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SCHEHERAZADE

Um conto de Haruki Murakami

Tradução: Gabriela de Oliveira


Toda vez depois que faziam amor, ela contava a Habara uma história atraente e
peculiar. Era como a Rainha Scheherazade em “Mil e uma noites”. Embora fosse certo
que Habara, diferente do rei, não tivesse planos de decapitá-la na manhã seguinte. (De
qualquer forma, ela nunca ficava com ele até de manhã.) Ela contava histórias a
Habara porque assim gostava, porque, ele imaginava, ela gostava de se enrolar na
cama e conversar com um homem durante esses momentos íntimos, lânguidos, depois
do sexo. E também, provavelmente, porque queria animar Habara, que tinha de passar
o dia preso em casa.

Por conta disso, Habara a chamara de Scheherazade. Ele nunca havia se dirigido a ela
como tal, mas era esse o nome que usava num pequeno diário que mantinha.
“Scheherazade veio hoje”, escreveria com a caneta esferográfica. Em seguida,
registraria os principais acontecimentos daquele dia em termos simples e obscuros
que, com toda certeza, confundiriam qualquer um que tentasse ler.

Habara não sabia quais histórias eram verdadeiras, inventadas, ou meio verdadeiras e
meio inventadas. Ele não sabia diferenciar. Realidade e invenção, observação e pura
extravagância pareciam coexistir nas narrativas dela. Habara por essa razão divertia-se
como uma criança, sem questionar muito. Qual diferença faria, no final das contas, se
eram mentira ou verdade, ou uma complexa junção das duas?

Em qualquer caso, Scheherazade tinha o dom de contar histórias que tocavam o


coração. Seja lá qual fosse a história, ela a tornava especial. Sua voz, seu ritmo, seu
compasso, eram primorosos. Ela sabia capturar a atenção do ouvinte, atormentava-o,
levava-o a pensar e questionar, e então, no final, dava a ele justamente o que vinha
procurando. Maravilhado, Habara era capaz de esquecer a realidade à sua volta, nem
que fosse por um momento. Assim como um quadro negro sendo apagado com um
pano úmido, suas preocupações e lembranças ruins eram apagadas. O que tinha para
perder? Nessa altura da vida, esse tipo de esquecimento era o que Habara mais
desejava no mundo.

Scheherazade tinha trinta e cinco anos, quatro anos mais velha que Habara, e era dona
de casa em tempo integral, com dois filhos frequentando a escola primária (apesar de
ela também ser uma enfermeira por profissão e ser convocada para trabalhar
ocasionalmente). Seu marido era um típico homem de negócios. Sua casa ficava há
vinte e cinco minutos da de Habara. Isso era tudo (ou quase tudo) das informações
pessoais que ela havia dado. Habara não tinha como verificar nenhuma delas, mas
imaginava não haver motivos para duvidar. Ela nunca revelara o nome. “Não tem por
que você saber, certo?” Scheherazade perguntou. Nunca havia chamado Habara pelo
nome, embora fosse claro que o soubesse. Cuidadosamente, ela evitava se dirigir a ele
pelo nome, como se aquilo não fosse apropriado ou desse azar.

Na aparência, pelo menos, esta Scheherazade não tinha nada a ver com a bela rainha
de “Mil e uma noites”. Ela caminhava para a meia-idade e já se tornava flácida, com
papadas e linhas de expressão no canto dos olhos. Seu cabelo, maquiagem, e roupas
não eram exatamente desleixados, porém nada era digno de elogios. Seus traços não
eram pouco atraentes, mas seu rosto parecia desfocado, passando a impressão de que
ela nunca estava nítida. Como consequência, aqueles que passavam por ela na rua, ou
estavam no mesmo elevador, provavelmente pouco a notavam. Dez anos atrás, ela
poderia ter sido uma jovem mulher, atraente e vigorosa, talvez até fizesse uns homens
virarem para ao passar. Porém, numa certa altura, as cortinas do palco se fecharam de
modo que nunca mais abriram.

Scheherazade ia ver Habara duas vezes na semana. Seus dias não eram fixos, mas ela
nunca vinha nos finais de semana. Não havia dúvida de que passava esse tempo com a
família. Ela sempre telefonava uma hora antes de chegar. Comprava mantimentos no
supermercado mais próximo e os trazia no porta-malas de seu carro, um pequeno
Mazda azul. Era um modelo mais antigo, com o para-choque traseiro amassado e as
rodas pretas de sujeira. Ao estacionar na vaga em frente a casa, ela carregava as
sacolas até a porta da frente e tocava a campainha. Depois de espiar pelo olho mágico,
Habara abria a fechadura, tirava a corrente, e a deixava entrar. E então ela fazia uma
lista de compras para sua próxima visita. Ela executava estas tarefas habilmente, quase
não desperdiçando movimentos, e falando pouco.

Uma vez que ela terminava, os dois iam em silêncio para o quarto, como se carregados
por uma corrente invisível. Scheherazade rapidamente tirava as roupas e, ainda em
silêncio, deitava-se na cama ao lado de Habara. Ela mal falava durante o sexo, e
também desempenhava cada função como se estivesse realizando uma tarefa. Quando
estava menstruada, costumava usar a mão para conclui-la. Seu jeito um tanto
pragmático lembrava Habara que ela era uma enfermeira.

Depois do sexo, eles permaneciam deitados e conversavam. Na verdade, ela falava e


ele ouvia, acrescentando uma palavra aqui, uma pergunta ali. Quando o relógio batia
às quatro e meia, ela interrompia a história (por alguma razão, sempre parecia ter
acabado de atingir o clímax), pulava da cama, vestia-se, e se preparava para ir embora.
Tinha que ir para casa preparar o jantar, dizia.

