacto de certa teenocracia esclarecida e de governo mais ligado a causas populares. Mas como nio foi resultado de proceso histérico popular de conguista, acabou servindo muito mais para a reeleiggo do presidente do que para refazer a estrutura da desigualdad No pano de fundo desta discussio esté a questio da pobreza politica, reconhecida hoje até mesmo em ambientes neoliberais como a questo social mais dura. Garantir a_so- brevivéncia das pessoas é direito radical decisive, mas ainda mais relevante que isso é gestar a competéncia politica de saber garantir a sobrevivéncia com as proprias mios. Porquanto, excluido irremediavel & aquele que nem sequer consegue e & coibido de saber que ¢ excluido. Nuo so toma a situagao como definitivamente dada ¢ inamovfvel, como sobretudo assume os algozes como padrinhos. Imagina que toda solugio hi de vir pela via da doagio. Muito mais grave que ser “ajudado” pelos outros & ser “pensado” pelos outros. Mais do que dos recursos. materiais dos pobres, a elite se apropria de sua cabega. Por isso pobreza politica indica a condigao de “massa de manobra”, objeto de manipulagio, subalternidade permanente. No amago do conceito de pobreza esté 0 de exclusio, mais do que o de caréncia, Pobre, mais que tudo, nZo é quem é destituido de “ter”, mas de “ser jina-se a nogio de sujeito capaz de 33, autonomia, Resta o pedinte, © esmoler, o beneficidrio, que entrega seu destino em mos nfo s6 alheias, mas sobretudo adversérias. De certa maneira, a obra de Marx destinou-se a mostrar ao proletério, por todas as vias imaginaveis, que 0 resultado de seu trabalho s6 poderia ser dele © que 0 proceso de mais-valia invertia a situagio, ao permitir ao dono dos meios de produgdo apropriar-se do valor gerado pelos outros. © valor de uso, uma vez transformado em valor de troca, introduzia um tipo especifico de relacio abstrata, coisificada, tipicamente mercadolégica, de tal sorte que 0 valor gerado pelo trabalhador Ihe fugia das mios, aninhando-se nas mios da burguesia. No fundo, Marx desenhava os tragas bisicos da “alienagéo”, no sentido do trabalho indevidamente apropriado € do trabalhador tomado massa de manobra © préprio contexto neoliberal percebe a importiincia de definir o desenvolvimento para além da base econdmica, partindo da constatagio simples de que, se a pobreza absoluta tem diminufdo como regra, a relativa tem aumentado. Sen reconhece com énfase © problema: “Vivemos em mundo de opuléncia sem precedentes, que seria inimaginivel aleangar um século ou dois antes. Houve ainda mudangas marcantes para além da esfera econdmica, O século XX _estabeleceu como modelo proeminente de organizagio politica a democracia © © governo participativo. Conceitos de direitos humanos ¢ liberdade politica so agora parte reconhecida da ret6riea prevalecente. As pessoas vivem mais, na média, do. que antes. Também, as diferentes regiges do. globo estiio agora ais intimamente ligadas do que foi 0 caso em Spocas passadas, Isto ocorre néo 86 no campo dos negdeios, comércio e comu- hicagZo, mas igualmente em termos do idéias e ideais interativos, Todavia, vivemos ainda em mundo com marcantes privagoes, destituigo e opressio. Hi muitos novos problemas, bem como yelhos, incluindo persisténcia de pobreza, de nio satisfagao de necessidades clementares, ocort@ncia de calamidades e vaste fome, viotagito das liberdades politicas basicas, bem como de liberdades fundamentais, negligénein extensa dos interesses © propostas das mulheres, ¢ ameagas agravadas a nosso ambiente © 2 sustentabifidade de nossa economia e vidas sociais, Muitas dessas privagties podem ser observadas, em uma ou outra forma, em. pafses rieos, tanto quanto nos pobres"! Nao menos enfiitica € sua insisténcia em definir o de- senyolvimento como “‘liberdade”, alinhando o mercado como instrumento, ainda que boa parte desta liberdade venha entendida de modo individual clissico, fortemente decorremte do mercado. Tomou-se notéria também a posigao do Programa das Nages Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), da ONU, que, desde 1990, publica anualmente seu Relatério do Desen- yolvimento Humano, escalonando 0s pafses de acordo com conceito de desenvolvimento bascado na idéia de “oportunidade” © por isso operacionalizado por meio de trés indicadores: educagio, expectativa de vida e poder de compra (PNUD, 1990-99). critério econémico aparece na terceira posigao, acenando para a importincia de outras dimensdes, que ficaram ainda mais claras a partir do Relatério de 1997, que se propoe a mensurar também os horizontes do que poderfamos chamar de pobreza politica, A caréncia material continua importante indicador de pobreza, mas ainda mais decisiva é a incapacidade de gestar suas préprias oportunidades. Por isso_mesmo, a politica mais estratégica serd a de educagio, desde que entendida sinergicamente. Daf decorre mandato_clarividente: nao. basta matar a fome; & mister emancipar. Nao se resolve © problema da fome apenas matando a fome, mas construindo as condigdes necessdrias para dar conta dela com a devida autonomia Assisténcia serd sempre importante, como a sobrevivéncia o & por demais, mas é © primeiro passo. Receber comida nunca poderé ser mais importante do que saber gerar 0 proprio alimento, Assim, 0 problema social mais profundo seria a ignorancia, Nao a ignordncia pedagégica, que nio existe, pois todos possuem linguagem propria, saberes herdados, mundos culturai compartilhades. Mas a ignoréncia historicamente produzida, 1 SEN, A. 1090. Dowlopment as freedom. Nova York, Alliod A. Koop, p. Xt, 2. PNUD, 1990-1999. Haman Development Report, Nova York, ONU. a5 mantida, cultivada, Ser humano ignorante é aquele que ainda nao foi capaz de descobrir que as oportunidades podem ser feitas, inyentadas, criadas, pelo menos até certo ponto, Sobre~ tudo, nilo deseobriu que pode fazer-SE oportunidade. Nao sabe (© que € aulonomia, ou a tem como algo concedido, controlado. Nao vislumbra © que poderia ser e fazer, desde que tenha iniciativa, saiba ge organizar, saiba pensar. Por isso, entrega seu destino a miios estranhas © hostis, Espera que outros resolvam seu problema, Esta -questio foi captada de modo exemplar pela “pedagogia do oprimido” de Paulo Freire, a0 mostrar que 0 oprimido precisa, antes de mais nada, claborar ‘a consciéncia critica da opressio. Se isto nao ocorrer, continuaré esperando a solugio por parte dos opressores. © primeiro fiat € fazer-se sujeito de sua prépria histéria. A partir daf, pode comegar a elaborar estratégias de confronto, que serio tanto mais aptas quanto mais apostarem na cidadania coletivamente organizada, Observando deste