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ENGANOS E DESENGANOS:

A invenção do conceito de Barroco Literário e sua representação nas


Histórias das Literaturas Luso-Brasileiras do Século XX

Maria Regina Barcelos Bettiol (Université Sorbonne Nouvelle Paris III)

Foram necessários pelo menos três séculos para que o “barroco” deixasse a
marginalidade de sua recepção para assumir um lugar significativo no
acervo das especulações artísticas da humanidade.
Augusto de Campos

A poética barroca, com a sua valorização do raro, do novo, do insólito,


visava provocar a admiração, a maravilha, o deslumbramento do receptor. A
argúcia intelectual que descobre nexos originais entre as coisas, entre as
palavras, e a linguagem requintada em que essas relações se exprimem,
constituem as duas faces inseparáveis da concretização do “conceito”
seguindo a poética barroca. E como tem sido apreciada esta literatura? Nem
sempre com o interesse que merece. Tratando-se período de intensa
produção textual.
Maria Lucília Gonçalves Pires

As formas barrocas sob um novo céu e em uma outra terra, vão mudar de
ritmo de vida e de movimento.

Roger Bastide

Em nossa análise temos como objeto de estudo o conceito de barroco literário, um


estilo marginalizado durante quase três séculos e que passa a vigorar no vocabulário da
crítica literária, principalmente nas décadas de 60/70 do século XX, graças às pesquisas
de críticos de renome internacional, em especial os críticos luso-brasileiros, que
reinterpretaram uma vasta produção textual praticamente desconhecida não apenas do
grande público mas dos próprios estudiosos da literatura.
A partir do revisionismo das décadas de 60/70, o conceito ganha uma nova
dimensão onde nos é permitido reavaliar e constatar a especificidade do estilo literário
denominado barroco e a emergência de um Neobarroquismo na literatura
contemporânea
O conhecimento objetivo da época barroca através da contribuição dos estudos de
autores como Wölffin e Eugénio D`Ors permitiram que se opera-se uma reabilitação

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desse gênero artístico antes visto de forma depreciativa passando a determinar um
amplo período da cultura européia e latino-americana 1.
Embora o fenômeno literário barroco tenha uma profunda unidade simbólica, no
processo de transferência cultural do barroco português para a América Portuguesa
(Brasil), o estilo literário se desenvolveu diferentemente aclimatando-se à cultural local
do novo território. Ao fazermos um estudo comparativo entre as histórias das literaturas
do Brasil e de Portugal apontaremos os aspectos integrativos e as especificidades do
barroco literário brasileiro demonstrando as transformações do conceito de barroco
literário registradas nas histórias das literaturas luso-brasileiras, o que explica, em
parte, a difícil classificação deste período literário devido à sua complexidade
conceitual 2 não apenas como fenômeno literário mas como expressão de um processo de
civilização.
Para mapearmos os vários conceitos de barroco literário necessitamos
obrigatoriamente recorrer à História da Literatura já que esta,como bem explicita Jobim
“nos mostra que houve sucessivas e diferentes representações daquilo a que chamamos
de literatura”. (JOBIM,1992:127) O conceito, ou vários conceitos de barroco, foram
criados a posteriori, os autores chamados barrocos desconheciam tal conceito:

Quando usamos o termo “Barroco” para classificar autores como


Gregório de Matou ou Antônio Vieira, precisamos ter em mente que
aqueles autores jamais se classificariam assim, não porque
discordassem do emprego deste vocábulo para designar as obras deles,
mas simplesmente porque o termo não eram empregado como
designação de um estilo de época, no momento em que os dois
escreveram. Além disso, se fizermos um mapeamento dos significados
atribuídos ao Barroco, veremos que este não possui apenas uma
acepção, invariável através dos tempos. Em outras palavras, em vez
de imaginarmos o termo como dotado de conteúdo permanente,
universal e imutável, parece ser mais condizente com a realidade
imaginarmo-lo como casca verbal, preenchida por vários e sucessivos
conteúdos, não necessariamente semelhantes. Uma visão histórica do
Barroco deverá levar em consideração que o conteúdo que lhe
atribuímos influirá na imagem que possuímos dele como um ele na
cadeia de estilos de época. (JOBIM,1992:141)