Habara a observava da porta, colocava a corrente no lugar, e via através das cortinas o
carrinho azul encardido distanciar-se. Às seis em ponto, preparava um jantar simples e
comia sozinho. Ele havia trabalhado como cozinheiro uma vez, de forma que preparar
um prato não era um problema. Bebia um Perrier enquanto comia (nunca havia
colocado uma gota de álcool na boca) e, em seguida, uma xícara de café, que
bebericava assistindo um DVD ou lendo. Ele gostava de livros longos, principalmente
aqueles que exigiam várias leituras para serem entendidos. Não tinha muita coisa para
fazer. Ninguém para conversar. Não assinava nenhum jornal e nunca assistia televisão.
(Tinha boas razões para isso.) Era óbvio que não podia sair de casa. Se as visitas de
Scheherazade cessassem por alguma razão, seria deixado sozinho.

Habara não se preocupava muito com esta hipótese. Se acontecesse, pensava ele,
seria difícil, mas vou sobreviver de um jeito ou de outro. Não estou preso numa ilha
deserta. Não, ele pensou, eu sou uma ilha deserta. Ele sempre esteve confortável em
sua própria companhia. O que o incomodava, no entanto, era a ideia de não poder
conversar na cama com Scheherazade. Ou, mais precisamente, de perder o próximo
desdobramento de sua história.

“Eu fui uma lampreia numa vida passada,” Scheherazade disse uma vez, enquanto
estavam deitados juntos na cama. Foi um comentário simples e direto, tão inesperado
quanto se ela dissesse que o Polo Norte ficava no extremo norte. Habara não tinha
ideia de que tipo de criatura era uma lampreia, muito menos de como ela se parecia.
Então não emitiu nenhuma opinião.

“Você sabe como uma lampreia come uma truta?” ela perguntou.

Não sabia. Na verdade, era a primeira vez que ouvia que lampreias comiam trutas.

“Lampreias não têm mandíbulas. É isso que as separa das outras enguias.”

“Ãhn? Enguias têm mandíbulas?”

“Você já prestou atenção em uma?” disse, surpresa.

“Claro que eu como enguia de vez em quando, mas nunca tive a oportunidade de ver
suas mandíbulas.”

“Bem, você deve conferir, qualquer dia. Vá até o aquário ou um lugar parecido. As
enguias normalmente têm mandíbulas cheias de dentes. Mas as lampreias possuem
apenas ventosas, pelas quais ficam presas nas rochas no fundo do rio ou do lago.
Assim elas meio que só flutuam, balançando pra frente e pra trás, feito algas.”

Habara imaginou várias lampreias balançando feito algas no fundo de um lago. A cena
pareceu fora da realidade, embora ele soubesse que a realidade às vezes pudesse ser
terrivelmente irreal.

“Lampreias vivem desse jeito, escondidas entre as algas. À espreita. Então, quando
uma truta passa por cima delas, elas se atiram como um dardo e prendem-se nela com
as ventosas. Dentro de suas ventosas existem umas ‘línguas’ cheias de dentes, que
ficam se esfregando na barriga da truta até que um buraco se abra e elas possam
começar a comer a carne, pedaço por pedaço.”

“Eu não gostaria de ser uma truta,” disse Habara.

“Na Roma Antiga, criavam lampreias nos lagos. Escravos insolentes eram jogados lá
dentro e as lampreias os comiam vivos.”

Habara pensou que tão pouco gostaria de ser um escravo romano.


“A primeira vez que vi uma lampreia foi no ensino primário, na excursão para o
aquário,” Scheherazade disse. “Na hora que li a descrição de como elas viviam, soube
que tinha sido uma na minha vida passada. Digo, eu conseguia de fato lembrar – de
estar presa numa rocha, balançando invisível em meio às algas, observando a truta
gorda nadando em cima de mim.”

“Você consegue se lembrar comendo elas?”

“Não, não consigo.”

“É um alívio,” Habara disse. “Mas isso é tudo que você lembra de sua vida como
lampreia – de balançar de um lado pro outro no fundo de um rio?”

“Uma vida passada não pode ser lembrada tão facilmente,” ela disse. “Se você tiver
sorte, consegue um vislumbre de como era. É como dar uma espiada num buraquinho
da parede. Você consegue lembrar de alguma das suas vidas passadas?”

“Não, de nenhuma,” disse Habara. Verdade seja dita, ele nunca sentiu vontade de
revisitar sua vida passada. Suas mãos já estavam cheias da vida presente.

“Ainda assim, o fundo do rio parecia bem limpo. De cabeça pra baixo, com a minha
boca presa na rocha, observando os peixes passando por cima de mim. Eu vi uma
tartaruga bem grande e ligeira uma vez; também, uma figura preta enorme passava,
parecia a nave maligna em ‘Star Wars.’ E grandes pássaros brancos de bicos longos e
afiados; olhando de baixo, pareciam nuvens brancas flutuando no céu.”

“E você consegue ver tudo isso agora?”

“É claro,” Scheherazade disse. “A luz, o fluxo da água, tudo. Às vezes até consigo voltar
pra lá na minha cabeça.”

“Para o lugar que você estava imaginando?”

“Uhum.”

“O que as lampreias pensam?”

“Lampreias têm pensamentos típicos de lampreias. Sobre tópicos típicos de lampreias


num contexto tipicamente de lampreias. Não existem palavras para esses
pensamentos. Eles pertencem ao mundo das águas. É como quando estávamos no
útero. Pensávamos coisas lá dentro, mas não podemos expressar esses pensamentos
na linguagem que usamos aqui fora. Certo?”

“Espere aí! Você consegue se lembrar de como era dentro do útero?”

“Claro,” Scheherazade disse, levantando a cabeça para vê-lo de cima do seu peito.
“Você não?”
Não, ele disse. Ele não conseguia.

“Então uma hora te conto. Sobre como é a vida no útero.”


“Scheherazade, Lampreia, Vidas Passadas” era o que Habara registraria em seu diário
naquele dia. Ele duvidava que alguém, ao se deparar com aquilo, adivinhasse o
significado daquelas palavras.

Habara encontrara Scheherazade pela primeira vez quatro meses atrás. Ele havia sido
transportado para esta casa, numa província ao norte de Tóquio, e ela havia sido
designada sua “pessoa de contato”. Uma vez que não podia sair de casa, o papel dela
era comprar comida e outros mantimentos e trazê-los para casa. Ela também se
responsabilizava pelos livros e revistas que ele desejasse ler, e quaisquer CDs que
viesse a querer ouvir. Além disso, ela escolhia uma grande variedade de DVDs – apesar
de ele já ter se recusado em aceitar seus critérios de seleção.