modo, emancipagio apresenta um proceso de extrema complexidade dialética, podendo-se ressaltar: 2) num primeiro momenjo, emancipagio sinaliza a neces- sidade de consciéncia critica, sobretudo autocritica, pela qual a opresstio € percebida como imposta injusta. Nao basta perceber que outros impéem a opressiio; & sobretudo im- portante pereeber que se esti “aceitando” a opressio dos Sendo © critério essencial da critica a autocritica, esta fo mais decisiva, porque desperta diretamente a nogio to; COITIO TeETE, A Opressdo nao € “celta”, porque & ato de forga, mas, por parte do dominado, pode existir condigio de concessividade favorivel. Portanto, opressio inteligente nio € aquela ostensiva, mas a envolvente, que provoca no oprimido trangiila receptividade, mediada por tracos culturais, religiosos, ideolégicos, econ6micos, que, juntos, o levam a “conyencer-se de que sua sorte esté nas mos do opressor. O “papel de presente” da opresso tem sido, mais que tudo, assisténcia Tal envolvéncia inibe os dois movimentos: © da eritica, im- pedindo que se perceba o opressor como opressor, ¢ 0 da autocritica, impedindo que se perceba a prépria subalternidade. 36 b) Este fendmeno dificilmente se di de modo espontineo, embora nito seja impossivel que © oprimido descubra, por si mesmo, que esté serido manipulado pelo opressor e sobretudo que se presta a ser manipulado. Como regra, processos eman- Cipatérios precisam de “intelectwais orginicos”, que seriam gente mais consciente capaz. de ativar a consciéncia cri outros, Esta dialética é de complexidade extrema, como vimos, mas corresponde ao processo social de gestagio da autonomia: precisa de ajuda © precisa também dispensar a ajuda. Faz. parte da nogio de intelectual orgénico ter consciéncia do risco de manipulagio, sobretudo tchdo a autocritica voltada para as farsas tendenciais dos discursos de ajuda e solidariedade, Este reconhecimento supe neles a grandeza de alma de saber sair de cena c mesmo de ceder, porque, em cltima instancia, esti a servigo dos oprimidos. & a mesmo fendmeno dos pais que podem nifo concordar com a proposta de vida auténoma do filho, mas € este que precisa decidir, mesmo que nos parega cerrado; em muitos momentos, seré 0 caso negar ajuda, para despertar a iniciativa propria. Os intelectuais orginicos sio “orientadores” ou “facilitadores” dos processos emancipatsrios, no os donos; por isso, faz também parte da vida deles ser a dos_ dispensados pelos orientandos, se ¢ que estes chegam um dia_ a ter autonomia plena, ©) Num segundo momento, 0 optimido, sabendo da opres- sio, pode conceber alternativas, Este fenOmeno coloca a prova, desde logo, a qualidade de sua conscigneia eritica e autocritica: se continuar esperando a solugio por parte dos outros apenas, @ autonomia ainda é incompleta ou mesmo farsante; se conseguir Ja vislumbrar que € a peca-chave de qualquer solugio, por mais que deva contar com apoios externos, a autonomia comega a ser gestada adequadamente. Nio 0 caso de desprezar apoios externos, mas de vé-los criticamente, ou seja, como apoios supletivos, A assisténcia, vista deste modo, nfo faz mal; ao contrétio, pode ser empurrao fundamental, Enfretanto, a capa- cidade critica estard incompleta de novo, se a assisténcia for visualizada como suficiente — se faz parte de todo processo ‘emancipatério, ela mesma nto & emancipadora em si. O conceito de altemnativa n&o pode, de modo algum, encerrar-se em 37 propostas assistenciais, porque a assisténcia nao € politica de altemnativas. Por esse motivo, a cidadania dita assistida & insuficiente e, dependendo da circunsténcia, contraditéria, porque reduz a idéia de alternativa a pedir ajuda, deixando de lado a outra face muito mais importante, que é de saber dispensar a ajuda, Outra vez, a presenca de intelectuais organics é decisiva, porque toda altemativa mais pretensiosa supée com- plexidade consideravel de concepedo, exigindo manejo expres- sivo de conhecimento, @) A idéia de alternativa néo implica necessariamente rompimento violento, mas certamente radical, no sentido de inverter relagiio de poder: passar da condigio de massa de manobra para a da capacidade de reagir como sujeito. Nem sempre © conftonto direto € a melhor estratégia, por conta da propria dialética manhosa do poder: poder frontal € sempre o menos esperto, Assim, o sentido mais forte da idéia de alternativa a descoberta do sujeito, depois de ter se flagrado como objeto. Esta percepdo pode, por sua vez, ser exagerada, se pensarmos que autonomia signifique viver contra tudo ¢ contra todos, fantasiando capacidade ilimitada de se impor. Colocando de modo mais sutil, altemativa quer dizer a capacidade de negociar como sujeito, dentro da condi¢ao minima de nada aceitar que lese a posigao de sujeito. Parte fundamental desta competéncia politica estard em nao se deixar levar por discursos, altissonantes, capciosos, envolventes, sobretudo por assisténcias de toda sorte que escondem, em seu fundo, prego da subalternidade. Ao mesmo tempo, ndo somos capazes de inventar qualquer alternativa, como se foss¢ possivel reinventar, do nada, a histétia; podemos fazer hist6ria propria, mas dentro das circunstineias dadas, 0 que implica também saber negociar em qualquer cireunstincia. O confront violento também & tética sempre possivel, porque o espago de poder é “violento”, no no sentido do destrogamento necessariamente sanguindtio, mas naquele da submissio do sujeito, transformando-o em objeto. Estamos apenas preferindo a “violéncia” inteligemte a obtusa. ©) Num terceivo momento, 9 oprimido pode descobrir as vantagens da cidadania coletivamente organizada, aperteigoando 38, sobremaneira a competéncia politica; a cidadania individual jé € muito importante, porque corresponde & constituigho ini do sujeito individual. Mas efetiva € sobretudo a coletiva, aquela que faz volume, preenche os espagos, pode ser vista claramente, exerce influéneia e pode definir a histéria, Porquanto, uma coisa € 0 trabalhador critica e autocritico, outra 6 o sindiealizado que enche praga, fecha empresa, encurrala avtoridades. Neste sentido, todo processo emancipatsrio supée 0 associativismo, fendmeno social de extrema profundidade pelo qual as pessoas deixam de set sujeitos isolados, para tornarcm-se sujeitos coletivos; € questéo essencial de_competéncia politica, dentro da pretensio de fazer hist6ria propria. Por sua vez, 0 associa- tivismo coloca, de novo, a prova a qualidade da cidadania, porque exige envolvimento politico profundo, que podemos chamar de militincia. Como regra, as associagdes slo farsantes, porque s6 contam com os chefes e que foram muitas vezes gerados em processos nilo democriticos, nas assembléias niio comparece quase ninguém, ndo se auto-sustentam.’ Quando se ligam a érgios publicos, tendem fortemente a conceber-se como aticas de obtengdo de assisténcia, pela qual pagam com crescente subalternidade, f) A cidadania coletivamente organizada precisa coincidit com a cidadania emancipada, dotada de satisfatéria competéncia politica para poder ser sujeito de suas préprias solugées. Quem, tem 0 minimo de conscigncia critica e autocritica sabe sobretudo de seus vazios e precariedades; nao toca irombeta na esquina, mas sabe medir suas forgas, buscar alliangas, fazer parcerias, sempre sob o signo do sujeito, no do objeto. Toda cidadania emancipada no rejeita a didiva, mas sempre desconfia dela; em si, a dédiva € algo que se dé sem condigio. Na sociedade, porém, nada é “em si”, porque tudo & mediado, de alguma forma, pela relagio social de poder, por isso, toda dadiva gera vineulo, e, sendo todo vinculo feito da mesma matéria, ou seja, relagio de poder, tende a produzir 0 efeito de subalternidade 3, Veja erivios do qualidade assaciativn om DEMO, P. 1998, Avatagie quatiuaiva, Cacopinas, Autores Associades em quem a recebe. No fundo, em sociedade, sujeito desinte- ressado no é fendmeno histérieo, ou é estratégia de vinculagio sub-repticia. Pela mesma razio é mister suspeitar do discurso da solidaricdade, nfo s6 porque tende a ser mero discurso, mas sobretudo porque pode ser tética dos dominadores. Cida- dania emancipada sabe negociar com todos, inclusive com os adversérios, desde que no sucumba a ninguém; por isso, saberd também niio negociar, se for 0 caso. 2) A politicidade do processo emancipatério. salta aos olhos, sem deixar de perceber todas as outras dimensdes ‘constitutivas, para além da politica. Mas esta & a central, porque € sobretudo nesta que se gesta o sujeito capaz de histéria propria. Assim, deve-se apontar para a necessdria _pereepgio das instrumentagdes da cidadania, a comegar pela inserg%o no mercado. Mas jd existe aqui diferenga monumental: 0 cidadio emancipado nao chega ao mercado suplicando assisténcia, mas pretendendo seus direitos; sabe, de um lado, que no capitalismo © mercado acaba sempre se sobrepondo aos direitos, mas sabe também que nao pode aceitar isso sem mais, Esta nfio-aceitacio néio pode restringir-se meramente a reckumar ¢ denunciar. Precisa ir As vias de fito, ow seja, buscar formas de cidadania coletivamente organizada, mais capaz de se confrontar com 0 mereado. E esta competénci. politica, no fundo, que eleva o salitio minimo, impde condigdes de contratagiio ¢ dispensa dos trabalhadores, formula programas previdencisirios e assistenciais. Um dos problemas mais graves da assisténeia, quando malposta, € de, sabendo-se necesséria acima do mercado, dispensa, dai para a frente, esta relagfio, como se fosse possivel sobreviver autonomamente sem insergio no mercado. Assisténcia que substitui a relagio de mercado é necessdria para os segmentos que nao podem ou nzo devem se auto-sustentar, mas & equivoco total nos casos em que sua fungiio também & a de restabelecer a capacidade de trabalhar © se manter. Assim, esta politicidade no pode ser entendida como desprezo da relagio de mercado, mas como habilidade de 0 manejar devidamente, para impor como mais importante a relagdo de cidadania, bh) Num quarto momento, a cidadania emancipada alimen- tase sobretudo de processos educativos permanentes, razio | 40 pela qual a educagio tende a preencher o papel mais estratégico na politica social. Daf nfo decorre que sejam algo avesso 3 assisténcia, mas indicam claramente que saber dispensar a ajuda dos outros € muito mais importante do que dela precisur € sobretudo depender. Todavia, nio é qualquer educagio que capaz de motivar tamanho impacto, jf que, no contexto do sistema, sua tendéncia mais imediata € de reproduzi-lo, sobretudo em sua versio instrucionista geralmente predominante, Ainda assim, educugio € a politica social mais proxima da gestacio do sujeito capaz de histéria prdpria, porque pode motivar o surgimento da consciéncia critica autocritiea, permanecendo ‘como impulso fundamental do suber pensar e do aprender a aprender, ao mesino tempo, é a politica social mais proxima da politicidade, j4 que esté na raiz da competéncia politica capaz de se contrapor & pobreza politica 4l 4 DEFENDER E LIMITAR A ASSISTENCIA O superdimensionamento da assisténeia social é marcante no Welfare Stare, tendo se constituide em motive de constante critica por parte do neoliberalismo, por conta da Iégica do mercado, Para o mercado, pessoas improdutivas — ou, mais propriamente, incapazes de gerar mais-valia — nao interessam. Sobretudo a globalizagao competitiva descarta a forga de trabalho incapaz de acompanhar o ritmo da produgio, E muito diffcil divisar na assisténcia qualquer “Tucto” part 0 mercado, ainda que, com alguma boa vontade, se possa indicar que trabalhador mais satisfeito, cuidado, protegido, pode produzir mais e melhor. Algumas experiéncias sinalizariam nesta ditegiio, ¢ esta idéia foi, em grande parte, a retérica da qualidade total, Entretanto, € também ainda mais ficil mostrar que os ganhos de tai expetiéneias so maiores para os donos dos meios de produgiio do que para o trabalhador, Por esta © por outras razées, a assisténcia sempre detém posigio suspeita para o mercado, quando menos porque € gasto improdutive. Poderia ser aplicado em coisa melhor. Acrescem ainda dois motes importantes: dentro do teorema social liberal, quanto maiores as necessidades sociais, menores sio as recursos disponiveis, ¢ a assisténcia tende a viciar os pobres, despertando o parasitismo social. Dentro da légica do mercado, assisténcia pode ser feita somente em condigées de pobreza residual ¢ de afluéncia econémica, que permitem gastar sobras para dar conta da questo, Cré-se 43 que pobreza 6 residuo do funcionamento do mercado, néo questo que possa acometer maiorias. Pobreza para além de certo montante residual ja soa a mau costume, inépeia, incom- peténcia, parasitismo, O Welfare Stare teria caido nesta arapuca © agora, tem dificuldade de sair dela, Em parte, o desmonte das politicas de protecdo percorre esta rola, inclusive 0 apelo stescente ao voluntariado, Em alguma medida, 0 assim dite “tereeiro setor” alimenta a alternativa de fazer que 0 mercado ndo pode ou ndo quer fazer em politica social! A critica que aqui fago as politicas superdimensionadas de assisiéncia nada tem a ver com este pano de fundo. A rigor, € Wulmente adverso a ele, OU que critico frontalmente € a tendéncia facilima de fazer da assisténcia cultivo da ignorancia