1
O fenômeno cultural barroco visível nas artes desde o Império dos Habsburgo, quer na longínqua Goa,
na cidade do México, Cuzco, Bogotá, Ouro Preto, quer em Torino, Nápoles e Lecce (ÁVILA, 1997,p.43).
2
Sem dúvida, o problema da complexidade conceitual foi um das razões da difícil classificação do termo
haja vista o que ocorreu com Benedetto Croce que ,a princípio, advoga o retorno ao uso pejorativo do
termo barroco e o nega ao ponto de afirmar que a “a arte nunca é barroca e o barroco nunca é arte” , ainda
preso ao sentido negativo e pejorativo do barroco. Em 1929, dava-se por vencido usando-o como etiqueta
para toda a Itália seiscentista . Ler a esse respeito: Storia della Età barroca in Itália: pensiero, poesia e
letteratura, vita morale. Bari: Giuseppe Laterza & Figli, 1929. p.37.

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A História da Literatura representa os estilos de época como sistemas que
possuem limites geográficos e temporais. Evidentemente que o texto literário barroco
não pode ser separado do seu contexto de produção. Em outras palavras, o contexto
fornece as normas a partir das quais se delimita o que é texto, torna-se parte constitutiva
deste. O autor produz dentro desse contexto e o leitor lê a obra dentro de um quadro de
referências ideológicas.
Mas para que possamos entender a extensão do fenômeno cultural barroco,
devemos relembrar as origens desse conceito. Conforme Pereira (apud Ávila,
1997,p.160) no século XIII, a palavra designava ourivesaria mas o barroco também
aparecia como uma das formas mnemônicas através das quais se fixavam as
modalidades do silogismo:

Diz que o barroco é uma palavra de origem portuguesa. O ourives


portugueses, já em tempo de D.Manuel, chamavam às pérolas grande
e deformadas, barrocas. Barrocal ou barroca é também o nome que
entre nós se dá aos agregados de pedras informes e arredondadas-
poderosos afloramentos de rochas metamórficas –muito comuns ao
Norte de Portugal, na Estremadura e no Alentejo Desta feita, usado
sobretudo a partir do século XIX, o termo barroco, transposto para a
arte através de um recurso metafórico, passou a designar os objetos
que, de alguma forma, eram estranhos e avolumados, aparentemente
desarmônicos ou exagerados. (...) Uma carga negativa apoderou-se
assim ( e durante muito tempo) do termo e do estilo que designava. E
era,entretanto, entendido, na lógica fatal do senso mais comum, como
um sinônimo de supérfluo ou de extremo formalismo, para não dizer
de excesso.(PEREIRA, apud Ávila, 1997:160)

Contudo, autores como René Wellek (1963,p.71) nos esclarecem que o estilo
barroco surge no contexto da Contra-reforma, mais precisamente no século XVI em
diante ,ocasião em que o eixo territorial do catolicismo se vai nitidamente desviando na
direção dos trópicos, ampliando não apenas os domínios da Igreja Católica mas
enaltecendo a imagem das monarquias, sobretudo, em suas colônias no Novo Mundo.
René Wellek lembra que o termo barroco é aplicado à várias artes como: a arquitetura,
escultura, pintura, literatura, mas também à musica.

O historiador literário José Aderaldo Castello sublinha que os estudantes


brasileiros da Universidade de Coimbra, ao regressarem, se tornavam os principais
representantes das manifestações literárias européias que aqui repercutiam reforçando o

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espírito e a mentalidade portuguesa entre nós. A época barroca no Brasil, no dizer de
José Aderaldo Castello, “sempre em correspondência” com a literatura portuguesa data
de 1601-1768:

Sempre em correspondência com a literatura portuguesa levando em


conta a freqüência dos estilos literários e o processo de nossa
formação histórica, a época barroca das manifestações literárias no
Brasil –Colônia tem como ponto de referência inicial a publicação do
poemeto Prosopopéia, em 1601.Estende-se até o momento em que
Cláudio Manuel da Costa, com suas Obras Poéticas, editadas em
1768, editadas em 1768, atesta a transição do estilo barroco para o
estilo arcádico, particularmente no domínio da poesia (...) A figura de
Anchieta então se define, histórica e literariamente, e se reinsistimos
em Bento Teixeira é porque ele já reflete o complexo de condições
que nos deram a reconhecer as diferenciações iniciais que a atividade
literária do Brasil-Colônia apresenta quanto à dependência de Portugal
colonizador. (CASTELLO, 1960 :58-59)

