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TEMAS EM DEBATE oO PRINCIPE QUE VIROU SAPO CONSIDERAGOES A RESPEITO DA DIFICULDADE DE APRENDIZAGEM. DAS CRIANGAS NA ALFABETIZAGAO Luiz Carlos Cagliari Da UNICAMP-IELISP CContribuigio para um Debate”, publiesdo no numero 63, p. 33- 144, malo de 1985. Pede-se 20 leitor que antes de ler 0 INTRODUGAO A alfabetizaggo € um momento muito impor tante e especial na vida de uma pessoa, um passo deci sivo para uma longa ¢ dificil caminhada pela estrada do saber institucionalizado. A alfabetizacao 6 também um. momento muito especial na vida da escola, um teste de sua competéncia, um momento propicio para se Pensar 0 aprender da vida e o aprender da escola, as formas do conhecimento, as manifestagBes preconce! 50 ‘tuosas da sociedade com relagio a linguagem até mesmo para se refletir sobre as contradigées da ciéncia diante da magia e do mistério da vida. Ha uma questo que nos ltimos anos tem sido levantada e debatida, que ¢ o efeito sécio-cultural sobre © processo de aprendizagem na alfabetizacdo, sobre a relacdo linguagem e pensamento, sobre o préprio proces- 50 de cognicao e até sobre as estruturas anatomicas e fungdes neuroldgicas das criangas marginalizadas, caren- tes, socialmente desprivilegiadas etc. Cad. Pesq., So Paulo (55): 50-62, nov. 1985 ia do restaurante, como o restaurante treina, depois nés famos a gréfica, como ela absorve, havia varios exemplos. que @ gente trabalhava que mostrava que a questo estru- tural 6 igual, ela varia dado 0 porte, dada a diferenca de sofisticagdo tecnolégica e a questio da hierarquia prot sional. Esse dado que a gente tem em mos, mostra, Elba, ‘que para pensar num possivel ajuste do modelo, ¢ do ‘que que nés vamos fazer em direcao a ele dé para pensar com 0s dados que a gente tem em mos. E na hora que vocé dé a resposta de qual a orientario politica, esse dado estrutural me parece bastante importente que a ‘gente leve em conta. De que a pequena e amédia empre- sa também no tém muito interesse, E veja, eu me lembro de dados bastante contun- dentes de que ela rejeita no s6 a profissionalizacdo da escola comum. Ela rejeita também do SENAI, SE NAG, que 6 um pouquinho mais colado com a dindmica do mercado do que a prépria rede. Cléudio — $6 para instalar um pouco de confusio: Quem sabe s# 0 jovem que trabalha o dia inteiro e ainda enfren- ‘ta uma escola & noite, quem sabe se ele néo esté realmen- te atrés de uma profissionalizago, mas sim 0 contrério, ‘ou seja, um jeito de escapar do seu trabalho. E sé para Provooar. .. Maria Laura — Pode até ser, Cldudio, porque eles recia- mam das rotinas didrias, mas a escola sempre 6 vista ‘como um lugar de descanso, de encontro, de convivio. Diferente dos alunos da faixa de renda mais alta, para os quais a escola 6 0 nico trabalho. Os alunos-trabaihadores reclamam do transporte coletivo ¢ do trabalho, mas a escola 6 sempre vista como odsis. Seminério — Pesquisa educacional e politicas governamentais Na literatura, hé um volume muito grande de con- tribuig&es para esse debate, 0 que por um lado tem ajudado a se entender melhor a questo, e por outro tem tornado 0 debate bastante complexo, exigindo ‘uma visio multidisciplinar com conhecimentos especia- lizados e profundos em varias reas. Esse debate, por- tanto, 86 pode ser feito numa imensa mesa-redonda, com liberdade e tempo para todas as colocacdes e discusses, necessérias, Talvez de todas as dreas que precisam parti- cipar deste debate, a mais ausente tem sido a Lingii/stica, embora alguns encontros importantes jé tenham acon tecido, como o debate de Chomsky com Skinner, com Piaget, © debate de Labov com Bernstein, e outros, sobretudo em congressos e encontros cientificos. ‘A questio técnica lingii/stica sempre esbarra em outras questies intimamente grudadas & questo edu- ‘cacional, e sempre se conclui que no 6 possivel resolver uma questo sem resolver outras. Dentre os muitos aspectos da problemética da alfa- betizagio, gostaria de comentar, de um ponto de vista ‘muito pessoal e com consideracées sobretudo de natu- reza lingifstica, a assim chamada “S{ndrome da Defi- ciéncia de Aprendizagem” (SDA) e algumas das causas a ela associadas. Vou tentar sintetizar algumas proposi- ‘ges e colocagies que considero problemiticas (infeliz- mente sem poder apresentar todas as razSes que levaram seus autores a essas conclusdes), para fazer meus comen- 16rios, por partes, abordando, no conjunto, a questo que se propés ac ACRIANGA DEFICIENTE A primeira colocaglo se baseia nos resultados de alguns piagetianos sobre a ontogénese da cogni¢ao, os uais afirmam que 0s distirbios no processo de constru- ‘¢80 das estruturas cognitivas e na representago do real 0 de natureza end6gena (isto 6, interna, organica) 30 produzidos pela falta de estimulacdo ambiental (fisica, social, cultural...) adequada, no momento pro- picio do desenvolvimento ontogenético (de zero a sete anos...). Esses distirbios supostamente resultem fem criangas que no organizam suas experiéncias no meio em que viver (0 real), que no tém nogbes de espaco, tempo e causalidade, que tém uma representa: 80 cabtica do mundo, que mostram confundir a reali- dade com a sua representacdo, que tém dificuldade de estruturar a realidade no sentido légico-formal, que no falam lingua nenhuma, etc. Além disso, essas.criancas carecem de uma consciéncia de suas realizagées, porque ido thes so oferecidas as condigdes para que cheguem pensar coerentemente e a operar, tendo no maximo uma praxis sem conceitualizardo. Estas seriam as expli- cages porque certas “criangas no aprendem, no se sabe por qué" Ha um mundo de problemas a serem debatidos ‘nas afirmages acima! Vou comentar alguns deles ou usélos como pretexto para fazer algumas ponderagies que julgo relevantes para o debate, © mundo néo ¢ simples nem estagnado para ‘ninguém, em nenhum lugar do mundo, em tempo algum. Basta um sujeito nascer e teré um grande desa- fio pela frente: 0 de sobreviver. 0 homem é por natu: O principe que virou sapo reza um animal racional. Como animal bridor do mundo e da ficador do mundo e da vide. Ninguém nasce e morre sem realizar de alum modo essas duas tarefas bésicas, de descoberta e de transformaco da vida e do mundo. Ninguém passa & toa pela vida. Entretanto, 6 verdade ‘também que ninguém trilha o mesmo caminho pela vida or que passou uma outra pessoa, por mais esforgo que haja em se bitolar alguém. A diferenca é um traco essen- cial da vida sobre a Terra, sobretudo da vida humana: @ diferenga animal e a diferenca racional. Uma crianga quando nasce, seja 14 onde for, condigées suficientes de estimulos para se realizar plenamente como gente, tanto assim & que aprende 1 olhar 0 mundo, a ouvir, @reagir, @ andar, a mei as coisas, @ construir coisa si 80 muito pestoais, individusis, ¢ a sociedade deixe isso acontecer normalmente, como algo esperado, diria mesmo, esperado biologicamente, como se fosse uma heranca hereditéria da raga humana, da qual comparti- tham todos. Os que por alguma razio nasceram com deficiéncias bioligicas gravissimas — 0 que acontece muito raramente — apresentam restrigBes de vida, sem divida, mas mesmo para estes, em muitos casos, a det ciéncia biolégica néo impede completamente a loco- mocio, a reflexdo, 0 fazer e 0 falar. Historicamente, € fécil constatar como © homem se virou em situacdes muito diferentes. Os egipicos construiram as pirdmides, os babildnios desvendaram (98 segredos da astronomia, os gregos pensaram a