popular, coibindo a possibilidade de emancipagio encoberta pela cidadania assistida, Critico também que, enquanto se busca, com retérica absurdamente vazia, a assisténcia uni- versal, nem sequer se garante a assisténcia permanente de que segmentos fundamentais da populagio precisam. Nao hd como contestar a necessidade deste tipo de assisténcia permanente, que 86 pode ser justificada por compromisso com a democracia € com os direitos humanos. Eniretanto, esta meta estd por ser cumprida minimamente, para nao dizer que, na pritica, nenhuma Politica de assist@ncia social — nem mesmo estas — poderia ser apresentada como pelo menos satisfatéria. A mesma by cadeira que a direita faz com a pobreza — tutelando- de maneira clientelisia — foi feita, até certo ponto, pela LOAS. © parte da esquerda que a defende, quando abraguu a pobreza inteira como seu espago de atuacho. Dificilmente poder-se-ia imaginar superdimensionamento maior. [, ao mesmo tempo, absurdamente ingénuo e incorreto. Ingénuo, porque nenhuma politica isolada poderia meter-se a dar conta da pobreza inteira, muito menos assisténcia, sem falar que se trata de declara meramente verbal, pior que as promessas cleitoreiras da direita, Incorreto, porque a lei de assisténcia niio & lugar indicado para 1. FERNANDES, R. C. 1904. Privado pordm piblico, 9 tereeino setor na América Latina Rio de Janciva, Relune-Dumar 44 desenhar proposta de combate A pebreza, garantindo-se af que se trata de coisa totalmente residual ¢ bagatelizada. O combate a pobreza precisa ser politica tipicamente estratégica, envolvendo todos os setores, inclusive os econémicos. Entretanto, deste ttuque jd sabemos hi muito tempo: 0 Congresso deixa pussar leis com tet6rica de esquerda, desde que se neguem os recursos & seu campo de atuagio seja considerado residual. Nao & outro © destino do Estatuto da Crianga e do Adolescente (ECA). ‘Ao lado desta defesa aberta que fago das_assisténcias permanentes, € mister defender também as assisténcias provi s6rias, sempre que necessérias, mas em nome da emancipagio. Vale af que suber dispensar a ajuda & muito mais importante do que dela precisar e sobretudo depender, A maioria das politicas de assisténcia vive sob este signo: nos casos em que deveriam ser permanentés, sfio mantidas como provisérias, prevalecendo a expectativa de doagdes graciosas por parte do sistema, nos casos em que deveriam ser provissrias, tendem 4 motivar a expectativa de ajuda permanente, com o objetivo de manter © vineulo de dependéncia, Daf niio segue, em hipdtese alguma, que a assisténcia deveria ser descartada. Ao contritio, deveria ser bem-feita. Assisténcia bem-feita obedece aos pardmettos da democracia e dos direitos humanos: a) E direito liquido © certo que populagdes incapazes de se auto-sustentarem ou que no deveriam preocupar-se com isso tém direito assisténein permanente, independentemente de qualquer condigio de mercado. Neste sentido, a assisténcia poue set visualizacla como a primeira prova de democracia, quando revela que a respectiva sociedade tem nogo de dignidade social também para aqueles que, em termos de mercado, sio improdutivos, Sociedade que néo cuida de suas criangas pobres, nfio monta rede abrangente de atendimento a excepcionais € portadores de necessidudes especiais, ndo trata bem seus idosos, Fevela que mantém democracia farsante, hipdcrita, perversa. Entretanto, porque esti na lei, aiguma coisa se faz, mas apenas alguma coisa, ed ¢ li, sempre insuficiemte © insatisfatsria dando a entender que mesmo esta politica se cumpre apenas quando € possfvel, ou quando se tem recursos, ou quando 0 45 Mmandante resolve dar. J4 6 uso consagrado: destinam-se sem- pre recursos insuficientes, e quando se tem que cortar, come- b) Pior que © problema de cobertura inadequada é sua falta total de qualidade no atendimento. Basta olhar para as instituigdes que deveriam cuidar de adolescentes infratores ou para as prises, onde as rebelides jd se tornaram rotina: falta tudo, espago minimo fisico, cuidados educativos e assistenciais, Programas ostensivos de recuperagdo, ambiente humanizado, Pessoal especializado, e assim por diante. Fazem exatamente © contrério: so escola aperfeigoada do crime. Constantemente aparece na imprensa a siluagdo inaudita de asilos para idosos, onde eles oo tratados como animais, sobretudo quando sto doentes mentais; creches que siio “depésito de criangas” tém se tomado comuns. ©) Se © desacerto 6 desta magnitude nas politicas perma- nentes, nas outras 6 ainda maior, constituindo-se no espago preferencial do cultivo da massa da manobra. Comega pelo fato comum de que cada governo cria uns tantos programas, que 0 préximo desfaz; segue pelas ofertas diretamente orientadas para os “currais eleitorais”, que pretendem pagar e manter o voto; condensa-se no cultivo constante de cestas bisicas ¢ outras bugigangas, que, mesmo podendo ser importantes para populacio miserdvel, nada tém a ver com assisténcia como direito da cidadania, pois servem apenas para o atrelamento tutelado. Recriam a misétia ciclicumente, alimentando a igno- Fincia sistematicamente. 4) Dentro dos parimotros da democracia e dos direitos humanos, a assisténeia precisa, pois, de adequada cobertura qualidade, seja na versio permanente, seja na proviséria; precisa fazer parte do orgamento estruturadamente e ser considerada yerba intoedvel, como sio intocdveis os direitos humanos. Entretanto, funciona aqui outra face do mesmo teorema social liberal: quanto mais pobre a pessoa, menos condigdes tem de reagir; pode ser facilmente enganada, manipulada, vilipendiada, ¢) Regra fundamental de toda politica social é niio se Propor como algo isolado e setorial. Por isso, a assisténcia ganha muito em efctividade quando concertada com outras 46 politicas sociais, sem esquecer jamais ¢ lado econdmieo também. © mero concerto social nao basta, porque 0 maior problema pode estar na face ccondmica, como muitas vezes ocorre com criangas € adolescentes em situagiio de risco. O ECA trata de concertar as agées socinis, deixando totalmente de Indo o compromisso da economia, e nem sequer conseguiu formar fundo proprio, Assim, embora repleto de acertos retéricos, € inefetivo, de certa maneira alimentando impulsos da direita de que seria preciso tratar esta populagéio de maneira policialesea © autoritéria. 