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TÉCNICA
TÍTULO : Pátria
AUTORIA : R. A. Salvatore
EDITOR : Luís Corte Real
Esta edição © 2015 Edições Saída de Emergência
Título original Book One of the Dark Elf Trilogy © 1990 TSR, Inc.
Publicado originalmente nos EUA por TSR, Inc., 1990
TRADUÇÃO : Mário Matos
REVISÃO : Sofia Dias
DESIGN DA CAPA : Saída de Emergência
ILUSTRAÇÃO DA CAPA : Todd Lockwood
DATA DE EDIÇÃO E-BOOK : Março, 2015
ISBN : 978-989-637-753-3
All characters in this book are fictitiouS. ANY RESEMBLANCE TO ACTual persons, living or dead, is purely coincidental.
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Por Ed Greenwood
Por R. A. Salvatore
Queriam Drizzt.
Os leitores da trilogia Icewind Dale queriam Drizzt; o pessoal da TSR queria
Drizzt; e — bem, para ser honesto quanto a isso — eu também o queria. Queria
descobrir de onde tinha ele vindo, e por que razão tinha agido daquela forma
durante as três histórias de Icewind Dale1: semi-louco, a maior parte do tempo
com boa disposição, mas com um lado negro. Sei que isso soa estranho; estamos
aqui a falar de uma personagem de ficção, e de uma personagem que eu criei;
por isso, não deveria o passado dele ter uma importância mínima, ou ser talvez
completamente irrelevante? Não poderia eu fazer dele aquilo que desejasse?
Numa só palavra: não.
É isso que é interessante nas personagens de ficção: têm tendência para se
tornar reais — e não apenas reais para as pessoas que as lêem, mas
surpreendentemente tridimensionais também para o autor. Acabo sempre por
amar, odiar, admirar ou desprezar as personagens que crio nos meus livros. Para
que isso aconteça, cada uma delas tem de agir de forma consistente no âmbito
das suas experiências, quer esses acontecimentos apareçam ou não no livro.
Assim, quando a minha editora da TSR me telefonou, em finais de 1989 ou
inícios de 1990, pouco tempo antes da publicação de The Halfling’s Gem, e me
propôs que fizesse mais uma trilogia, sendo esta a pormenorizar o passado de
Drizzt Do’Urden, isso quase não me surpreendeu. Os livros da Icewind Dale
tinham sido bastante bem sucedidos. Sabia, pelas muitas cartas que tinha
recebido e pelas muitas pessoas com quem tinha falado em sessões de
autógrafos, que Drizzt, por qualquer razão, se destacava das outras personagens.
Nessa altura, recebia em média dez cartas de leitores por semana, e pelo
menos oito de entre essas dez afirmavam que Drizzt era a personagem favorita.
Perguntavam-me repetidamente como tinha ele chegado aonde estava e como se
tornara aquilo que era. O pessoal da TSR, evidentemente, também andava a
ouvir as mesmas perguntas.
Assim, pediram-me uma trilogia que antecedesse a anterior e, como tenho três
filhos para sustentar, e porque estava nessa altura a planear deixar o meu
emprego de dia ainda nesse ano (o que acabei por fazer em Junho de 1990), e
acima de tudo porque também eu queria esclarecer o mistério por detrás desta
personagem, aceitei de bom grado.
Sabia onde Drizzt fora concebido, evidentemente; no meu gabinete, no meu
emprego de dia. E sabia quando ele tinha nascido: Julho de 1987, logo a seguir a
ter sido aceite a minha proposta de escrever The Crystal Shard, e mesmo antes
de ter começado realmente a escrever o livro.
Foi um dos mais estranhos episódios da minha carreira de escritor. Na altura
em que comecei a escrever o que me tinha sido proposto, o cenário de Forgotten
Realms não era mais do que um protótipo e um único romance, o excelente
Darkwalker on Moonshae, de Doug Niles. Quando a TSR me pediu que
escrevesse um livro para os Realms, mandou-me tudo o que tinham, e que
consistia em… Darkwalker on Moonshae. Assim, acabei por acreditar que as
Ilhas Moonshae eram o cenário de Dark Realms.
Bom, as Moonshae não são um sítio assim tão grande. Qualquer narrativa
épica a ter lugar nessa região, nessa altura, teria de, pelo menos, mencionar o
enredo e personagens do excelente livro de Doug. Fiquei encantado com a ideia
de trabalhar com Douglas Niles, mas não queria roubar-lhe as personagens.
Cheguei a uma solução de compromisso que implicava usar Daryth, do livro de
Doug, para apresentar o herói do meu livro: Wulfgar, filho de Beornegar, das
tribos bárbaras de Icewind Dale.
Quando mais tarde descobri o verdadeiro tamanho e amplitude dos Realms e
me foi dito que a TSR não queria partilhar personagens (como tinham feito na
saga Dragonlance), fiquei verdadeiramente aliviado, e a coisa ficou por aí — por
algum tempo.
Depois, a proposta foi aceite e, quando Mary Kirchoff, então editora sénior do
departamento editorial da TSR, me disse que eu iria escrever o segundo livro dos
Forgotten Realms, lembrou-me que agora que tínhamos colocado o cenário do
livro a milhares de quilómetros do território de Doug, precisava de uma
personagem complementar para Wulfgar. Garanti-lhe que iria pegar nisso de
imediato e voltaria com alguma ideia na semana seguinte.
— Não, Bob — respondeu-me, usando palavras que pareço ouvir com
bastante frequência da parte dos meus editores. — Não está a perceber. Vou
agora mesmo para uma reunião, para vender esta proposta. Preciso de uma
personagem complementar.
— Agora? — respondi eu, com a ingenuidade de quem nunca estivera no
mundo da edição.
— Agora mesmo — respondeu-me, com uma certa malícia.
E foi então que aconteceu. Não sei como. Não sei porquê. Simplesmente
respondi:
— Um drow.
Houve uma pausa, seguida das palavras, num tom vagamente hesitante:
— Um elfo negro?
— Pois — respondi, ganhando mais confiança, à medida que a personagem
começava a ganhar uma forma mais definida na minha cabeça. — Um ranger
drow.
A pausa foi mais longa, desta vez. Depois, quase num sussurro, com o receio
de ter de ir contar isto aos chefes evidente no tom de voz, perguntou-me:
— E como se chama ele?
— Drizzt Do’Urden, de Daermon N’a’shezbaernon, Nona Casa de
Menzoberranzan.
— Ah… — outra pausa. — Podes soletrar-me isso?
— Nem por sombras.
— Um ranger drow?
— Pois.
— Drisst? — perguntou.
— Drizzt — corrigi eu, pela primeira de 7,3 milhões de vezes.
— Muito bem — concordou a confundida editora, provavelmente pensando
que poderia fazer-me mudar de ideias mais tarde.
Mas não conseguiu, claro. Isto é uma homenagem a Mary Kirchoff: deixava a
pessoa criativa que contratava tratar das coisas criativas e depois esperava para
ver os resultados, antes de puxar pelo machado (o que nunca chegava a
acontecer).
Assim nasceu Drizzt. Alguma vez o fiz correr num jogo? Não. Há alguém em
quem o tenha baseado? Não. Simplesmente apareceu, inesperadamente, com
muito pouca conjectura prévia. Era para ser uma personagem complementar,
afinal de contas; uma peça curiosa com um ligeiro desvio. Sabem como é: como
Robin está para Batman, ou Kato para A Vespa Verde.
Não foi assim que acabou por acontecer. No primeiro capítulo de The Crystal
Shard, Drizzt corria pela tundra e era emboscado por um iéti. Na página três eu
já sabia.
Drizzt seria a estrela de tudo aquilo.
Estava agora, pois, pronto para me sentar e escrever a trilogia, para contar a
história deste ranger drow, de como tinha acabado por ser a personagem que
conhecêramos na trilogia Icewind Dale. Queria fazer qualquer coisa diferente,
algo mais intenso e mais pessoal. Dado que adoro descrever acção, e
especialmente cenas de batalha, não queria escrever os livros de um ponto de
vista de primeira pessoa. Tive a ideia dos ensaios que Drizzt escreve para
prefaciar cada secção dos livros, e penso que terei recebido mais cartas sobre
esses ensaios do que alguma vez recebi sobre qualquer outra coisa que tenha
escrito.
À medida que a trilogia de Drizzt começava a ganhar forma, surgiram
algumas inconsistências. Isso já era de esperar. A forma como tinha adquirido a
pantera, ou mesmo a sua idade, tal como tinha sido descrito na trilogia Icewind
Dale, não parecia adequado à existência anterior dele. Decidi que a trilogia Elfo
Negro não deveria ser limitada por aquilo que tinha sido dito antes, e por isso, se
o leitor olhar com atenção, verá que alguns pormenores mudaram em edições
subsequentes de The Crystal Shard.
Suponho que isso seja apropriado, dado que esta história — que em breve
contará com onze livros, quatro contos, e que ainda está a crescer — parece ter
uma vida própria. É uma coisa em crescimento e em mutação e nem sempre
avança nas direcções que previra. Pensei que estava morta e, pasme-se, está a
respirar de novo, tão forte como antes. Vou ter de cortar aqui e ali, porque, no
fim, quero que toda a história seja coerente e crível dentro do contexto do género
de fantasia.
A verdade, pura e simples, é que escrevi esta história por apenas uma razão:
queria contá-la. Queria que as pessoas a apreciassem.
Espero que o leitor aprecie.
1 Nota de tradutor: A personagem de Drizzt do’Urden surgiu pela primeira vez na trilogia Icewind Dale
constituída pelos livros The Crystal Shard, Streams of Silver e The Halfling’s Gem (que a Saída de
Emergência publicará brevemente). A Trilogia do Elfo Negro consiste numa prequela escrita posteriormente
que revela as origens de Drizzt.
MAPA MENZOBERRANZAN
PRELÚDIO
Nunca uma estrela agracia esta terra com a luz tremeluzente de mistérios de um
poeta, nem o Sol manda para aqui os seus raios de calor e de vida. Isto é o
Subescuro, o mundo secreto por debaixo da palpitante superfície dos Reinos
Esquecidos, cujo céu é um tecto de pedra sem coração e cujas paredes mostram
o cru cinzento da morte à luz dos archotes dos loucos habitantes da superfície
que tenham a infelicidade de aqui cair. Este não é o mundo deles, não é o mundo
da luz. A maioria dos que aqui vêm sem ter sido convidados já não regressa.
Aqueles que conseguem escapar e regressar à segurança dos seus lares da
superfície, esses regressam alterados. Os seus olhos viram as trevas e o sombrio
agoiro do Subescuro.
Escuros corredores serpenteiam pelo reino do negrume, por percursos
sinuosos que ligam cavernas grandes e pequenas, com tectos altos ou baixos.
Picos de pedra tão afiados como os dentes de um dragão adormecido apontam
para baixo numa ameaça muda, ou erguem-se para bloquear o caminho dos
intrusos.
Há aqui um silêncio profundo e aziago, o sussurro de um predador contido,
prestes a saltar. Demasiadas vezes, o único som, a única coisa que relembra aos
viajantes do Subescuro que não perderam por completo o sentido da audição, é o
eco de um distante pingar de água, batendo como o coração de uma fera,
correndo por entre as pedras escorregadias até aos profundos lagos de água
gelada do Subescuro. O que haverá para lá da superfície, imóvel como ónix,
desses lagos, apenas se pode tentar adivinhar. Que segredos esperam os bravos,
que horrores aguardam os tolos, apenas a imaginação pode revelar — até que a
imobilidade seja perturbada.
Isto é o Subescuro.
Menos de uma hora mais tarde, Zaknafein e Briza estavam juntos na varanda, lá
fora, por cima da entrada superior para a Casa Do’Urden. Por baixo deles, no
chão da caverna, a segunda e a terceira brigadas do exército da família, as de
Rizzen e de Nalfein, afadigavam-se a equipar-se com correias de couro e placas
de metal — camuflagem contra uma forma distinguível de elfos para olhos drow
sensíveis ao calor. O grupo de Dinin, a força de ataque inicial que incluía uma
centena de duendes escravos, já tinha partido havia muito.
— Seremos conhecidos depois desta noite — disse Briza. — Ninguém
suspeitaria de que uma décima casa se atrevesse a ir contra outra tão poderosa
como a Casa DeVir. Quando os rumores se espalharem após o serviço sangrento
desta noite, até Baenre terá em conta Daermon N’a’shezbaernon!
Inclinou-se na varanda para ver as duas brigadas a formar fileiras e a começar
a avançar, em silêncio, por caminhos separados que as levariam através da
sinuosa cidade até ao jardim dos cogumelos e à estrutura de cinco pilares da
Casa DeVir.
Zaknafein olhou para as costas da filha mais velha da Matrona Malice, nada
desejando mais do que enfiar nelas um punhal. Como sempre, porém, o bom
senso de Zak manteve as suas bem treinadas mãos no lugar.
— Tens os artigos? — inquiriu Briza, mostrando para com Zak bastante mais
respeito do que quando a Matrona Malice estava protectoramente sentada ao seu
lado. Zak era apenas um macho, um comum a quem fora permitido usar o nome
da família como seu, porque por vezes servira a Matrona Malice em modos
maritais e em tempos fora patrono da casa. Mesmo assim, Briza receava zangá-
lo. Zak era o mestre de armas da Casa Do’Urden, um macho alto e musculado,
mais forte do que a maioria das fêmeas, e aqueles que já tinham visto a sua ira
em combate consideravam que estava entre os melhores guerreiros de qualquer
dos sexos em toda a Menzoberranzan. Para além de Briza e da sua mãe, ambas
altas sacerdotisas da Rainha Aranha, Zaknafein, com a sua destreza sem rival no
uso da espada, era um trunfo da Casa Do’Urden.
Zak pôs para trás o capuz negro e abriu a pequena bolsa do cinto, mostrando
várias pequenas esferas cerâmicas.
Briza sorriu com maldade e esfregou as mãos esguias.
— A Matrona Ginafae não ficará nada contente — murmurou.
Zak devolveu-lhe o sorriso e virou-se, para ver os soldados que partiam. Nada
dava ao mestre de armas maior prazer do que matar elfos drow, e especialmente
sacerdotisas de Lolth.
— Prepara-te — disse Briza, daí a uns minutos.
Zak sacudiu os cabelos espessos da cara e ficou rígido, com os olhos
firmemente fechados. Briza moveu uma mão lentamente, iniciando o cântico que
activaria o dispositivo. Tocou num ombro de Zak, depois no outro, e depois
manteve a varinha imóvel sobre a cabeça dele.
Zak sentiu os borrifos gélidos caindo sobre ele, penetrando-lhe as roupas e a
armadura, e até mesmo a pele, até que ele e tudo o que tinha consigo arrefeceu a
uma temperatura e tom uniformes. Zak odiava o arrefecimento mágico — dava
uma sensação que imaginava que seria como a de estar morto —, mas sabia que,
sob a influência daquele borrifo da varinha, ficava indetectável aos olhos
sensíveis ao calor das criaturas do Subescuro, tão cinzento como a pedra comum,
e impossível de ser notado.
Zak abriu os olhos e estremeceu, mexendo os dedos para se assegurar de que
ainda podiam desempenhar a sua arte ao máximo. Olhou de novo para Briza, que
já estava a meio do segundo encantamento, que era a convocação. Este
demoraria um pouco, e por isso Zak encostou-se à parede e voltou a reflectir
sobre a tarefa agradável, embora perigosa, que tinha por diante. Que amável da
parte da Matrona Malice deixar todas as sacerdotisas da Casa DeVir para ele!
— Está feito — anunciou Briza ao fim de alguns minutos. Guiou o olhar de
Zak para a escuridão abaixo do tecto invisível da imensa caverna.
Zak avistou logo o trabalho de Briza: uma corrente de ar que se aproximava,
tingida de amarelo e mais quente do que o ar normal da caverna. Uma corrente
de ar vivo.
A criatura, uma conjuração de um plano elementar, rodopiou até pairar logo
abaixo da borda da varanda, esperando obedientemente as ordens da
convocadora.
Zak não hesitou. Saltou para o meio do torvelinho, deixando que este o
mantivesse suspenso acima do chão.
Briza deu-lhe uma saudação final e mandou-o embora.
— Boa luta — disse para Zak, embora este já estivesse invisível no ar por
cima dela.
Zak riu-se perante a ironia das palavras de Briza, enquanto a cidade de
Menzoberranzan rodopiava por baixo dele. Briza queria certamente as
sacerdotisas da Casa DeVir tão mortas quanto ele, mas por razões muito
diferentes. Pondo de parte todas as complicações, Zak mataria também
alegremente todas as sacerdotisas da Casa Do’Urden.
O mestre de armas pegou numa das suas espadas de adamantite, uma arma
drow magicamente criada e incrivelmente afiada.
— Sim, boa luta… — murmurou.
Se ao menos Briza soubesse como seria boa…
Dinin notou com satisfação que todos os bugbears vagabundos, ou quaisquer
outros elementos das várias raças que compunham Menzoberranzan, incluindo
drow, agora se apressavam a fugir do seu caminho. Desta vez, o Segundo-Rapaz
da Casa Do’Urden não estava só. Quase sessenta soldados da Casa marchavam
em fileiras cerradas atrás dele. Depois deles, igualmente ordenados, embora com
muito menos entusiasmo, vinha uma centena de escravos ou raças menores
armados — duendes, orcs e bugbears.
Não podia haver dúvidas, para quem os via: uma casa drow avançava para a
guerra. Isto não era um acontecimento de todos os dias em Menzoberranzan, mas
também não era nada de inesperado. Pelo menos uma vez em cada década, uma
Casa decidia que a sua posição na hierarquia da cidade podia ser melhorada
através da eliminação de outra casa. Era um empreendimento arriscado, porque
todos os nobres da casa «vítima» tinham de ser eliminados e rápida e
discretamente. Bastava que um deles sobrevivesse para fazer uma acusação
contra o perpetrador, e a casa atacante seria erradicada pelo sistema de «justiça»
impiedoso de Menzoberranzan.
Se o ataque fosse executado com perfeição, porém, não haveria repercussões.
Toda a cidade, incluindo o Conselho Governante das oito mães principais,
aplaudiria secretamente os atacantes pela sua coragem e inteligência, e nem mais
uma palavra seria dita sobre o incidente.
Dinin tomou um atalho, não querendo seguir o caminho mais curto entre a
Casa Do’Urden e a Casa DeVir. Meia hora mais tarde, pela segunda vez nessa
noite, esgueirou-se pelo extremo sul do jardim dos cogumelos, até ao grupo de
estalagmites que sustentava a Casa DeVir. Os seus soldados seguiam em fila
atrás dele, ansiosos, preparando as armas e avaliando bem a estrutura que tinham
à frente.
Os escravos eram mais lentos nos seus movimentos. Muitos deles olhavam em
redor, em busca de uma via de fuga, pois sabiam, no fundo, que estavam
condenados nesta batalha. No entanto, receavam mais a ira dos elfos negros do
que a própria morte, e não tentariam fugir. Como todas as saídas de
Menzoberranzan estavam protegidas por perversa magia drow, para onde
haveriam de ir? Todos eles tinham testemunhado os castigos brutais que os elfos
drow impunham aos escravos recapturados. A uma ordem de Dinin, saltaram
para as suas posições em volta da cerca de cogumelos.
Dinin meteu a mão na grande bolsa e retirou de lá uma folha de metal
aquecida. Fez o objecto brilhar por três vezes atrás de si, faiscante no espectro
infravermelho, para assinalar a aproximação das brigadas de Nalfein e de
Rizzen. Depois, com o habitual exibicionismo, fê-lo girar no ar rapidamente,
apanhou-o e voltou a colocá-lo no segredo da bolsa que escondia o calor.
Respondendo ao sinal, a brigada drow de Dinin posicionou os dardos encantados
nos seus pequenos arcos e apontou aos alvos designados.
Um em cada cinco cogumelos era um uivante, e cada dardo continha um
encantamento mágico capaz de calar o rugido de um dragão.