vida, © homem e o mundo como ninguém, os maias tinham izago que nos fascina até hole. e quais eram as condigées sbcioculturais dessa gente? Em outras, © que so estimulos ambientais (fisicos, socias, cculturais) que fazem de um escravo um Platio, de um faraé_um construtor de pirémides, de um indio maia tum profundo conhecedor de matemética? Seré que uma nga de ume favela de So Paulo tem hoje menos estimulos fisicos, sociais e culturais do que os faraés, 05 filésofos gregos © os indios maias? Eu acho que 0 mundo @ a vida s8o tio complicados e desafiadores para todos eles ¢ é justamente por isso que numa mesma ‘comunidade, gozando de condigées semelhantes de vida, um é de um jeito e outro de outro; nfo por causa da influéncia do meio ambiente, mas por causa da maneira ‘como cada um reage diante da vida e do mundo. AAs atividades da escola acompanham de perto as. atitudes da sociedade. Fora da escola, asociedade revela preconceitos sociais através da discriminacgo da cor, do sexo, dos costumes, da origem das pessoas, etc... € na escola, a sociedade se apega preconceitos que ria, manipulando fatos lingUisticos, culturas, intelectuaisetc. Fora da escola, o poder do dinheiro decide quem domina @ quem dominado; na escola, o poder do saber decide quem 6 inteligente © quem é ignorante, quem tem dis ‘Grbios de aprendizagem © quem simplesmente cometeu ‘um ou uma seriezinha de enganos casuais. Vejamos, a seguir, algumas consideractes sobre 0 que acontece na escola'e na vida, Seré que basta uma pessoa atingir um patamar ~ por exemplo, operacional concreto ou de pensamento abstrato — para néo se reve- lor “deficionte”? at ‘écil atribuir a uma crianca uma deficitneia cog- nigitiva a partir de uma resposta imprépria que ela dé ‘num teste, mas se 0 sujeito fosse um adulto bem coloce do socialmente, respondendo do mesmo jeito, pretagdo seria diferente. A crianga tem a obrigacio de Provar em que estégio da aquisiclo do conhecimento 42 encontra; 0 adulto jé¢ diplomado e o que faz, mesmo ‘Bo errado quanto 0 que fez a crianca, tem sempre uma justificativa, Para a crianca existem as regras, para os adultos as excecSes! A mania que a gente tem de fazer avaliagSes ndo € talvez a manifestaclo mais clara da aceitago dos preconceitos sociais? Aprender a falar 6, sem divida, a tarefa mais complexa que 0 homem realiza na sua vida, € a mani- festago mais elevada da racionalidede humana. As criangas de todos os lugares do mundo, de todas as culturas, de todas as classes sociais realizam isso de um e io a trés anos de idade. Isso é uma prova de inteli- Toda crianca aprende uma Ifngue, e néo fela um amontoado de sons. Uma lingua & um sistema de alta complexidade em todas as suas manifestacSes: fonética, fonolégica, sintética, semantica etc... Tanto assim, é que, apesar dos estudos lingi/sticos de Panini a Chomsky, a interpretacdo da natureza e funcionamento da lingua- gem continua um desafio. © homem jé desvendou € entendeu muito mais segredos da natureza do que da linguagem. A linguagem & toda ele abstrata, montads em cima de conceituagbes @ generalizerses, apenas sua manifes- tagdo € que € sonorizada ou escrita. Ora, como uma crianga pode se apropriar da linguagem, uséla, se segun do alguns, s6 vai atingir 0 patamar Iégico-formal, o pen samento abstrato, bem mais tarde (ou nunca... no caso de certos alunos carentes...? Atingir 0 pensamento abs- trato formal é condicdo para qué? Para se operar com conceitos, regras, fazer generalizagbes 6 condiefo neces: siria ter provado através de testes clinicos (de Piaget ou de outro) que jé se atingiu 0 patamar légico-formal? Entdo, uma crianca que aprendeu a falar, provou que id superou {e como!) esse estégio da ontogénese da cogni- fo. A lingua useda pela crianga 6 nas suas caracteristicas mais profundas e essenciais, exatamente igual & do adulto. Certamente, hé usos diferentes da linguagem. Na verdade, nfo hé duas pessoas que usem a linguagem do mesmo modo, porque a linguagem é também uma forma de expresso da individualidade, um lugar onde o indivi- duo constréi a si proprio e 0 exibe ao mundo, uma coisa bonita e perigosa ao mesmo tempo. Conversar, 0 que todo o mundo faz, & uma das formas mais sofisticadas de organizacio das experitncias proprias e alheias no meio em que se vive, Nao hé falante ‘que ndo saiba conversar. ‘As nogdes de tempo, espago, linearidade, ceusali- dade so ingredientes to profundamente enraizados na finguagem que sem eles o falante no & capaz sequer de abrir a boca para falar e conversar. Ninguém fala sem uma gramética, sem os regras préprias do sistema lingOfstico de uma lingua. € a lin- guagem no ver pronta. O falante a tem que montar, rogramar e realizar. Ore, isso tudo uma crianca faz uando fala! Entdo, o que a impede de estruturar a realidade no sentido légico-formal? A divida a esse 52 respeito, com relacdo as criangas carentes, nfo seré mais lum preconceito social, que busca no comportamento ddessas criangas respostas iguais que’ se encontram ‘no comportamento de outras criangas, pela simples razo que se acha que a tnica forma de expresso para estruturac3o cognitiva tem que se revelar através do modo de falar usado pelas criangas sociaimente iadas? ‘Além das converses das criancas, é preciso obser- var como elas brincam, para se ver que aquelas consi- derages © proposigBes mencionadas anteriormente a respeito das criangas desprivilegiades sécio-cultural- mente so absurdas. 'A alguns alunos a escola atribui todas as deticién cias e déficits, mas saindo da sala de aula, o que acontece € muito diferente. Entéo, o menino vai jogar bola. Lé ele 6 0 lider, manda e desmanda, organiza seu time e desorganiza o adversério em campo, tem um controle Perfeito sobre 0 tempo, 0 espago, a nosfo de cause e efeito, uma habilidade ideomotora, ideoperceptiva e ideocognitiva para o jogo que faz dele um craque, um: Garrincha! A mesma méquina humana que joga bola, estuda na escola. Escrever ngo ¢ mais dificil do que jogar bola, marcar um gol néo é mais fécil do que reso! ver um problema de matemética. Aliés, marcar um gol € também um problema de matemética, de balfstica, de controle motor fino e muito mais. Julgar a capacidade Cognitiva @ operacional de uma pessoa somente através da escola num faz-de- conta de vida) € uma estupidez intelectual. A vida é @ vida, a escola € apenas uma situacdo de vida muito cestrita, Se a gente pegasse o craque de bola descrito acima e pedisse para ele explicar (com palavras... sem- pre as palavras!) o que é um jogo de futebol, 0 por qué @ © como daquilo que faz em campo, ele certamente deixaria de ser um craque pera se tornar um ignorant Mais uma vez a questio ndo esté na esséncia do indiv duo, mas no jogo que a sociedade faz, obrigando 0 individuo a se expressar lingisticamente, de mancira 2 provar que & somente através da linguagem que @ sua racionalidade existe ¢ tem valor. Por outro lado, quanta gente existe que aprende a usar o jogos de linguagem so uns idiotas na vida... a tnica coisa que sabem fazer 6 falar, jogar com as palavras, passar nos testes de todos (6 tipos, @ no ser na vida nada além de uns cogumelos ‘ou baobés, como diria 0 Pequeno Princip Tem gente que se revoltaria se fosse considerada portadora de déficits cognitivos, ou portadoras de dis ‘erepancias evolutivas nos sistemas funcionais (ideomoto- res, ideoperceptivos), mas sio incapazes de fechar direito uma méquina de escrever portétil que exige alguns en- caixes, de girar um parafuso (problema de lateral