Uma semana depois de ter chegado, como se fosse previsto, Scheherazade o levou
para cama. Havia camisinhas no criado-mudo quando ele chegou. Habara achou que o
sexo fosse uma de suas funções atribuídas – ou talvez “atividades de apoio” era o
termo que usavam. Seja lá qual fosse o termo, e qual fosse a motivação dela, ele
seguia o fluxo e aceitava sua proposta sem hesitar.

O sexo não era exatamente obrigatório, mas não se podia dizer que seus corações
estivessem inteiramente ali. Ela parecia estar sempre alerta, para que não se
entusiasmassem muito – assim como um instrutor de carros não gostava que seus
alunos ficassem muito empolgados dirigindo. Mesmo assim, embora não se pudesse
dizer que havia paixão, não era possível dizer que fosse totalmente um negócio.
Provavelmente começou com uma obrigação (ou, pelo menos, como algo fortemente
encorajado), mas num certo momento ela pareceu – mesmo que um pouco – ter
encontrado prazer naquilo. Habara podia falar pelas formas sutis do corpo dela
responder, uma resposta que também o deliciava. Afinal de contas, ele não era um
animal selvagem preso numa jaula, mas um ser humano munido de sua própria gama
de emoções, e fazer sexo apenas tendo em vista o prazer não lhe satisfazia tanto.
Ainda assim, até que ponto Scheherazade via a relação entre eles como sendo uma de
suas obrigações, e quanto dessa relação pertencia à esfera da sua vida pessoal? Ele
não conseguia dizer.

Isso também acontecia em outras situações. Habara sempre achou os sentimentos e


intenções de Scheherazade muito difíceis de interpretar. Por exemplo, ela costumava
usar calcinhas de algodão lisas. O tipo de calcinhas que geralmente apenas donas de
casa em seus trinta anos usavam – apesar de ser pura especulação, uma vez que ele
nunca teve experiência com donas de casa dessa idade. Às vezes, no entanto, ela
aparecia usando calcinhas de seda coloridas e cheias de babados. O motivo de ela
optar por uma ou por outra era um mistério.

Outra coisa que o intrigava era o fato de a relação deles e as histórias que ela contava
serem profundamente conectadas, tornando difícil dizer onde uma coisa acabava e a
outra, começava. Ele nunca tinha vivenciado nada parecido: embora não a amasse, e o
sexo fosse mediano, ele encontrava-se fortemente conectado a ela fisicamente. Era
tudo muito confuso.
“Eu era adolescente quando comecei a invadir casas vazias,” disse ela, certo dia,
quando estavam deitados na cama.

Habara – assim como toda vez que ela lhe contava histórias – ficou perplexo.

“Você já invadiu a casa de alguém?” perguntou.

“Acho que não,” ele respondeu, inexpressivo.

“Uma só vez e você fica viciado.”

“Mas é ilegal.”

“Pode acreditar. É perigoso, mas ainda assim vicia.”

Habara esperou em silêncio até que ela continuasse.

“A melhor coisa de se estar na casa de um estranho quando não tem ninguém,”


Scheherazade disse, “é o silêncio. Nenhum barulho. Parece o lugar mais quieto do
mundo. Ou foi isso que me pareceu. Quando eu sentei no chão e fiquei absolutamente
imóvel, minha vida como lampreia voltou. Eu te contei sobre ter sido uma lampreia
numa vida passada, não é?”

“Sim, contou.”

“Foi exatamente assim. Minhas ventosas presas na rocha, embaixo da água, e meu
corpo balançando de um lado pro outro, como as algas à minha volta. Tudo tão
silencioso. Mas talvez seja porque eu não tivesse ouvidos. Nos dias de sol, a luz
penetrava a superfície como uma lança. Peixes de todas as cores e formas
perambulavam acima. E minha mente estava vazia. Vazia de pensamentos que não
eram tipicamente de lampreias, eu digo. Estes eram nebulosos mas bem puros. Era um
lugar maravilhoso de se ficar.”

A primeira vez que Scheherazade invadiu a casa de um estranho, ela contou, foi
durante o ensino médio, quando estava muito a fim de um garoto da sua sala. Embora
não fosse exatamente bonito, ele era alto e polido, além de ser um bom aluno que
jogava no time de futebol, e ela estava fortemente atraída por ele. Mas parecia que ele
gostava de outra garota da sala e mal notava Scheherazade. Na verdade, era provável
que ele nem soubesse de sua existência. Mesmo assim, ela não conseguia tirá-lo da
cabeça. Era só vê-lo que ficava sem ar; algumas vezes ela sentia como se fosse vomitar.
Se não fizesse algo a respeito, pensou, acabaria enlouquecendo. Mas confessar seu
amor estava fora de questão.
Certo dia, Scheherazade matou aula e foi até a casa do garoto. Ficava a mais ou menos
quinze minutos da sua casa. De antemão, procurara saber sobre a família dele. Sua
mãe ensinava japonês numa escola na cidade vizinha. Seu pai, que trabalhava numa
empresa de cimento, tinha morrido num acidente de carro uns anos atrás. Sua irmã
estava no ensino médio. Isso significava que a casa ficava vazia durante o dia.
Naturalmente, a porta da frente estava trancada. Scheherazade procurou por uma
chave embaixo do tapete. Como esperado, encontrou uma. Bairros residenciais
tranquilos de cidades provincianas como aquela tinham um baixo índice de
criminalidade, e uma chave extra era deixada com frequência embaixo de um tapete
ou num vaso de planta.
Por precaução, Scheherazade tocou a campainha, esperou para ter certeza que
ninguém atenderia, certificou-se de que não estava sendo observada, e entrou.
Novamente, trancou a porta por dentro. Tirou os sapatos, colocou-os num saco
plástico e depois na mochila que levava nas costas. E então, na ponta dos pés, subiu a
escada até o segundo andar.