— Dois,… Três… — contou Dinin, com a mão a assinalar o ritmo, uma vez
que nenhuma palavra poderia ser ouvida dentro da esfera de silêncio mágico em
que as suas tropas estavam encerradas. Imaginou o «clique» da corda esticada do
pequeno arco ao ser libertada, lançando o dardo para o cogumelo uivante mais
próximo. E assim aconteceu a toda a volta da Casa DeVir, com a primeira linha
de alarme sistematicamente silenciada por três dúzias de dardos encantados.
— Está perto do final — disse Dinin para o irmão, quando se encontraram num
átrio inferior de um dos pilares menos importantes da Casa DeVir.
— Rizzen está a vencer tudo até ao topo, e crê-se que o negro trabalho de
Zaknafein já estará acabado.
— Duas brigadas de soldados da Casa DeVir já juraram fidelidade ao nosso
lado — respondeu Nalfein.
— Já viram o final — riu-se Dinin. — Uma casa serve-lhes tão bem como
outra qualquer, e aos olhos dos comuns nenhuma casa vale o sacrifício da morte.
A nossa tarefa estará concluída em breve.
— Demasiado depressa para que alguém pudesse dar por isso. — disse
Nalfein. — Agora, Do’Urden, Daermon N’a’shezbaernon, é a Nona Casa de
Menzoberranzan e a Casa DeVir que se dane!
— Atenção! — gritou subitamente Dinin, com os olhos muito abertos num
horror simulado, enquanto olhava por cima do ombro do irmão.
Nalfein reagiu imediatamente, girando para enfrentar o perigo atrás de si, mas
virando as costas para o verdadeiro perigo. Porque mesmo no momento em que
Nalfein percebeu o logro, a espada de Dinin enterrou-se-lhe na espinha. Dinin
encostou a cabeça ao ombro do irmão e pressionou a sua cara contra a dele,
observando o fulgor vermelho dos seus olhos a abandoná-lo.
— Demasiado depressa para que alguém desse por isso — gracejou Dinin,
fazendo eco das palavras do irmão.
Deixou a massa sem vida cair aos seus pés.
— Agora, Dinin é o Rapaz Mais Velho da Casa Do’Urden, e Nalfein que se
dane.
Zaknafein caminhou pelo pilar central do complexo DeVir, com o capuz na mão
e o chicote e a espada de novo solidamente colocados no cinturão. De vez em
quando, soava um alarme de batalha, mas terminava rapidamente. A Casa
Do’Urden tinha avançado rapidamente para a vitória, a décima Casa tinha
tomado a quarta Casa, e agora tudo o que restava por fazer era eliminar vestígios
e testemunhas. Um grupo de sacerdotisas menores passou por ele, tratando dos
feridos Do’Urden e animando os cadáveres daqueles que estavam para além das
suas capacidades, de forma a que os corpos pudessem afastar-se da cena do
crime. No complexo Do’Urden, os que não estivessem para além de qualquer
recuperação seriam ressuscitados e postos de novo ao serviço.
Zak virou costas com um arrepio visível enquanto as sacerdotisas avançavam
de sala em sala, com o exército de zombies Do’Urden marchando, cada vez mais
numeroso, atrás delas.
Por muito desagradável que Zaknafein considerasse este grupo, aquele que se
seguia era ainda pior. Duas sacerdotisas Do’Urden lideravam um contingente de
soldados pela estrutura, usando magias de detecção para descobrir os
esconderijos dos DeVir sobreviventes. Uma delas parou no átrio a apenas alguns
passos de Zak, e os seus olhos reviraram-se enquanto sentia as emanações do
feitiço. Manteve os dedos esticados à sua frente, desenhando uma linha,
lentamente, como uma macabra varinha, em direcção a carne drow.
— Ali dentro! — declarou, apontando para um painel na base da parede. Os
soldados saltaram para o local como uma alcateia de lobos raivosos e rasgaram a
porta secreta. Dentro de um pequeno compartimento estavam aninhadas as
crianças da Casa DeVir. Estas eram nobres, e não comuns, e não podiam ser
levadas dali vivas.
Zak apressou os passos para se afastar daquela cena, mas ouviu ainda
vividamente os gritos das crianças indefesas enquanto os soldados Do’Urden
esfaimados terminavam o seu trabalho. Agora, estava quase a correr. Saiu do
átrio virando uma esquina apressadamente e quase deitou abaixo Dinin e Rizzen.
— Nalfein está morto — declarou impassivelmente Rizzen.
Zak lançou imediatamente um olhar de suspeita para o filho Do’Urden mais
novo.
— Matei o soldado DeVir que cometeu esse acto — assegurou Dinin, sem
sequer esconder o sorriso manhoso.
Zak já andava por ali havia quase quatro séculos, e claro que não ignorava os
modos desta raça ambiciosa. Os príncipes irmãos tinham vindo, defensivamente,
no final das fileiras, com uma multidão de soldados Do’Urden entre eles e o
inimigo. Quando, e se, encontrassem um drow que não fosse da sua própria
Casa, a maioria dos soldados DeVir sobreviventes já teriam mudado de lado,
tornando-se fiéis à Casa Do’Urden. Zak duvidava de que qualquer dos irmãos
Do’Urden tivesse entrado em acção contra um DeVir.
— A descrição da carnificina na sala de oração espalhou-se pelas fileiras —
disse Rizzen ao mestre de armas. — Desempenhaste as tuas funções com a tua
habitual perícia, tal como nos habituámos a esperar.
Zak lançou um olhar de desdém ao patrono e seguiu caminho, pelas portas
principais da estrutura, lá para fora, para lá da escuridão e do silêncio mágicos,
para o escuro amanhecer de Menzoberranzan. Rizzen era o actual parceiro da
Matrona Malice, mais um numa longa sucessão de parceiros, e nada mais do que
isso. Quando Malice se fartasse dele, relegá-lo-ia de novo para as fileiras dos
soldados comuns, retirando-lhe o nome Do’Urden, ou eliminá-lo-ia. Zak não lhe
devia, pois, qualquer respeito.
Zak afastou-se por entre os cogumelos até ao ponto de observação mais
elevado que conseguiu encontrar, e depois deitou-se no chão. Observou,
espantado, quando, uns momentos mais tarde, o cortejo do exército Do’Urden, o
seu patrono e o filho, os soldados e as sacerdotisas, bem como a lenta fila de
duas dúzias de zombies, retomavam o caminho para casa. Tinham perdido, e
deixado para trás, quase toda a sua carne para canhão escrava, mas a fila que
agora saía da Casa DeVir era mais longa do que a fila que viera no sentido
oposto nessa noite. Os escravos tinham sido substituídos em dobro pelos
escravos DeVir capturados e por mais de cinquenta tropas comuns DeVir, que,
demonstrando a típica lealdade drow, se tinham juntado voluntariamente aos
atacantes. Esses drow traiçoeiros seriam interrogados — magicamente
interrogados — pelas sacerdotisas Do’Urden, para se assegurarem da sua
sinceridade.
Todos passariam o teste sem falhas, e Zak sabia disso. Os elfos drow eram
criaturas de sobrevivência, e não de princípios. Os soldados receberiam novas
identidades e seriam mantidos dentro da privacidade do complexo Do’Urden
durante alguns meses, até a queda da Casa DeVir se tornar uma história velha e
esquecida.
Zak não os seguiu imediatamente. Em vez disso, cortou caminho por entre as
fileiras de cogumelos e entrou um recanto discreto, onde se aninhou numa faixa
de musgo e ergueu os olhos para a eterna escuridão do tecto da caverna — e para
a eterna escuridão da sua própria existência.
Teria sido mais prudente manter-se em silêncio, nessa altura; era um invasor
na secção mais poderosa da vasta cidade. Pensou nas potenciais testemunhas das
suas palavras, nos mesmos elfos negros que tinham estado a observar a queda da
Casa DeVir, e que tinham apreciado profundamente esse espectáculo. Perante
este comportamento e uma carnificina como a que esta noite tinha visto, Zak não
pôde conter as emoções. O lamento saiu-lhe como uma prece a um deus
qualquer que estava para além da sua experiência.
— Que sítio é este que é o meu mundo? Que negro novelo tem o meu coração
aprisionado? — sussurrou Zak, no pedido de perdão que sempre fora parte dele.
— À luz, vejo a minha pele negra; na escuridão, brilha ofuscante com o calor
desta raiva que não consigo evitar. Quem me dera ter a coragem para partir, deste
sítio ou desta vida, ou para me opor abertamente à maldade destes que são a
minha família. Procurar uma existência que não vá contra aquilo em que
acredito, aquilo que considero com fidelidade ser a verdade. Zaknafein
Do’Urden, esse é o meu nome, mas não sou um drow, nem por escolha, nem por
actos. Que descubram este ser que sou, pois. Que descarreguem a sua ira sobre
estes velhos ombros já tão carregados pelo desespero de Menzoberranzan.
Ignorando as consequências, o mestre de armas pôs-se de pé e gritou:
— Menzoberranzan, que inferno és tu?
Um momento mais tarde, e quando nenhuma resposta ecoou da cidade
silenciosa, Zak sacudiu o que restava do frio da magia de Briza dos músculos
cansados. Encontrou algum conforto quando sentiu o chicote no cinturão — esse
instrumento que tinha arrancado a língua de uma matrona.
Masoj, o jovem aprendiz — coisa que, neste ponto da sua carreira de utilização
de magia, significava que não era mais do que um criado de limpezas —
inclinou-se sobre a vassoura e observou Alton DeVir a entrar pela porta que dava
para o quarto mais alto da espiral. Masoj quase sentiu simpatia pelo estudante,
que tinha de entrar e enfrentar o Sem Rosto.
Porém, Masoj sentiu também excitação, sabendo que o fogo-de-artifício que
se seguiria entre Alton e o mestre sem rosto valeria bem a pena ser visto.
Dedicou-se de novo a varrer, usando a vassoura como desculpa para avançar
mais pela sala, até junto da porta.
— Pediste a minha presença, Mestre Sem Rosto — disse de novo Alton DeVir,
mantendo uma mão diante da cara e semicerrando os olhos, devido ao brilho
ofuscante das três velas acesas da sala. Alton avançou desconfortavelmente, pé
ante pé, pela porta da sala.
Inclinado, a meio do caminho, o Sem Rosto estava de costas para o jovem
DeVir. Era melhor despachar este assunto rapidamente, lembrou o mestre a si
mesmo. Sabia, porém, que o encantamento que estava agora a preparar mataria
Alton antes que este pudesse saber o destino da sua família, antes que o Sem
Rosto pudesse cumprir completamente as instruções finais de Dinin Do’Urden.
Havia demasiado em jogo. Era melhor despachar isto rapidamente.
— O senhor… — começou Alton, de novo; mas, prudentemente, calou as
suas palavras e tentou perceber a situação com que se deparava. Era muito
invulgar ser chamado aos aposentos privados de um mestre da Academia, antes
mesmo de as lições do dia terem começado.
Quando recebera a convocatória, Alton receara que tivesse, por qualquer
motivo, faltado a alguma das aulas. Isso podia ser um erro fatal em Sorcere.
Alton estava perto de concluir os estudos, mas o desprezo de um dos mestres era
o suficiente para pôr um fim a isso.
Tinha-se saído bastante bem nas aulas com o Sem Rosto, e acreditara até que
o seu misterioso mestre o tinha por favorito. Poderia tratar-se simplesmente de
uma cortesia, de uma felicitação pelo seu terminar dos estudos? Não era
provável, concluiu Alton, contra as suas esperanças. Os mestres da academia
drow não felicitavam os estudantes frequentemente.
Alton ouviu então o cântico em surdina e reparou que o mestre estava a meio
de um encantamento. Agora, algo lhe gritava que havia alguma coisa muito
errada; havia algo nesta situação que não se enquadrava de forma alguma nos
modos e usos estritos da Academia. Alton firmou os pés no chão e contraiu os
músculos, seguindo o conselho do lema que era martelado na cabeça de todos os
estudantes da Academia, o preceito que mantinha os elfos drow vivos numa
sociedade tão devotada ao caos: manter-se alerta.
A terceira sala, que era a biblioteca privada do Sem Rosto, era a mais iluminada
das quatro dentro da espiral, com dúzias de velas acesas em cada parede.
— Raios partam esta luz! — praguejou Alton, avançando aos tropeções pelo
meio daquela luz estonteante até à porta que dava para o átrio dos aposentos do
Mestre Sem Rosto e que era a sala mais baixa. Se conseguisse descer da espiral e
sair da torre para o pátio da Academia, talvez conseguisse ganhar vantagem
sobre o mestre.
O mundo de Alton continuava a ser a escuridão de Menzoberranzan, mas o
Sem Rosto, que passara muitas décadas à luz das velas de Sorcere, acostumara
os olhos a verem graus de luz, e não de calor.
O átrio estava apinhado de cadeiras e arcas, mas apenas uma vela ali ardia, e
Alton conseguia agora ver suficientemente bem para evitar obstáculos ou saltar
por cima deles. Correu para a porta e girou a pesada aldraba. Esta girou com
bastante facilidade, mas, quando Alton tentou empurrar a porta com o ombro,
esta não se mexeu e um relâmpago de energia azul e faiscante atirou-o ao chão.
— Amaldiçoado lugar! — rugiu Alton. O portal estava magicamente selado.
Conhecia um feitiço para abrir portas seladas magicamente, como esta, mas
duvidou de que a sua magia fosse suficientemente forte para contrariar os
feitiços de um mestre. Com a pressa e o medo, as palavras do encantamento
correram pela mente de Alton num murmúrio indecifrável.
— Não fujas, DeVir — veio a voz do Sem Rosto desde a sala anterior. —
Apenas prolongarás o teu tormento!
— Que a maldição caia sobre ti também! — respondeu Alton, ofegante. Alton
esqueceu o estúpido feitiço; nunca lhe viria à mente a tempo. Percorreu a sala
com os olhos, à procura de outra opção.
Os olhos de Alton encontraram algo invulgar a meio de uma das paredes,
numa abertura entre dois grandes armários. Recuou alguns passos, para ver de
um ângulo melhor, mas viu-se apanhado dentro do raio de iluminação de uma
das velas, dentro do campo enganador onde os seus olhos captavam tanto a luz
como o calor.
Apenas conseguia discernir que esta secção da parede mostrava um brilho
uniforme no espectro de calor e que a tonalidade era subtilmente diferente da
pedra das paredes. Outra passagem? Apenas podia esperar que a sua suspeita
fosse verdadeira. Correu de novo para o centro da sala, ficou de frente para o
objecto e forçou os olhos a afastarem o espectro infravermelho, concentrando-se
completamente na luz visível.
Enquanto os seus olhos se adaptavam, aquilo que viu espantou e confundiu o
jovem DeVir. Não viu nenhuma porta, nem nenhuma abertura que desse para
outra sala. Aquilo para que estava a olhar era um reflexo de si próprio, e de uma
parte da sala onde se encontrava. Alton, nos seus cinquenta e cinco anos de
idade, nunca vira tal espectáculo, mas já ouvira os mestres de Sorcere falar
destes aparelhos. Era um espelho.
Um movimento na porta superior da sala lembrou a Alton que o Sem Rosto
estava quase a apanhá-lo. Não podia hesitar enquanto ponderava nas suas
opções. Baixou a cabeça e atirou-se contra o espelho.
Talvez fosse um portal de teletransporte para outra secção da cidade, ou talvez
uma simples porta para outra sala. Ou talvez, atreveu-se Alton a imaginar nesses
poucos segundos de desespero, aquilo fosse um portal interplanar que o levasse
para outro plano estranho e desconhecido de existência.
Sentiu o formigueiro da excitação e da aventura a empurrá-lo enquanto se
aproximava daquela coisa maravilhosa — depois, apenas sentiu o impacto, o
vidro a partir-se e a parede de pedra inamovível atrás dele.
Afinal, talvez fosse apenas um espelho.
A suposição de Malice quanto a uma escolta provou estar correcta. Assim que o
disco deslizou do caminho de entrada da Casa Do’Urden, vinte soldados da Casa
Baenre, todos femininos, saíram dos seus esconderijos ao longo da alameda.
Formaram um diamante defensivo em volta da Matrona Mãe convidada. Os
guardas em cada extremo da formação usavam vestes negras ornamentadas nas
costas com um grande desenho, violeta e vermelho, de uma aranha — eram as
vestes de altas sacerdotisas.
— As próprias filhas de Baenre — pensou Malice divertida, pois só as filhas
de uma nobre podiam chegar a tal posto. Que cuidadosa que a Primeira Matrona
Mãe tinha sido para se assegurar de que Malice estaria em segurança durante a
sua viagem!
Escravos e drow comuns tropeçavam uns nos outros num esforço frenético
para se afastarem do caminho do grupo que se aproximava, enquanto abria
caminho pelas ruas sinuosas até ao jardim dos cogumelos. Os soldados da Casa
Baenre exibiam as suas insígnias abertamente, e ninguém queria concitar a ira da
Matrona Baenre, fosse porque fosse.
Malice arregalava os olhos, em descrença, e esperou que um dia pudesse ter
tal poder, antes de morrer.
Uns minutos mais tarde, arregalou de novo os olhos quando o grupo se
aproximou da Casa governante. A Casa Baenre tinha vinte altas e majestosas
estalagmites, todas interligadas por pontes e parapeitos graciosamente
arqueados. Fogos mágicos e feéricos brilhavam de milhares de esculturas, e uma
centena de guardas em uniformes sumptuosos circulava por toda a parte em
perfeita formação.
Ainda mais cativantes eram as estruturas inversas, as trinta estalactites mais
pequenas da Casa Baenre. Desciam do tecto da caverna, com as raízes perdidas
na escuridão. Algumas delas estavam ligadas, nas pontas, às estalagmites,
enquanto outras pairavam apenas como lanças apontadas. As varandas,
encurvando-se como um parafuso, tinham sido construídas ao longo de todas
elas, brilhando com uma superabundância de desenhos mágicos iluminados.
Mágica era também a vedação que ligava as bases das estalagmites exteriores,
fechando todo o complexo. Era uma teia gigante, prateada, em contraste com o
resto do complexo exterior. Havia quem dissesse que tinha sido um presente da
própria Lolth, com fios fortes como aço, tão grossos como um braço de um elfo
drow. Qualquer coisa que tocasse na vedação de Baenre, mesmo que fosse a
mais afiada das armas drow, simplesmente ficaria ali firmemente presa até que a
Matrona Mãe acedesse a deixá-la partir.
Malice e a sua escolta avançaram directamente para uma secção circular e
simétrica da vedação, entre as torres mais altas e mais exteriores. Enquanto se
aproximavam, o portão fez um movimento em espiral e rolou para dentro,
deixando uma abertura suficientemente grande para a entrada da caravana.
Malice manteve-se sentada em silêncio, tentando não parecer muito
impressionada.
Centenas de soldados curiosos observaram o cortejo enquanto este avançava
até à estrutura central da Casa Baenre, com a sua grande cúpula violeta. Os
soldados comuns abandonaram o cortejo, deixando apenas as quatro sacerdotisas
para escoltarem a Matrona até ao interior.
A visão para lá das grandes portas da capela não desapontou Malice. Um altar
central dominava o local, com uma fila de bancos que se alongava em espiral por
várias voltas ao longo do perímetro da grande sala. Podiam sentar-se ali dois mil
drow, e ainda sobrava espaço. Estátuas e ídolos demasiado numerosos para se
poderem contar estavam acima do local, rebrilhando numa luz negra e serena.
No ar, bem acima do altar, pairava uma gigantesca imagem brilhante, uma ilusão
óptica em vermelho e preto que, lenta e continuamente, mudava entre as formas
de uma aranha e de uma bela fêmea drow.
— Um trabalho de Gomph, meu principal feiticeiro — explicou a Matrona
Baenre do seu trono acima do altar, adivinhando que Malice, tal como todos os
que alguma vez tinham visitado a capela, estaria espantada com aquela visão. —
Até os feiticeiros têm o seu lugar.