dade!?...), de fazer coisas seguindo as instrugées, de en- tender as explicardes sobre a montagem e o funciona mento de uma maquina, de um aparelho, etc., coisas que ‘muitos alunos carentes fazem com toda facilidade, mes: ‘mo porque muitos deles dependem disso para sobrevi ver economicamente. ‘Um menino faz uma cadeira na mercenaria no consegue aprender matemética na escola... Fazer uma cadeira € muito dificil (s6 quem jé fez sabe o Cad. Pesq. (55) nov. 1985 quanto ¢ dificil, @ no 6 & toa que to pouca madeira custe to caro). Essa no 6 uma atividade concreta ‘apenas, em oposicdo @ atividade abstrata da matemé- tica na escola. A madeira no formato da cadeira é a manifestagdo de um projeto arquitetado pelo marce- neiro, E 0 projeto muito abstrato e requer conheci ‘mentos muito variados, inclusive de célculo matemético. Por outro lado, 0 exercicio da matemética 6 apenas um Projeto intelectual que se manifesta através do jogo de alavras da linguagem. A matemética da escola esbarra mais na linguagem, do que na dificuldade légica e formal de solugio de problemas com nimeros, Por exemplo, fazer uma conta de somar dois nimeros de dois algaris- mos cada, ¢ algo banal. Usar esse resultado para dele se subtrair outro némero, menor que ele, também é ‘algo banal, que 0s alunos resolvem facilmente quando escrito através de formulas matemiticas. Mas se a mesma coisa vier em forma de problema, no jogo das palavras, ‘acontece sempre que varios alunos nem sequer chegam a saber o que fazer. ‘A habilidade lingiistica a habilidade manual sio coisas muito diferentes na sua natureza, mas ambas ser- ‘vern igualmente como expressio da inteligéncia humana. E um preconceito achar que a linguagem é uma atividade inteligente e 0 fazer manual 6 apenas uma questio de esperteza pessoal, que @ Unica forma de expresso do Pensamento abstrato esté na linguagem e que toda ativi- dade manual 36 revela um pensamento concreto, sem ‘conceitualizacbes @ formalismos orientadores da aco. ‘A mio faz 0 que a cabeca manda fazer. Ninguém faz uma cadeira por instinto, mas por conhecimento adauirido. Por outro lado, 6 facil confundir uma realidade ‘com outra, 0 concreto e 0 abstrato, o material e o ima- terial, © formal e sua manifestacdo, e essas coisas todas juntas. Nao s6 é fécil confundir essas coisas, como tam bbém, as vezes, 6 conveniente usar essa confusio para so discriminar pessoas, o que fazem, 0 que so, e mais uma vez manter os interesses da diferenciago das classes sociais, das capacidades dos individuos e das aberragbes dos trabalhos pretensamente cientificos. Uma cadeira é um objeto do mundo, a linuagem 6 uma representacdo do mundo. A escrita é uma repre- sentago de uma representaco do mundo. Nio é porque 2 escrita 6 uma representacdo de uma representago que a escrita € mais abstrata ou mais formal ou mais com- plexa ou exige uma capacidade superior. Pelo contrério @ apesar disso, a escrita 6 muitissimo mais simples do que a linguagem oral. A escrita se estrutura em funcio da linguagem oral. Sem a linguagem oral, a escrita é rabisco sem sentido. A escrita é muito simples quando ‘comparada com a linguagem oral, mas quando compars- dda com outras atividades é muito mais complexa, porque 4 escrita traz consigo a prépria linguagem oral embutida, ‘A escrita exige ainda uma certa anélise da linguagem, coisa que a fala no obriga. Do ponto de vista do faz escrever ou fazer uma cadeira me parecem muito seme- lhantes, O que dificulta a escrita, quando comparada ‘com a montagem de uma cadeira, é a linguagem que esté por dentro da escrita e no por dentro da cadeira, A cadeira pode até ser feita através de tentativas ¢ erros, ‘mas a linguagem nunca. A linguagem tem que ser me- O principe que virou sapo ticulosamente programada, incluindo sua mani escrita. Uma pessoa que nasce caga pode aprender a falar @ através da linguagem ter um bom relacionamento ‘com 0 mundo, com as pessoas e consigo mesmo. Jé com um surdo de nascenca nao se pode dizer © mesmo, por- que fica com dificuldade séria de adquirir usar a lingua- gem, seu esforgo de integragio na vida é muito grande e penoso. ‘Toda reflexio sobre a escrita 6 uma representaclo (metalingifstica) de uma representagao (escrita) de uma representacio (linguagem propriamente dita) do mundo. 0 ogo metalingii/stico que ocorre na escola e em muitos testes de cognicao, inteligéncia, etc. nem sempre tem suas regras claras @ explicitas o suficiente para que 0 adversério saiba como reagir. Assim, se constata, por exemplo, que um-aluno sabe escrever todas as letras do alfabeto, e nfo con- segue escrever uma palavra, Para escrever “AntOnio”, escreve “AptsmrRaa”. Um aluno sabe que existe pai/ av6/avé, tio/tia, boi/vaca, e néo sabe responder @ uma pergunta que pede o feminino de pai, avd, ti ‘boi. O aluno sabe fazer as continhas e no sabe resolver ‘um problema, s6 porque as continhas vieram formuladas diferentemente dos problemas. O aluno sabe bater p: ‘mas, andar em todas as diregdes, e quando é instrufdo a fazer isso num teste, fica imével ou faz de qualquer jeito. Pede-se a uma crianga para separar objetos iguais de um conjunto de objetos misturados, e ela ndo sabe; mas no confunde uma coisa com outra quando esté brincando! Essa questo 6 muito séria. O problema 6 entender o literal das palavras, mas o comportamento lingifstico, © porqué se faz certas coisas do jeito como se faz. Tenho visto pessoas adultas bem diplomadas que diante de uma informago muito clara e direta (entre sem bater”, “dirija-se a0 caixa ao lado”), pre- cisam perguntar 0 dbvio para se assegurarem que 6 que viram e ouviram 6 exatamente o que pensam,que viram e ouviram. Em situagio de teste e de sala de aula, @ crianga, as vezes, fica estupefacta porque o que se the pede ¢ algo to estranho e no Ihe faz o menor sentido, embora no parega tal a0 pesquisador ¢ a0 professor. Essa estupefactacdo ¢ muito clara e forte no inicio da escolaridade, quando 0 aluno entra na escola pel Primeira vez, pensando em encontrar 2 fonte da sabe- doria e encontra uma professora fazendo perguntas idiotas, por exemplo, mostrando duas caixas, uma de sapato @ outra de fésforo e perguntando a crianga qual delas € a maior. Ou fazendo-a ler uma frase como: “Pedro chutou a bola” e perguntando: “Quem chutou bola?” Isso & palharada de picadeiro de circo e néo contetido programético de uma escola, Existe na historia da lingistica um exemplo cléssico das relagdes entre os vérios tipos de represen- tago mencionadas acima e o mundo conereto, analisa- do também por outras formas de representardo que n3o ada linguagem oral. E 0 caso do reconhecimento de cores e de sua nomeacao, O que pode parecer azul para um pode parecer verde para outro. Alguém pode se referir apenas ao vermelho, a0 passo que outra pessoa diante dos mesmos fatos, distingue vermelho de bordé, assim por diante. Isoladamente, varios objetos sio stagdo 53 ‘nomeados como amarelos, mas quando colocadios juntos, um 6 amarelo canério, outro & amarelo gema, terra de siena etc. A distingdo de cores depende do modo como encarado o interesse em se distinguir na fala uma cor de outra. E certo que as pessoas enxergam cores diferen- tes, por variagSes de pequenos matizes, mas néo dispem istine8o no vocebulério das Ifnguas, sobretudo no vocabulério de uso corriqueiro. Ninguém pode julgar da capacidade de distinglo de cores ou da manipulac3o de objetos através das cores, usando a linguagem, caso contrério tem-se uma fonte inesgotével de equivocos. Mas alguém