É muito importante elucidarmos que quando falamos em correspondência,


estamos nos referindo à correspondência de estilo entre o barroco português e brasileiro.
Cabe lembrar que o fenômeno cultural barroco chega com atraso à América, com o
objetivo de atuar propagandisticamente e de persuadir até a devoção. Se as
manifestações culturais chegavam sempre em atraso na América Portuguesa, isso
significa que a cronologia entre o período literário denominado barroco português e o
período denominado barroco brasileiro não é exata. Neste sentido, o historiador literário
brasileiro Afrânio Coutinho diverge do historiador literário português Fidelino de
Figueiredo quanto à questão do entendimento crítico da periodização literária:

É que a maioria dos historiadores literários, a começar pelo grande


Fidelino de Figueiredo para Portugal, denominava “clássica” a
literatura produzida desde o Renascimento até o Romantismo,
portanto cobrindo os três séculos “clássicos” da Literatura Portuguesa
e os brasileiros da fase colonial. Contestei essa teoria, asseverando
que a literatura brasileira da chamada fase colonial era barroca e não
clássica. Isso está profusamente discutido e demonstrado em meu
trabalho, graças ao estudo e a análise de figuras que ocupavam a
época, e também ao exame do conceito de barroco, aplicado à
literatura e artes em geral, desde os trabalhos pioneiros de Wolffin
desde 1879. (COUTINHO,1994:226)

O período Barroco em Portugal data de 1620-1750, conforme Maria Lucília


Gonçalves Pires os escritores portugueses representativos desse período são:

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Na literatura portuguesa, barrocos são Francisco de Portugal, Violante
do Céu, Madalena da Glória, Antonio Álvares Soares, Brás Garcia de
Mascarenhas, Botelho de Carvalho, Jacinto Freire de Andrade,
Manuel de Gallego, Paulo Gonçalves de Andrada, Jerônimo Baía,
Antonio Barbosa Bacelar, Fr. Antonio das Chagas, Botelho de
Oliveira, Gregório de Matos, e muitos outros inéditos ou anônimos –
até àquele Francisco de Pina e Melo.(PIRES,2001:39)

Em Portugal, os estudos críticos da Prof. Maria Lucília Gonçalves Pires sobre a


revalorização do barroco são fundamentais. Além da referida professora devemos
mencionar os estudos críticos de José Adriano Carvalho, Aníbal Pinto de Castro, Ana
Hatlerly, Margarida Vieira Mendes, Maria de Lourdes Berchior Pontes, Paulo Jorge da
Silva Pereira, Victor Manuel de Aguiar e Silva que além de reabilitarem o conceito de
barroco literário e sua contribuição na literatura contemporânea, procuram demarcar a
especificidade do estilo literário barroco em relação ao estilo literário maneirista. O
barroco português é também um ponto de partida para o estudo da alteridade uma vez
que recebeu influxos do barroco espanhol e italiano tanto na literatura quanto nas artes.
No caso do barroco brasileiro, Alfredo Bosi em seu conceituado livro História
Concisa da Literatura Brasileira afirma que houve ecos do Barroco europeu durante os
séculos XVII e XVIII no Brasil e tivemos autores como Bento Teixeira, Gregório de
Matos,Botelho de Oliveira, Padre Antonio Vieira, Nunes Marques Pereira apenas para
citarmos os autores mais conhecidos. No dizer de Bosi é lícito falarmos de um barroco
brasileiro:

Na segunda metade do século XVIII,porém, o ciclo do ouro já daria um


substrato material à arquitetura, à escultura e `a vida musical, de sorte
que parece lícito falar de um “Barroco Brasileiro” e, até mesmo,
“mineiro”, cujos exemplos mais significativos foram alguns trabalhos
do Aleijadinho, de Manuel da Costa Ataíde e composições sacras de
Lobo de Mesquita, Marcos Coelho e outros ainda mal identificados.
(BOSI, 2006: 34)