— Desde que saibam que lugar é esse — respondeu Malice, deslizando para
fora do disco.
— Concordo — disse a Matrona Baenre. — Os machos conseguem ser tão
presunçosos, por vezes.… Especialmente os feiticeiros! Mesmo assim, gostava
de ter Gomph ao meu lado mais frequentemente, hoje em dia. Foi nomeado
Arquimago de Menzoberranzan, sabes? E parece estar sempre a trabalhar em
Narbondel, ou noutras tarefas dessas.
Malice limitou-se a acenar com a cabeça e manteve-se calada. Claro que sabia
que o filho de Baenre era o feiticeiro principal da cidade. Toda a gente sabia
disso. Toda a gente sabia, também, que a filha de Baenre, Triel, era a Matrona
Mestra da Academia, uma posição de honra em Menzoberranzan que só ficava
atrás do título de Matrona Mãe de qualquer família. Malice tinha poucas dúvidas
de que a Matrona Baenre acabaria por arranjar maneira de mencionar isso a meio
da conversa, e que não demoraria muito a fazê-lo.
Antes que Malice desse um passo em direcção aos degraus do altar, o mais
recente elemento da sua escolta saiu das trevas. Malice estremeceu visivelmente
quando viu a coisa, uma criatura conhecida por ilithid, um leitor de mentes.
Estava de pé, tinha quase um metro de altura, e uns bons trinta centímetros mais
do que Malice, sendo que a maior parte dessa diferença se devia à enorme
cabeça da criatura. Brilhando de lodo verde, a cabeça parecia a de um polvo,
com olhos brancos como leite e sem pupilas.
Malice recompôs-se rapidamente. Os leitores de mentes não eram
desconhecidos em Menzoberranzan, e havia rumores de que um deles era amigo
da Matrona Baenre. Estas criaturas, porém, mais inteligentes e mais malignas do
que até mesmo os drow, inspiravam quase sempre arrepios de repulsa.
— Podes chamar-lhe Methil — explicou a Matrona Baenre. — O verdadeiro
nome dele escapa até à minha capacidade de pronunciação. É um amigo.
Antes que a Matrona Malice pudesse responder, Baenre acrescentou:
— Sim, é claro que Methil me dá uma vantagem nas nossas discussões, e não
estás acostumada a ilithids.
Depois, enquanto a boca de Malice se abria em espanto, a Matrona Baenre
mandou embora o ilithid.
— Leste os meus pensamentos — protestou Malice.
Poucos se conseguiriam insinuar por entre as barreiras mentais de uma alta
sacerdotisa suficientemente bem para lhe lerem os pensamentos, e essa prática
constituía um crime da maior gravidade na sociedade drow.
— Não! — explicou a Matrona Baenre, imediatamente na defensiva. — Com
o teu perdão, Matrona Malice, Methil lê pensamentos, até mesmo os
pensamentos de uma alta sacerdotisa como tu, tão facilmente como eu ou tu
ouvimos palavras. Comunica telepaticamente. Dou-te a minha palavra de que
nem sequer me tinha apercebido de que não tinhas expressado os teus
pensamentos por palavras.
Malice esperou enquanto via a criatura sair da grande sala, e depois subiu os
degraus para o altar. Apesar dos seus esforços contra essa acção, não conseguia
evitar olhar de vez em quando para a imagem em transformação entre aranha e
drow.
— Como está a Casa Do’Urden? — perguntou a Matrona Baenre, simulando
delicadeza.
— Bastante bem — respondeu Malice, mais interessada nesse momento em
estudar a sua interlocutora do que em conversar. Estavam sozinhas no topo do
altar, muito embora uma dúzia de sacerdotisas andassem decerto por ali nas
sombras da grande sala, mantendo um olhar vigilante sobre a situação.
Malice já consumira tudo o que podia para esconder o seu desprezo pela
Matrona Baenre. Malice era velha, tinha quase quinhentos anos, mas a Matrona
Baenre era uma anciã. Os seus olhos tinham visto a ascensão e a queda de um
milénio, segundo alguns relatos, muito embora os drow raramente vivessem para
além dos setecentos anos, e muito menos para além dos oitocentos. Embora os
drow normalmente não demonstrassem a idade — e Malice era ainda tão bela e
vibrante agora como fora no seu centésimo aniversário — a Matrona Baenre
estava pálida e enrugada. As rugas em volta da boca assemelhavam-se a uma teia
de aranha, e mal conseguia manter as pálpebras erguidas. A Matrona Baenre já
devia estar morta, notou Malice, mas continuava a viver.
A Matrona Baenre, ainda que parecendo estar tão para além do seu tempo de
vida, estava grávida, e o parto seria daí a uma ou duas semanas.
Também nesse aspecto, a Matrona Baenre desafiava a norma dos elfos negros.
Gerara filhos vinte vezes, o dobro do que era normal para todas as outras em
Menzoberranzan, e desses, quinze tinham sido fêmeas, e todas elas altas
sacerdotisas! Dez dos filhos de Baenre eram mais velhos do que Malice.
— Quantos soldados tens agora às tuas ordens? — perguntou a Matrona
Baenre, aproximando-se mais, para mostrar interesse.
— Trezentos — respondeu Malice.
— Ah — riu-se a velha drow, levando um dedo aos lábios. — Tinha ouvido
dizer que eram trezentos e cinquenta.
Malice fez uma careta, apesar de tentar escondê-la. Baenre estava a provocá-
la, referindo-se aos soldados que a Casa Do’Urden tinha adicionado depois do
seu raide à Casa DeVir.
— Trezentos — repetiu Malice.
— Com certeza — replicou Baenre, recostando-se de novo.
— E a Casa Baenre tem mil? — perguntou Malice, sem outra razão que não
fosse a de se manter em pé de igualdade na conversa.
— Esse é o nosso número desde há muitos anos.
Malice interrogou-se de novo sobre por que razão estaria aquela velha coisa
decrépita ainda viva. Decerto mais do que uma das filhas de Baenre aspirava ao
lugar da mãe. Porque não teriam elas conspirado para acabar com a Matrona
Baenre? E porque não tinha nenhuma delas, e algumas já nas fases finais da
vida, saído para formar a sua própria Casa, tal como era a norma para as filhas
nobres quando ultrapassavam o quinto século? Enquanto vivessem sob o ceptro
da Matrona Baenre, os seus filhos nem sequer seriam considerados nobres, antes
sendo relegados para as fileiras dos comuns.
— Já ouviste o destino que teve a Casa DeVir? — perguntou a Matrona
Baenre directamente, começando a ficar tão cansada da conversa de
circunstância como a sua interlocutora.
— Que Casa? — perguntou Malice interessada. Nesse momento, já não havia
Casa DeVir em Menzoberranzan. Para os drow, essa casa já não existia; nunca
tinha existido.
A Matrona Baenre deu uma gargalhada.
— Claro — respondeu. — És agora a Matrona Mãe da Nona Casa. Uma
grande honra.
Malice assentiu:
— Sim, mas não tão grande como a honra de ser Matrona Mãe da Oitava
Casa.
— Sim — concordou Baenre. — Mas a Nona está apenas um degrau abaixo
de um lugar no Conselho Governante.
— Isso seria, de facto, uma honra — respondeu Malice. Começava a
compreender que Baenre não estava apenas a provocá-la, mas sim, também, a
felicitá-la, e a incentivá-la a proezas ainda maiores. Malice rejubilou com esse
pensamento. Baenre estava nas melhores graças da Rainha Aranha. Se ela estava
satisfeita com a ascensão da Casa Do’Urden, então Lolth também estava.
— Não é uma honra tão grande como poderias pensar — disse Baenre. —
Somos apenas um grupo de velhas fêmeas intrometidas, que se encontravam de
vez em quando para descobrir maneiras de deitar a mão a coisas que não nos
pertencem.
— A cidade reconhece o vosso governo.
— E terá alguma escolha? — riu-se Baenre. — Seja como for, os assuntos dos
drow ficam melhor nas mãos das matronas mães das casas individuais. Lolth não
admitiria um Conselho que presidisse e que exercesse algo que se assemelhasse,
nem que fosse de longe, a um domínio total. Não crês que a Casa Baenre poderia
ter já conquistado toda a Menzoberranzan, há muito tempo, se esse fosse o
desejo da Rainha Aranha? — Malice endireitou-se orgulhosamente na cadeira,
boquiaberta perante palavras tão arrogantes. — Não agora, claro — explicou a
Matrona Baenre. — A cidade já é demasiado grande para tal acção, nos tempos
que correm. Mas há muito tempo, antes mesmo de tu teres nascido, a Casa
Baenre não teria tido grandes dificuldades em executar tal conquista. Mas essa
não é nossa atitude. Lolth encoraja a diversidade. Agrada-lhe que as Casas se
mantenham, equilibrando-se umas às outras, prontas para lutarem lado a lado,
em momentos de necessidade comum — fez uma pausa e deixou que um sorriso
assomasse aos lábios gretados. — E prontas a abater-se sobre alguma que caia
em desgraça.
Outra referência directa à Casa DeVir, notou Malice, desta vez directamente
ligada ao agrado da Rainha Aranha. Malice descontraiu-se da sua postura
zangada e considerou o resto da conversa com a Matrona Baenre — quase duas
horas — bastante agradável.
Mesmo assim, quando regressou ao disco e flutuou para fora do complexo,
para lá da maior e mais forte Casa de Menzoberranzan, Malice não sorria.
Perante uma tão aberta exibição de poder, não podia esquecer que a intenção da
Matrona Baenre ao convocá-la tivera dois aspectos: felicitá-la privada e
cripticamente pelo golpe perfeito; e avisá-la claramente de que não se tornasse
demasiado ambiciosa.
Durante cinco longos anos, Vierna devotou quase todos os seus momentos de
vigília ao cuidado do bebé Drizzt. Na sociedade drow, este não era tanto um
tempo de educação, mas mais um tempo de doutrinação. A criança tinha de
aprender as destrezas básicas motoras e de linguagem, como acontecia com as
crianças de qualquer raça inteligente; mas um elfo drow tinha também de ser
instruído sobre os preceitos que mantinham unida aquela sociedade caótica.
No caso de uma criança macho, como Drizzt, Vierna passava horas
intermináveis a lembrá-lo de que era inferior às fêmeas drow. Dado que quase
toda esta parte da vida de Drizzt era passada na capela da família, não se
encontrava com nenhuns outros machos, a não ser durante os momentos de culto
comuns. Mesmo quando toda a gente da Casa se reunia para as cerimónias
religiosas, Drizzt permanecia em silêncio ao lado de Vierna, com o olhar
obedientemente dirigido para o chão.
Quando Drizzt se tornou suficientemente crescido para seguir ordens, o fardo
de Vierna tornou-se menos pesado. Mesmo assim, passava muitas horas a
ensinar o irmão mais novo — estavam agora a trabalhar nos intricados
movimentos faciais, de mãos e do corpo do código silencioso. Muitas vezes,
porém, Vierna apenas o mandava tratar da interminável tarefa de manter limpa a
capela abobadada. A sala era apenas um quinto do tamanho da grande sala de
Baenre, mas podia conter todos os elfos negros da Casa Do’Urden e ainda
sobravam cem lugares.
Ser tutora já não era agora tão mau, pensava Vierna; mas mesmo assim,
desejava poder dedicar mais do seu tempo aos estudos. Se a Matrona Malice
tivesse nomeado Maya para a tarefa de cuidar da criança, Vierna já poderia ter
sido ordenada como alta sacerdotisa. Mas ainda tinha mais cinco anos de deveres
para com Drizzt; Maya poderia, por isso, chegar ao alto sacerdócio antes dela!
Vierna sacudiu essa ideia. Não podia dar-se ao luxo de se preocupar com tais
problemas. Terminaria as suas funções de tutora dentro de poucos anos. Por
volta do seu décimo aniversário, Drizzt seria nomeado príncipe da família e
serviria em pé de igualdade à Casa. Se o seu trabalho com Drizzt
não desapontasse a Matrona Malice, Vierna sabia que receberia o que lhe era
devido.
— Vai até à parede — instruiu Vierna. — Trata daquela estátua — apontou
para uma escultura de uma fêmea drow nua, a cerca de seis metros do chão. O
jovem Drizzt olhou para cima, confuso. Não podia subir até à escultura e limpá-
la ao mesmo tempo que se segurasse a qualquer coisa. Mas Drizzt sabia o preço
elevado de qualquer desobediência — ou mesmo de uma hesitação — e por isso
estendeu os braços, à procura do primeiro ponto de apoio para subir.
— Não é assim — censurou Vierna.
— Como, então? — atreveu-se Drizzt a perguntar, porque não fazia ideia do
que a irmã lhe estava a sugerir.
— Eleva-te pela força de vontade até à gárgula — explicou Vierna.
O pequeno rosto de Drizzt contorceu-se, confuso.
— És um nobre da Casa Do’Urden! — gritou-lhe Vierna. — Ou, pelo menos,
um dia hás-de receber essa distinção. Na tua bolsa de trazer ao pescoço trazes o
emblema da Casa, que é um objecto de poder mágico considerável.
Vierna ainda não estava convencida de que Drizzt estivesse pronto para tal
tarefa; a levitação era uma alta manifestação da magia drow inata, certamente
mais difícil de dominar do que banhar objectos em luz mágica ou convocar
globos de escuridão. O emblema Do’Urden aumentava estes poderes inatos dos
elfos drow, uma magia que emergia normalmente à medida que um drow ia
amadurecendo. Enquanto a maioria dos nobres drow podia convocar a energia
mágica para levitar pelo menos uma vez por dia, os nobres da Casa Do’Urden,
usando a sua insígnia, podiam fazê-lo repetidamente.
Normalmente, Vierna não tentaria isto numa criança macho com menos de dez
anos, mas Drizzt demonstrara-lhe ter tanto potencial nos últimos anos que não
viu mal algum em tentar.
— Põe-te simplesmente diante da estátua — explicou — e usa a força de
vontade para subir.
Drizzt olhou para cima, para a escultura feminina, e depois alinhou os pés
mesmo em frente ao objecto. Levou uma mão ao colarinho, tentando sintonizar-
se com o emblema. Já antes sentira que a medalha mágica possuía alguma forma
de poder; mas fora apenas uma sensação em bruto, uma intuição infantil. Agora
que tinha um foco onde se concentrar, Drizzt confirmou as suas suspeitas e
sentiu a vibração da energia mágica.
Uma série de inspirações profundas limpou os pensamentos que poderiam
distrair a mente do jovem drow. Bloqueou toda a visão do resto da sala; a única
coisa que via era a estátua, o seu destino. Sentiu-se a ficar mais leve, os
calcanhares ergueram-se, depois ficou apenas nas pontas dos pés, mas já nem
sentia peso sobre eles. Drizzt olhou para Vierna, com um sorriso rasgado, de
espanto, e depois caiu redondo no chão.
— Macho tonto! — escarneceu Vierna. — Tenta de novo! Tenta mil vezes, se
for preciso — deitou a mão ao chicote de cabeças de serpentes. — Se falhares…
Drizzt desviou os olhos dela, amaldiçoando-se. A sua satisfação levara o
feitiço a falhar. Mas agora sabia que conseguia fazê-lo, e não tinha medo de ser
castigado. Concentrou-se de novo na escultura e deixou a energia mágica
acumular-se no corpo.
Vierna também sabia que Drizzt acabaria por ter sucesso. A mente dele era
penetrante, mais acutilante do que alguma que ela já vira, incluindo as de outras
fêmeas da Casa Do’Urden. E aquela criança era teimosa, também; Drizzt não
deixaria a magia derrotá-lo. Vierna sabia que ele ficaria ali diante da estátua a
tentar até desmaiar de fome, se tivesse de ser.
Viu-o passar por uma sucessão de pequenos sucessos e falhanços, o último
dos quais o fez cair de uma altura de quase dois metros. Vierna encolheu-se,
interrogando-se se Drizzt teria ficado seriamente magoado. Mas ele, ferido ou
não, nem sequer chorou, mas antes regressou à posição inicial e recomeçou a
concentrar-se mais uma vez.
— Ainda é demasiado novo para isso — ouviu-se atrás de Vierna. Esta virou-
se na cadeira para ver Briza, de pé atrás dela, com o costumeiro sorriso de
escárnio no rosto.
— Talvez — respondeu Vierna. — Mas só saberei depois de o deixar tentar.
— Chicoteia-o quando falha — sugeriu Briza, puxando do seu cruel
instrumento de seis cabeças. Deu ao chicote um olhar apreciativo — como se
fosse uma espécie de animal de estimação — e deixou que uma cabeça de
serpente deslizasse pelo seu pescoço e rosto. — Serve de inspiração.
— Guarda isso — respondeu Vierna. — Compete-me a mim educá-lo, e não
preciso da tua ajuda para isso!
— Devias ter mais cuidado com a maneira como falas a uma alta sacerdotisa
— avisou Briza, ao mesmo tempo que todas as cabeças de serpente, que eram
extensões dos seus pensamentos, se viravam ameaçadoramente para Vierna.
— Tal como tu devias saber que a Matrona Malice saberá se interferires com
as minhas tarefas — respondeu Vierna rapidamente.
Briza recolheu o chicote, ao ouvir a menção à Matrona Malice.
— As tuas tarefas… — troçou Briza, com desdém. — És demasiado branda
para tal tarefa. As crianças macho têm de ser disciplinadas; têm de aprender o
seu lugar.
Mas, percebendo as consequências complicadas da ameaça da irmã, a mais
velha virou costas e saiu.
Vierna deixou que Briza tivesse a última palavra. A tutora olhou para Drizzt,
que ainda estava a tentar chegar à estátua.
— Basta! — comandou, apercebendo-se de que a criança estava a ficar
cansada; mal conseguia agora levantar os pés do chão.
— Eu consigo! — respondeu imediatamente Drizzt.
Vierna gostava da determinação dele, mas não gostou do tom da resposta.
Talvez houvesse alguma verdade nas palavras de Briza. Puxou do seu chicote de
cabeças de serpente. Um pouco de inspiração talvez ajudasse a avançar.
Assim prosseguiu a relação entre ambos durante mais cinco anos, com Drizzt a
aprender as lições básicas da vida na sociedade drow, ao mesmo tempo que
limpava interminavelmente a capela da Casa Do’Urden. Para além da
supremacia da fêmea drow (lição sempre acentuada pela chicotada maligna do
chicote de cabeças de serpente), as lições mais repetidas eram as que diziam
respeito aos elfos de superfície. Os impérios do mal unem-se muitas vezes em
teias de ódio erguidas contra inimigos fabricados, e não havia ninguém em toda
a história do mundo que fosse melhor nisso do que os drow. Desde o primeiro
dia em que conseguiam compreender a palavra falada, as crianças drow eram
ensinadas de que o que quer que houvesse de errado nas suas vidas poderia ser
atribuído aos elfos da superfície.
Sempre que as presas do chicote de Vierna rasgavam as costas de Drizzt, este
gritava clamando pela morte dos elfos da superfície. O ódio condicionado
raramente era uma emoção racional.
Horas vazias, dias vazios.
Sinto que tenho poucas memórias desse primeiro período da minha
vida, desses primeiros dezasseis anos em que labutei como servo. Os
minutos tornavam-se horas, as horas tornavam-se dias, e assim por
diante, até que tudo parecia apenas um longo e desolado momento.
Várias vezes consegui escapulir-me para assomar a uma varanda da
Casa Do’Urden e para olhar para as luzes mágicas de Menzoberranzan.
Em todas essas sortidas secretas, dava comigo encantado pela luz
crescente, e depois minguante, de Narbondel, o pilar relógio. Olhando
agora para trás, para essas longas horas a observar o brilho do fogo do
feiticeiro a subir lentamente pelo pilar e depois a descê-lo, fico espantado
com o vazio dos meus primeiros dias.
Lembro-me claramente da excitação, da euforia vibrante de cada vez
que conseguia sair de casa e colocar-me em posição para observar o
pilar. Era uma coisa tão simples, mas tão compensadora, quando
comparada com o resto da minha existência.