ird fazer a objegio de que os alunos slo solicitados a operar com cores constrastantes, verde, vermetho, amarelo, e no com cores parecidas... e mes ‘mo assim, no resolver os problemas como se esperaria, Em primeiro lugar, essa objecdo remete a algo diferente do apresentado acima e por isso hé outros problemas envolvidos. Pede-se, por exemplo, para uma crianga separar cores iguais. Separar coisas iguais toda crianga sabe fazer, porque sabe separar e sabe 0 que 6 igual e o que ¢ diferente. Se no faz como 0 esperado, & porque ndo sabe, em geral, porque fazer isso, 0 que se pretende com isso, ou até mesmo qual o grau de exi- gincia de igualdade e desiqualdade que se pretende usar como critério, Dois objetos, iguais em tudo, séo diferen- tes como individuos! Um néo 6 0 outro, entdo por que junté-los? As vezes, 0s objetos so todos da mesma cor, mas 0 resto, a forma a espessura, 0 peso, pequenos deta- Ihes, que © pesquisador abstrai e a crianca no, so suti- cientes para o sujeito do teste achar a diferenca que jus- tifica a sua resposta. Seré que a crianca sempre sabe exa- tamente_o que 0 pesquisador quer dela? Uma simples explicardo 6 suficiente para dar todas as instrugdes de que a crianca precisa? O teste, em vez de ser um pro- cedimento cientitico, pode ser uma armadilha, Tenho ensinado algumas pessoas a jogar Go, adultos e criangas. € um jogo com regras muito sim- ples, porém possibilitando muitas estratégias, comple- xas e desafiantes, E interessante notar que muitos adul- tos so mais ingénuos no jogo do que muitas eriancas. AAs criangas tendem a jogar mais pelas estratégias, se riscam mais, ¢ os adultos mais pelas regras, pelo medo de errar. A'mesma coisa acontece na situacio de teste: © pesquisador segue regras, e a crianca elabora estraté- gies de aplica¢ao dessas regras, que o pesquisador quase sempre no consegue entender. Por falar em jogos... como as eriangas se revelam hhdbeis ¢ inteligentes nos jogos! Mas, no aprendem orto- gratia ¢ matemética... Seré que 6 por causa delas ou do modo como se ensina 2 ortografia e a matemética na escola? ‘Tenho visto criangas pobres fascinadas com micro~ computadores em feiras de eletrénica e comunicaréo, J8 vi essas criangas programando 0 microcomputador, usando como tética simplesmente o efeito que certos comandos produzem na méquina, Por exemplo, usam uma regra do tipo For X = 1 to 2500: next, ¢ 08 co: mandos Print ¢ CLS e fazem aparecer e desaparecer caracteres na tela do video. Certamente estas criangas no sabem 0 que significa a estrutura de uma regra do tipo For X = 1 to 2500: next, mas sabem que com iss0 0 computador faz algo que querem que ele fara. 54 ‘Se em vez de se deixar a crianga operar a seu modo, se devesse necessariamente dar uma explicardo, de como se formula uma regra para imprimir e fazer desaparecer caracteres no monitor, tenho a impresséo cde que essas criangas no saberiam operar o computador naquele momento. As palavras as vezes atrapalham... e como! A mesma coisa acontece em muitos testes que avaliam as capacidades das criancas. A crianca, de fato, sabe distinguir coisas diferentes e separar objetos, mas ‘no sabe seguir as instrugées do pesquisador... ou da professora na escola, E da trégica experiéncia dos testes, @ avaliagdes, resta para a instituicZo, assim ela acha, a concluséo de que a crianga é portadora de um déficit comprovado através das evidéncias cientificamente con- troladas dos testes, reconhecidos como adequados, perfeitos ¢ de confiabilidade sob absoluta garantia. A universidade, as vezes, deveria ter vergonha do que faz!... Soré que as criancas carentes carecem de uma consciéncia de suas realizacSes? Seré que elas ndo tém chance de pensar coerentemente e de operar? Seré que ‘do refletem sobre o que fazem, fazendo o que fazem instintiva e mecanicamente? $6 pelo fato de se colocar essas questies fora do contexto de certas pesquisas, j4 se percebe que tais proposi¢des nfo fazem muito sentido. Seria negar 2 propria natureza humana a essas criancas carentes! Seré que & possivel alguém nao ter consciéncia do que faz? O que 6 pensar coerentemente? E pensar segundo a légica aristotélica, hegeliana, a filosofia de ‘Schopenhauer, de Nietzsche, segundo o que pensam 05 ricos, 08 intelectuais, os alquimistas, os mateméticos, (08 professores universitérios, os avés? Ser coerente é deduzir uma coisa de outra? € associar uma idéia com outra? A coeréncia é um controlador Gnico e infalivel da verdade? Os principios de coeréncia séo iguais para todos? Precisam ser assim? ‘A crianca que nfo faz concordancia no uso da Tinguegem, dizendo coisas como “néis trabaia, “eu se machuquei”, no capaz de estabelecer coeréncia? Ou € o seu sistema lingifstico que opera dessa manera? Muitas Iinguas tém sua estrutura lingGistica sistemati- zada seguindo regras iguais a essas que governam os ‘exemplos acima. O préprio dialeto da escola usa cons ‘truges incoerentes do tipo: “tudo so flores”, “Nos assinamos o decreto-lei” (Nés = 0 Presidente), “Eu cortei © dedo na janela’” (na verdade, s6 houve um ferimento causado pela pont de um ferro do trinco), “Amanhi vou ao cinema” (amanhi 6 futuro, vou & presente). Onde esté a coeréncia? Na escola, uma crianga responde a uma pergunta da professora com ‘outra pergunta porque a professora muito freqdente- mente responde a uma pergunta da crianca com outra ppergunta, © comportamento da crianca deve ser cor derado incoerente? Quais sio as regras do jogo ling tico e do jogo da coeréncia? ‘Algumas criangas nfo aprendem a escrever certo ndo se sabe porqué...” e depois de analisadas pelos testes se conclui que no s80 capazes de conceitualizar a realidade da escrita, de tomar consciéncia sobre o que ‘fazem e de operar coerentemente. A professora escreve “Silvi e 0 aluno copia Cad. Pesq. (55) nov. 1985 scrita cursiva da profes: sora as letras “Iv” se parecem com “b”. A professora escreve “Oba” em cursiva, ¢ 0 aluno copia em letras de forma “Olva', pela razio inversa da anterior. Diante de ‘erros desse tipo, a professora e muitas outras pessoas Pensam que essa crianga néo capaz de conceitualizar as letras, de usar coerentemente @ relagio letra/som da fala e escrita, porque, afinal, basta falar oba para se ver que & muito diferente de olva. A professora pensa de lum jeito, e a crianga de outro, e se ambas ndo se enten- derem nao haverd ensino nem aprendizagem, A crianca ‘Ago sabe escrever: esté aprendendo; e como no tem todas as informages, procura achar a sua légica e coe- réncia, podendo chegar a resultados inesperados, que nem sempre so corretamente entendidos pela profes- sora, Todo os erros das criangas tém uma explicardo. Nenhuma crianga age na escola como se tivesse um cére- bro de pathas, Entender as estratégias das criancas que erram 6 condig&o fundamental para se programar o en sino e a aprendizagem. Quando néo se entendem as estratégias das criancas, aparecem outros tipos de expli- ‘capes, nem sempre muito justas: se 0 erro 6 cometido or uma crianga carente, isso 6 mais uma prova de seu déficit, se € cometido por uma crianga das classes pri- vilegiadas sécio-culturalmente, & um simples engano. E nisso tudo, quem se engana mais 6 a escola, ‘Algumas criancas que tiveram a chance de exper mentar 0s jogos da escolarizagio fora da escola, em casa, 80 enfrentar a professora, seguem as instrucées segundo as expectativas; outras, — em geral as criancas ccarentes — como no sabem direito as regras do jogo, ‘apelam para a reflexo sobre o que acontece e, via de regra, se saem muito mal perante a professora, Ela ensina 0 “FRA, FRE, FRI, FRO, FRU” e exemplitica com “fruta". Depois pede para o aluno dar outros exemplos como fruta, @ alguns alunos dizem: “banana, macé, abacate, etc.”