1) Regea ainda mais fundamental € o controle democratico popular, fonte verdadeira da qualidade das politicas. piblicas. Esta questfio ¢ tanto mais aguda quanto mais se trata de segmentos populacionais menos organizados ou que nem sequer possuem condigées de se organizarem. E facil traté-los como residuo, porque nao colocam nenhum risco maior para o sistema. Aqui, porém, aparece o motivo maior desta regra: o sistema no teme populago com fome, mas teme populagdo que sabe pensar. Muitas vezes, assistir € feito para evitar © saber pensar ou para cultivar @ ignoréncia Ao lado de defender, também é mister limitar a asistencia. Por qué? Nao no sentido neoliberal de evitar gastos improdutivos, cerear os assistidos para que niio se habituem mal, privilegiar sempre a relagio de mercado. Tenho trés boas razdes para limitar a assisténcia: a) A primeira refere-se 4 necessidade de gerar assisténcia que mio prejuuique 0 provessy enmauvipaiériv, criaudo ue @s- sistido vineulo irreversivel de dependéncia, Trata-se da tarefa herdiea de ajudar de tal forma que o ajudado perceba ser mister dispensar a ajuda. As duas rédeas precisam ser puxadas simultaneamente, mas a da autonomia deve prevalecer ao final das contas. Esta dialética 6 talvez uma das mais seastveis do ser humano, porque 6 a maneira que a histéria conhece de fabricar a autonomia, sempre arriscada, complicada ¢ facilmente detuipavel, Assim, limitar @ assisténcia significa niio a negar, mas, ao contrario, garanti-la na dose certa, tal qual remédio que, se dado em demasia, mata; se de menos, ndo tem efeito. 47 Do ponto de vista do intelectual organic, é mister aguda consciéncia critica para perceber se a ajuda a autonomia do ajudado, ¢ do ponte de vista do ajudado é necessiiria sibbia autocritica para perceber se jé esti facilitando a condigio de massa de manobra, em vez de despertar para auténtica autonomia. Tome-se 0 exemplo de instituigdes des- tinadas a adolescentes infratores: de um lado, possuem o direito de ser bem tratados, receber toda ajuda necessiria, experimentar ambiente de proteciio ampla, alimentar-se adequadamente ¢ cuidar da satide, mas, de outro, nunca se poderia perder de vista que esta situagdo deve ser transitéria — 0 adolescente no terd protetores priblicas pela resto da vida; quando sair da instituigao, teré de andar com suas prdprias pernas. Ai falham quase sempre as instituighes, sem falar que os servigos prestados geralmente so péssimos, porque de nada adianta iransform:.s a reclusio em prisio de ouro, pois € preciso desfuzer a necessidade de prisio. Nao faltam exemplos de adolescentes jé pervertidos pelas passagens em tais instituigées, comprazendo-se em tudo depredar, invectivando e ameagando 08 responsiveis, recktmando direitos com absoluto sarcasino, mostrando que sabem bem aproveitarse das “vantagens” da inimputabilidade € assim por diante. Se fossemos buscar cul- pudos, © primeito seria @ propria instituigio assistencial, que, com total mau jeito, perverteu o verdadeiro sentido da assisténcia social. b) A segunda limitagdo da assisténeia refere-se A neces~ sidade rigida de enfocamento das politicas, 0 que ji indica Wo ser 0 caso fazer dela princfpio universal. Nao oxiste qualquer raziio teérica ou pritica para assistir aos privilegiados. Ao contritio, politica social significa saber desprivilegiar os privilegiados, ¢, pela outra via, saber privilegiar os desprivi- legiados; jé dei 0 exemplo da “redistribuigao” da renda — s6 ocorre quando se consegue retirar dos ricos, tornando-os menos. ticos, Entretanto, faz parte do mesmo teorema social liberal que politicas piblicas de boa qualidade sio apropriadas pelos rics. Geralmente, as politicas ptiblicas sao de mé qualidade, ndo interessando aos ricos; mas, quando ocorre alguma de boa qualidade, invariavelmente seu acesso se afunila em favor dos 48 privilegiados, como € 0 caso not6rio das universidades piblicas de ponta ou do Hospital Sara Kubitschek. Aparece aqui disjuntiva muito complicada entre fazer politicas piiblicas de baixa qua- lidade tipicamente para os pobres — coisa pobre para o pobre —e fazer poltticus piblicas de alta qualidade tipicamente para 0s ricos, Daf segue duplo desatio: fazer poltticas de qualidade pura os pobres € evitar que os ricos se apropriem delas. Para tanto, € mister colocar em agiio um duplo movimento: © mais importante € gerar a capacidade dos pobres de garantir seu espago, fazcndo uso da discriminagio positiva; a seguir, fundamental encontrar democracias que sejam capazes de im- plantar esta direcio, por exemplo, garantir escola priblic boa qualidade para as periferias. A idéia de limitar a assisténcia aqui ndo significa negé-la, mas, ao contrério, potenciar seu efeito por meio do devido enfocamento. ©) A terceira limitagio da assisténcia se refere & necessidade de evitar sua setorializacdo, tanto no sentido de agir sozinha quanto no de querer fazer tudo sozinha, A LOAS pretende fazer tudo sozinha, aceitando — alegremente! — a pobreza . caracteristicamente sem recursos a0 menos adequados stitucionais de articulagiio. Algumas instituigées ini © condicdes 86 fazem assisténeia, como & 0 caso comum, por exemplo, daquelas dedicadas aos adolescentes infratores. O concerto de politicas ¢, como regra, benéfico para todos: a assisténcia se reforea, bem como ela também reforga outras, como poderia ser 0 caso da “bolsa-escola”: a vinculagdo da renda minima com aproveitamento escolar adequaclo dos filhos pode reforgar 08 dois lados € abrir horizonte emancipatério efetive. Ocore quase sempre que nem um nem outro objetivo se faz de maneira acequada, pela propria razio de serem politicas des- tinadas aos pobres. Evitar a setorializ: importante também para uquelas politicas aceitas como mais estraiégicas, como educagilo, por exemplo: o saber pensar s6 se engrandece se souber ancorar-se em devida e adequada assisténcia Serd, pois, erro interpretar a necessidade de limitar a assisténcia como sua solapacio. O sentido & exatamente o contririo. O que se pretende sobretudo evitar € que, de um lado, a assisténcia estigmatize as pessoas como beneficidrias, 49 minando as condiges de emancipacio, e, de outro, que sendo eventualmente de boa qualidade, seja apropriada pelos ticos. HA muitas maneiras de fundamentar esta preocupacio, mas uma delas pode ser a dialética da dddiva. Pois € sempre também problema para quem di e sobretudo para quem recebe. A ddiva desinteressada 86 existe na cabega do doador, enquanto © pedinte eritico sabe, de cor e salteado, que receber @ didiva implica no s6 gratidZo, mas especificamente alguma subalter- nidade. Se tiver suficiente consciéncia critica e principalmente autocritica, pode reagir e salvaguardar sua posi¢io de sujeito, porquanto o efeito de subalternidade niio € necessdrio, mas tipicamente tendencial no contexto social e histérico concreto. Precisar de ajuda € situagZo comum em sociedade, a comecar pela infancia, quando