O quarto dele estava lá, como imaginado. Sua cama havia sido cuidadosamente feita.
Na estante de livros tinha um pequeno aparelho de som, com alguns CDs. Na parede,
um calendário com uma foto do time de futebol de Barcelona e, do lado, o que
pareceu ser um cartaz do time, mas nada a mais. Nenhum pôster, nada de fotografias.
Apenas uma parede cor de creme. Uma cortina branca na janela. O quarto estava
limpo, tudo em seu devido lugar. Nenhum livro esparramado, nenhuma roupa jogada
no chão. O quarto era a prova de como seu dono era cuidadoso. Ou também de como
sua mãe mantinha uma casa perfeita. Ou os dois. Scheherazade estremeceu. Se o
quarto fosse mais bagunçado, ninguém notaria qualquer intervenção que ela fizesse.
Mas, ao mesmo tempo, a limpeza e a simplicidade do quarto, sua perfeita organização,
a deixavam feliz. Era tudo tão parecido com ele.

Scheherazade sentou-se na cadeira da escrivaninha e ficou lá por um tempo. É aqui


que ele estuda toda noite, ela pensou, seu coração acelerado. Pegou os objetos da
escrivaninha um por um, brincou com eles, os cheirou, colocou-os dentre os lábios.
Seus lápis, sua tesoura, sua régua, seu grampeador – os objetos mais mundanos
tornaram-se, de alguma maneira, um pouco mágicos por pertencerem a ele.

Ela abriu as gavetas da escrivaninha e cuidadosamente analisou o seu conteúdo. A


primeira gaveta era dividida em compartimentos, cada qual contendo uma pequena
bandeja com objetos e souvenires espalhados. A segunda gaveta era, em grande parte,
ocupada por cadernos das aulas que ele tinha no momento, enquanto a última (a mais
funda) era repleta de papéis, provas e cadernos velhos. Quase tudo tinha a ver com a
escola ou com o futebol. Ela torcia para deparar-se com algo íntimo – um diário, talvez,
ou cartas – mas a escrivaninha não guardava nada do tipo. Nem mesmo uma
fotografia. Scheherazade estranhou. Ele não tinha vida fora da escola ou do futebol?
Ou escondia com cuidado tudo que era pessoal, num lugar que ninguém pudesse
encontrar?

Mesmo assim, só de sentar na escrivaninha e observar a caligrafia dele, Scheherazade


ficava inquieta. Para acalmar-se, ela deixava a cadeira e sentava no chão. Ela olhava
para o teto. O silêncio ao seu redor era absoluto. Dessa maneira, retornava ao mundo
das lampreias.
“Então tudo o que fez,” Habara perguntou, “foi entrar no quarto dele, mexer em suas
coisas, e sentar no chão?”

“Não,” Scheherazade disse. “Tem mais. Eu queria algo dele pra levar para casa. Algo
que ele usasse todos os dias ou que ficasse perto de seu corpo. Mas não podia ser algo
importante que ele desse falta. Então eu roubei um de seus lápis.”

“Um único lápis?”

“Sim. Um que ele estivesse usando. Mas roubar não era o suficiente. Faria disso tudo
um simples caso de roubo. O fato de eu ter roubado seria inútil. Eu era a Ladra do
Amor no final das contas.”

A Ladra do Amor? Para Habara, soava como o título de um filme mudo.

“E então eu decidi deixar algo no lugar, algum sinal. Como prova de que eu havia
estado lá. Uma demonstração de que era algo em troca, não um simples roubo. Mas o
que seria? Não consegui pensar em nada. Vasculhei minha mochila e meus bolsos, mas
não encontrava nada apropriado. Me culpei por não ter pensado em trazer alguma
coisa adequada. Por fim, decidi deixar um tampão. Um não usado, é claro, ainda
dentro da embalagem. Minha menstruação se aproximava, de modo que eu o
carregava por precaução. Eu escondi bem no fundo da última gaveta, onde seria difícil
encontrar. Isso me deixou muito excitada. Só de ter um tampão meu escondido na
gaveta da escrivaninha dele. Talvez fosse porque eu estava tão excitada que a minha
menstruação começou quase que imediatamente após o ocorrido.

Um tampão por um lápis, Habara pensou. Era possível que fosse o que ele escreveria
em seu diário naquele dia: “Ladra do Amor, Lápis, Tampão.” Ele queria saber o que
pensariam disso!

“Fazia quinze minutos mais ou menos que eu estava lá. Não consegui ficar mais tempo
que isso: era minha primeira vez invadindo uma casa, e eu temia que alguém
aparecesse enquanto estava lá dentro. Observei a rua para ver se o caminho estava
livre, deslizei pela porta, a tranquei, e coloquei a chave de volta embaixo do tapete.
Depois fui para a escola. Carregando o meu precioso lápis.”

Scheherazade ficou em silêncio. Pelo jeito, ela havia voltado no tempo e imaginava
várias coisas que aconteceram depois, uma por uma.

“Aquela semana foi a mais feliz da minha vida,” disse, depois de uma pausa. “Rabisquei
coisas aleatórias no meu caderno usando o lápis dele. Eu o cheirei, beijei, esfreguei na
minha bochecha, rolei entre os meus dedos. Às vezes até prendia na boca e chupava.
Claro, me doía o fato de que quanto mais eu escrevia, menor ficava, mas eu não podia
evitar. Se ficasse muito pequeno, pensei, eu poderia sempre voltar e pegar outro.
Havia vários lápis usados no porta-lápis da escrivaninha dele. Ele não daria falta de um.
E provavelmente ele ainda não achara o tampão escondido em sua gaveta. Essa ideia
me excitava de um jeito – me dava umas cócegas estranhas lá embaixo. Não me
incomodava mais que na realidade ele nem sequer olhasse para mim ou demonstrasse
saber de minha existência. Porque, secretamente, eu possuía algo dele – uma parte
dele, de certo modo.”