. Esses alunos no sabem quando tém que usar a linguagem metalingiisticamente e quando deve simular um uso real de fala. Falar “banana” em vez de “fruta” no representa que o aluno s6 sabe falar con- cretamente, néo conseguindo dar um exemplo lin- gi/stico, porque falar “banana”, no contexto da escola, sem precisar, também 6 um jogo de fazdeconta, A rofessora pensa na forma das palavras (fonética) eo ‘aluno pense na semantica, Quando se fala, as pessoas se guiam pela semantica e nao pela fonética. A profes- sora ora diz que casa se escreve com A, ora com S, fora com KA ou com ZA, com G, etc. ¢ 0 aluno, prin- ciipiante de escrita, ouve esse tipo de explicaclo e sim- plesmente acha que escrever a palavra “casa” 6 uma loucura, sobretudo se tentar escrever “casa” como disse a professora: A, S, CA,etc. A professora, cortamente, 0 ‘consideraré burro, uma vez que “casa” se escreve mesmo com CASA, coisa aliés que ela nfo disse! A es- cola em geral, e sobretudo as professoras primérias, deveriam ter muito mais cuidado com 0 modo de expli- inicio, porque é justamente af que ‘muitos alunos podem empacar. Aprender computaglo é algo que traz para 0 ‘adulto situagdes semelhantes as que as criangas en- frentam a0 se alfabetizarem. De certo modo, aprender rogramar computadores 6 se alfabetizar de novo. Em principe que virou sapo vez do lépis, hé 0s botdes. Nao duvide que nao demo- raré muito para se ter 05 alunos carentes da computapao (aqui, a idade no importa), aqueles que nio atingiram © patamar Jégico-abstrato do formalismo das méquinas! E curioso como as criangas que tem um microcompu- tador em casa aprendem programar rapidamente sem muito uso dos manuais, Mas 0 adulto que quer saber tudo sobre tudo, através dos livros, para se sentir seguro Ro que faz com a méquine, acaba no conseguindo gran- des resultados. Para 0 adulto, 0 micro é um mistério, algo que nunca teve muito a ver com a sua historia pessoal, sobretudo com sua histéria de educacSo esco- lar. Daf a sua necessidade de saber mais sobre o que é esse alienfgena chamado computador, do que usslo & ‘operar com ele adequada e eficientemente. Para muitos alunos carentes, a situardo & semelhante. Ao entrar na escola, eles querem saber mais sobre o que 6 o saber, a instituigdo, 0 poder do saber, do que realizar tarefas especificas e soqiéncias programadas pelas atividades da escola, ACRIANGA QUE NAO SABE FALAR ‘Uma segunda série de proposicies diz que a pobre- 2a sécio-econdmica e cultural tem efeito negativo sobre © desenvolvimento cognitivo e os processos de aprendi zagem na escola, Isto se revela através do uso pobre da linguagem por essas criangas. ‘A primeira parte da proposigdo acima jé foi co- mentada antes. Gostaria, portanto, de fazer comenté- rios sobre a segunda parte, a que diz que as criancas ccorentes tém uma linguagem pobre como conseqiéncia de seus déficts cognitivos. Li num jornal, certa vez, que um secretério de Educaglo tinha dito que segundo informagées técnicas que obtivera, as criangas carentes usavam um vocabu- lério de apenas umas cinglenta palavras, © por isso se 1m mal ne escola ao se alfabetizarem. J4 ouvi comen- taristas de televisdo fazendo afirmacSes semelhantes, um pouco mais generosas, dizendo que as criancas faveladas, ‘ndo conhecem mais de duzentas palavres, apesar da lingua portuguesa ter mais de duzentas mil. Para um lingiista seria realmente um achado fas inante encontrar uma pessoa que vive como folante nativo de uma lingua e usa apenas duzentas palavras, ou mais incrivel ainda, uma pessoa que use apenas cin- qienta palavras na fala cotidiana. S6 de nomes de gente, bicho e planta, o vocabulério de uma pessoa de Qualquer parte do mundo, néo ceberia nesses limites. Sempre achei fascinante como as criangas acom- panham ¢ entendem as estérias que ouvem dos adultos, na rua, no circo, na televisio, no rédio, ete. Tanto en: tendem que riem, se comovem e se revelam emocional- mente, seguindo 0 desenrolar da estéria, Como é que as pessoas entendem o significado das palavras?... As crian- 4625 sfo capazes de entender ‘um nimero enorme de palavras @ sintagmas mesmo quando ainda usam na sua fala um nGimero reduzido de palavras. Aliés, essa seré uma caracterfstica de todo falante, durante toda a vida. ‘Algumas pessoas usam um vasto vocabulério, nlo por- ue isso 6 natural, perfeito e necessério, mas por puro esnobismo lingbfstico. E Gbvio que trabalhos técnicos 55 precisam de termos técnicos, para se f ‘magnetismo € bom usar esse termo ¢ no outro qual- de letro- quer, mas para ser falante nativo, o termo eletromag- netismo 6 absolutamente dispensivel. E apenas um termo a mais de uma lista de palavras que pode ser muito longa ou no. A escola chega a ensinar a alguns alunos a escrever suas redages e depois a trocar algu- mas palavras por outras mais dificeis para melhorarem © nivel da redacko. € pura frescura lingli(stica. E aqui a palavra frescura no pode ser substituida por out Porque 0 que quero dizer & frescura lingistica mesmo! ‘As pessoas ttm 0 vocabulério de que precisa. Se por alguma razio, precisam de termos novos, apren- dem naturalmente no uso prético da linguagem. Se preciso for, inventam, Na escola, a aquisiclo de vocé bbulos novos vem associada a conhecimentos no apenas dos significados literais das palavras, mi de uma gama muito grande de idéias associadas a essas palavras, algumas delas exigindo no apenas sindnimos para so traduzir, mas verdadeiros textos e teorias. Por exemplo: 0 que é 0 eletromagnetisma? O que ¢ Revo: lugo Francesa? © que ¢ objeto direto, objeto indireto? A escola faz um uso muito especttico da linguagem, principalmente no emprego de palavras técnicas. A lin- guagem natural no faz um jogo menos sutil mas, neste caso, o felante usa palavras que para ele sfo apropria- das, sem se preocupar com o resto. Se a gente tivesse que conversar pensando nas implicagdes semanticas das palavras, como se faz na escola, seria horrivel fal Quando 0 falante tem que pensar nas palavras para falar, seu discurso se torna extremamente dificil e inibido, 1850 acontece com todos os falantes, carentes ou no. E por isso que na vida, quando as pessoas falam espontanea- mente, sam muito raramente palavras de maneira inadequada, © na escola, quando tém que refletir sobre 4 propria fala, usam palavras inadequades muito fre- dentemente. S80 usos diferentes da linguagem que, sderam expectativas diferentes nos falantes e nos ouvintes. AA linguagem das criancas carentes & considerada pobre por alguns, no s6 por causa do vocabulério que julgam ser extremamente reduzido, mas ainda, porque elas no sabem falar, isto é, no tém fluéncia, no usar regras sintéticas, no conseguem exprimir emogBes, pen samentos abstratos complexos, no usam palavras abs- tratas, no sabem emprogar as palavras adequadamente, © Por isso mesmo, tém preferéncia por outros tipos de ‘comunicardo, substituindo 4 linguagem oral por formas de comunicato néo verbal. A fala das criangas pobres, segundo eles, é tio primitiva que no passa de um amélgama de erros e lacunes conceituais. Em algumas familias pobres, uma crianga nunca fala diante de um adulto que esté falando. Freaiente- mente os adultos usam do recurso de perguntas retbricas (que no séo para ser respondidas) para