estamos totalmente entregues a cuidados alheios, voltando © mesmo problema na velhice, pelo menos de modo similar. Aproveitar-se da fragilidade de quem precisa dos outros é a tendéneia clissica do doador, cobrando a dédiva com respectiva submissio. Nao se trata, porgm, de suprimir a didiva, mas de salvaguardar a emancipagiio. A dadiva maquia- vélica corrdi 0 sujeito, enquanto a didiva solidaria pode pro- mover a libertagio. No pano de fundo desta interpretasiio, estou manejando 2 dialética do conflito social, sobretudo de olho na relagdo de classe. Parte importante desta discussio se refere, hoje, aos modos de apropriagio parasitéria do Estado, em primeiro lugar por parte da direita, mas em alguma medida também por parte de certa esquerda. Na Comuna de Paris, Marx apontava claramente para este problema, razio pela qual queria Estado. minimo, rigidamente controlade de baixo para cima, incluindo nisto a idéia, hoje inaceitével, de eleger (© deseleger) todos os funcionarios do Estado, inclusive os pro- fessores, para que no usem © Estado como plataforma de privilégios corporativos. Uma coisa & olhar 0 Estado como lugar da assisténcia, ou como Ingar do servigo piblico. No servigo puiblico € mister sempre incluir assisténcia, mas é equivoco flagrante reduzir servigo piblico & assisténcia. Entre- tanto, o Estado assistencialista néio & apenas produto da direita — para fabricar a cidadania tutelada —, mas igualmente de certa esquerda tipicamente leninista — para promover a cida- dania assistida —, a comegar por si mesma, 50 5 ABUSOS CORPORATIVISTAS DO ESTADO Estamos acostumados com modos de apropriagiio do Estado por parte da burguesia capitalista, que dispensa qualquer aca~ nhamento nesta diregiio. E capaz de berrar o discurso neoliberal em todas as esquinas ¢ em seguida estatizar os prejufzos de bancos privados falides ou privatizar patriménios ptiblicos com pregos aviltados. Seria ocioso apontar no Congresso a repre- senlagiio. dos interesses da elite econdmica e politica, muito mais do que dos interesses populares. Estes sio lembrados no momento do voto, comprados com ineriveis migalhas eventuais, sobretudo com ofertas assistenciais. Esta cena nos & comum © quase aceita como inevitével em nossa histéria. Seria ingénuo nao esperar outra coisa, tamanha & a comprovagio fatual, em particular no contexto de partidos politicos que vivem desta manipulagdo. Jé estamus Gunbém acostumados a que partidos de direita, principalmente ditos liberais, se apresentem como peritos em reforma do Estado © moralizagao publica, enquanto fazem do Congresso a banca de negociatas sem fim e sem pudor. Nao hi voto que no tenha seu custo, Entretanto, pode nos surpreender que, sendo 0 poder mais maquiavélico do que capitalista, parte da esquerda também se dedique a espoliar 0 Estado, Este assalto € feito geralmente sob a epigrafe do Welfare State, ou seja, sob a retérica dos direitos, reservados, porém, para alguns poucos. Procura-se fabricar acesso restrito a espécie de assisténcia particularizada. 51 A medida que 0 funcionalismo ptblico, cansado do descaso geral, sobretudo em alguns setores onde a discriminagiio & descomunal, como no professorado basico, descobriu que poderia encontrar no Estado espago privatizével, evita 0 confronto direto com 0 mercado, part especializar-se em alargar espagos piblicos corporativistas!. Muitas bandeiras so nobres, ainda que os resultados pifios, como, por exemplo, a bandeira da cleicio dos reitores de universidades ¢ dos diretores de escola. Parece Sbvio que sc poderia esperar dessas entidades tio dedicadas A cidadania que possam gestar seus dirigentes de- mocraticamente. Era situagao inaceitivel aquela marcada pela indicaci manipulada. A possibilidade de eleger os dirigentes foi conquista merecida. Todavia, este desiderato foi descambando para a privatizagiio dos espagos piblicos, até o ponto que as instituigdes hoje sio mais ou menos reduto de certa esquerda, geralmente menos interessada na vida académica ou na apren- dizagem dos alunos, do que na conquista de vantagens classistas em toro do salirio, Estas conquistas também. sto nobres © dificilmente teriam acontecido sem a organizagio politica ad quada, mas propendem para a protegiio de benesses escustis, ainda que, por vezes, pouco significativas. Perdeu-se, entre ontras coisas, a relacdo com o bem comum e evita-se, de qualquer modo, 0 controle popular. Trata-se de assistencialismo que comega em casa: primeiro para os funciondrios do Estado, depois, se sobrar, para a populagi. Todavia, antes de avangar neste tipo de andlise, convém relembrar 0 proceso de concentragio de renda vigente no Brasil, considerado um dos mais perversos no mundo. Exata- mente isto chaina a atengio, conforme também os relatérios do desenvolvimento humano do PNUD: © pals representa mais ou menos a décima economia mundial, mas no ranking aparece por volta do 60° lugar. Distincia fantéstica, que revela, logo, as dificuldades notérias de minima eqidade social. O Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), em seu recente relatsrio sobre desigualdade na América Latina, revela dados 1, BOSCHE, R. R. (oig). 1991. Conparaivismo e desigualdade, A ronsteucto do expago pbc no Hirai. Rio do Iuneive, Bio’ Pande’ Baio 52 - i assustadores, tanto mais porque sua origem é ostensivamente neoliberal. E sempre muito enfitico © reconhecimento de que a América Latina € “a regidio que maior desigualdade registra em todo 0 mundo” (BID, [998:V). “Na média, os paises da regio se véem afetados pela maior desigualdade do mundo em matéria de ingressos: no Brasil © na Guatemala, os 10% superiores da populagdo absorvem quase 50% do’ ingresso wacional, enquanto 0s 50% inferiores da escala ganham apenas algo mais do que 10%.” E acrescenia pateticamente: “Maior importincia. tem © fato de que o problema nio mostra sinais claros de melhoria. As melhores mensuragdes de que dispomos indicam que a distribuigsio do ingresso melhorou nos anos setenta, registrou considerivel deteriorago nos oitenta e tem permanocido estancada em clevados niveis nos anos noventa, Segue que esta desigualdade parece ser fendmeno perduriivel © de raizes profundas” (BID:1). As grandes diferengas salariais, porém, nfio se devem apenas A distingiio entre capitalistas © trabalhadores, mas as distincias salariais entre os préprios trabalhadores. No decil? superior $6 14% seriam empregadores, quer dizer, a concentrugio de ingressos se realiza também pela distribuigio extremamente desigual entre as pessoas que vivem de salirio, Aparece aqui marca tipica de pases muito desiguais: a desigualdade de ingressos. € mais forte