Dez dias depois, Scheherazade matou aula outra vez e fez uma segunda visita à casa do
garoto. Eram onze em ponto da manhã. Assim como antes, ela pegou a chave debaixo
do tapete e abriu a porta. Novamente, o quarto dele encontrava-se em perfeita
ordem. Primeiro, ela escolheu um lápis bastante usado e cuidadosamente o guardou
em seu estojo. Depois, com mesma cautela, deitou na cama dele, suas mãos
apertavam os seios, e ela mirava o teto. Esta era a cama que ele dormia toda noite.
Esse pensamento fez seu coração acelerar, e ela encontrou dificuldade em respirar.
Seus pulmões estavam sem ar e sua garganta ficou completamente seca, fazendo cada
tentativa de respirar algo doloroso.

Scheherazade desceu da cama, alisou o cobre-leito, e sentou no chão, como na


primeira visita. Mirou o teto outra vez. Não estou pronta pra cama dele, disse para si
mesma. É muito pra mim.

Desta vez, Scheherazade passou meia-hora na casa. Ela tirou os cadernos dele da
gaveta e ficou olhando para eles. Encontrou um relatório e leu. Era sobre “Kokoro”, um
romance de Soseki Natsume, a tarefa de leitura daquelas férias de verão. Ele tinha
uma linda caligrafia, do tipo que se espera de um aluno aplicado, nenhum erro ou
desleixo em nenhum canto. A nota dada era “Excelente”. Qual outra seria? Qualquer
professor ao deparar-se com uma caligrafia tão perfeita automaticamente lhe
atribuiria um “Excelente”, quer lesse uma única linha quer não.

Scheherazade avançou para a cômoda, examinando o conteúdo todo em ordem. As


cuecas e as meias dele. Camisas e calças. O uniforme de time. Tudo dobrado
perfeitamente. Nada manchado ou desgastado. Ele quem dobrara? Ou, mais provável,
sua mãe fizera? Ela sentia uma ponta de inveja da mãe dele, que podia fazer estas
coisas para ele a todo e qualquer instante.

Scheherazade inclinou-se e sentiu o cheiro das roupas nas gavetas. Todas pareciam ter
acabado de serem lavadas e secadas ao sol. Ela pegou uma camiseta cinza e lisa,
desdobrou-a, e a pressionou contra seu rosto. Não haveria restado um pouco de seu
suor embaixo dos braços? Não sentiu nada. Não obstante, a pressionou por algum
tempo, cheirando. Queria pegar a camiseta para si. Mas seria muito arriscado. As
roupas dele eram meticulosamente arrumadas e mantidas. Ele (ou sua mãe)
provavelmente sabia o número exato de camisetas dentro da gaveta. Se uma faltasse,
seria um deus-nos-acuda. Scheherazade, com cautela, dobrou a camiseta e a colocou
de volta em seu devido lugar. Em troca, pegou uma pequena medalha, no formato de
uma bola de futebol, que encontrou em uma das gavetas da escrivaninha. Parecia
pertencer aos tempos da escola primária. Ela temia que ele desse falta. Pelo menos,
demoraria um pouco para ele perceber que tinha desaparecido. Enquanto estava na
escrivaninha, verificou o fundo da gaveta procurando pelo tampão. Ainda estava lá.
Scheherazade tentou imaginar o que aconteceria se a mãe dele encontrasse o tampão.
O que ela pensaria? Exigiria uma explicação de porque diabos havia um tampão na
escrivaninha dele? Ou ela manteria a descoberta em segredo, remoendo suas
tenebrosas suspeitas? Afinal de contas, havia sido seu primeiro objeto dado em troca.
Para comemorar sua segunda visita, Scheherazade deixou para trás três fios do cabelo
dela. Na noite anterior, ela tinha os arrancado, os guardado num plástico, e selado
num pequeno envelope. Agora ela tirava o envelope de sua mochila e o enfiava dentro
de um de seus velhos cadernos de matemática que estava na gaveta. Os três fios eram
lisos e pretos, nem tão longos nem tão curtos. Ninguém saberia de quem seriam sem
um teste de DNA, embora eles pertencessem claramente a uma garota.

Ela foi da casa dele direto para a escola, chegando a tempo para a primeira aula da
tarde. Mais uma vez, ficou contente por uns dez dias. Sentiu que ele pertencia mais a
ela. Mas, como esperado, esta sucessão de acontecimentos não terminaria sem algum
incidente. Porque, como Scheherazade dissera, invadir a casa de um estranho era
extremamente viciante.

Nesta altura da história Scheherazade deu uma espiada no relógio ao lado da cama e
viu que eram 4h32 da tarde. “Tenho que ir,” ela disse, de si para si. Pulou da cama e
vestiu sua calcinha branca e lisa e o sutiã, deslizou dentro da calça jeans, e colocou seu
moletom azul-marinho da Nike. Depois lavou as mãos no banheiro, penteou os
cabelos, e foi embora em seu Mazda azul.

Ao ser deixado sozinho e sem nada para fazer, Habara deitou na cama e ficou
ruminando a história que ela tinha acabado de contar, saboreando-a pedaço por
pedaço, como uma vaca mastigando o alimento regurgitado. Onde isso acabaria?
Perguntou-se. Assim como todas as histórias dela, ele não fazia ideia. Achava difícil
imaginar Scheherazade como uma estudante do colegial. Ela era mais magra nesse
tempo, sem a flacidez de hoje? O uniforme escolar, as meias brancas, o seu cabelo em
tranças?

Ele ainda não tinha fome, de modo que deixou o jantar de lado e voltou para o livro
que estava lendo, apenas para descobrir que não conseguia se concentrar. A imagem
de Scheherazade entrando no quarto de seu colega de sala e afundando o rosto na
camisa dele ainda estava fresca na cabeça. Ele estava impaciente para ouvir o que
aconteceu em seguida.

A próxima visita de Scheherazade aconteceria em três dias, depois de passado o final


de semana. Como sempre, ela chegou carregando grandes sacos de papel cheios de
mantimentos. Analisou a comida que estava na geladeira, repondo aquilo que passara
da data de validade, examinou os enlatados e as garrafas do armário, checou a
quantidade de condimentos e temperos para ver se estavam acabando, e escreveu
uma lista de compras. Ela colocou algumas garrafas de Perrier na geladeira para
gelarem. Por fim, empilhou na mesa os novos livros e DVDs que trouxera.