transmit infor- mages ¢ educar crianges... Quando essa crianga entra nna escola, ela pode até néo falar por educarso. Pode achar que responder a questées de ensino é violentar as regras da vida com que esté acostumada. Criangas carentes contam estérias como qualquer crianga, falam como qualquer falante nativo, dizem o ‘que querem, quando assim acharem que devem fazer. Entdo, que falta de fluéncia elas t8m? Por outro lado, 56 pedir para alguém falar sobre um assunto é no minimo uma intromisslo lingijstica e, portanto, 6 preciso saber s2 0 interlocutor esté disposto @ aceitar essa invaséo. Serd ‘que uma pessoa ¢ fluente porque diz dez frases ou es reve vinte linhas, ou conta uma estéria com no minimo quinze adjetivos, cinco advérbios e pelo menos trés conjungses? Em ssituagdes inibidoras, a maioria das pessoas perdem a fluéncia e a escola, os testes, nfo so situapbes inibidoras para uma crianga, sobretudo oriunda das clas- ses sociais desprivilegiadas? E bom, mais uma vez, dar uma olhada para ver o que as criangas dizem quando jogam futebol, quando discutem na rus... seré que néo 18m fluéncia? Uma criana carente diz “eu se machuquel”, ‘uzémitrabaia", “eraro”, “pecosu” (pescoro), “subi pra cima? etc. Essa crianga nfo sabe user as regres gramaticais como jé se disse antes & imposstvel alguém ser falante de uma Ifngua, som seguir uma gramética. Portanto, & impossivel aiguém falar sem regras. Uma lingua se diferencia de outra e isso no € motivo para se considerar um falante de uma Iingua menos capaz intelectualmente do que o falante de outra lingua. Nao € porque fale portugués que deve sequir a gramética latina. Cada um segue a gramatica de sua propria lingua. A gramitica portuguesa no é uma gramética latina deturpada. S20 realidades diferentes. Convém lembrar aqui que no existe “A Lingua Portuguesa”, como algumas pessoas imaginam. Existem muitas formas de lingua portuguesa — como aliés acon- tece com todas as linguas naturais que tém um ntimero grande de falantes. Estas muitas formas sfo os dialetos. Um lingdista néo descreve “A Lingua Portuguesa”, mas variedades da Ifngua portuguesa. € impossivel lingiis- ticamente estabelecer, por exemplo, o sistema fono- \égico, morfolégico, etc... da Lingua Portuguese, que seja estruturado perfeitamente e vélido para todos os falantes. AAs vezes algumas pessoas acabam concluindo que © que 0s lingiistas querem dizer com as variages diale- 6 que “vale tudo”, “nfo existe erro de linguager’... Néo & bem assim a questio. Do ponto de vista estrt istico, é claro que hé erros: todo desvio das regras gramaticais constitui um erro lingU(stico. A ques- to pratica & saber se o falante cometeu um desvio das regras da sua gramética, ou se esté sendo julgado pelas regras de uma outra gramética que néo a da sua propria lingua. Como mostrar de verdadeiros erros linglisticos, veja 0 que segue. Se alguém diz: “Bola Pedro o chutou aquela”, certamente comete um erro sintético, porque em nenhuma variedade do portugués se fala assim. Se para me referir a um “cavalo”, digo “mesa”, hi um erro Tingistico, porque em nenhuma variedade do portu: ‘qués “mesa” 6 sindnimo de “cavalo”. Se em vez de dizer digo “‘pkaf” ou stub", cometo um erro lingifstico, porque a forma fonética deste itens lexicais em nenhuma variedade do portugués & ess Como se ve, esses erros s80 bem diferentes dos “erros que aparacem nas avaliagbes escolares e om cortos testes @ estudos sobre a linguagem das criancas carentes. Uma outra afirmacdo que se faz, 3s vezes, 3 fala das criancas carentes, é a de que elas no conseguem Cad. Pesq. (55) nov. 1985 ‘exprimir emogSes através das variagées melédicas da ‘entoacdo, uma vez que falam baixo, devagar e quase sempre monotonamente. Todas estas afirmarSes so descabidas. Ninguém fala Ifngua nenhuma (nem palavra alguma, em situaco comum de fala) sem programar o ritmo, a entoagao, 0 ‘tom, a duragio silébica, a tonicidade, a tessitura melé: dica, 0 volume, a qualidade de voz, a velocidade de falaetc., etc. E do justamente esses parsmetros que so usados basicamente para se transmitir as atitudes do falante, isto 6, as emogbes que o falante quer exprimir. Os padres de realizagdo desses pardmetros também so especiticos de cada dialeto: comparem-se as falas dos baianos, dos gatichos, dos paulistas, etc. Num dialeto, ‘8 elementos suprassegmentais_mencionados acima, Podem ser usados para exprimir algo neutro, noutro algo rude. E por isso que, &s vezes, as pessoas estranham a rudeza, @ moleza, o pedantismo, etc. de certos inter- locutores, embora eles possam simplesmente estar falando, segundo seu dialeto, de modo neutro, sem querer demonstrar nenhuma dessas emociessentidas pelo ‘outro. Ou as vezes, quer transmitir certas emogbes & © seu interlocutor no o interpreta corretament Na verdade, é a escola (a educagio soci lectual, religiosa...) que leva os individuos a se reprimi- rem verbalmente, e depois de certo tempo, a inibirem 2 expresso verbal, e conseqientemente a castrarem as préprias emogies. Na pessoa bem educade isso é fineza, civilidede, na crianga pobre isso & caréncia? Mas seré que as criancas pobres no conseguem mesmo ‘exprimir suas emogdes, ou so os pesquisadores que ‘no sabem 0 que de fato acontece com a fala delas? ‘Como uma pessoa pode passar pela vida sem emogbes? © préprio fato de se estar vivo jé 6 emocionante de- ‘mais. Que emogdes 2s pessoas querem ver na fala das pessoas carentes? A respeito do uso de palavras abstratas na fala das criancas carentes, j& comentamos antes. A afirme: ¢80 de que as criancas carentes preferem outros tipos de comunicaeo que néo seja verbal, & téo obviamente fala ¢ ridicula que nem é preciso comentar em detalhe. Cada um fala 0 que quer, como quer, quando quer, sequindo sua competéncia linglfstica (isto 6, as regras da gramética da Iingua que fala). Eo escola que faz restrigdes & fala das criangas. A escola confunde disci plina com siléncio, manda as crianges observarem a Prépria fala para acertarom na escrita, mas no permite ‘que as criantas falem quando escrevem — devem +6 pensar (sic!). A escola inventou uma série de sinais para calar a boca das criangas... desde o fato de se levantar a mo para perguntar ou dizer algo. Por outro lado, 8 vezes, um gesto diz muito mais do que muitas palavres. Por que as pessoas de boa educarSo, porque sio proibidas de usar gestos para se comunicarem, inter Pretam os que usam a linguagem gestual como uma evidéncia da falta de capacidade dessas pessoas para usarem 2 linguagem oral? Ndo & um preconceito? A uagem gestual nunca destruiu a linguagem oral. De tudo 0 que se viu até aqui, se pode concluir que 2 afirmacio de que a fale de crianca pobre & um améigama de erros e lacunas, & ume afitmacso false, som fundamento, O principe que virou sapo Gostaria de aproveitar @ oportunidade para dizer dduas palavras sobre a afirmativa, que se ouve &s vezes, de pessoas que acham que hé Iinguas primitivas e linguas evoluidas, linguas ricas ¢ linguas pobres, que povos de cultura primitiva folam apenas monosstlabos onomato- paicosetc,etc Os estudos lingiifsticos feitos até agora nunca en- contraram tais coisas. Todas as linguas, mesmo as dos ovos de cultura mais primitiva, so semelhantemente complexas, As semelhancas estruturais s80 to marcan- tes, que muitos linglistas utilizam tal evidéncia em favor de uma concepedo inatista da linguagem, isto 6, dizem que a competéncia lingifstica é universal, igual ppara todos os falantes de todas as Iinguas e inata. Uma