na comparacio entre capitalistas ¢ assalariados, mas pode ser também espetacular no seio dos proprios assalariados, quando pequena parcela deles passa a ganhar rendimentos tio elevades que mais os aproxima dos capitalistas que dos assalariados. Com efeito, o relatério aponta como fosso mais clamoroso a distincia cntre 0 décimo e 0 nono decil: “Enquanto nos Estados Unidos decil superior da populagio tem ingresso médio per capita 60% maior que o nono decil, na América Latina tal diferenga ronda os 160%. Quem mais ganha na América Latina sio principalmente em- 2. AS compamgSes slo fotos, como cepa, por decis, ow seas divi ppopalagao enn blocos correspondemes 4 108, em er decks Peeid mperion sh nto, o décimo decil, ou agueles 10% que estio no wpa di escala cle ingressos, assion como deed! terior ha de representae o imc devil ou aqucles 0% jue fslao ma base ct escala, pereedendo” os menones rendimentas 353 pregados e profissionais que recebem rendimento muito elevado por sua educagdo e expetiéncia. Somente 14% deles sio empregadores” (BID: 2). Esta marca aparece também no plano da educagdo: 0 nono decil, comparado com 0 décimo, acusa trés anos a menos de educagiio e que chegam a quase sete anos a menos no caso dos 30% inferiores. Neste sentido, o relatétio mostra niio 86 que subsiste distincia inaceitével entre os decis superiores ¢ inferiores, mas que 0 fenémeno da concentragio de ingressos est fortemente ligado A acumulacdo fantastica no decil superior. Até certo ponto, fica a imagem dura de que, na América Latina, a sociedade € constitufda, de unt lady, dus 109% que concentram quase metade dos ingressos, ¢, de outro, do “resto”, gue séo nada menos que 90% da populagio. Por isso mesmo, © relatério qualifica tal desigualdade de “doenga”. Numa com- paracio global, diz 0 relatério: “América Latina © 0 Caribe sio a regio onde se eacontram a5 moaiores desigualdades na distribuigao do ingresso e onde 08 individuos mais ricos recebem proporgio maior do ingress. Uma guarta parte do. total macional & percebide. por somente 5% da populagio, « 40% pelos 10% mais rieos. Tais propargées S20 compardveis apenas "is que se observam entre os paises da Attica, cujos niveis de ingresso per capita sio menos que a metade dos da América Latina, ¢ superam consideravelmente as de qualquer tus g-vpa de paises, Nos pafses do Sudeste asidtico, os 5% mais ricos percebem 16% do ingresso em média, ¢ nos paises desenvolvidos 13%" (p. 13). J4 no outro extremo, os 30% mais pobres recebem 36 7,5% do ingresso total, menos que em qualquer ultra regio do mundo, onde esta parcela € maior que 10%, Observando 0 indice de Gini médio para todo o mundo onde existe informagio satisfatéria’, estaria por volta de 0.4. Paises mais iguais revelam um {ndice entre 0.25 ¢ 0.3. No 3. fndice de Gini & uma dis medidas mais wsadas de distibuigi de vena © vai do 0 (zet0} — distibvigto perfeila — a 1 (um) — caneentragdo taal. © indice Ae Gint brasieizo ests por voll de 06, consiersdo um dos mais alos do mune 54 outro extremo, chegamos a 0.6, um indice encontrado apenas na América Latina © no Caribe. “Os indices de concentragaio da América Latina sio em média 0.52, com um minimo de 0.42 para o Uruguai ¢ um maximo de 0.59 para o Brasil” (p. 14). O relatério chega a falar de “excessos de desigualdade” (p. 15), referindo-se, em termos de comparacao, a situagdes similares de desenvolvimento. “Os maiores excessos se observa no Brasil, Chile, Guatemala, Equador, México, Panamé e Paraguai, ¢ somente Jamaica tem nivel de desigualdade signi ficativamente abaixo do padriio internacional” (ides). Paises da América Latina por desis de ingresso domictia per vapita Deis _ [coche euces [1 [2 [aa] s]o & [2 [io | Gini argentina |_i5 | 2x [a8 [as | 59 [93 118 | 170 [35.9 [oa aowvia [us [26 [a4 [42 [52 [os | 79 | 105 }is6} 42a | oss rat [os | 17 [2s [as las [sz 105 | 164| s70| a9 Jcwte [is | 22 [30 [3s [47 [59 [75 [101 [153] 458 | ose leon [4 | 20 [a0 [52] os [27 122 | 164] 342 | 04s Equador | 06 | 17 [an [39 | 52 [es wos | 156 | aco | 057 Mexico | 1.1 | 22 [30 [a9 | s0 | 62 wos [156 | aaa] 055 Pargusi [07 | 16 [2a [as [as [ou | 107 | 158 465 | 039 rex us| 29 [39 [sa | 64 us| 159 [35a [ 046 fumgut [1x | 32 [as [sa | 66 123 | 164 30.3 | o43 fveneruela] 16 [29 [39 [as [or a [us| i62 [asa] oar Pome. RIT tnfiwme 1908.1900, Wasbingion, I0DR, p28. Pura Rolvia © Unuguat fs dados so apenas da zona urbana. Dados mais recenes de pergulsas domicile, A Tabela 1 agrega alguns pafses latino-americanos, com respectivo coeficiente de Gini, relativo ao ingresso domiciliar per capita, O Brasil tem destaque negativo, acompanhado apenas pelo Paraguai, que também revela coeficiente de 0.59, embora muitos outros paises se aproximem desta marca. O mais baixo aparece no Uruguai, com 0,43. Impressiona, ademais, as cifras exiguas dos primeiros decis, em particular o primei ro, que vio desde 0,7 a 1,8%. Se somarmos os tés primeiros decis brasileiros, obtemos apenas 5% dos ingressos totais. 55 _ i A. concentragio de ingressos atinge os 10% somente apés 0 sétimo decil, como regra, Daf para a frente, entretanto, a velocidade da subida cresce, dando salto na passagem do nono para o décimo, Esta “doenca”, como diz o relat6rio, pode ser visualizada mais de perto no gréfico que compara Brasil © Uruguai. As duas trajetérias sdo bastante diferentes: nos niveis inferiores 0 Uruguai mostra sempre um perfil menos dristico, empatando no nono decil, @ subindo bem menos no decil superior. O sallo no caso brasileiro, entre 0 nono e o décimo decil, é espetacular, revelando uma dindmica muito mais acerba de concentragiio de ingressos. Segundo o relatério, em paises mais igualitirios como Suécia ou Canada, 0 decil mais rico da populagao ganha em média apenas 20 a 30% a mais em comparagiio com o decil anterior. Assim, @ concentragio cresce em ritmo mais lento, niio uparecendo saltos mais acentuados entre os decis. Jéi na América Latina “se abre um abismo: na Repiblica Dominicana ou no Chile, para citar os dois casos mais eriticos, 0 ingresso de quem pertence ao décimo decil & tes vezes maior que 0 do anterior ¢ mais de trina vezes maior que © primeiro decil” (BID, 1998:18). E acrescenta que tais distincias podem ser ainda maiores, porque nos estratos mais altos de ingresso a sonegagio de informagio sobre rendimentos é mais acentuada, sobrettudo quanto aos ingressos nio laborais. Assim, a desi- gualdade estaria, na prética, subestimada (idem: 19). 