Sempre que ouço o estalido de um chicote, outra recordação — na
verdade, é mais uma sensação do que uma recordação — um arrepio
percorre-me a espinha. O choque e o torpor que se segue ao embate
dessas armas com cabeças de serpente não é coisa que alguma pessoa
esqueça com facilidade. Mordem debaixo da pele, enviando ondas de
energia mágica por todo o corpo, ondas que fazem os músculos estalar e
esticar-se para além de todos os limites.
Mesmo assim, tive mais sorte que a maioria. A minha irmã Vierna
estava prestes a tornar-se Alta Sacerdotisa quando lhe foi atribuída a
tarefa de me educar, e estava num período da sua vida em que possuía
muito mais energia do que essa tarefa exigia. Talvez, então, tenha havido
mais nesses primeiros dez anos da minha vida sob os cuidados dela do
que consigo agora recordar. Vierna nunca mostrou a intensa maldade da
nossa mãe — ou, mais especialmente, da nossa irmã mais velha, Briza.
Talvez tenha havido bons momentos na solidão da capela da Casa; é
possível que Vierna tenha permitido que um seu lado mais gentil se
mostrasse ao seu irmão mais novo.
Mas talvez não. Muito embora tenha Vierna como a mais gentil das
minhas irmãs, as suas palavras derramavam o veneno de Lolth tão
constantemente como as de qualquer sacerdotisa de Menzoberranzan.
Parece pouco provável que arriscasse as suas aspirações ao alto
sacerdócio apenas em prol de uma mera criança, e uma mera criança
macho.
Quer tenha havido alegria nesses primeiros anos, obscurecida pelo
assalto sem tréguas da maldade de Menzoberranzan, quer esse período
mais distante da minha vida tenha sido ainda mais doloroso do que os
anos que se seguiram — e tão dolorosos que a minha mente esconde
essas memórias — não posso ter a certeza. Apesar de todos os meus
esforços, não me consigo recordar deles.
Tenho uma ideia mais clara dos seis anos seguintes, mas a recordação
mais forte dos dias que passei a servir como criado na corte da Matrona
Malice — para além das minhas escapadelas para fora da Casa — é a
imagem dos meus próprios pés.
Um príncipe-pajem nunca pode levantar os olhos.
— Drizzt Do’Urden
Drizzt respondeu prontamente ao chamamento para ir junto da Matrona Mãe,
sem precisar do incentivo do chicote que Briza costumava usar para o apressar.
Quantas vezes já sentira o ferrão dessa temida arma! Drizzt não tinha
pensamentos de vingança contra a irmã mais velha. Com todo o
condicionamento que recebera, receava demasiado as consequências de se virar
contra ela; e esse receio era demasiado grande para lhe permitir ter sequer tal
ideia.
— Sabes o que este dia assinala? — perguntou-lhe Malice quando Drizzt
chegou junto do grande trono da escura antecâmara da capela.
— Não, Matrona Mãe — respondeu, mantendo inconscientemente o olhar nos
pés.
Um suspiro resignado subiu-lhe à garganta enquanto reparava na visão sempre
repetida das pontas dos seus pés. A sua vida nunca fora mais do que pedra lisa e
pontas dos pés, pensou.
Fez deslizar um pé para fora da bota de cano curto e começou a garatujar no
chão com a ponta do dedo. O calor do corpo deixava rastos visíveis no espectro
infravermelho, e Drizzt era suficientemente ágil e rápido para completar
desenhos simples antes que as linhas iniciais tivessem arrefecido.
— Dezasseis anos — disse-lhe a Matrona Malice. — Há dezasseis anos que
respiras o ar de Menzoberranzan. Um importante período da tua vida passou já.
Drizzt não reagiu, não viu nenhuma importância ou significado nesta
declaração. A sua vida era uma rotina interminável e imutável. Um dia, dezasseis
anos. Que diferença fazia? Se a mãe considerava importantes as coisas que lhe
tinham sido impostas desde que se lembrava, Drizzt estremeceu ao pensar
naquilo que as próximas décadas lhe poderiam ainda reservar.
Tinha já quase completado a sua imagem de um drow de ombros redondos —
Briza — a ser mordido no rabo por uma enorme víbora.
— Olha para mim — comandou a Matrona Malice.
Drizzt sentiu-se perdido. A sua tendência natural fora, em tempos, para olhar
para a pessoa com quem estava a falar, mas Vierna não perdera tempo a fazer
desaparecer esse instinto à força de castigos. O lugar de um príncipe-pajem era a
servidão, e os únicos olhos que esse príncipe era digno de olhar eram os das
criaturas que percorriam o chão de pedra — excepto os olhos de uma aranha,
claro; Drizzt tinha de desviar o olhar sempre que uma dessas coisas de oito
pernas deslizava para o seu campo de visão. As aranhas eram demasiado boas
para os da laia do príncipe-pajem.
— Olha para mim — disse Malice de novo, com o tom de voz a sugerir a sua
volátil impaciência. Drizzt já antes testemunhara as explosões de Malice: uma
ira tão incrivelmente vil que varria tudo e todos os que se encontrassem no seu
caminho. Até Briza, tão pomposa e tão cruel, fugia e se escondia quando a
Matrona Mãe se irritava.
Drizzt obrigou-se a levantar os olhos do chão, hesitante, seguindo com o olhar
as vestes negras da mãe, usando o padrão familiar em forma de aranha, ao longo
dos lados das vestes, para avaliar o seu ângulo de visão. Esperava
completamente, à medida que avançava cada centímetro, receber uma pancada
na cabeça, ou uma chicotada nas costas: Briza estava atrás dele, sempre com o
seu chicote de cabeças de serpente bem perto da mão ansiosa.
Depois viu-a; a poderosa Matrona Mãe Malice Do’Urden, com os olhos
faiscando a vermelho e com o rosto frio, e não ofuscante de calor irado. Mas
Drizzt manteve-se tenso, ainda esperando um golpe punitivo.
— A tua posição de príncipe-pajem expirou — explicou Malice. — És agora o
Segundo Rapaz da Casa Do’Urden e são-te atribuídos todos os…
O olhar de Drizzt deslizou de novo para o chão, inconscientemente.
— Olha para mim! — gritou a mãe, numa raiva súbita.
Aterrorizado, Drizzt voltou a olhar para o rosto dela, que agora brilhava de
vermelho ofuscante. Pelo canto do olho viu o calor em movimento da mão
agitada de Malice, mas não foi tolo ao ponto de se desviar do golpe. Depois,
ficou caído no chão, com a cara a arder.
Mas mesmo enquanto caía, Drizzt estava suficientemente alerta para manter o
olhar ligado ao olhar de Malice.
— Já não és um servo! — rugiu a Matrona Mãe. — Se continuasses a
comportar-te como tal, serias uma desonra para a família — agarrou Drizzt pelo
pescoço e pô-lo de pé bruscamente. — Se desonrares a Casa Do’Urden —
prometeu, com a cara a um centímetro da dele — enfiarei agulhas nesses teus
olhos cor de violeta.
Drizzt não conseguia sequer piscar os olhos. Nos seis anos desde que Vierna
deixara de cuidar dele, colocando-o ao serviço geral de toda a família, acabara
por conhecer suficientemente bem a Matrona Malice para perceber todas as
subtis conotações das suas ameaças. Era sua mãe — valesse isso o que valesse
—, mas Drizzt não tinha quaisquer dúvidas de que teria prazer em enfiar-lhe
agulhas nos olhos.
— Três salas? — perguntou Drizzt quando ele e Zak entraram no grande salão
de treino do complexo mais a sul da Casa Do’Urden.
Bolas de luz mágica multicolor tinham sido colocadas ao longo da sala de
pedra de tecto alto, envolvendo-a inteiramente numa luz suave e confortável. A
sala tinha apenas três portas; uma para leste, que dava para outra sala exterior
que se abria para uma varanda da Casa; outra directamente em frente de Drizzt,
na parede sul, e que dava para a última sala da Casa; e a porta da entrada
principal por onde tinham acabado de entrar. Drizzt percebeu, devido às muitas
trancas que Zak estava agora a fechar atrás deles, que não voltaria a sair por
aquela porta tão depressa.
— Uma sala — corrigiu Zak.
— Mas mais duas portas — argumentou Drizzt, olhando para o outro lado da
sala. — Sem trancas.
— Ah! — corrigiu Zak — As trancas dessas são feitas de senso comum.
Drizzt estava a começar a ter uma ideia.
— Essa porta — prosseguiu Zak, apontando para sul — dá para os meus
aposentos privados. Não hás-de querer que eu alguma vez te encontre lá dentro.
A outra porta dá para a sala de tácticas, reservada para os tempos de guerra. Se, e
quando, alguma vez provares estar à altura do que espero de ti, poderei talvez
convidar-te a juntares-te a mim nessa sala. Esse dia está a anos de distância, por
isso contempla apenas esta única e magnifica sala e considera-a — e girou os
braços num arco largo — como o teu lar.
Drizzt olhou em volta, não muito entusiasmado. Atrevera-se a esperar que
tivesse deixado para trás este tipo de tratamento, juntamente com os seus dias de
príncipe-pajem. Mas esta situação, porém, trazia-o de regresso a essa década em
que estivera encerrado na capela da família com Vierna. Esta sala nem sequer era
tão grande como a capela, e era demasiado apertada para o gosto do jovem e
altivo drow. A pergunta seguinte saiu-lhe como um resmungo:
— E onde vou dormir?
— Em tua casa — respondeu Zak com simplicidade.
— E onde vou comer?
— Em tua casa.
Os olhos de Drizzt semicerraram-se até ficarem apenas como duas pequenas
fendas e o rosto iluminou-se de um calor vermelho.
— E onde… — começou teimosamente, determinado a abrir brechas na lógica
do mestre de armas.
— Em tua casa — respondeu Zak com o mesmo tom comedido e contido,
antes que Drizzt pudesse terminar o seu pensamento.
Drizzt assentou os pés firmemente no chão e cruzou os braços frente ao peito.
— Isso parece complicado — resmungou.
— É melhor que não seja — rabujou Zak em resposta.
— Então qual é a finalidade? — começou Drizzt. — Afastas-me da minha
mãe…
— Deves tratá-la sempre por Matrona Malice — avisou Zak. — Será sempre
Matrona Malice.
— Da minha mãe…
A interrupção seguinte de Zak não foi por palavras, mas por um punho
cerrado.
Drizzt acordou vinte minutos mais tarde.
— Primeira lição — explicou Zak, encostado descontraidamente a uma parede
a poucos centímetros dele. — Para teu próprio bem. Referir-te-ás a ela sempre
como Matrona Malice.
Drizzt rebolou até ficar de lado e tentou erguer-se apoiando-se no cotovelo,
mas sentiu a cabeça a andar à roda assim que a levantou do chão escuro. Zak
agarrou-o e pô-lo para cima.
— Não é tão fácil como fazer malabarismos com moedas — notou o mestre
de armas.
— O quê?
— Aguentar um soco.
— Que soco?
— Limita-te a concordar, criança teimosa.
— Segundo Rapaz! — corrigiu Drizzt, com a voz de novo a conter um tom de
desafio e com os braços de novo desafiadoramente cruzados diante do peito.
Zak voltou a cerrar um punho, numa demonstração não muito subtil que
Drizzt não pôde deixar de notar.
— Precisas de dormir mais uma sesta? — perguntou calmamente o mestre de
armas.
— Os segundos-rapazes podem ser crianças — admitiu Drizzt, sensatamente.
Zak abanou a cabeça, incrédulo. Isto ia ser interessante.
— Poderás considerar o teu tempo aqui como agradável — disse a Drizzt,
enquanto o levava até uma longa, espessa e colorida (embora a maioria das cores
fossem sombrias) cortina decorada. — Mas apenas se puderes aprender a ter
algum controlo sobre essa tua língua demasiado comprida.
Um puxão seco fez descer a cortina, revelando a mais magnífica exposição de
armas que o jovem drow (tal como muitos outros drow mais velhos) alguma vez
vira. Maças de vários tipos, espadas, machados, marretas e todo o tipo de arma
que Drizzt conseguia imaginar — para além de uma série delas que nunca
imaginara — estavam ali numa exposição complexa.
— Examina-as — disse-lhe Zak. — Demora o teu tempo e aprecia. Aprende
quais sentes melhor nas tuas mãos, seguem mais obedientemente as ordens da
tua vontade. Quando tivermos acabado, conhecerás cada uma delas como um
companheiro de confiança.
De olhos arregalados, Drizzt avançou pelo expositor, vendo todo aquele local
e o potencial de toda aquela experiência a uma luz completamente diferente.
Durante toda a sua vida, os seus dezasseis anos, o seu maior inimigo fora o tédio.
Agora, parecia que Drizzt tinha encontrado armas para vencer esse inimigo.
Zak dirigiu-se para a porta dos seus aposentos privados, pensando que seria
melhor deixar Drizzt sozinho nesses primeiros momentos estranhos que eram o
manejo de novas armas.
No entanto, o mestre de armas parou quando chegou junto da porta e olhou
para trás, para o jovem Do’Urden. Drizzt fazia rodopiar uma longa e pesada
albarda, com mais do dobro da sua altura, num arco lento. Apesar de todas as
suas tentativas de manter a arma sob controlo, o peso e o balanço da arma
fizeram o seu pequeno corpo cair redondo no chão.
Zak deu consigo a soltar uma pequena gargalhada, mas esse riso apenas o
lembrou da sombria realidade da sua tarefa. Treinaria Drizzt, tal como já treinara
milhares de elfos negros antes dele, para ser um guerreiro, para o preparar para
os testes da Academia e para a vida na perigosa Menzoberranzan. Treinaria
Drizzt para ser um assassino.
Como isso parecia tão contrário à natureza deste! — pensava Zak. Os sorrisos
vinham a Drizzt com demasiada facilidade; o pensamento de o ver a trespassar o
coração de outro ser vivo com uma espada revoltava Zaknafein. Mas esse era o
modo dos drow, um modo de vida a que Zak se vira incapaz de resistir ao longo
dos seus quatro séculos de vida. Afastando o olhar do espectáculo de Drizzt a
divertir-se, Zak entrou na sua sala e fechou a porta.
— Serão todos assim? — perguntou para a sua sala quase vazia. — Possuirão
todas as crianças drow uma tal inocência, tais sorrisos tão simples, tão sem
maldade, que não podem sobreviver na fealdade do nosso mundo?
Dirigiu-se à pequena mesa de um dos lados do aposento, com a intenção de
retirar a pala de cima do globo cerâmico continuamente iluminado que servia de
fonte de luz do quarto. Mudou de ideias quando aquela imagem de Drizzt
deliciando-se com as armas se recusou a desvanecer-se, e em vez disso dirigiu-se
para a grande cama que havia do outro lado do quarto.
«Ou será que és especial, Drizzt Do’Urden?», continuou a pensar enquanto se
deixava cair na cama almofadada. «E se és diferente, qual, então, será a causa
disso? O sangue? O meu sangue que corre nas tuas veias? Ou os anos que
passaste com a tua tutora?»
Zak estendeu um braço por cima dos olhos e considerou as suas muitas
perguntas. Drizzt era diferente da norma, acabou por concluir. Mas não sabia se
deveria agradecer isso a si próprio ou a Vierna.
Ao fim de algum tempo, o sono venceu-o. Mas pouco conforto trouxe ao
mestre de armas. Foi visitado por um sonho que já lhe era familiar, por uma
recordação viva que nunca se desvanecia.
Zaknafein ouviu mais uma vez os gritos das crianças da Casa DeVir enquanto
os soldados da Casa Do’Urden — soldados que ele próprio treinara — as
retalhavam à espada.
— Este é diferente! — gritou Zak, erguendo-se de um salto na cama. Limpou
o suor frio da testa. — Este é diferente.
Tinha de acreditar nisso.
— Queres mesmo tentar? — perguntou Masoj, com a voz num tom
condescendente e cheio de descrença.
Alton virou o seu olhar hediondo para o estudante.
— Dirige a tua ira para outro sítio, ó Sem Rosto — disse Masoj, desviando o
olhar do rosto disforme do seu mentor. — Não sou eu a causa da tua frustração.
A pergunta é válida.
— Durante mais de uma década, tens sido estudante das artes mágicas —
respondeu Alton. — E mesmo assim receias explorar o mundo oculto ao lado de
um mestre de Sorcere.
— Nada recearia se estivesse ao lado de um verdadeiro mestre — atreveu-se
Masoj a murmurar.
Alton ignorou o comentário, tal como já fizera com tantos outros que já
aceitara da parte do seu aprendiz Hun’ett ao longo dos últimos dezasseis anos.
Masoj era o único elo entre Alton e o mundo exterior, e enquanto ele tinha uma
família poderosa, Alton só tinha Masoj.
Passaram pela porta da sala mais alta do complexo de quatro salas de Alton.
Havia apenas uma vela acesa, com a sua luz diminuída por uma abundância de
tapeçarias de cores escuras e pelo tom escuro dos tapetes e da pedra da sala.
Alton encavalitou-se no seu banco atrás da pequena mesa circular e colocou um
pesado livro diante de si.
— Esse é um encantamento que é melhor ser deixado para as sacerdotisas —
protestou Masoj, sentado diante do Mestre Sem Rosto. — Os magos mandam
nos planos inferiores; os mortos competem apenas às sacerdotisas.
Alton olhou em volta com curiosidade, e depois franziu as sobrancelhas para
Masoj, com as suas feições grotescas aumentadas pela luz tremeluzente da vela.
— Parece que não disponho de nenhuma sacerdotisa às minhas ordens —
explicou o Sem Rosto sarcasticamente. — Preferirias que tentasse com um
qualquer ser inferior dos Nove Infernos?
Masoj recostou-se para trás na cadeira e abanou a cabeça, sem alternativa, e
com ênfase. Alton tinha razão nisso. Um ano antes, o Sem Rosto procurara
respostas para as suas perguntas arregimentando o serviço de um demónio do
gelo. Essa coisa volátil fizera gelar a sala até esta brilhar de negro no espectro
infravermelho e destruíra uma panóplia de equipamento alquímico digna do
tesouro de uma matrona mãe. Se Masoj não tivesse convocado a sua pantera
mágica para distrair o demónio de gelo, nem ele nem Alton teriam saído dali
com vida.
— Muito bem, então — disse Alton de forma pouco convincente, cruzando os
braços diante dele sobre a mesa. — Convoca então o teu espírito e encontra as
tuas respostas.
Alton não deixou de perceber o estremecimento involuntário que as vestes de
Masoj traíram. Olhou fixamente para o estudante por um momento, e depois
dedicou-se de novo aos seus preparativos.
Quando Alton estava perto do momento de lançar o encantamento, a mão de
Masoj dirigiu-se instintivamente para um bolso, para agarrar a estatueta de ónix
do gato caçador de que tomara posse no dia em que Alton assumira a identidade
do Sem Rosto. A pequena estatueta estava encantada com um feitiço poderoso
que permitia ao seu possuidor convocar uma poderosa pantera para o seu lado.
Masoj usara o felino com parcimónia, dado que ainda não compreendia
completamente as limitações e os perigos potenciais daquele encantamento. «Só
para momentos de necessidade», relembrava Masoj a si próprio em silêncio
enquanto a sua mão sentia a estatueta. Mas porque seria que esses momentos
ocorriam sempre quando estava com Alton? — interrogava-se o aprendiz.
Apesar da sua bravata, desta vez Alton partilhava secretamente dos temores de
Masoj. Os espíritos dos mortos não eram tão destrutivos como os conjurados dos
planos inferiores, mas podiam ser igualmente cruéis e mais subtis nos seus
tormentos.
Mas Alton precisava da sua resposta. Durante mais de uma década e meia,
procurara a informação pelos canais convencionais, inquirindo mestres e
estudantes — de forma dissimulada, evidentemente — sobre os pormenores da
queda da Casa DeVir. Muitos conheciam os rumores dessa noite cheia de
acontecimentos; alguns até davam pormenores das técnicas de batalha usadas
pela Casa vitoriosa.