“Tem mais alguma coisa que você precise ou queira?”


“Não consigo pensar em nada,” Habara respondeu.

Então, como de costume, os dois foram para cama e transaram. Depois de uma boa
quantidade de preliminares, ele colocou a camisinha, a penetrou, e, após um bom
tempo, ejaculou. Depois de analisar cuidadosamente o conteúdo da camisinha,
Scheherazade começou a contar o último desdobramento de sua história.

Ela tinha perdido todo o interesse nos trabalhos escolares. Na aula, ou ela perdia
tempo com a medalha e o lápis ou caía em devaneios. Quando voltou para casa, não
tinha condições mentais de resolver seu dever de casa. As notas de Scheherazade
nunca tinham sido um problema. Ela não era uma das melhores alunas, mas uma
garota séria que sempre fazia suas tarefas. Por isso, quando o professor lhe fez uma
pergunta durante a aula e ela viu-se incapaz de dar uma resposta adequada, ele ficou
mais surpreso do que enfurecido. Eventualmente, ele a chamou para sua sala durante
o intervalo. “O que há de errado?” perguntou. “Tem alguma coisa te incomodando?”
Ela só conseguiu murmurar vagamente qualquer coisa sobre não estar se sentindo
bem. Seu segredo era muito sério e tenebroso para ser revelado a alguém – ela
precisava aguentá-lo sozinha.

“Eu tive que invadir a casa dele,” Scheherazade disse. “Fui levada a isso. Como você
pode imaginar, era bastante arriscado. Até eu sabia disso. Mais cedo ou mais tarde,
alguém me encontraria lá, e chamariam a polícia. A ideia me fez tremer nas bases. Mas
não tinha mais volta, não conseguia parar. Dez dias depois da minha segunda ‘visita,’
voltei pra lá de novo. Eu não tive escolha. Senti que se não fizesse, enlouqueceria.
Quando olho pra trás, vejo que realmente eu era um pouco louca.”

“Isso não te causou problemas na escola, matar aula tantas vezes?” Habara perguntou.

“Meus pais tinham o seu próprio negócio, por isso estavam muito ocupados para
prestar atenção em mim. Eu nunca tinha causado problemas até então, nunca tinha
desafiado a autoridade deles. De modo que acharam melhor se retirarem. Falsificar as
notas era fácil. Expliquei para o professor representante da minha turma que eu tinha
um problema de saúde que me fazia passar metade do dia no hospital de tempos em
tempos. Uma vez que os professores estavam quebrando a cabeça para saber o que
fazer com os alunos que não iam para a escola há séculos, não se incomodaram com o
fato de eu ter de passar metade do dia fora de vez em quando.”

Scheherazade olhou rapidamente para o relógio ao lado da cama antes de continuar.

“Peguei a chave embaixo do tapete e entrei na casa pela terceira vez. Estava tão
silenciosa quanto antes – não, ainda mais silenciosa por alguma razão. Tremi quando
ouvi a geladeira ligando – parecia um monstro enorme respirando fundo. O telefone
tocou enquanto eu estava lá. O toque era tão alto e áspero que pensei que meu
coração ia parar. Estava coberta de suor. Ninguém atendeu, é claro, e ele parou depois
de ter tocado umas dez vezes. E então a casa ficou ainda mais silenciosa.
Naquele dia, Scheherazade passou um bom tempo espreguiçando-se na cama dele.
Desta vez seu coração não bateu tão rápido, e ela pôde respirar normalmente. Ela
conseguiu imaginá-lo dormindo tranquilamente ao seu lado, e até mesmo sentir como
se o observasse dormindo. Sentiu que, se ela se esticasse, poderia roçar no braço
musculoso dele. Ele não estava seu lado, obviamente. Ela encontrava-se apenas imersa
em devaneios.

Sentiu um desejo avassalador de cheirá-lo. Ao levantar da cama, andou até a cômoda


dele, abriu uma gaveta, e examinou as camisas de dentro. Todas haviam sido lavadas e
cuidadosamente dobradas. Estavam impecáveis, e cheirosas, como antes.

E então ela teve uma ideia. Desceu correndo as escadas até o primeiro andar. Lá, no
quarto próximo ao banheiro, encontrou um cesto de roupas e removeu a tampa. As
roupas sujas de toda família – mãe, filha, e filho – estavam misturadas. Roupas
acumuladas de um dia inteiro, era o que parecia. Scheherazade tirou uma peça de
roupa masculina. Uma camiseta branca de gola redonda. Deu uma cheirada. O cheiro
inconfundível de um rapaz. Um cheiro úmido que ela já conhecia, de quando seus
colegas se aproximavam. Nada de excepcional, é claro. Mas o fato de o cheiro ser dele
deixou Scheherazade extremamente feliz. Quando colocou o nariz perto das axilas e
inalou, sentiu como se o abraçasse, seus braços apertados em volta dela.

Com a camiseta na mão, Scheherazade subiu as escadas para o segundo andar e mais
uma vez deitou na cama dele. Enterrou o rosto em sua camisa e aspirou avidamente.
Dessa vez, conseguiu sentir uma volúpia nas partes íntimas. Seus mamilos estavam
intumescidos também. Estaria perto de menstruar? Não, ainda estava bem longe. Era
desejo sexual? Se era, o que poderia fazer a respeito? Não tinha ideia. Entretanto, uma
coisa era certa – não havia nada a ser feito diante destas circunstâncias. Não aqui no
quarto dele, em sua cama.