Ao revisitarmos história da literatura brasileira, constatamos que o estilo


barroco está muito associado aos conceitos de literatura colonial e de provincianismo.
Desta forma, o que se pesquisava e escrevia a respeito do Barroco tinha sentido ao mais
das vezes curioso, biografista, timidamente preso ao factual e ufanista, muito ao sabor
aliás da historiografia nacional do tempo. Afrânio Coutinho, ao reinterpretar a Literatura

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Brasileira Colonial à luz do conceito de barroco conferiu autonomia à Literatura
Brasileira em relação à Literatura Portuguesa 3:

Entreguei-me à reinterpretação da Literatura Brasileira Colonial à luz


do conceito de barroco, valorizando sobretudo as figuras do padre
Antônio Vieira, Gregório de Matos, Anchieta,o fundador da Literatura
Brasileira, Nuno Marques Pereira, e outras figuras.Assim, a Literatura
Brasileira passo a ser considerada como brasileira desde o início, e
não simples dependência da portuguesa.(COUTINHO,1994:9-10)

A tese de Afrânio Coutinho é referendada por Haroldo de Campos que aponta o


“seqüestro do barroco” em nossa historiografia literária. No entender de Haroldo de
Campos, o barroco no Brasil não se resume ao um estilo artístico e literário do
seiscentismo, mas uma característica da formação brasileira, fenômeno que imprime
peculiaridade até hoje em nossas artes, letras, cultura e vida social.
Na mesma linha de pensamento de Haroldo de Campos, Affonso Ávila, uma
dos maiores estudiosos do barroco brasileiro, afirma que após séculos de descaso, o
interesse pelo estudo Barroco no Brasil é um fato cultural recente, remonta mais
precisamente ao século XX:

O estudo do barroco no Brasil não é, em registro datável, um fato


cultural ou um vetor intelectual recente, já que as primeiras incursões
na espécie, no nível de pesquisa ou mesmo de incipientes análises
estilísticas e críticas remonta a quase um século. Pode-se dizer que,
após a hibernação que a omissão do nervo sensível e o preconceito
submeteram as criações do estilo, ou a ele ligadas, a um desinteresse
generalizado, mas de certa forma compreensível, por todo o século
XIX, pela grande expressão de nossa idade inaugural, ou seja, da pré-
nacionalidade colonial, a tomada de consciência diante da importância
singular e remarcante do barroco se verificaria entre nós virtualmente
de modo simultâneo à redescoberta e revisão das matrizes européias
da superior e revolucionária arte dos anos seiscentos/setecentos.E
dizemos desafeição e distanciamento compreensíveis até certo ponto
na centúria oitocentista porque, ao espelho do que ocorria na órbita
dos países padronizadores do pensamento crítico e das inclinações
estéticas, também o Brasil acompanhará a tendência estabilizadora e
maciadora do gosto acadêmico, cambiando a sua recepção artística
aos tiques neoclássicos e românticos de um ecletismo diluidor do fácil
e do digestivo, do estuque e do papel de parede. (ÀVILA, 1997:9-10)

3
A literatura de ficção era escassa nesta época mas o exemplar que a representa pertence ao Barroco: o
Peregrino da América.

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É justamente Affonso Ávila (1997, p10) e autores como Otto Maria Carpeaux,
Augusto de Campos, Haroldo de Campos, Benedito Nunes que no final da década de 60
fazem um balanço crítico sobre a literatura do seiscentos/setecentos através da criação
da revista Barroco4 onde apontam o fenômeno cultural barroco como fazendo parte do
nosso processo civilizatório presente em diversas manifestações culturais:

Ao estudarmos a história do estilo barroco seu autoctonismo brasileiro


ou americano, sua ideologia religiosa e de vida, e comportamento
social e contextual, da poesia, da prosa, do sermonário, do teatro, da
festa, da crônica e da documentação factuais, do urbanismo, da
arquitetura, da escultura, da talha, da pintura, da iconografia e
iluminura, da precursora interação texto-imagem, da música, das
danças, fazendo, todavia, permear toda essa multiplicidade de
abordagens (ÁVILA,1997:12)