Ninguém, contudo, dizia o nome da Casa que perpetrara o acto. Em
Menzoberranzan, ninguém pronunciava o que quer que fosse que se
assemelhasse a uma acusação, mesmo que a crença fosse comummente
partilhada, a não ser que houvesse suficientes provas indesmentíveis contra os
acusados. Se uma casa falhava um raide e isso era descoberto, toda a
Menzoberranzan caía sobre ela até que o nome da família se extinguisse. Mas no
caso de um ataque bem-sucedido, como aquele que tinha caído sobre a Casa
DeVir, um acusador era quem mais provavelmente acabaria do lado errado de
um chicote de cabeças de serpente.
A vergonha pública, talvez mais do que quaisquer linhas de orientação e de
honra, faziam gorar as rodas da justiça na cidade dos drow.
Alton procurava agora novos meios para obter a solução da sua demanda.
Primeiro, tentara os planos inferiores, o demónio de gelo, com efeitos
desastrosos. Agora, tinha na sua posse um objecto que poderia pôr fim às suas
frustrações: um tomo redigido por um mago do mundo da superfície. Na
hierarquia drow, só as sacerdotisas de Lolth lidavam com o reino dos mortos,
mas noutras sociedades, os magos também lidavam com o mundo dos espíritos.
Alton encontrara o livro na biblioteca de Sorcere e conseguira traduzir dele o
suficiente — ou pelo menos assim pensava — para fazer um contacto com os
espíritos.
Agitou as mãos, abriu o livro com um gesto brusco na página marcada e leu
pela última vez o encantamento.
— Estás pronto? — perguntou a Masoj.
— Não.
Alton ignorou o sarcasmo interminável do estudante e colocou as mãos
abertas sobre a mesa. Lentamente, mergulhou no seu transe meditativo mais
profundo.
— Fey innad… — fez uma pausa e pigarreou disfarçando o erro. Masoj,
embora não tivesse examinado o encantamento com atenção, dera pelo erro.
— Fey innunad de-min… — outra pausa.
— Que Lolth esteja connosco! — resmungou Masoj quase em surdina.
Os olhos de Alton abriram-se muito e lançou um olhar penetrante para o
estudante.
— É uma tradução — rosnou. — Da língua estranha de um mago humano!
— É uma algaraviada — retorquiu Masoj.
— Tenho diante de mim o livro de encantamentos privado de um mago do
mundo da superfície — disse Alton num tom calmo. — Um Arquimago,
segundo as garatujas do ladrão orc que o roubou e que o vendeu aos nossos
agentes — recompôs-se de novo e abanou a cabeça sem cabelos, tentando
regressar às profundezas do seu transe.
— Um simples e estúpido orc conseguiu roubar um livro de encantamentos de
um arquimago — murmurou Masoj retoricamente, deixando que o absurdo dessa
declaração falasse por si mesmo.
— O mago estava morto! — rugiu Alton. — O livro é autêntico!
— Quem o traduziu? — respondeu calmamente Masoj.
Alton recusou-se a ouvir mais argumentos. Ignorando o olhar trocista da cara
de Masoj, recomeçou:
— Fey innunad de-min de-sul de-ket.
Masoj calou-se e tentou ensaiar uma lição de uma das suas aulas, esperando
que os soluços de riso não perturbassem Alton. Não acreditava, nem por um
momento, que os esforços de Alton tivessem sucesso, mas não queria ser ele a
fazê-lo enganar-se outra vez, para depois ter de ouvir o tonto a repetir aquele
ridículo encantamento todo desde o princípio.
Pouco tempo depois, quando Masoj ouviu o murmúrio excitado de Alton —
«Matrona Ginafae?» — centrou rapidamente a atenção de novo no assunto que
tinha em mãos.
De facto, uma invulgar bola de fumo esverdeado apareceu por cima da chama
da vela e foi tomando, gradualmente, uma forma mais definida.
— Matrona Ginafae! — murmurou Alton de novo quando a conjuração
terminou. Pairando diante dele estava a imagem indesmentível do rosto da mãe
morta de Alton.
O espírito perscrutou a sala, confuso.
— Quem és tu? — perguntou por fim.
— Sou Alton. Alton DeVir, teu filho.
— Filho? — perguntou o espírito.
— Teu filho.
— Não me recordo de nenhum filho tão feio.
— É um disfarce — respondeu apressadamente Alton, olhando de soslaio para
Masoj, à espera de ver algum sorriso de troça. Mas se Masoj tinha troçado e
duvidado de Alton até aí, agora mostrava apenas um respeito sincero.
Sorrindo, Alton prosseguiu:
— É apenas um disfarce, para que possa andar pela cidade e exercer a
vingança sobre os nossos inimigos.
— Que cidade?
— Menzoberranzan, evidentemente.
Mesmo assim, o espírito parecia não compreender.
— És mesmo Ginafae? — insistiu Alton. — A Matrona Ginafae DeVir?
As feições do espírito contorceram-se num esgar de desdém enquanto
apreciava a pergunta.
— Já o fui, penso.
— Matrona Mãe da Casa DeVir, Quarta Casa de Menzoberranzan — sugeriu
Alton, cada vez mais entusiasmado. — Alta Sacerdotisa de Lolth.
A menção à Rainha Aranha fez um raio saltar dentro do espírito.
— Oh, não — vacilou. Ginafae lembrava-se agora. — Não deverias ter feito
isto, meu feio filho.
— É apenas um disfarce — insistiu Alton.
— Tenho de te deixar — continuou o espírito de Ginafae, olhando em volta
receosamente. — Tens de me deixar partir!
— Mas preciso de algumas informações tuas, Matrona Ginafae.
— Não me chames isso! — guinchou o espírito. — Não compreendes! Não
estou nas boas graças de Lolth.
— Sarilhos… — murmurou Masoj casualmente, nada surpreendido.
— Apenas uma resposta! — exigiu Alton, recusando-se a perder mais uma
oportunidade de saber a identidade dos seus inimigos.
— Depressa! — uivou o espírito.
— Diz-me que Casa destruiu a Casa DeVir.
— A Casa? — pensou Ginafae. — Sim, lembro-me dessa noite maligna. Foi a
Casa…
A bola de fumo estourou num novelo e perdeu os contornos, retorcendo a
imagem de Ginafae e fazendo com que as palavras seguintes chegassem numa
toada indecifrável.
Alton pôs-se de pé num salto.
— Não! — gritou. — Tens de me dizer! Quem são os meus inimigos?
— Ter-me-ias na conta de um deles? — disse a imagem do espírito numa voz
muito diferente da que tinha usado anteriormente, com um tom de poder
absoluto que fez fugir todo o sangue do rosto de Alton. A imagem contorceu-se e
transformou-se em algo muito feio, muito mais feio até do que Alton. Hediondo
para além de qualquer experiência possível no Plano Material.
Alton não era um sacerdote, evidentemente, e nunca estudara a religião drow
para além dos princípios básicos que eram ensinados aos machos da raça. Mas
conhecia a criatura que agora pairava no ar diante dele, pois esta aparecia como
um pedaço pegajoso e escorregadio de cera derretida: era uma yochlol, uma aia
de Lolth.
— Como te atreves a perturbar os tormentos de Ginafae? — interrogou a
yochlol.
— Raios — murmurou Masoj, deslizando lentamente para debaixo da toalha
preta que cobria a mesa. Até mesmo ele, apesar de todas as suas dúvidas acerca
de Alton, não esperara que o seu desfigurado mentor acabasse metido em
sarilhos desta magnitude.
— Mas… — gaguejou Alton.
— Nunca mais perturbes este Plano, fraco feiticeiro! — rugiu a yochlol.
— Não tentei chegar ao Abismo — protestou fracamente Alton. — Só queria
falar com…
— Com Ginafae! — retorquiu a yochlol. — Sacerdotisa caída em desgraça de
Lolth. Onde esperavas encontrar o espírito dela, macho tonto? A dançar no
Olimpo, com os falsos deuses dos elfos da superfície?
— Não pensei…
— Será que alguma vez o fizeste? — troçou a yochlol.
— Nadinha — respondeu Masoj em surdina, com o cuidado de se manter o
mais fora do caminho que fosse possível.
— Nunca mais voltes a perturbar este Plano — avisou a yochlol uma última
vez. — A Rainha Aranha não é piedosa e não tolera machos intrometidos!
O rosto da criatura inchou e fez um «puf», expandindo-se para além dos
limites da bola de fumo. Alton ouviu ruídos de gorgolejos e soluços e caiu de
novo no seu banco, encostando as costas pesadamente à parede e colocando os
braços defensivamente à frente da cara.
A boca da yochlol abriu-se desmesuradamente e cuspiu uma chuva de
pequenos objectos. Estes fizeram ricochete em Alton e foram cravar-se na
parede em volta. Pedras? — interrogou-se o feiticeiro sem rosto, confundido.
Um dos objectos deu-lhe então a resposta à pergunta que não chegara a formular.
Agarrou-se às vestes longas e negras de Alton e começou a rastejar para cima,
até ao pescoço. Eram aranhas.
Uma onda de bichos de oito pernas correu por baixo da mesa, fazendo Masoj
sair a correr do outro lado, tropeçando, desesperado. Conseguiu pôr-se de pé e
virar-se, para ver Alton a esbracejar e a bater com os pés selvaticamente,
tentando fugir do grupo mais denso daquelas coisas rastejantes.
— Não as mates! — gritou Masoj. — Matar aranhas é proibido pelo…
— Que as sacerdotisas e as suas leis vão para os Nove Infernos! — uivou
Alton em resposta.
Masoj encolheu os ombros, num assentimento sem alternativa; vasculhou por
debaixo das pregas das vestes e retirou de lá o mesmo arco que usara para matar
o Sem Rosto, havia tantos anos. Apreciou a potente arma e as pequenas aranhas
que corriam pela sala.
— Será demasiado poder? — perguntou em voz alta. Não obtendo resposta,
encolheu os ombros e disparou.
O pesado dardo rasgou o ombro de Alton, deixando um golpe profundo. O
mago ficou a olhar, incrédulo, e depois dardejou uma careta mortífera contra
Masoj.
— Tinhas uma no ombro — explicou o estudante.
A expressão de fúria de Alton não diminuiu.
— Ingrato — riu-se Masoj. — Insensato Alton! Todas as aranhas estão do teu
lado da sala. Já reparaste? — Masoj virou-se para sair e ainda gritou por cima do
ombro: — Boa caçada.
Deitou a mão ao puxador da porta, mas enquanto os seus longos dedos se
fechavam em volta deste, a superfície do portal transformou-se numa grande
imagem da Matrona Ginafae. Esta sorria largamente, demasiado abertamente, e
uma língua impossivelmente comprida e húmida espreitou para fora e lambeu
Masoj no rosto.
— Alton! — gritou Masoj, saltando para trás e encostando-se à parede, fora
do alcance daquele membro viscoso. Reparou que o mago estava a meio da
recitação de um encantamento. Alton estava a debater-se por manter a
concentração enquanto uma legião de aranhas prosseguia a sua esfaimada
ascensão pelas suas vestes.
— Estás morto — comentou Masoj, sem artifícios, abanando a cabeça.
Alton lutou para prosseguir o rigoroso ritual do encantamento; ignorou a
repulsa por aquelas coisas rastejantes e forçou a convocação até estar completa.
Em todos os seus anos de estudo, nunca teria acreditado que fosse capaz de fazer
uma tal coisa. Ter-se-ia rido só de pensar nisso. Agora, porém, parecia-lhe um
destino muito mais preferível do que o pesadelo pendente da yochlol.
Deixou cair uma bola de fogo aos pés.
Nu e sem cabelo, Masoj saiu aos tropeções pela porta, fugindo daquele inferno.
O mestre sem rosto e em chamas foi atrás dele, caindo num rolo e rasgando as
vestes em fogo e descolando-as das costas enquanto avançava.
Enquanto observava Alton a apagar as últimas chamas com palmadas, uma
recordação agradável relampejou na mente de Masoj, e expressou o único
lamento que dominava todos os seus pensamentos nesse momento desastroso.
— Deveria tê-lo morto quando o tinha preso na teia.
Pouco tempo depois, após Masoj ter regressado ao quarto e aos estudos, Alton
enfiou as pulseiras metálicas ornamentais que o identificavam como mestre da
Academia e saiu da estrutura de Sorcere. Avançou até à larga e serpenteante
escadaria que descia desde Tier Breche e sentou-se a apreciar a vista de
Menzoberranzan.
Mesmo com essa visão, porém, a cidade pouco fazia para distrair Alton dos
pensamentos acerca do seu mais recente falhanço. Durante dezasseis anos pusera
de parte todos os outros sonhos e ambições, na sua desesperada busca para
encontrar a Casa culpada. Durante dezasseis anos, falhara.
Interrogou-se sobre quanto tempo mais conseguiria perseguir esta charada e
manter o ânimo. Masoj, seu único amigo — se era que Masoj se poderia chamar
um amigo — estava a mais de meio caminho nos estudos em Sorcere. Que faria
Alton quando Masoj completasse os estudos e regressasse à Casa Hun’ett?
— Talvez tenha de arrastar os meus fardos ainda durante séculos — disse em
voz alta —, para depois acabar assassinado por algum estudante desesperado, tal
como eu próprio — tal como Masoj — matámos o Sem Rosto. Será que também
esse estudante se irá desfigurar e assumir o meu lugar?
Alton não conseguiu impedir a risadinha irónica que lhe perpassou pela boca
sem lábios, perante a ideia de um «mestre sem rosto» perpétuo em Sorcere. Em
que ponto acabaria a Matrona Governanta da Academia por desconfiar de
alguma coisa? Mil anos? Dez mil? Ou poderia mesmo o Sem Rosto perdurar
para além da própria Menzoberranzan? A vida de mestre não era má, pensou
Alton. Muitos drow sacrificariam muita coisa para atingirem essa honra.
Alton deixou o rosto repousar na curva do braço e obrigou-se a afastar esses
pensamentos. Não era um mestre verdadeiro, nem a posição usurpada lhe trazia
qualquer espécie de satisfação. Talvez Masoj devesse mesmo tê-lo morto nesse
dia, dezasseis anos antes, em que estava preso na teia do Sem Rosto.
O desespero de Alton apenas se tornou mais profundo quando apreciou a
verdadeira escala temporal implicada em tudo isto. Mal tinha completado o seu
septuagésimo aniversário e era ainda, pelos padrões drow, um jovem. A ideia de
que apenas um décimo da sua vida tinha ainda ficado para trás não era uma ideia
reconfortante para Alton DeVir, nessa noite.
— Quanto tempo sobreviverei? — perguntou-se. — Quanto tempo tenho até
que esta loucura que é a minha existência acabe por me consumir? — Olhou por
cima da cidade. — Mais valia que o Sem Rosto me tivesse morto — murmurou.
— Pois agora sou apenas Alton de Casa Nenhuma que Valha a Pena Mencionar.
Masoj atribuíra-lhe esse epíteto na primeira manhã após a queda da Casa
DeVir, mas nessa altura, com a vida presa por um fio, Alton não entendera as
implicações desse título. Menzoberranzan não era mais do que uma colecção de
casas individuais. Um comum vagabundo bem poderia bater à porta de uma
delas e passar a chamar-lhe sua. Mas um nobre caído em desgraça não seria
provavelmente aceite por nenhuma casa da cidade. Restava-lhe Sorcere, e nada
mais, até que a sua verdadeira identidade fosse finalmente descoberta. Que
punições teria então de enfrentar, pelo crime de matar um mestre da Academia?
Ainda que tivesse sido Masoj a cometer o crime, esse tinha uma Casa para o
defender. Alton era apenas um nobre isolado.
Encostou-se, apoiando-se nos cotovelos, e observou a luz crescente de
Narbondel. Enquanto os minutos se iam tornando horas, o desespero de Alton e
a sua auto-comiseração foram-se alterando inevitavelmente. Agora, voltava a
atenção de novo para as casas de Menzoberranzan, e não para o conglomerado
que fazia delas uma cidade, e interrogou-se sobre que negros segredos cada uma
delas esconderia. Uma delas, lembrou Alton a si mesmo, guardava o segredo que
ele mais ardentemente queria conhecer. Uma delas tinha eliminado a Casa DeVir.
Esquecido estava já o falhanço dessa noite com a Matrona Ginafae e a
yochlol; esquecido estava já o lamento por uma morte prematura. Dezasseis anos
não era assim tanto tempo, decidiu. Teria talvez sete séculos de vida no seu
corpo esguio. Se tivesse de ser, estava preparado para passar cada minuto desses
longos anos em busca da Casa culpada.
— Vingança — uivou bem alto, necessitado dessa lembrança audível da sua
única razão para continuar a respirar.
Zak continuou a pressionar com uma série de golpes baixos. Drizzt tentou recuar
rapidamente e regressar a pé de igualdade, mas o ataque sem tréguas seguia cada
passo que dava, e foi forçado a manter os movimentos exclusivamente na
defensiva. A maior parte das vezes, Drizzt acabava por ver os punhos das suas
armas mais próximos de Zak do que as lâminas.
Zak deixou-se então cair numa posição baixa e depois saltou avançando
contra a defesa de Drizzt.
Drizzt rodopiou as cimitarras numa cruz executada com mestria, mas teve de
se endireitar rapidamente para evitar o assalto igualmente ágil do mestre de
armas. Drizzt sabia que tinha sido emboscado e esperava já o ataque seguinte,
enquanto Zak mudava o peso do corpo para a outra perna e carregava, com as
pontas de ambas as espadas apontadas aos rins de Drizzt.
Drizzt rosnou uma maldição surda e colocou as suas cimitarras numa cruz
baixa, pretendendo usar o V formado pelas armas para aparar o golpe das
espadas do mestre. Num súbito impulso, hesitou enquanto interceptava as
espadas de Zak, e em vez disso saltou para trás, apanhando um doloroso golpe
no lado interior da coxa. Irritado, lançou ambas as cimitarras ao chão.
Zak também saltou para trás. Mantinhas as espadas ao lado do corpo, com um
ar de sincera confusão no rosto.
— Não devias ter falhado esse movimento — disse secamente.
— Os movimentos estão errados — respondeu Drizzt.
Aguardando mais explicações, Zak baixou a ponta de uma espada e apoiou-se
na arma. Em anos passados, tinha ferido, e até morto, outros estudantes por um
desafio tão descarado.
— A posição em cruz baixa sustém o ataque, mas com que vantagem? —
prosseguiu Drizzt. — Depois de completado o movimento, as pontas das minhas
espadas continuam demasiado em baixo para qualquer rotina de ataque eficaz, e
tu ficas livre para recuar incólume.
— Mas derrotaste o meu ataque.
— Apenas para enfrentar outro a seguir — argumentou Drizzt. — A melhor
posição que posso esperar obter destas defesas em cruz baixa é uma posição de
igualdade.
— Sim… — incentivou Zak, sem compreender o problema do aluno com esse
cenário.
— Lembra-te da tua própria lição! — gritou Drizzt. — Cada movimento deve
trazer uma vantagem, segundo me ensinaste, mas não vejo qualquer vantagem
em usar a cruz baixa.
— Estás a citar apenas uma parte dessa lição, para tua vantagem — troçou
Zak, agora a ficar igualmente zangado. — Completa a frase, ou então
simplesmente não a uses! «Cada movimento deve trazer uma vantagem ou
eliminar uma desvantagem». A cruz baixa derrota o duplo golpe baixo e o teu
oponente ganha obviamente a vantagem se tentar uma manobra tão ousada de
ataque! Regressar a uma posição de igualdade é de longe preferível, nesse
momento.
— Os movimentos estão errados — disse Drizzt teimosamente.
— Pega nas tuas armas — rosnou-lhe Zak, dando um passo ameaçador em
frente. Drizzt hesitou e Zak atacou, com as espadas em riste.
Drizzt baixou-se, pegou nas cimitarras e ergueu-se para enfrentar o assalto
enquanto se indagava se isto seria mais uma lição ou um verdadeiro ataque.