60 40} 20 20 | wf} D Brasil BE ornguai 56 Os chefes de domicilio dos 10% ma s ricos se caracte- rizariam por quatro mareas mais ostensivas: nivel de educagio, tipos de cmprego/trabalho, zona de residéncia © numero de filhos. Na média, possuem por volta de 11,3 anos de escola ridade. Embora isto no supere o nivel do ensino médio (seriam doze anos), este decil superior apresenta 2,7 anos a mais que © nono deci. Com respeito aos 30% mais pobres, superam em quase sete anos. “AS distincias educacionais mais pronun- ciadas entre os decis mais ricos se encontrany no Brasil, México ¢ Honduras, onde sio superiores a trés anos, ¢ somente no Pern sfio menores que dois” (BID, 1998:20). Assim, embora os ricos no apresentem nivel muito elevado de educagio, comparado com o dos pobres, as distincias siio acentuadas. Quanto ao tipo de trabalho, um quarto dos chefes de domicilio do deeil mais alto se ocupa em atividades ditetivas como profissionais, tenicos ou funcionsrios superiores de empresas. Por outro lado, os domicilios mais pobres estiio no campo: como regra, mais da metade dos trés decis mais baixos habitam a zona rural, Também quanto ao niimero de.filhos as distincias siio acentuadas, © que favorece muito os ticos, que, além de ganharem mais, precisam repartir com menos filhos. Assim, estas marcas indicam igualmente tragos da prépria concentragio de renda: “Os chefes de domicilio do decil mais rico no Brasil, que € 0 pais de maior concentragio, tém 3,5 anos a mais de educagio do que os do deci] seguinte, enquanto no Uruguai, Peru ou Venezuela, onde a concentragiio é menor, tais distancias sio de cerca de dois anos” (BID, 1998:22). Com tudo isso, mais de 150 milhGes de latino-americanos (mais ou menos 33% da populagiio) se encontram abaixo do nivel de ingresso de dois délares por dia, considerado © minimo necessdrio para cobrir as necessidades bisicas de consumo. E. relevante a descoberta de que a concentragio dos ingressos mostra salto surpreendente entre 0 nono © © décimo decil, insinuando “saciedades dos 10%", mas isto nfio poderia obs- curecer a distancia que existe para com os outros decis, O fato de que © primeiro decil no Brasil perceba apenas 0.8% dos ingressos ainda é mais clamorose do que a distincia entre ‘0 nono ¢ 0 décimo, Mesmo assim, & de extrema relevancia 7 esta descoberta, porque nos dé alerta definitivo: passou o tempo em que 08 “trabalhadores” eram — todos — categoria explorada. Cada vez, mais aparecem trabalhadores que estio francamente ao lado dos detentores dos meios de produso, alojando-se no decil superior, onde, segundo o relatério, somente 14% seriam empregadores. Hé assalariados que esto também na causa da concentragio da renda, quando se distanciam em demasia das bases. Tanto na empresa privada como no setor piblico existem camadas de assalariados absolutamente privilegiadas, chamando a atengiio sobretudo assalariados puiblicos que, estando dentro da méquina estatal, souberam cercar-se de benesses duvidosas, sem que estas possam um dia chegar & maioria da populacio. Esta “cultura” do privilégio instalou profunda desordem salarial, que jd nio obedece a padres minimos de relagio com pro- dutividade, importincia social e econdmica, escolarida funda-se em trambiques ostensivos, seja pela manipulagio da lei (agregagio de vantagens salatiais, pensdes e aposentadorias absurdas, confusio entre direito adquirido ¢ usurpagio), seja pela reserva de poder (saliétios de deputados ¢ similares ou de juizes), seja pelo apadrinhamento politico e acumulagio de saldrios, Por ironia, perde-se a “nogto de mercado”, imaginando que saldtio pode ser inventado a bel-prazer, assim como se frata de falsa nogio de mercado aceitar que o salario minimo Possa permanecer no patamar em que esté. Mas esta & preci- samente a marca da concentragdio da renda: enquanto alguns poucos se locupletam & custa das maiorias, estas vegetam na mera sobrevivéncia. E quase inerfvel que nio se veja nisto fendmeno de tessitura sobretudo politica, niio no sentido satanico, como se a elite detivesse projeto explicito © elaborado de exploragdio das maiorias, mas no sentido do conflito entre eqitidade e crescimento. Por isso, deve-se afirmar que a des- concentragio da renda é sobretudo fendmeno politico de con quista histérica. A cidadania ainda 6 a cldusula central da equidade. Este excurso sobre 9 Relatétio do BID é pertinente, porque revela, para além das misérias ji sabidas, mormente 58 no Brasil, distincia assustadora entre 0 nono e 0 décimo decil, algo surpreendente se tomarmos em conta que no décimo decil menos de 15% seriam empregadores, Considerando ainda que em tais domicilios a sonegacio de informagio sobre rendimentos € notéria, temos de engolir que a concentragio de renda esté subestimada, Para nossos fins, esta constatagdo, mesmo advindo de bergo encardidamente neoliberal, escancara tendéncia hist6- rica que se vem delineando em nossa sociedade, a partit de certa esquerda, Sob a defesa do Estado, sempre vinculada a posigdes pretensamente esclarecidas © criticas, constroem-se altos saldrios € outras benesses, que empurram este grupo para © décimo decil, onde participam, no fundo, do mesmo projeto da burguesia de espoliagio geral e incontida da sociedade como um todo. Caricaturando as coisas, 0 projeto inclui que 90% da sociedade “se esfole” para manter os privilégios de 10%. Hi grandes diferengas neste universo de assalariados pri- vilegiados, restringindo-nos no momento apenas aos funcionérios ptiblicos bem aquinhoados. Primeito, deve-se distinguir aqueles que fazem parte de setores estratégicos da economia, cujo poder de fogo € drdstico, como so 0s casos de bancos, compa- nhias de energia elstriea, Petrobris, portos ete, Segundo, sm também poder dristico de fogo setores que detém forte con- centragio de poder, como as policias, Receita Federal, pessoal do Judicifirio e do Legislative etc. Terceiro, aparecem setores que manejam ofertas sensiveis de servigos ditos essenciais, como o pessoal da sate, do transporte urbano, da rede de beneficios previdencisrios ete. Af temos a nata da pressio, cujas associagtes © respectivos siudicatus couseguem impor condigdes favoriveis de negociagio, sem falar na capacidade de manejar recursos para fundos proprios de pensio ¢ coisas do género. A seguir, comparece. gama enorme de setores menos poderosos, scja porque seus servigos siio menos relevantes para © funcionamento do mercado, seja porque realizam dentro do Estado ofertas menos sensiveis & populagio, seja porque fazem parte de setores desconsiderados, como é 0 caso notivel da educagio, A revelia do discurso j4 comum do papel estratégico da educagio, seus profissionais desfrutam de péssima valorizagio socioeconémica, scja na universidade, seja sobretudo na edu- 59

Você também pode gostar