Para esse grupo intelectuais brasileiros é necessário pensarmos a ideia


5
sistematizadora de um barroco ao mesmo tempo universal e americano e a
necessidade crítica de uma assunto capital de nossa cultura, para entendermos a nossa
própria índole definidora de nacionalidade:

Nos estudos sobre barrocologia, constatava-se que o estilo e seus


desdobramentos, do mesmo modo que se identificam em cerne e raiz
com a cultura transplantada e reducionista à peculiaridade tropical
brasileira, assinalaram em igual fenômeno cultural as fontes, matrizes
e respostas histórico-ideológicas de todo o continente latino-
americano. Autores como Lezama Lima, Alejo Carpentier, Octavio
Paz, Severo Sardy e outros, concomitantemente ao repensamento do
problema entre nós, acendiam em seus países interesse investigador
semelhante, a parte do surgimento simultâneo neles de uma escrita
literária nova que retomava no entanto, como pêndulo e estímulo, as
desinências barroquistas, proporcionando, principalmente na ficção, o
boom impactante de uma linguagem neobarroca, conquanto vigorosa
e de função modernizante. (ÁVILA, 1997:11)

O conceito de barroco se modificou no processo de transferência cultural da


literatura portuguesa para a literatura brasileira ou se preferirmos, literatura brasileira
em situação colonial. Em solo americano, há um descentramento do discurso, o querer
dizer muda, o discurso do barroco brasileiro adquiriu as cores de uma especificidade

4
A criação da revista Barroco, cujo primeiro número foi lançado em 1969, constituiu uma decorrência
das preocupações de todos esses intelectuais da retomada de balanço crítico das artes e literatura do
seiscentos/setecentos.
5
Vale mencionar ainda o nome de Leonardo Acosta, estudioso do barroco no quadro das Américas.

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local uma vez que há nesse processo de transferência cultural um choque de culturas
fazendo que as teorias transferidas de um território a outro se desenvolvam
diferentemente.
O interesse atual pelo conceito se justifica certamente porque o processo de
colonização da América Portuguesa, assim como da América Latina 6, foi barroco, o
conceito ajuda a explicar o nosso processo de formação como povo e como nação e a
entender os rumos tomados pela nossa literatura dentro desse amplo processo de
transferência cultural.
Alexandre Fernandes Corrêa vai mais longe, ele aponta a expressão popular
barroca como símbolo da nossa modernidade:

Encontra-se a plasticidade da expressão popular barroca a todo o


momento em variados exemplos: na decoração dos interiores das
igrejas e capelas do catolicismo colonial, na música popular sertaneja,
caipira, crioula e cabocla, nos movimentos de juventude hip-hope no
rap, na arquitetura popular criativa de bricolages ousados e, mais
especialmente, no tom espetacular dos rituais religiosos e na pompa
dionisíaca das festividades carnavalescas e juninas (CORRÊA, 2009
:29-30)

Dito de outra forma, mesmo sendo o barroco um programa de pensamento e


de ação, a identidade social e cultural brasileira se diferencia da portuguesa pelo seu
caráter compósito. O barroco literário brasileiro exprime uma nova representação
coletiva, uma linguagem híbrida 7 que leva em conta o surgimento de uma nova cultura,
um “novo idioma”8: o português do Brasil. Portanto, o barroco brasileiro é resultado
das imagens dialéticas, do conflito que se estabelece entre aquilo que é importando de
Portugal e o novo meio autóctone.
A despeito das ambigüidades e incertezas quanto à extensão, avaliação e
conteúdo preciso do termo barroco, ele tem desempenhado e continuará a desempenhar
importante função. Revisando-se o conceito de barroco literário dentro do panorama da
História da Literária Luso-brasileira e analisando seus desdobramentos buscamos, nesta

6
Para Janice Theodoro, o processo de colonização da América Latina é barroco. Ler a esse propósito:
THEODORO, Janice. América barroca: temas e variações. São Paulo: Ed. Nova Fronteira, 1992.
7
As obras de autores como Euclides da Cunha e Jorge Amado expressam a nossa linguagem híbrida, o
português do Brasil, são a marca da sobrevivência de uma escritura barroca em nossa Literatura. Podemos
citar alguns exemplos: O segundo Fausto de Goethe é uma das obras mais barrocas de todas as
literaturas; as Iluminações de Rimbaud, como obra-prima da poesia barroca, os cantos de Maldoror de
Lautréamont,e a inesquecível prosa de Marcel Proust como prosa barroca, sem nos esquecermos de
Shakespeare em seu ser ou não ser, uma obra que traz a angústia sem fim e o vazio fundamental que nos
funda como seres humanos.