O mestre de armas carregou furiosamente, lançando golpe atrás de golpe e
fazendo Drizzt recuar em círculos. Drizzt defendeu-se bastante bem e começou a
notar um padrão muito familiar enquanto os ataques de Zak começavam a surgir
cada vez mais baixos, mais uma vez forçando os punhos das armas de Drizzt a
subir e a ficarem acima das lâminas.
Drizzt percebeu que Zak queria provar o seu argumento com acções, e não por
palavras. Vendo a fúria no rosto de Zak, porém, Drizzt não estava certo de até
onde o mestre de armas estaria disposto a ir para provar o seu argumento. Se Zak
mostrasse estar certo nas suas observações, atacaria de novo a coxa de Drizzt?
Ou o coração? Zak subia e descia, e Drizzt endireitava-se e ficava em tensão.
— Duplo golpe baixo — rugiu o mestre de armas. E as suas armas
carregaram.
Drizzt estava pronto para ele. Executou uma cruz baixa, sorrindo trocista
perante o círculo de metal das suas cimitarras cruzadas diante das espadas que
avançavam para ele. Drizzt prosseguiu depois com apenas uma das suas lâminas,
pensando que conseguiria desviar suficientemente bem ambas as espadas de Zak
dessa forma. Agora, com uma lâmina livre do movimento previsto, Drizzt fê-la
rodar num contra-ataque traiçoeiro.
Assim que Drizzt mudou a direcção, Zak percebeu a manha — um truque que
já suspeitava que Drizzt tentasse. Baixou a ponta de uma das suas espadas — a
que estava mais perto do punho da única espada de defesa de Drizzt — até ao
chão, e Drizzt, tentando manter a resistência e o equilíbrio ao longo da cimitarra
de bloqueio, perdeu o pé. Era suficientemente rápido para se reequilibrar antes
de cambalear demasiado, ainda que os nós dos dedos tivessem chegado a roçar a
pedra do chão. Continuava a acreditar que tinha Zak apanhado na sua ratoeira, e
que poderia terminar o seu brilhante contra-ataque. Deu um pequeno passo para
diante, para recuperar o equilíbrio completo.
O mestre de armas agachou-se de imediato, sob o arco da cimitarra rodopiante
de Drizzt, e deu uma volta completa, levando um calcanhar a bater no joelho
exposto de Drizzt. Antes que Drizzt se desse sequer conta do ataque, deu
consigo caído de costas no chão.
Zak interrompeu abruptamente o seu próprio balanço e voltou a colocar os pés
no chão na posição normal. Antes que Drizzt conseguisse começar a perceber o
estonteante contra-contra-ataque, deu com o mestre de armas por cima dele, com
a ponta da espada a fazer jorrar uma minúscula e dolorosa gota de sangue no seu
pescoço.
— Tens mais alguma coisa a dizer? — rosnou Zak.
— Os movimentos estão errados — respondeu Drizzt.
A gargalhada de Zak veio-lhe das entranhas. Deitou a espada ao chão, baixou-
se e puxou o teimoso aluno para o pôr de pé. Acalmou-se rapidamente, com o
olhar a enfrentar o olhar cor de alfazema de Drizzt, enquanto empurrava o aluno
para a distância de um braço. Zak admirava a facilidade com que Drizzt se
posicionava, a forma como manejava as cimitarras gémeas como se fossem uma
extensão natural dos braços. Drizzt apenas estava a treinar desde havia alguns
meses, mas já dominava o uso de quase todas as armas do vasto armorial da
Casa Do’Urden.
Aquelas cimitarras! As armas de eleição de Drizzt, com lâminas curvas que
aumentavam o estonteante rodopio do estilo de combate do jovem drow. Com
aquelas cimitarras nas mãos, este jovem drow, que pouco mais era ainda do que
uma criança, poderia vencer metade dos membros da Academia, e um arrepio
percorreu a espinha de Zak quando ponderou sobre o quão magnifico se tornaria
após anos de treino.
Mas não eram apenas as capacidades físicas e o potencial de Drizzt Do’Urden
que faziam Zak parar e apreciar o aluno. Zak acabara por perceber que o
temperamento de Drizzt era de facto diferente do de um drow mediano; Drizzt
possuía um espírito de inocência, e não tinha nenhuma maldade. Zak não
conseguia deixar de sentir-se orgulhoso quando olhava para Drizzt. Em todos os
aspectos, o jovem drow seguia os mesmos princípios — uma moral tão invulgar
em Menzoberranzan — que Zak.
Drizzt também reconhecera a ligação, embora não fizesse ideia de como as
visões partilhadas entre ele e Zak eram tão singulares naquele mundo drow tão
maligno. Percebia que o «Tio Zak» era diferente de qualquer outro dos elfos
negros que já conhecera, muito embora estes incluíssem apenas os da sua família
e umas dezenas de soldados da Casa. Zak era decerto muito diferente de Briza, a
irmã mais velha de Drizzt, com as suas ambições de zelo quase cego pela
misteriosa religião de Lolth. Zak era decerto diferente da Matrona Malice, mãe
de Drizzt, que parecia nunca dizer nada a Drizzt a não ser ordens.
Zak era capaz de sorrir perante situações que não provocavam
necessariamente sofrimento a ninguém. Era o primeiro drow que Drizzt
conhecera que estava aparentemente contente com a sua situação na vida. Zak
era o primeiro drow que Drizzt alguma vez ouvira rir.
— Boa tentativa — admitiu o mestre de armas perante o falhado contra-ataque
de Drizzt.
— Numa verdadeira batalha, estaria morto — respondeu Drizzt.
— Claro — disse Zak —, mas é por isso mesmo que treinamos. O teu plano
era de mestre, e o momento perfeito. Só que a situação era a errada. Mesmo
assim, volto a dizer que foi uma boa tentativa.
— Já estavas à espera disso — disse o estudante.
Zak sorriu e assentiu.
— Isso será talvez porque já vi essa manobra a ser tentada por outro aluno.
— Contra ti? — perguntou Drizzt, sentindo-se um pouco menos especial,
agora que sabia que as suas intuições em combate não eram tão singulares.
— Nada disso — respondeu Zak com uma piscadela de olho. — Vi o contra-
ataque falhar da mesma perspectiva que tu, com o mesmo resultado.
O rosto de Drizzt iluminou-se de novo.
— Pensamos da mesma maneira — comentou.
— É verdade — disse Zak —, mas o meu conhecimento foi crescendo com
quatro séculos de experiência, enquanto tu nem sequer ainda viveste muitos
anos. Acredita, meu ambicioso aluno. O movimento correcto é a cruz baixa.
— Talvez — respondeu Drizzt.
Zak disfarçou um sorriso.
— Quando encontrares um contra-ataque melhor, tentá-lo-emos. Mas até lá,
acredita no que te digo. Treinei mais soldados do que me consigo sequer
lembrar; todo o exército da Casa Do’Urden, e dez vezes esse número quando
servi como mestre em Melee-Magthere. Ensinei Rizzen, todas as tuas irmãs e
ambos os teus irmãos.
— Ambos?
— Eu… — Zak fez uma pausa e lançou um olhar intrigado a Drizzt. — Estou
a ver — disse por fim. — Nunca se deram sequer ao trabalho de te dizer.
Zak interrogou-se se lhe competiria a ele dizer a verdade a Drizzt. Duvidava
de que a Matrona Malice se importasse com isso; provavelmente, não dissera
nada a Drizzt simplesmente porque não considerara a história da morte de
Nalfein digna de menção.
— Sim, ambos — decidiu-se Zak a explicar. — Quando nasceste, tinhas dois
irmãos: Dinin, que conheces, e outro mais velho, Nalfein, que era um mago de
poder considerável. Nalfein foi morto em combate na mesma noite em que
nasceste.
— Contra anões ou gnomos malignos? — murmurou Drizzt, de olhos
arregalados como uma criança que implora uma história de arrepiar antes de ir
para a cama. — Estava a defender a cidade de conquistadores malvados ou
monstros vagabundos?
Zak teve dificuldade em reconciliar as percepções distorcidas das crenças
inocentes de Drizzt. «Enterrem-se os jovens em mentiras», disse para consigo.
Mas a Drizzt respondeu:
— Não.
— Então contra algum oponente ainda mais manhoso? — insistiu Drizzt. —
Elfos perversos da superfície?
— Morreu às mãos de outro drow! — deixou escapar Zak, frustrado,
apagando o entusiasmo dos olhos brilhantes de Drizzt.
Drizzt recuou para considerar as possibilidades, e Zak mal conseguia suportar
a visão da confusão que fazia contorcer o rosto do jovem drow.
— Guerra contra outra cidade? — perguntou Drizzt sombriamente. — Não
sabia…
Zak deixou o assunto morrer aí. Voltou-se e dirigiu-se lentamente para o seu
aposento privado. Que Malice ou um dos seus lacaios destruíssem a lógica
inocente de Drizzt. Atrás dele, Drizzt conteve a sua linha de perguntas seguintes,
compreendendo que a conversa, e a aula, tinham acabado. E percebendo,
também, que alguma coisa importante tinha transpirado.
O mestre de armas lutou com Drizzt durante longas horas, à medida que os dias
se iam transformando em semanas, e as semanas em meses. O tempo tornara-se
algo sem importância; lutavam até a exaustão os dominar, e regressavam à arena
de combate assim que estavam capazes disso.
Ao terceiro ano, com dezanove anos, Drizzt era capaz de enfrentar o mestre de
armas durante horas, tomando até a ofensiva em muitos dos seus embates.
Zak apreciava estes dias. Pela primeira vez em muitos anos, encontrara
alguém com potencial para se tornar seu igual em combate. Pela primeira vez de
que Zak se lembrava, o riso acompanhava muitas vezes o clamor do embate de
armas de adamantite na sala de treino.
Viu Drizzt crescer até ficar alto e esguio, atento e sempre em tensão, para
além de inteligente. Os mestres da Academia teriam dificuldade em encontrar
um rival à altura de Drizzt, até mesmo ao fim do seu primeiro ano!
Esse pensamento entusiasmava o mestre de armas apenas durante o tempo
necessário para se lembrar dos princípios da Academia, dos preceitos da vida
drow, e do que fariam do seu maravilhoso aluno. Como apagariam aquele sorriso
dos olhos de alfazema de Drizzt…
Uma recordação acutilante desse mundo drow exterior à sala de treino visitou-
os um dia, na pessoa da Matrona Malice.
— Dirige-te a ela com o devido respeito — avisou Zak quando Maya
anunciou a entrada da Matrona Mãe.
O mestre de armas avançou prudentemente alguns passos para saudar em
privado a cabeça da Casa Do’Urden.
— As minhas saudações, Matrona — disse, com uma profunda vénia. — A
que devo a honra da tua presença?
A Matrona Malice riu-se dele, desfazendo aquela fachada.
— Tanto tempo que tu e o meu filho passam aqui — disse a Matrona. — Vim
para ver que benefícios tem isso para o rapaz.
— É um excelente guerreiro — garantiu-lhe Zak.
— É bom que seja — murmurou Malice. — Irá para a Academia dentro de um
ano.
Zak semicerrou os olhos para ela, perante as palavras de dúvida, e respondeu:
— A Academia nunca viu melhor espadachim.
A Matrona afastou-se de Zak e foi pôr-se diante de Drizzt.
— Não duvido das tuas proezas com a espada — disse a Drizzt, embora
lançando um olhar para trás, para Zak, enquanto dizia isto. — Tens o sangue
necessário. Mas há outras qualidades que fazem um guerreiro drow; qualidades
do coração. A atitude de um guerreiro!
Drizzt não sabia como lhe responder. Apenas a vira algumas vezes ao longo
daqueles três anos, e mal tinham trocado uma palavra.
Zak viu a confusão na cara de Drizzt e receou que o rapaz cometesse algum
deslize — que era precisamente o que a Matrona queria. Depois, Malice teria
uma desculpa para retirar Drizzt da tutela de Zak — desonrando-o de caminho
— para o entregar a Dinin ou a outro assassino qualquer sem paixão. Zak podia
ser o melhor instrutor com a espada, mas agora que Drizzt aprendera o uso das
armas, Malice queria-o emocionalmente endurecido.
Zak não podia arriscar; dava demasiado valor ao seu tempo com Drizzt.
Desembainhou a espada e carregou por trás da Matrona Malice, gritando:
— Mostra-lhe, jovem guerreiro!
Os olhos de Drizzt tornaram-se focos de chamas enquanto via a aproximação
do seu instrutor. As cimitarras surgiram-lhe nas mãos tão rapidamente como se
apenas tivesse exercido a vontade de as fazer aparecer.
E ainda bem que assim era! Zak avançou para Drizzt com uma fúria que o
jovem drow nunca antes vira, ainda mais do que quando Zak lhe mostrara o
valor do movimento de cruz baixa. Saltaram faíscas quando as espadas
embateram contras as cimitarras, e Drizzt deu consigo a recuar, com ambos os
braços já doridos devido à força do embate dos golpes do mestre.
— Que estás tu a… — tentou Drizzt perguntar.
— Mostra-lhe — rosnou Zak, assestando golpe atrás de golpe.
Drizzt escapou à justa a um golpe que o teria certamente deixado morto. Mas
a confusão mantinha os seus movimentos puramente na defensiva.
Zak bateu numa das cimitarras de Drizzt, e depois na outra, fazendo abrir a
guarda, e depois usou uma arma inesperada, levando um pé direito até ao nível
do olhos e assestando depois um golpe com o calcanhar no nariz de Drizzt.
Drizzt ouviu o som de cartilagem a partir e sentiu o calor do seu próprio
sangue a correr-lhe pela cara. Recuou e rodopiou, tentando manter uma distância
segura do seu oponente enlouquecido, até conseguir recuperar os sentidos.
Agachado, viu Zak, a curta distância e a aproximar-se.
— Mostra-lhe! — uivava Zak zangado, a cada passo ameaçador.
As chamas púrpura do fogo feérico banhavam a pele de Drizzt, fazendo dele
um alvo ainda mais fácil. Respondeu da única maneira que podia; fez descer um
globo de escuridão sobre si próprio e Zak. Pressentindo o movimento seguinte
do mestre de armas, caiu para a frente e saltou para diante, mantendo a cabeça
baixa — o que foi uma escolha sábia.
Assim que se apercebeu da escuridão, Zak levitou rapidamente a três metros
de altura e rodopiou de novo, girando as suas lâminas ao nível da cara de Drizzt.
Quando Drizzt saiu pelo outro lado do globo escuro, olhou para trás e apenas
viu a metade inferior das pernas de Zak. Não precisou de ver mais nada para
perceber os ataques mortíferos do mestre de armas. Zak tê-lo-ia esquartejado, se
não se tivesse agachado na escuridão.
A ira tomou o lugar da confusão. Quando Zak desceu da sua posição de
levitação e saiu a correr do globo de escuridão, Drizzt deixou que a sua ira o
conduzisse de novo para a luta. Fez uma pirueta mesmo antes de atingir Zak,
com uma cimitarra a cortar uma linha em arco graciosa, e com a outra a segui-la
num golpe vertical traiçoeiramente certeiro.
Zak esquivou-se à ponta da primeira lâmina e ergueu um bloqueio à segunda.
Drizzt ainda não tinha acabado. Deu à sua lâmina atacante uma série de breves
e viciosos golpes em frente que mantiveram Zak na defensiva durante uma dúzia
de passos, ou mais, forçando-o a regressar à escuridão do globo. Tinham agora
de confiar apenas nos seus incrivelmente afinados sentidos de audição e nos
instintos. Zak conseguiu por fim recuperar o pé, mas Drizzt pôs imediatamente
os seus pés em movimento, pontapeando sempre que o equilíbrio das suas
lâminas rodopiantes o permitiam. Um pé conseguiu mesmo passar pelas defesas
do mestre de armas, fazendo o ar sair de súbito dos pulmões do mestre.
Saíram de novo do globo e também Zak brilhava agora bem à vista, banhado
pela luz feérica. O mestre de armas sentiu-se desgostado com o ódio que se
desenhava no rosto do seu jovem aluno, mas percebeu que desta vez, nem a ele,
nem a Drizzt tinha sido dada hipótese de escolha. Esta luta teria de ser feia, teria
de ser real. Gradualmente, Zak recuperou um ritmo mais simples,
exclusivamente defensivo, e deixou que Drizzt, na sua fúria explosiva, se
desgastasse.
Drizzt continuou incessantemente, sem dar tréguas e sem dar sinais de
cansaço. Zak ia-o ludibriando, fazendo-o ver abertas onde afinal não as havia, e
Drizzt era sempre rápido a seguir as pistas enganadoras, lançando um golpe, uma
parada ou um pontapé.
A Matrona Malice observava o combate em silêncio. Não poderia negar a
magnitude do treino que Zak dera ao filho; Drizzt estava — fisicamente — mais
do que preparado para o combate.
Zak também sabia que, para a Matrona Malice, a simples perícia com as
armas poderia não ser suficiente. Zak tinha de impedir a Matrona de conversar
com Drizzt o mais possível. Porque ela não aprovaria as atitudes do filho.
Drizzt estava a começar a cansar-se, e Zak conseguia perceber isso, embora
reconhecendo que o cansaço evidente nos braços do aluno era, em parte, uma
artimanha.
— Avança com isso — murmurou silenciosamente, e de súbito «torceu» o
tornozelo, com o braço direito a rodar aberto enquanto tentava equilibrar-se,
abrindo uma brecha nas suas defesas a que Drizzt não poderia resistir.
O golpe esperado veio num ápice e o braço esquerdo de Zak abateu-se num
contragolpe curto que fez saltar a cimitarra da mão de Drizzt.
— Ah! — gritou Drizzt, que já esperava o movimento e estava a lançar a sua
segunda astúcia. A cimitarra que lhe restava abateu-se sobre o ombro esquerdo
de Zak, carregando inevitavelmente sobre a sequência da troca de golpes.
Mas na altura em que Drizzt ia lançar o segundo golpe, Zak já estava de
joelhos. Enquanto a lâmina de Drizzt voava inofensivamente por cima dele, Zak
pôs-se de pé e lançou um gancho de direita, com o punho para a frente, que
apanhou Drizzt em cheio na cara. Um Drizzt estupefacto deu um salto para trás e
ficou em perfeita imobilidade durante um longo momento. A cimitarra que lhe
restava caiu no chão e os olhos brilhantes não pestanejaram.
— Uma manha dentro de outra manha, dentro de outra manha — explicou
Zak calmamente.
Drizzt caiu redondo no chão, inconsciente.
A Matrona Malice acenou em sinal de aprovação enquanto Zak regressava
para junto dela.
— Está pronto para a Academia — notou. O rosto de Zak tomou uma
expressão amarga. Não respondeu. — Vierna já lá está — prosseguiu ela. —
Para ensinar como Dama de Arach-Tinilith, a Escola de Lolth. É uma grande
honra.
Um louro na coroa da Casa Do’Urden, como Zak bem sabia; mas era
suficientemente esperto para se manter calado.
— E Dinin partirá em breve — disse a Matrona.
Zak ficou surpreendido. Dois filhos a servirem na Academia como mestres, ao
mesmo tempo?
— Deves ter trabalhado muito para conseguir essas disposições — atreveu-se
a notar.
A Matrona Malice sorriu.
— Favores que eram devidos, favores que foram cobrados.
— Para que finalidade? — perguntou Zak. — Para protecção de Drizzt?
Malice soltou uma gargalhada.
— Por aquilo que vi, seria mais provável ser Drizzt a proteger os outros dois.
Zak mordeu o lábio perante o comentário da Matrona. Dinin continuava a ser
duas vezes melhor guerreiro e um matador dez vezes mais desapiedado do que
Drizzt. Zak sabia que Malice teria outros motivos.
— Três das oito primeiras Casas serão representadas por não menos de quatro
filhos na Academia ao longo das próximas duas décadas — admitiu a Matrona
Malice. — O filho da Matrona Baenre começará na mesma classe de Drizzt.