No fim, Scheherazade decidiu levar a camisa para casa. Era arriscado, claro. A mãe dele
era do tipo que perceberia uma camisa faltando. Mesmo se ela não adivinhasse que
tinha sido roubada, ela ainda ficaria se perguntando para onde tinha ido. Qualquer
mulher que deixasse a casa brilhando daquele jeito era certamente uma maníaca por
limpeza de primeira mão. Quando algo ficava faltando, ela revirava a casa procurando,
como um cão farejador, até encontrar. Sem dúvidas, ela descobriria os rastros de
Scheherazade no quarto de seu amado filhinho. Mas, mesmo Scheherazade sabendo
disso, ela não queria deixar a camisa. O seu cérebro era impotente para persuadir seu
coração.

Ao invés disso, ela começou a pensar no que deixar para trás. Sua calcinha parecia a
melhor escolha. Era uma calcinha comum, simples, relativamente nova, e havia sido
vestida naquela manhã. Ela poderia escondê-la bem no fundo de seu guarda-roupa.
Haveria coisa melhor para deixar em troca? Mas, quando a tirou, o tecido estava
úmido. Acho que isso tem a ver com o desejo, também, ela pensou. Não adiantaria
deixar no quarto dele algo manchado de gozo. Seria uma humilhação para ela. Vestiu-a
de volta e começou a pensar em outra coisa para deixar.
Scheherazade interrompeu a história. Por um longo tempo, não disse uma palavra.
Deitou de olhos fechados e respirou tranquilamente. Ao seu lado, Habara fez o
mesmo, esperando que ela retomasse.

Por fim, ela abriu os olhos e falou. “Ei, senhor Habara,” disse. Foi a primeira vez que ela
se dirigiu a ele pelo nome.

Habara olhou para ela.

“Você acha que podemos fazer mais uma vez?”

“Acho que consigo,” ele disse.

E então transaram novamente. Esta vez, no entanto, foi muito diferente da outra.
Violento, apaixonado, e extenuante. Não havia dúvidas de que ela atingira o clímax no
fim. Uma série de fortes contrações que a deixaram tremendo. Até mesmo seu rosto
estava transformado. Para Habara, era como ter um vislumbre da jovem
Scheherazade: a mulher em seus braços agora era uma garota perturbada em seus
dezessete anos que tinha, de alguma maneira, ficado presa no corpo de uma dona-de-
casa de trinta e cinco. Habara podia senti-la, com seus olhos fechados, de corpo
trêmulo, cheirando a camiseta suada do garoto.

Desta vez, Scheherazade não lhe contou nenhuma historia depois do sexo. E nem
checou o conteúdo do preservativo. Eles se deitaram e ficaram em silêncio um ao lado
do outro. Os olhos dela estavam bem abertos, e miravam o teto. Assim como uma
lampreia deslumbrada com a superfície iluminada da água. O quão maravilhoso seria,
Habara pensou, se ele, também, pudesse habitar outro tempo ou espaço – deixar para
trás esta clara figura humana e sozinha cujo nome era Nobutaka Habara e tornar-se
uma lampreia sem nome. Imaginou ele e Scheherazade lado a lado, suas ventosas
presas numa rocha, seus corpos balançando na água, observando a superfície
enquanto esperavam que uma truta suculenta passasse.

“E então o que deixou em troca da camisa?” Habara quebrou o silêncio.

Ela não respondeu de imediato.

“Nada,” falou, por fim. “Nada que eu trouxera comigo se equiparava a uma camisa
com o cheiro dele. De modo que eu só peguei e fui embora. Foi quando me tornei uma
ladra, pura e simplesmente.”

Doze dias depois, quando Scheherazade voltou à casa do garoto pela quarta fez, havia
uma nova tranca na porta da frente. A sua cor dourada cintilava no sol do meio dia,
como se estivesse se gabando da sua grande solidez. E não tinha nenhuma chave
embaixo do tapete. Era nítido que o desaparecimento da camisa havia despertado
suspeitas na mãe dele. Ela devia ter procurado por toda parte e ter cruzado com
outros sinais que lhe disseram que algo estranho acontecia em sua casa. Seus instintos
nunca mentiam, e ela agiu de prontidão.
Scheherazade estava, obviamente, desapontada com este acontecimento, mas ao
mesmo tempo ficou aliviada. Era como se alguém aparecesse atrás dela e retirasse um
grande peso de seus ombros. Isso significa que eu não tenho que continuar invadindo
a casa dele, pensou. Não havia dúvidas de que, se a tranca não tivesse sido mudada,
suas “visitas” continuariam indefinidamente. E nem havia dúvidas de que ela
aumentaria o número de ações a cada visita. Uma hora ou outra, um membro da
família apareceria enquanto ela estivesse no segundo andar. Não haveria por onde
escapar. Não poderia se queixar. Era este o futuro que lhe aguardava, mais cedo ou
mais tarde, e o resultado poderia ser devastador. Agora ela escapara. Talvez devesse
agradecer à mãe dele – embora nunca tivesse a encontrado – por ter olhos de águia.

Scheherazade cheirava a camiseta dele toda noite antes de deitar na cama. Ela dormia
com a camiseta do lado. Embrulhava-a num papel e a escondia antes de ir para a
escola de manhã. E então, depois do jantar, a desembrulhava cuidadosamente e a
cheirava. Ficou preocupada que o cheiro saísse ao longo dos dias, mas isso não
aconteceu. O cheiro de suor permanecera na camisa para sempre.

Agora que “visitas” futuras estavam fora de questão, a mente de Scheherazade


lentamente voltava ao normal. Ela já não sonhava tanto acordada na aula, e as
palavras de seu professor começaram a fazer sentido. Entretanto, seu principal foco
não era a voz do professor, mas o comportamento do colega. Ela discretamente
permaneceu olhando para ele, tentando detectar uma mudança, qualquer indicação
de que ele estivesse nervoso com alguma coisa. Mas ele agiu exatamente do mesmo
jeito de sempre. Ele inclinou a cabeça para trás e riu tão naturalmente como antes, e
respondeu prontamente quando chamado. Ele gritou alto como de costume durante o
treino de futebol e ficou igualmente suado. Ela não conseguia ver nada diferente – só
um rapazinho ali em pé, levando uma vida aparentemente despreocupada.