afirmagdo forte e corajosa, mas que encontra nas descr Ges lingistices muitas evidéncias que favorecem tal conclusdo. Quantas Ifnguas indfgenas foram descritas, seguindo os moldes da gramética latina! Isso mostra como apesar das diferencas superficiais entre as linguas, 1no fundo, so todas muito semelhantes. ‘Uma lingua se difere de outra de maneira bastante Gbvial & primeira vista, pela fonética e pelo Kéxico. Do onto de vista da fonética, todas as linguas usam um subconjunto de sons tirados do conjunto geral das pos: sibilidades articulatérias do homem. No hé sons primi- tivos e sons civilizades. Para alguém, um clique poderia soar como algo primitivo, se constesse do inventério fonolégico de uma lingua. Mas essa mesma pessoa pro- vavelmente usa algum tipo de clique para indicar nega ¢80, comando ou outra coisa, sem se dar conta do que faz (cf. “nuh! nuh!" — para proibir algo; ‘hla! hla! ara guiar cavalo, etc.). Muitos povos, que nfo usam sons como F e V, acham que os falantes de Iinguas que tusam esses sons, fazem muitas caretas quando falam. Um falante do francés, inglés, portugués, dificilmente acharia rude seu modo de falar, ou que faz muitas caretas e trejeitos com os labios quando falam, contudo {sso pode ser 0 que acham os falantes de outras Iinguas, algumas das quais consideradas rudes © primitives. Do ponto de vista do Iéxico, como jé se disse, cada Iingua tem as palavras de que precisa, no mais nem menos. Se um povo precisa de muitas polavras para lidar com a floresta @ 08 animais, teré todas as palavras neces sérias, se outra lingua precisa de palavras para a filoso terd todas as palavras necessérias, se precisar de palavras para a tecnologia de ponta, também encontraré as pala- vvras de que precisa, nfo mais nem menos. O tamanho do \éxico @ sua extensio seméntica ¢ algo que ¢ bastante secundério na estruturacdo da linuagem e néo serve de argumento para se dizer que uma lingua é avancada ou atrasoda, ADQUIRINDO LINGUAGEM E PENSAMENTO Gostaria de fazer alguns comentérios a respeito de alguns aspectos da seguinte afirmagdo: As condigées materiais de vida determinam nio s6 os conteados da consciéncia, mas também as estruturas formais do pen- samento. As condicées materiais condicionam 0 nivel @ 2 qualidade das estruturas do pensamento (a psico- génese), facilitando-o para os favorecidos socio-cultural- mente impedindo-o para os desprivilegiados. Com 57 efeito, as competéncias cognitivas @ lingiifsticas se cons- troem gradativamente, o que permite estabelecer dife- rentes competéncias, de acordo com 0 estégio de desen- volvimento atingido. A cada estigio cognitive corres: onde uma competéncia linguist E um fato inegivel que uma crianca, quando nnasce, nfo fala e no anda, mas nem por isso se pode afirmar, como algo inegével, que essa crianga, quando nnasce, no sabe falar ou andar, ou que sabe falar e andar. Uma coisa 6 a faculdade que permite ao sujeito falar e andar, e outra coisa 6 0 uso dessa faculdade para fazer coisas especiicas, como andar e falar efetivamente, ‘As evidéncias dos fatos tém levado a Lingistica a levan- tar uma forte suspeita de que a feculdade da linguagem um universal biol6gico, que 0 individuo traz inata- mente, como ja se disse antes. Obviamente que falar uma Ifngua ou outra é 0 resultado de um uso condicio- nado socialmente: falase a I{ngua da comunidade em que se vive ‘A competéncia lingifstica de uma crianga comega a se revelar desde muito cedo, quando as pessoas dirigem a palavra a ela ¢ ela reage de algum modo, Nenhum bebé fica insensivel quando alguém the dirige a palavra. Com lum ano, os bebés entendem muitas coisas que thes so ditas, mesmo sem falar ainda. A medida em que ccrescem, vo entendendo cada vez mais e cada vez mais literalmente, isto 6, entendem a fala através da mensagem lingistica propriamente dita. € notério fato de se fazer proi ‘ou comandos as criancas, Por exemplo de dois anos, e elas reagirem adequada- mente, mostrando que entenderam 0 que foi dito. Nesse aspecto, a linguagem dos comandos 6 varidvel demais para as criangas reagirem a um puro condicio- jamento sonoro. Com trés e quatro anos, as criancas jf falam (e comol. . .). Nesse momento, é impressionante como a compe: téncia lingistica ultrapassa 0 desempenho verbal. Um estrangeiro que esté aprendendo uma I{ngua, no infcio, tem muito mais dificuldade em entender a lingua que es- tuda, do que uma crianga de trés anos. A crianca aprende muito mais rapidamente a lidar com a tinguagem oral do ue o adulto ao aprender uma lingua estrangeira, apesar de toda a hist6ria educacional deste ditimo, ou justamen- te por causa disso. Aqui o nivel légico-formal de pouco adiantal Quando se diz a uma crianca: “ponha o ursinho em cima da cama”, “no suba na cadeira”, “no mexa ros livros’; etc., e a crianga obedece, isto prova que ela estd de certo modo usando a lingua, que entende, mes- ‘mo que ainda, nfo diga coisas deste tipo. A linguagem no estd $6 no falar; é entender também! Temsse estudado muito o falante ¢ pouco o ouvinte nas pesquisas lingii’s ticas, até mesmo nos estudos sobre a aquisigdo da linguagem, As vezes, a linguagem da crianga é interpretada em fungio de um processo de interago com outras, pessoas, o fazer e 0 mundo. Mesmo nessa abordagem, me parece que falta estudar mais a crianca do ponto de vista dela prépria, © ndo daquilo que ela quis dizer, segundo a interpretagdo do pesquisador. A linguagem da crianca antes dos dois anos ¢ muito varidvel em funcéo do 58 tempo, isto 6, hoje ela fala de um jeito e semana que vem de outro; mas no momento em que fala, como de fato 2 sua linguogem? A variago suprassegmental 6 tdo grande e rica, que certemente dé para formar com saqiiéncias de sons do tataté, um nimero muito grande de vocébulos, que 0 adulto diz que entende nio Ii ralmente, mas pelo seu comportamento, mesmo porque ele esté sempre buscando na fala da crianga um embrido da sua propria fala, Seria interessante tentar entender literalmente essa lingua da crianca nessa idade, o sistema lingUstico propriamente dito, e néo apenas 0 que isso representa no processo de aquisicao da lingua materna, ‘208 molds do adulto. Convém lembrar que os elementos suprassegmentais so a base sobre a qual se constroem as articulagBes dos sons: uma palavra pode no ter sua forma fonolégica definida em termos de vogais ¢ con- soantes, mas nem por isto no pode existr apenas com © suporte supressegmental ‘As criangas aprendem a falar apesar das condigBes sécioculturais, econémicas © materiais do meio am- biente em que vive. N3o 6 0 luxo que produz gente inteligente, nem a pobreza que produz gente ignorante. As condigBes materiais nfo afetam a qualidade das estruturas mentais, @ competincia lingitstice, nem a ‘manipulacéo do pensamento, como faculdede cognitva ‘Ao longo da Historia da Humanidade, hé uma procissSo imensa de fildsofos e sdbios que sempre pensaram assim, mesmo porque muitos deles foram eriangas paupérrimas! Definir a pobreza nio ¢ algo fécil de se fazer, por surpreendente que seja.'Hé\0s casos de pobreze extrema ou miséria, onde a sobrevivéncia fisica do individuo esté em rico. Hé @ pobreza que vive na sociedade, e quando 6 fruto da desigualdade social, suas conseqiién- ccias. 