— Tens, então, aspirações — disse Zak. — Quão alto, pois, subirá a Casa
Do’Urden sob a orientação de Matrona Malice?
— O sarcasmo ainda te há-de custar a língua — avisou a Matrona Mãe. —
Seríamos loucos se não aproveitássemos uma tal oportunidade para sabermos
mais acerca dos nossos rivais.
— As primeiras oito Casas — conjecturou Zak. — Tem cautela, Matrona
Malice. Não te esqueças de ser previdente para a hipótese de surgirem rivais nas
Casas menos importantes. Houve em tempos uma Casa, chamada Casa DeVir,
que cometeu esse erro.
— Nenhum ataque virá pelas costas — desdenhou Malice. — Somos a Nona
Casa, mas possuímos mais força do que uma mão-cheia de outras. Nenhuma nos
atacará pelas costas; há alvos mais fáceis na fila.
— E tudo para nossa vantagem — acrescentou Zak.
— Esse é o objectivo de tudo, não será? — perguntou Malice, com um sorriso
malvado escancarado na boca.
Zak não precisava de responder; a Matrona conhecia os seus verdadeiros
sentimentos. Esse não era, precisamente, o objectivo.
— Fala menos, e o teu queixo sarará mais depressa — disse Zak mais tarde,
quando estava já de novo a sós com Drizzt.
Drizzt lançou-lhe um olhar de desprezo. O mestre de armas abanou a cabeça.
— Tornámo-nos grandes amigos — disse.
— Isso era o que eu pensava — resmungou Drizzt.
— Então, pensa com clareza — instou Zak. — Acreditas que a Matrona
Malice aprovaria uma tal ligação entre o seu mestre de armas e o seu filho mais
jovem — e mais valioso? És um drow, Drizzt Do’Urden, e de sangue nobre. Não
podes ter amigos!
Drizzt endireitou-se como se tivesse levado uma bofetada.
— Pelo menos, abertamente — concedeu Zak, pousando um mão
reconfortadora no ombro do jovem. — Amigos significam vulnerabilidade, uma
vulnerabilidade indesculpável. A Matrona Malice nunca aceitaria… — fez uma
pausa, percebendo que estava a ir depressa demais para o seu jovem aluno. —
Bom — admitiu numa conclusão simples —, pelo menos sabemos o que somos.
Por qualquer razão, a Drizzt isso não pareceu o suficiente.
— Vem, depressa — instruiu Zak a Drizzt uma noite, depois de terem acabado o
treino. Dada a urgência do tom do mestre de armas, e tendo em conta que Zak
nem sequer parara para esperar por ele, Drizzt percebeu que algo importante
estava a acontecer.
Apanhou finalmente Zak na varanda da Casa Do’Urden, onde já estavam
Maya e Briza.
— O que é? — perguntou Drizzt.
Zak puxou-o para perto e apontou para o outro lado da caverna, para os
limites nordeste da cidade. Havia luzes a relampejar e depois a morrer
lentamente, em jorros súbitos. Um pilar de fogo ergueu-se no ar e depois
desapareceu.
— Um raide — disse Briza sem emoção. — Casas menores, nada que nos
afecte.
Zak viu que Drizzt não estava a compreender.
— Uma Casa atacou outra — explicou. — Vingança, talvez, mas mais
provavelmente uma tentativa para subir a uma posição mais alta na cidade.
— A batalha está a ser longa — notou Briza. — E as luzes continuam a
relampejar.
Zak continuou a esclarecer o evento ao confuso Segundo Rapaz da Casa
Do’Urden.
— Os atacantes deveriam ter bloqueado a batalha dentro dos confins de um
anel de escuridão. O facto de não o terem feito poderá indicar que a Casa sitiada
estava pronta para se defender do ataque.
— Não está a correr tudo bem para os atacantes — concordou Maya.
Drizzt mal conseguia acreditar no que estava a ouvir. Ainda mais alarmante do
que o acontecimento em si, era a forma como a sua família falava acerca dele.
Eram tão calmos nas suas descrições, como se tudo aquilo fosse uma
ocorrência já esperada.
— Os atacantes não podem deixar ficar nenhuma testemunha — explicou Zak
a Drizzt. — Caso contrário, incorrerão na ira do Conselho Governante.
— Mas nós somos testemunhas — argumentou Drizzt.
— Não — respondeu Zak. — Somos espectadores; esta batalha não nos diz
respeito. Só os nobres da Casa atacada têm o direito de fazer acusações contra os
seus atacantes.
— Se restarem alguns vivos — acrescentou Briza, apreciando obviamente o
drama.
Nesse momento, Drizzt não tinha a certeza se apreciava esta nova revelação.
Mas, sentisse o que sentisse, descobriu que não conseguia desviar os olhos do
espectáculo da batalha entre os drow. Todo o complexo Do’Urden estava agora
em rebuliço, com soldados e escravos correndo por todo o lado, em busca de um
local de observação e gritando descrições da acção e boatos acerca dos atacantes.
Isto era a sociedade drow em plena e macabra diversão, e se bem que tudo
isso parecesse derradeiramente errado ao mais jovem membro da Casa
Do’Urden, Drizzt não poderia negar a excitação daquela noite. Nem poderia
negar as expressões de óbvio prazer estampadas nos rostos dos três que com ele
partilhavam a varanda.
Alton dirigiu-se aos seus aposentos privados uma última vez, para se assegurar
de que quaisquer artefactos ou tomos que pudessem parecer minimamente
sacrílegos estivessem bem escondidos. Estava à espera de uma visita de uma
Matrona Mãe, o que era uma ocasião rara para um mestre da Academia sem
ligações a Arach-Tinilith, a Escola de Lolth. Alton estava mais do que um pouco
ansioso acerca dos motivos desta visitante em particular — a Matrona SiNafay
Hun’ett, cabeça da Quinta Casa da cidade e mãe de Masoj, parceiro de Alton
numa conspiração.
Uma batida na porta de pedra da sala mais exterior do seu complexo disse a
Alton que a convidada tinha chegado. Endireitou as vestes e deu mais uma
olhada em volta pelo quarto. A porta abriu-se antes que Alton conseguisse lá
chegar e a Matrona SiNafay entrou de rompante. Com que facilidade fizera a
transformação — sair do escuro absoluto do corredor exterior em direcção à luz
das velas da sala de Alton — sem sequer um pestanejar de olhos!
SiNafay era mais pequena do que Alton imaginara, pequena até pelos padrões
drow. Pouco mais teria do que um metro e vinte, e pesaria, pelo cálculo de Alton,
não mais do que vinte e cinco quilos. Mas era uma Matrona Mãe, e Alton
recordou a si mesmo que poderia fulminá-lo apenas com um simples
encantamento.
Alton desviou o olhar obedientemente e tentou convencer-se de que não havia
nada de invulgar nesta visita. Ficou menos à vontade, porém, quando Masoj
entrou na sala e foi pôr-se ao lado da mãe, com um sorriso descarado na cara.
— Saudações da Casa Hun’ett, Gelroos — disse a Matrona SiNafay. — Vinte
e cinco anos, ou mais, já passaram desde a última vez que conversámos.
«Gelroos»?, interrogou-se Alton em silêncio. Pigarreou para disfarçar a
surpresa.
— As minhas saudações, Matrona SiNafay — conseguiu balbuciar. — Já
passou tanto tempo?
— Devias vir a Casa — disse a Matrona. — Os teus aposentos continuam
vagos.
«Os meus aposentos?» Alton começou a sentir-se muito agoniado.
SiNafay não deixou de perceber o olhar dele. Um sorriso de desdém
perpassou-lhe pelos lábios e os olhos semicerraram-se.
Alton suspeitou de que o seu segredo teria sido revelado. Se o Sem Rosto
tinha sido membro da família Hun’ett, como poderia Masoj ter esperado
conseguir enganar a Matrona Mãe da Casa? Procurou a melhor via de fuga, ou
pelo menos alguma maneira de conseguir matar aquele traiçoeiro Masoj, antes
que SiNafay o deitasse abaixo.
Mas quando voltou a olhar para a Matrona SiNafay, esta já começara a entoar
um encantamento quase silencioso. Os olhos abriram-se-lhe muito quando
completou o encantamento, com as suas suspeitas confirmadas.
— Quem és tu? — perguntou, com uma voz que parecia mais curiosa do que
realmente preocupada.
Não havia escapatória, nem havia maneira de chegar a Masoj, que se mantinha
prudentemente ao lado da poderosa mãe.
— Quem és tu? — perguntou de novo SiNafay, puxando de um instrumento
de três cabeças do seu cinto — o temido chicote com cabeças de serpente que
injectava o mais doloroso e incapacitante veneno conhecido dos drow.
— Alton — gaguejou, sem outro remédio que não fosse responder. Sabia que,
dado que ela estava agora prevenida, SiNafay usaria uma simples magia para
detectar quaisquer mentiras que ele inventasse. — Sou Alton DeVir.
— DeVir? — a Matrona SiNafay pareceu pelo menos intrigada. — Da Casa
DeVir que morreu há uns anos?
— Sou o único sobrevivente — admitiu Alton.
— E mataste Gelroos… Gelroos Hun’ett… E tomaste o lugar dele como
mestre em Sorcere — raciocinou a Matrona, com um tom jocoso. A tragédia
parecia cada vez mais prestes a abater-se sobre Alton.
— Eu não… Eu não podia saber o nome dele… E ele ter-me-ia morto! —
balbuciou Alton.
— Quem matou Gelroos fui eu — disse uma voz mais atrás.
SiNafay e Alton olharam para Masoj, que mais uma vez empunhava o seu
arco favorito.
— Matei-o com isto — explicou o jovem Hun’ett. — Na noite em que a Casa
DeVir caiu. Encontrei a minha desculpa na briga que Gelroos estava a ter com
esse aí.
Apontou para Alton.
— Gelroos era teu irmão — relembrou a Matrona SiNafay a Masoj.
— Que os seus ossos sejam amaldiçoados! — disse Masoj. — Durante quatro
miseráveis anos, servi-o. Servi-o como se fosse uma Matrona Mãe! E ele queria
mandar-me para fora de Sorcere e que fosse para Melee-Magthere.
A Matrona olhava alternadamente para Alton e para Masoj.
— E deixaste que este vivesse — conjecturou, com um sorriso de novo nos
lábios. — Mataste o teu inimigo e forjaste uma aliança com um novo mestre,
numa só jogada.
— Tal como fui ensinado a fazer — disse Masoj entredentes, sem saber se a
estas palavras se seguiria um castigo ou um elogio.
— Eras apenas uma criança — notou SiNafay, apercebendo-se subitamente da
cronologia dos factos.
Masoj aceitou o elogio em silêncio.
Alton observava tudo isto ansiosamente.
— Então e eu? — exclamou. — A minha vida está acabada?
SiNafay lançou-lhe um olhar intenso.
— A tua vida como Alton DeVir acabou, ao que parece, na noite em que a
Casa DeVir caiu. Assim, permanecerás o Sem Rosto, Gelroos Hun’ett. Dão-me
jeito os teus olhos na Academia… Para vigiares os inimigos do meu filho e os
meus inimigos.
Alton quase não conseguia respirar. Dar consigo subitamente aliado a uma das
casas mais poderosas de Menzoberranzan! Uma torrente de possibilidades e de
perguntas inundou-lhe a mente, com uma em especial, que o vinha assediando
desde havia duas décadas.
A sua Matrona Mãe adoptiva reconheceu a excitação.
— Diz o que estás a pensar — ordenou-lhe.
— És uma alta Sacerdotisa de Lolth — disse Alton com ousadia, com aquela
ideia fixa a sobrepor-se a todas as cautelas. — Está dentro dos teus poderes
conceder-me o meu mais profundo desejo.
— Atreves-te a pedir um favor? — a Matrona SiNafay espantou-se, embora
visse o tormento no rosto de Alton e tivesse ficado intrigada pela aparente
importância do mistério. — Muito bem.
— Que Casa destruiu a minha família? — perguntou Alton. — Pergunta ao
Outro Mundo, imploro-te, Matrona SiNafay.
SiNafay considerou a questão cuidadosamente, e as possibilidades que se
abriam derivadas da aparente sede de vingança de Alton. Seria mais um
benefício consequente de permitir que aquele ser entrasse para a família?
SiNafay indagou-se.
— Isso já eu sei — respondeu. — Talvez quando tiveres demonstrado o teu
valor te diga.
— Não! — gritou Alton. Mas calou-se imediatamente, percebendo que tinha
interrompido uma Matrona Mãe, crime que implicava uma sentença de morte.
SiNafay conteve os seus ímpetos de ira.
— Essa pergunta deve ser muito importante para ti, para te levar a agir de
forma tão tola — disse.
— Por favor — implorou Alton. — Tenho de saber. Mata-me, se quiseres, mas
primeiro diz-me quem foi.
SiNafay gostou da coragem dele, e a obsessão de Alton só poderia mostrar ser
uma vantagem para ela.
— A Casa Do’Urden — disse.
— Do’Urden? — repetiu Alton, quase não conseguindo acreditar que uma
Casa tão recuada na hierarquia da cidade tivesse podido derrotar a Casa DeVir.
— Não encetarás nenhuma acção contra eles — avisou a Matrona SiNafay. —
E perdoar-te-ei a tua insolência, desta vez. És agora um filho da Casa Hun’ett;
lembra-te sempre do teu lugar!
E deixou ficar as coisas por ali, sabendo que alguém que fora suficientemente
esperto para pôr em prática um tal logro durante quase duas décadas não seria
suficientemente tolo para desobedecer à Matrona Mãe da sua Casa.
— Vem, Masoj — disse a Matrona para o filho. — Deixemos este sozinho,
para que possa ponderar na sua nova identidade.
Dinin foi ter com o irmão na manhã seguinte, bem cedo. Drizzt saiu lentamente
da sala de treino, espreitando por cima do ombro a cada passo para ver se Zak
sairia e o atacaria, ou se viria despedir-se.
Sabia, no seu coração, que Zak não o faria.
Drizzt pensara sempre que eram amigos, acreditara que o elo que ele e
Zaknafein tinham forjado ia muito para além das simples lições e do treino das
armas. O jovem drow não tinha respostas para as muitas perguntas que
rodopiavam na sua mente, e a pessoa que tinha sido o seu mestre durante os
últimos cinco anos nada mais tinha para lhe dar.
— O calor está a crescer em Narbondel — notou Dinin quando saíram para a
varanda. — Não nos podemos atrasar para o nosso primeiro dia na Academia.
Drizzt olhou para a miríade de cores e de formas que compunham
Menzoberranzan.
— Que lugar é este? — murmurou, apercebendo-se de como sabia pouco da
sua própria terra, para lá das paredes da sua própria casa. As palavras de Zak —
e a sua raiva — abateram-se sobre Drizzt enquanto estava ali, lembrando-lhe a
sua própria ignorância e sugerindo um caminho negro à sua frente.
— Isto é o mundo — respondeu Dinin, muito embora a pergunta de Drizzt
tivesse sido retórica. — Não te preocupes, Segundo Rapaz — riu-se, subindo
para o corrimão. — Aprenderás sobre Menzoberranzan na Academia.
Aprenderás quem és e quem é a tua gente.
Esta declaração incomodou Drizzt. Talvez — tendo em conta o seu último e
amargo encontro com o drow em quem mais confiava — esse conhecimento
fosse exactamente aquilo que mais temia.
Encolheu os ombros, resignado, e seguiu Dinin por cima da varanda, iniciando
uma descida mágica até ao chão do complexo: os primeiros passos ao longo de
um negro caminho.
— Drizzt Do’Urden
Usando a roupagem de um filho nobre, e com um punhal escondido numa bota
— sugestão de Dinin — Drizzt subiu a vasta escadaria de pedra que levava a
Tier Breche, a Academia dos drow. Drizzt chegou ao topo e avançou por entre os
gigantescos pilares, sob o olhar impassível de dois guardas, estudantes do último
ano de Melee-Magthere.
Duas dúzias de outros jovens drow corriam pelo complexo da Academia, mas
Drizzt mal reparou neles. Três estruturas dominavam a sua visão e os seus
pensamentos. À sua esquerda estava a torre de Sorcere, a escola de magia, uma
estalagmite afiada. Drizzt passaria aí os primeiros seis meses do seu décimo e
último ano de estudos.
Diante dele, na parte de trás daquele andar, erguia-se a mais impressionante
das estruturas, Arach-Tinilith, a escola de Lolth, esculpida na pedra para se
assemelhar a uma gigantesca aranha. Aos olhos dos drow, este era o mais
importante edifício da Academia e, por isso, estava normalmente reservado às
fêmeas. Os estudantes masculinos só ficavam hospedados dentro de Arach-
Tinilith durante os seus seis últimos meses de estudos.
Embora Sorcere e Arach-Tinilith fossem as estruturas mais graciosas, o
edifício mais importante para Drizzt nesse momento estava na parede à sua
direita. A estrutura piramidal da Melee-Magthere, a escola dos guerreiros. Esse
edifício seria o lar de Drizzt durante os próximos nove anos. Os seus
companheiros, apercebia-se agora, eram todos aqueles outros elfos negros que
andavam ali: guerreiros, como ele próprio, que iam começar o seu treino formal.
A turma, de vinte e cinco alunos, era invulgarmente grande para a escola de
guerreiros.
Ainda mais invulgar, a maioria dos novos estudantes eram nobres. Drizzt
interrogou-se como se mediriam as suas aptidões contra as deles, como se
comparariam as suas sessões com Zaknafein com as batalhas que estes outros
tinham sem dúvida tido com os mestres de armas das suas respectivas famílias.
Estes pensamentos levaram Drizzt inevitavelmente de regresso ao último
encontro com o seu mentor. Rapidamente sacudiu o pensamento desse duelo
desagradável e, mais rapidamente ainda, as perguntas perturbantes que as
observações de Zak o tinham forçado a considerar. Não havia, nesta ocasião,
lugar para tais pensamentos. Melee-Magthere estava diante dele, e era o maior
teste e a maior lição da sua jovem vida.
— As minhas saudações — disse uma voz atrás dele.
Drizzt voltou-se para enfrentar um colega novato, que usava uma espada e
uma adaga desconfortavelmente no cinturão e que parecia ainda mais nervoso do
que Drizzt — o que era uma visão reconfortante.
— Kelnozz, da Casa Kenafin, Décima Quinta Casa — disse o caloiro.
— Drizzt Do’Urden, de Daermon N’a’shezbaernon, Casa Do’Urden, Nona
Casa de Menzoberranzan — respondeu automaticamente Drizzt, exactamente
como Malice lhe tinha ensinado.
— Um nobre — notou Kelnozz, compreendendo o significado de Drizzt usar
o mesmo apelido da sua casa. Kelnozz baixou numa longa vénia. — Honras-me
com a tua presença.
Drizzt estava já a começar a gostar deste lugar. Dado o tratamento que
habitualmente recebia em casa, dificilmente se considerava um nobre. Quaisquer
noções de importância pessoal que lhe pudessem ter ocorrido perante a saudação
veneradora de Kelnozz foram desfeitas logo em seguida, porém, quando os
mestres saíram.
Drizzt viu o irmão, Dinin, entre eles, mas fingiu, tal como Dinin lhe tinha
instruído — não reparar, nem esperar qualquer tratamento especial. Drizzt correu
para dentro de Melee-Magthere juntamente com os restantes estudantes assim
que os chicotes começaram a estalar e os mestres começaram a gritar as
consequências severas se se atrasassem. Foram levados como um rebanho por
alguns corredores, até uma sala oval.
— Sentem-se ou fiquem de pé, como queiram! — rosnou um dos mestres.
Reparando em dois estudantes que murmuravam entre si, o mestre puxou do
chicote e deitou ao chão um dos prevaricadores.
Drizzt nem queria acreditar em quão rapidamente a sala ficou em ordem.
— Sou Hatch’net — começou o mestre numa voz tonitruante. — Mestre de
Lendas. Esta sala será a vossa sala de instrução durante cinquenta ciclos de
Narbondel — olhou em volta, para os cinturões adornados de cada uma das
figuras. — Não trarão quaisquer armas para este local!