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leitura cruzada, pontos de identificação e as especificidades teóricos-críticos do barroco
português e brasileiro.
Ao convocarmos essa complexa e controversa polifonia de vozes críticas a
enunciar o seu próprio discurso crítico sobre o Barroco, vale lembrar a observação de
Maria Lucília Gonçalves Pires :“de que o discurso crítico sobre Literatura, exatamente
por ser crítico, não é um discurso irrevogável; sendo formulado acerca de um discurso
artístico – o literário- que é, por natureza, plurissignificativo e semanticamente instável,
o discurso crítico é sempre um discurso relativo e superável”. (PIRES, 1996:7).
Em sendo assim, no tocante à história da literatura, o estilo literário barroco é
um fenômeno estilístico atemporal que transgride as fronteiras espaciais e temporais,
que não se restringe aos autores do século XVII, como proclama o senso comum, mas
se verifica como uma constante humana 9. O barroco é uma criação/recriação que
floresce nas obras de autores da literatura universal de todos os tempos. O Século XVII
apenas inaugurou uma tradição literária criativa que vem se perpetuando ao longo dos
séculos.

REFERÊNCIAS

AGUIAR E SILVA, Vitor Manuel de. Manual de Teoria da Literatura. Coimbra:


Almedina, 1968.

ÁVILA, Affonso. O lúdico e as projeções do mundo barroco. São Paulo: Perspectiva,


1994.

BASTIDE, Roger. “Estudos de Sociologia Estética Brasileira”. O Estado de São Paulo.


São Paulo, 04 Ago.- 16 Out. 1940. 1º cad. p. 4-5.

BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. São Paulo: Cultrix, 2006.

9
Esta foi a tese defendida por Eugene d´Ors em seu livro famoso livro O barroco. Trad. de Luís Alves da
Costa. Lisboa: Vega, 1990.

485
CAMPOS, Augusto. Morte e vida da vanguarda: a questão do novo. IN: 30
Anos/Semana Nacional de Poesia de Vanguarda -1963/93. Belo Horizonte: Prefeitura
Municipal/SMC, 1993, p.65.

CAMPOS, Haroldo de. O Seqüestro do Barroco na formação da literatura brasileira: o


caso Gregório de Mattos. Salvador: Fundação Casa de Jorge Amado, 1989.

CASTELLO, José Aderaldo. Manifestações literárias na era colonial (1500-


1808/1836).São Paulo: Cultrix, 1960.

CORRÊA, Alexandre Fernandes. Festim barroco: significado cultural da festa dos


Prazeres dos Montes Guararapes em Pernambuco. Tese (Mestrado).
IFCH/Universidade Federal de Pernambuco, 1993.

COUTINHO, Afrânio. Do barroco: ensaios. Rio de Janeiro: Tempo brasileiro, 1994.


CROCE, Benedetto. Storia della età barocca in Italia: pensiero, poesia e letteratura,
vita morale. Bari: Giuseppe Laterza & Figli, 1929.

D’ORS, Eugenio. O barroco. Trad. de Luís Alves da Costa. Lisboa: Vega, 1990
[1935].

JOBIM, José Luis. Palavras da Crítica. Tendências e conceitos no estudo da literatura.


Rio de Janeiro: Imago, 1992.p.127-149.

PIRES, Maria Lucília Gonçalves & CARVALHO, José Adriano. História crítica da
literatura portuguesa [Maneirismo e Barroco]. Lisboa:Verbo, 2001.

THEODORO, Janice. América barroca: temas e variações. São Paulo: Ed. Nova
Fronteira, 1992.

WELLEK, René. O conceito de barroco na cultura literária. IN: Conceitos de crítica.


São Paulo: Cultrix, 1963.

486
WÖLFFLIN, Heinrich. Conceitos fundamentais da história da arte. 4. ed. Trad. de
João Azenha Jr. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

487

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