80 graves, limitando grandemente 2 ago dessas pessoas no mundo, sem dtvida alguma. A pobreza material nem sempre vem acompanhada de pobreza cultural, Quanta mGsica bonita veio do morro, da favela... Muitos povos orientais no véem com bons olhos a riqueza, e sobretudo 0 luxo e a ostentacio do ocidente! Muita gente quis civilizar povos, por exem- plo, da India e da China (sic!), porque esses povos viviam na pobreze, e ficaram chocados com a reacdo ‘que encontraram. A pobreza para esses povos era uma forma de sublimacio do homem, uma forma de se atingir a sabedoria e a perfeicao individual. Por outro lado, 2 riqueza material pode acomodar as pessoas no vazio humano, no comodismo, no doce-fazernada da vida, ‘A pobreza ou a riqueza nfo criam nem estra- gam necessariamente uma cultura, A cultura no é privilégio de ricos, nem de pobres, mas de quem a tem. A inteligéncia humana no depende da riqueza, nem dda pobreza, Mas é evidente que 0 dinheiro ajuda a criar ‘condigdes para que as pessoas e a comunidade possam atingir suas metas e fazer o que pretendem. Uma forma disfargada de reconhecimento dos déficits das criancas carentes diz que os danos cogniti- vos 80 impostos 20s oprimidos através das condicdes materiais impréprias de vida, provocadas pela relardo dominador/dominado na sociedade. Assim, a sociedade faz com que as criangas carentes sofram da sindrome da dificuldade de aprendizagem na escola, uma vez Cad. Pesq. (55) nov. 1985 ‘que a escola reflete a sociedade. Com efeito, @ relardo dominador/dominado na sociedade & 0 gerador de uma série de preconceitos (além de outras ..) € um deles & justamente a discriminago do status social através do modo di- ferente de falar dos diversos segmentos da sociedade. ‘A sociedade primeiro marca e define as classes e pessoas depois procura uma justificativa para o que fez. As iferengas lingiifsticas tém sido usadas como argumentos fortes nesse sentido, mesmo porque a discriminac3o lingifstica, por exemplo, nfo é proibida por lei, como € a discriminagdo racial, religioss, otc. Ainda mais, a discriminagso lingitstica tem sido corroborada por uma série de trabalhos pretensamente cientiticos, que dizem que a deficiéncia lingbfstica 6 proveniente de ‘uma sub-raga humana, o batalhdo das pessoas carentes, ‘marginalizadas, empobrecidas, do subproletariado, etc., etc. Mais uma vez, & a ciéncia colaborando com os pre- conceitos sociais, coisa no muito rara na Historia, © jogo sujo, injusto da sociedade no 6 razdo para se alterar @ natureza racional da espécie humana, 2 capacidade ‘cognitiva das pessoas menos favorecidas sécio-culturalmente. Na verdade, tal sociedade simples- mente no dé chance a essas pessoas de realizarem ‘aquilo de que séo capazes. Nao realizar certos tipos Imente, como as provas de légico-formal, é algo que niio desfaz a capaci- sequer 6 um fato res- trito aos menos favorecidos sécio-culturalmente ou aos. deficientes mentais, A falta de condigbes materiais no causa danos cognitivos, mas pode causar a falta de condigies para © uso dessa capacidade no sentido de realizar coisas que socialmente esto a0 alcance apenas das pessoas ‘que dominam a sociedade através do dinheiro e do saber acumulado e socializado, como por exemplo, tudo ‘aquilo que se faz na escola ou através dela, Nao vou comentar aqui 2 alegarSo, quase sempre de natureza médica, que diz que as criancas sofrem da sindrome da dificuldade de aprendizagem porque foram mal alimentadas e tiveram um desenvolvimento cerebral deficiente, No século passado se dizia que os idiotas tinham oérebros pequenos e que os génios tinham cére- bros enormes, até que... se constatou que nio era bem assim. Se o que dizem fosse uma restricdo to séria, essas criancas carentes néo deviam sequer ser capazes de falar, de conversar, de usar a linguagem como a usam na vida. Serd que essa perturbacdo neurolégica s6 atrapalha na escola? Seré que nio é a escola que esté doente, e ndo 4 criancas carentes? A fome atrapalha os estudos. Mas se 4 pessoa ficar com fome constante, ela simplesmente morre, @ esse ndo me parece ser 0 caso dos alunos com @ chamada sindrome de dificuldade de aprendizagem. A SINDROME DA DIFICULDADE DE APRENDIZAGEM NA ESCOLA Se as-criangas normais (por oposigo as criancas. ‘com deficiéncias mentais oriundas de patologias anatd- ‘micas ou neurofisiolégicas, comprovadas clinicamente) no so portadoras de déficits cognitivos ou de distir- bios na sua racionalidade humana, mesmo sendo de O principe que virou sapo origem s6cio-cultural pobre, por que entdo, grande rndmero de criangas marginalizadas sofrem da sindrome da dificuldade de aprendizagem na escola? Em primeiro lugar a expresso sindrome (como © terme carente) ¢ mais uma forma camuflada de se atrbuir déficits cognitivos as criangas que nfo apren- dem nio se sabe por qué. Essas expressBes deviam ser abolida Dificuldades de aprendizagem todas as pessoes tém «por muitas razdes e causas. Essasdificuldades aparecem fem funcdo do que se tem para fazer. Um adulto que v aprender a usar um joystick num videogame pode mos- trar de uma hora para outra, uma sindrome de dificul- dade de aprendizagem, embora na universidade soja um respeitével cientista ou homem culto. Atribui-se uma sindrome da dificuldade de aprendizagem as criangas carentes no porque elas sejam burras, mas porque elas so levadas a fazer coisas muito estranhas na escola. N3o 6 verdade que as criancas carentes tém uma dificuldade de aprender generalizada, a sua sindrome 6 bem parec da com a docientista acima, s6 que no.caso dela, em vez do videogame, hi 2 escola. Nessa histéria, 6 preciso rever ndo s6 os preconcel- tos sociais, a insensater cientifica, mas ainda e sobretudo © trabalho escolar. No trabalho escolar, como no tra- balho cientifico comentado anteriormente, € preciso uma revisio profunda e detalhada de tudo aquilo que ‘envolve a linuagem, porque & através de uma concepeao ‘muito estranha e falsa de sua natureza e uso, que alguns ‘pesquissdores educadores chegaram & conclusio dos déficits dos alunos carentes. Muitas consideragSes foram feitas até aqui, sobretudo voltadas para a natu- reza e funcdo dos processos cognitivos e da propria racio- ‘nacionalidade humana. Gostaria de comentar a seguir, brevemente, algumas préticas escolares que mostram, entre outras, como a escola nfo sabe ensinar e avaliat as criangas adequadamente, ¢ como de seus equivocos tira conclusées absurdas sobre a capacidade intelectual dde muitos de seus alunos e das causas do fracasso escolar. Para dimensionar um pouco a questo, acho que nido seria um exagero dizer que os alunos passam pela escola estudando portugués durante oito anos no pri- meiro grau e trés no segundo, e no sabem quase nada sobre como a linguagem oral ¢ escrita funcionam e quais. (5 usos que tém. Eu disse nfo sabem e no néo apren- dem porque so incapazes. Nao sabem, porque a escola (ou no ensina o que devia, ou ensina errado, ou ensina © certo com procedimentos inadequados & clientela, Muito do que 0s alunos aprendem, aprendem apesar da escola, ¢ ainda assim, mais na prética individual do que através de teorias. ‘A maioria das informagdes sobre a natureza e usos dda linguagem que os alunos adquirem nas escolas ndo 880 explicacées cientificas. Como ja se disse antes, a escola ainda acha que existe uma Lingua Portuguesa ue é um ideal lingii/stico, cujos segredos de seu funcio- hamento se encontram na Gramética, entendida no no sentido lingifstico exposto acima, mas do livro didético. A visdo da escola ¢ da gramética vai mais longe Porque considera que essa lingua tem sua forma mais perfeita na sua manifestacio escrita, se- ‘undo o modelo dos bons autores literdrios. Chega mes- 59

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