Mesmo assim, Scheherazade percebeu que uma nuvem escura pairava sobre ele. Ou
qualquer coisa parecida. Muito provavelmente, ninguém mais sabia. Apenas ela (e,
pensando bem, possivelmente sua mãe). Em sua terceira “visita”, ela se deparara com
algumas revistas pornográficas meticulosamente escondidas nas partes mais fundas do
guarda-roupa dele. Eram repletas de fotos de mulheres nuas, abrindo suas pernas e
oferecendo uma visão privilegiada de suas genitálias. Algumas fotos mostravam o ato
sexual: homens penetrando corpos femininos com pênis grandes como varas, nas
posições mais estranhas. Scheherazade nunca pusera o olho em fotos desse tipo. Ela
sentou na escrivaninha dele e folheou as revistas devagar, estudando cada foto com
grande interesse. Imaginou que ele se masturbasse enquanto as via. Mas a ideia não
lhe parecia exatamente repulsiva. Ela via a masturbação como uma atividade
perfeitamente normal. Todo aquele esperma deveria ir para algum lugar, assim como
garotas precisavam menstruar. Em outras palavras, ele era um adolescente comum.
Nem herói nem santo. Saber disso era meio que um alívio.

“Quando parei com as minhas ‘visitas’, minha paixão por ele começou a esfriar. Foi aos
poucos, como a maré diminuindo na superfície longa e inclinada da praia. De alguma
forma, eu me vi cheirando a camisa dele com menos frequência e passando menos
tempo acariciando seu lápis e sua medalha. A febre estava passando. O que eu
contraíra não se parecia com uma doença, era a própria doença. No tempo que durou,
eu não conseguia pensar direito. Talvez todo mundo passe por um período de loucura
similar uma hora ou outra. Ou talvez fosse algo que só acontecera comigo. E você? Já
teve uma experiência assim?”

Habara tentou lembrar, mas lhe deu um branco. “Não, nada tão marcante, eu acho,”
disse.

Scheherazade pareceu um pouco desapontada com a resposta dele.

“De qualquer forma, eu esqueci dele assim que me formei. Tão rápida e facilmente
que foi estranho. O que eu vi nele que fez minha adolescente de dezessete anos se
apaixonar tanto? Por mais que tentasse, não conseguia lembrar. A vida é estranha, não
é? Você pode estar totalmente envolvida com algo num minuto, querer sacrificar tudo
para fazer essa coisa ser sua, mas então um tempinho passa, ou sua perspectiva muda
um pouco, e de repente você fica surpreso como aquilo perdeu o encanto. O que eu
estava vendo? Você deve se perguntar. E então esta é a história de quando eu invadia
casas.”

Ela fez com que se parecesse com o “Período Azul” de Picasso, Habara pensou. Mas ele
entendeu o que ela tentara transmitir.

Ela espiou o relógio ao lado da cama. Já era quase hora de ir.

“Para dizer a verdade,” ela disse finalmente, “a história não acaba aqui. Uns anos
atrás, quando estava no meu segundo ano da escola de enfermagem, a força do
destino nos uniu novamente. A mãe dele contribuiu pra isso; na realidade, tinha algo
de assustador naquilo tudo – se parecia com aquelas histórias de fantasma. Os
acontecimentos tomaram um rumo inacreditável. Você gostaria de ouvir?”

“Eu adoraria,” Habara disse.

“É melhor esperar até minha próxima visita,” Scheherazade disse. “Está ficando tarde.
Tenho que ir pra casa preparar o jantar.”

Ela desceu da cama e se vestiu – calcinhas, meias, regata, e, por fim, sua saia e blusa.
Habara distraidamente assistiu da cama aos seus movimentos. Ficava impressionado
porque o jeito das mulheres se vestirem podia ser mais interessante do que o jeito de
elas se despirem.

“Tem algum livro em particular que você queira que eu traga?” ela perguntou, no
caminho até a porta.

“Não, nada que consiga lembrar,” ele respondeu. O que ele realmente queria, pensou,
era que ela lhe contasse o resto da história, mas não disse. Se o fizesse, poderia
diminuir suas chances de ouvi-la.
Habara foi para cama cedo naquela noite e pensou em Scheherazade. Talvez ele nunca
mais a visse de novo. Isso o deixou preocupado. É que a possibilidade era muito real.
Nenhum laço – nenhum voto, nenhum acordo implícito – os unia. A relação entre eles
era uma relação casual, criada por alguém, e poderia terminar se essa pessoa assim
quisesse. Em outras palavras, eles estavam unidos por um fio delicado. Era provável –
não, era certo – de que esse fio uma hora se rompesse e todas as histórias estranhas e
peculiares que ela teria lhe contado fossem perdidas. A única pergunta era quando.
Era também possível que, em algum momento, ele fosse totalmente privado de
liberdade, neste caso, não só Scheherazade, mas todas as mulheres desapareceriam de
sua vida. Nunca mais ele poderia penetrar seus corpos quentes e úmidos. Nunca mais
ele sentiria suas tremulações em resposta. Talvez uma perspectiva ainda mais
assustadora para Habara do que o fim do sexo, porém, era a perda daqueles
momentos de troca de intimidade. Os momentos que passava com as mulheres eram a
oportunidade de viver a realidade, por um lado, enquanto eram uma espécie de
negação da realidade, por outro. Isso Scheherazade tinha lhe dado até demais – de
fato, sua capacidade era inesgotável. Só de pensar em perder tudo aquilo, ficava
extremamente triste.

Habara fechou os olhos e parou de pensar em Scheherazade. Ao invés disso, pensou


em lampreias. Lampreias sem mandíbulas presas nas rochas, se escondendo entre as
plantas aquáticas, balançando para lá e para cá nas águas. Ele imaginou ser uma delas,
esperando uma truta aparecer. Mas nenhuma truta passava por ele, não importava o
quanto esperasse. Nenhuma gorda, nenhuma magra, nenhuma truta no geral. Em
certo momento, o sol se pôs e o mundo dele desdobrou-se em escuridão. ♦

(Versão traduzida do japonês para o inglês por Ted Goossen:


http://www.newyorker.com/magazine/2014/10/13/scheherazade-3)

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