Hatch’net circulou pela sala, assegurando-se de que todos os olhos seguiam os
seus movimentos atentamente.
— Vocês são drow — disse subitamente. — Compreendem o que isso
significa? Sabem de onde vieram, e a história do nosso povo? Menzoberranzan
nem sempre foi o nosso lar, nem qualquer outra caverna do Subescuro. Em
tempos, andámos pela superfície do mundo — girou rapidamente e deu de caras
com Drizzt. — Sabes acerca da superfície? — rosnou-lhe o mestre Hatch’net.
Drizzt recuou e abanou a cabeça.
— Um local terrível — prosseguiu Hatch’net, virando costas a todo o grupo.
— Todos os dias, enquanto o brilho começa a crescer em Narbondel, uma grande
bola de fogo nasce no céu aberto lá em cima, trazendo consigo horas de uma luz
mais forte do que os encantamentos punitivos das sacerdotisas de Lolth! —
estendeu os braços, com os olhos voltados para cima, e um esgar inacreditável
espalhou-se-lhe no rosto.
Ouviram-se murmúrios de espanto de todos os estudantes à sua volta.
— Mesmo à noite, quando a bola de fogo desce para além da orla do mundo
— continuou Hatch’net, proferindo as palavras como se estivesse a contar uma
história de terror — não se consegue fugir aos horrores incontáveis da superfície.
Pontos de luz — e por vezes uma bola menor de fogo prateado — mancham a
abençoada escuridão do céu, lembranças do que o dia seguinte trará. Em tempos,
o nosso povo caminhava pela superfície do mundo — repetiu, agora num tom de
lamento. — Em eras que já lá vão, há mais tempo do que o das linhagens das
grandes casas. Nessa idade distante, caminhávamos ao lado dos elfos de pele
branca!
— Isso não pode ser verdade! — gritou um estudante.
Hatch’net olhou para ele consternado, sopesando se haveria mais a ganhar em
castigar o estudante pela sua interrupção não solicitada, ou permitindo ao grupo
participar.
— É, sim — repetiu, escolhendo a segunda via. — Pensávamos que os elfos
brancos eram nossos amigos; chamávamos-lhes família! Não podíamos saber, na
nossa inocência, que eram a encarnação do logro e do mal. Não podíamos saber
que subitamente se haveriam de virar contra nós e afastar-nos deles, chacinando
os nossos filhos e os nossos mais velhos. Sem piedade, os malvados elfos
brancos perseguiram-nos por toda a superfície do mundo. Estávamos sempre a
pedir a paz, e sempre a ser respondidos com espadas e setas assassinas!
Fez uma pausa, com o rosto contorcendo-se num sorriso malévolo.
— Depois, encontrámos a deusa!
— Lolth seja louvada! — ouviu-se um grito anónimo.
Mais uma vez, Hatch’net deixou passar esse deslize sem punição, sabendo que
cada comentário excitado só levava a sua audiência a mergulhar cada vez mais
na sua teia de retórica.
— Seja, sim — respondeu o mestre. — Louvemos a Rainha Aranha. Foi ela
que recebeu a nossa raça órfã e a acolheu a seu lado, ajudando-nos a lutar contra
os nossos inimigos. Foi ela quem guiou as nossas matronas ancestrais da nossa
raça para o paraíso do Subescuro. É ela — rugiu, com um punho cerrado no ar
— que agora nos dá a força e a magia para nos desforrarmos do nosso inimigo.
Somos os drow! — gritou Hatch’net. — Vocês são os drow, que nunca mais
serão espezinhados; serão senhores de tudo o que desejarem, conquistadores de
terras que decidam habitar!
— À superfície? — perguntou alguém.
— Na superfície? — riu-se Hatch’net. — Quem quereria regressar a esse
lugar tão vil? Que os elfos brancos fiquem com ele! Que ardam sob o fogo do
céu aberto! Nós reclamamos o Subescuro, onde podemos sentir o pulsar do
centro do mundo sob os nossos pés, e onde as pedras das paredes mostram o
calor do poder do mundo!
Drizzt estava sentado em silêncio, absorvendo cada palavra do muito ensaiado
discurso do talentoso orador. Drizzt tinha sido apanhado, tal como todos os
outros estudantes, pelas hipnóticas inflexões e pelos gritos de Hatch’net.
Hatch’net era mestre de Lendas da Academia havia mais de dois séculos,
gozando de mais prestígio em Menzoberranzan do que praticamente qualquer
outro macho drow, e do que muitas das fêmeas. As matronas das famílias
governantes compreendiam bem o valor daquela língua bem experiente.
E assim era cada dia, com uma torrente interminável de retórica de ódio
dirigida contra um inimigo que nunca algum dos alunos alguma vez vira. Os
elfos da superfície não eram o único alvo das invectivas de Hatch’net. Anões,
duendes, humanos, halflings e todas as raças da superfície — e até raças
subterrâneas como os anões duergar, com quem os drow negociavam muitas
vezes e até chegavam a lutar lado a lado — encontravam sempre um lugar
desagradável nas perorações do mestre.
Drizzt acabou por perceber por que razão não eram permitidas armas na sala
oval. Sempre que saía das lições, todos os dias, dava consigo de mãos tensas ao
lado do corpo, procurando inconscientemente um punho de cimitarra. Era óbvio,
pelas brigas vulgares entre estudantes, que os outros sentiam a mesma coisa.
Porém, havia sempre o factor aglutinante que se sobrepunha e que mantinha uma
certa medida de controlo: a mentira do mestre acerca dos horrores do mundo
exterior e o laço reconfortante da herança comum dos estudantes; uma herança,
como os estudantes em breve haveriam de acreditar, que lhes dava suficientes
inimigos para combater para além de uns contra os outros.
A sorte bafejou Drizzt com uma certa dose de justiça nesse dia, porque o seu
primeiro adversário, e a sua primeira vítima na grande batalha, foi nada menos
do que o seu antigo parceiro. Drizzt encontrou Kelnozz no mesmo corredor que
tinham usado como ponto de defesa inicial no ano anterior e abateu-o com a sua
primeira combinação de ataque. Drizzt conseguiu a custo conter o seu ímpeto
atacante, embora desejasse realmente carregar a cimitarra fingida com toda a sua
força contra o peito de Kelnozz.
Depois, deslizou pelas sombras, escolhendo cuidadosamente o caminho, até o
número de estudantes sobreviventes começar a diminuir. Com a sua reputação,
Drizzt tinha de ser extremamente cuidadoso, porque os colegas de turma viam
uma vantagem comum em eliminar as proezas dele desde cedo na batalha.
Trabalhando sozinho, Drizzt tinha de avaliar cuidadosamente cada embate antes
de reagir, para se assegurar de que cada oponente não trazia companheiros
ocultos à espreita nas redondezas.
Esta era a arena de Drizzt, o local onde se sentia mais à vontade, e estava à
altura do desafio. Ao fim de duas horas, apenas cinco contendentes restavam, e
depois de mais duas horas de jogo do gato e do rato, apenas restavam dois:
Drizzt e Berg’inyon Baenre.
Drizzt saiu para uma extensão aberta da caverna.
— Anda, sai, estudante Baenre! — chamou. — Resolvamos este desafio
abertamente e com honra!
Observando do passadiço superior, Dinin abanou a cabeça, incrédulo.
— Abdicou de qualquer vantagem que tinha — disse o mestre Hatch’net, que
estava ao lado do Rapaz Mais Velho da Casa Do’Urden. — Sendo melhor
espadachim, tinha Berg’inyon preocupado e na incerteza quanto aos seus
movimentos. E agora o teu irmão está ali às claras, mostrando a posição.
— Continua a ser um tonto — resmungou Dinin.
Hatch’net detectou Berg’inyon a deslizar por trás de uma estalagmite, a
poucos metros por trás de Drizzt.
— Isto ficará resolvido em breve — comentou o mestre.
— Estás com medo? — gritava Drizzt para a penumbra. — Se queres
realmente merecer o primeiro lugar, como tantas vezes dizes, então sai e
enfrenta-me cara a cara. Prova as tuas palavras, Berg’inyon Baenre, ou nunca
mais te atrevas a pronunciá-las!
O já esperado movimento atrás dele levou Drizzt a rebolar para um lado.
— O combate é mais do que apenas o golpe de espadas! — gritou o filho da
Casa Baenre enquanto avançava, com os olhos rebrilhando com a sensação de
vantagem que parecia agora deter.
Mas Berg’inyon tropeçou, atraiçoado por um fio que Drizzt tinha instalado, e
caiu de cara no chão. Drizzt abateu-se sobre ele num relâmpago, apontando a
ponta da cimitarra à garganta do opositor.
— Isso já eu aprendi — respondeu Drizzt sarcasticamente.
— E assim um Do’Urden se torna campeão — observou Hatch’net, fazendo
incidir a sua luz azul na cara do filho derrotado da Casa Baenre. Depois, apagou
o sorriso escancarado da cara de Dinin com as palavras seguintes: — Os rapazes
mais velhos deverão sempre ter atenção aos segundos rapazes possuidores de tal
destreza.
Embora Drizzt pouco se orgulhasse da sua vitória no segundo ano, estava muito
satisfeito com a consolidação contínua das suas aptidões para o combate.
Praticava todas as horas do dia, desde que não estivesse ocupado nos muitos
deveres de serviço de um jovem estudante. Esses deveres iam sendo reduzidos à
medida que os anos iam passando — os estudantes mais jovens eram quem
trabalhava mais arduamente — e Drizzt foi encontrando cada vez mais tempo
para o treino privado. Comprazia-se com a dança das suas lâminas e com a
harmonia dos movimentos. As cimitarras tornaram-se os seus únicos amigos, a
única coisa em que se atrevia a confiar.
Voltou a vencer a grande batalha no terceiro ano, e a do ano a seguir, apesar
das conspirações de muitos outros contra ele. Para os mestres, tornou-se evidente
que ninguém da sua turma seria capaz de vencer Drizzt, e no ano seguinte
colocaram-no na grande batalha contra os estudantes três anos mais avançados.
Venceu também dessa vez.
A Academia, mais do que qualquer outra coisa em Menzoberranzan, era um
local estruturado, e embora a destreza superior de Drizzt desafiasse essa
estrutura em termos de proezas em combate, a sua permanência ali enquanto
estudante não seria reduzida. Como guerreiro, passaria dez anos na Academia, o
que não era um tempo assim tão longo, em comparação com os trinta anos de
estudo que um mago tinha de passar em Sorcere, ou os cinquenta anos que uma
candidata a sacerdotisa tinha de passar em Arach-Tinilith. Enquanto os
guerreiros começavam o treino na idade jovem de vinte anos, os magos só
podiam começar os estudos aos vinte e cinco, e as sacerdotisas tinham de esperar
até aos quarenta anos.
Os primeiros quatro anos em Melee-Magthere eram dedicados ao combate
individual, ao manejo das armas. Nisso, os mestres pouco podiam ensinar a
Drizzt que Zaknafein não lhe tivesse já mostrado.
Depois disso, porém, as lições tornaram-se mais colectivas. Os jovens
guerreiros drow passavam dois anos completos a aprender tácticas de combate
em grupo com outros guerreiros, e os três anos seguintes incorporavam essas
tácticas em técnicas de guerra lado a lado com magos e sacerdotisas, ou contra
estes.
O ano final da Academia completava a educação dos guerreiros. Os primeiros
seis meses eram passados em Sorcere, aprendendo as bases do uso da magia; e
os últimos seis meses, prelúdio da graduação, viam os guerreiros sob a tutela das
sacerdotisas de Arach-Tinilith.
Durante todo esse tempo, permanecia a retórica, o martelar de todos aqueles
preceitos que a Rainha Aranha tinha por caros, essas mentiras de ódio que
mantinham os drow num estado constante de caos controlado.
Para Drizzt, a Academia tornou-se um desafio pessoal, uma sala de aula
privada dentro da teia impenetrável das suas cimitarras rodopiantes. Dentro das
paredes de adamantite que formava com essas lâminas, Drizzt descobriu que
podia ignorar as muitas injustiças que observava à sua volta, e que podia, de
certa forma, isolar-se contra aquelas palavras que lhe envenenariam o coração. A
Academia era um local de constantes ambições e traições, um campo de cultura
para a desenfreada fome de poder que marcava a vida de todos os drow.
Drizzt haveria de sobreviver-lhe sem se deixar afectar, prometera a si mesmo.
À medida que os anos passavam, porém, e à medida que as batalhas
começavam a ganhar os contornos da realidade brutal, Drizzt deu consigo
repetidamente no meio de situações que não podia tão facilmente pôr de lado.
Moviam-se pelos túneis serpenteantes tão silenciosamente como uma leve brisa,
com cada passo avaliado cuidadosamente e a terminar numa postura defensiva.
Eram estudantes do nono ano a completar o último ano em Melee-Magthere, e
era tão frequente treinarem fora da caverna de Menzoberranzan, como no seu
interior. Já não eram paus a fingir de armas que adornavam os seus cinturões;
agora havia neles armas de adamantite, finamente forjadas e cruelmente
aguçadas.
Por vezes, os túneis fechavam-se à sua volta, quase sem largura suficiente
para deixar passar um único elfo negro. Outras vezes, os estudantes davam
consigo em vastas cavernas com paredes e tectos que se perdiam de vista. Eram
guerreiros drow, treinados para operar em qualquer tipo de paisagem do
Subescuro, e conhecedores das técnicas de qualquer inimigo que pudessem
encontrar.
«Patrulhas de treino», chamara o mestre Hatch’net a estes exercícios, embora
tivesse avisado os estudantes de que essas «patrulhas de treino» davam muitas
vezes com monstros bem reais e pouco amistosos.
Drizzt, que ainda estava classificado no topo da sua turma e seguia na posição
de ponta de lança, liderava o seu grupo, com o mestre Hatch’net e dez outros
estudantes a segui-lo em formação. Só restavam vinte e dois dos vinte e cinco
membros iniciais da turma. Um tinha sido expulso — e subsequentemente
executado — por causa de uma tentativa falhada de assassinato de um estudante
de nível mais elevado; um segundo fora morto na arena de treino; e um terceiro
morrera na cama, de causas naturais — porque uma adaga no coração acaba
muito naturalmente com a vida de qualquer um.
Num outro túnel, a pouca distância, Berg’inyon Baenre, que tinha a segunda
posição na turma, liderava o mestre Dinin e a outra metade da turma num
exercício similar.
Dia após dia, Drizzt e os outros tinham-se esforçado por se manter sempre em
extrema prontidão. Em três meses destas patrulhas de treino, o grupo apenas
encontrara um monstro, um pescador das cavernas, uma criatura repelente do
Subescuro semelhante a um caranguejo. Até mesmo esse recontro proporcionara
apenas uma breve excitação, e não tinha qualquer valor como experiência,
porque a criatura deslizara ao longo do caminho escapando-se à patrulha drow
antes mesmo que esta tivesse oportunidade de a atacar.
Neste dia, porém, Drizzt sentia algo diferente. Talvez fosse apenas o tom
invulgar da voz do mestre Hatch’net, ou um ecoar qualquer nas pedras da
caverna, uma vibração subtil que sugeria ao subconsciente de Drizzt outras
criaturas no labirinto de túneis. Fosse qual fosse a razão, Drizzt sabia o
suficiente para seguir os seus instintos, e não ficou surpreendido quando o brilho
revelador de uma fonte de calor surgiu numa passagem lateral na periferia da sua
visão. Fez sinal aos restantes da patrulha para pararem, e depois trepou
rapidamente para uma posição mais elevada, numa laje de pedra por cima da
saída da passagem.
Quando o intruso apareceu no túnel principal, deu consigo caído de costas no
chão, com duas cimitarras cruzadas sobre o pescoço. Drizzt recuou
imediatamente quando reconheceu que a sua vítima era outro estudante drow.
— Que estás a fazer aqui? — perguntou o mestre Hatch’net ao intruso. —
Sabes bem que os túneis fora de Menzoberranzan não podem ser cruzados por
ninguém a não ser os das patrulhas!
— O teu perdão, mestre — pediu o estudante. — Trago notícias de um alerta.
Todos os da patrulha se reuniram à volta dele, mas Hatch’net afastou-os com
um olhar incisivo e mandou Drizzt colocá-los em posições defensivas.
— Desapareceu uma criança — prosseguiu o estudante. — Uma princesa da
Casa Baenre! Foram vistos monstros nos túneis!
— Que espécie de monstros? — perguntou Hatch’net.
Um som forte, como o de duas pedras a bater uma contra a outra, respondeu à
pergunta.
— Horrores de garras! — sinalizou Hatch’net para Drizzt, ao seu lado.
Drizzt nunca vira tais animais, mas já aprendera o suficiente sobre eles para
compreender por que razão o mestre passara subitamente a usar o código gestual
silencioso. Os horrores de garras caçavam com a ajuda de um sentido auditivo
mais desenvolvido do que o de qualquer outra criatura de todo o Subescuro.
Drizzt passou o mesmo sinal rapidamente para todos os outros, e todos ficaram
perfeitamente imóveis à espera de instruções do mestre. Esta era a situação para
que tinham sido treinados durante os últimos nove anos das suas vidas, e apenas
o suor nas mãos traía a calma prontidão destes jovens guerreiros drow.
— Feitiços de escuridão não conseguirão enganar os horrores de garras —
gesticulou Hatch’net para as suas tropas. — Nem isto — apontou para a besta de
mão que empunhava e para o dardo envenenado que esta continha, e que era
uma arma de primeiro ataque bastante comum dos elfos drow. Hatch’net
recolheu a besta e sacou a espada comprida.
— Têm de encontrar uma abertura na armadura óssea da criatura — lembrou-
lhes — e enfiar a arma por aí até encontrar a carne.
Deu uma pancada no ombro de Drizzt e avançaram juntos, com os outros
estudantes atrás em formação.
O ruído de pedras a bater ouvia-se claramente, mas, ecoando nas paredes de
pedra dos túneis, revelava-se um sinal confuso para os drow à caça. Hatch’net
deixou que Drizzt liderasse o caminho e ficou impressionado pela forma como o
estudante rapidamente discerniu o padrão do eco. Os passos de Drizzt ganharam
confiança, embora muitos outros do grupo olhassem em redor ansiosamente,
incertos do perigo e da distância a que este se encontraria.
Então, um som singular fê-los ficar imóveis no local onde estavam,
sobrepondo-se à batida regular do monstro e ecoando uma e outra vez,
envolvendo a patrulha na loucura ressoante de uma espera aterradora. Eram os
gritos de uma criança.
— Princesa da Casa Baenre! — gesticulou Hatch’net para Drizzt.
O mestre começou a dar instruções às suas tropas para se porem em formação
de combate, mas Drizzt não esperou para ver esses comandos. Aquele grito tinha
enviado uma onda de repulsa a percorrer-lhe a espinha e, quando se voltou a
ouvir, acendeu um fogo de ira nos seus olhos cor de violeta.
Drizzt lançou-se a correr pelo túnel, com o frio metal das suas cimitarras a
abrir caminho.
Hatch’net organizou a patrulha numa rápida perseguição. Odiava a ideia de
perder um estudante tão hábil como Drizzt, mas também considerou os
benefícios das atitudes imprevisíveis de Drizzt. Se os outros vissem o melhor da
turma a morrer num acto de estupidez, isso seria uma lição que não esqueceriam
tão cedo.
Drizzt dobrou uma esquina e desceu uma área plana de paredes estreitas e
requebradas. Agora não ouvia nenhum eco, apenas o batimento regular do
monstro que esperava e os gritos abafados da criança.
Os seus ouvidos apurados apanharam o som surdo da patrulha, atrás dele.
Soube que, se ele os conseguia ouvir, os horrores de garras também podiam,
seguramente. Drizzt não desistiria do empenho ou da urgência da sua demanda.
Subiu para uma laje que ficava a três metros do chão, esperando que esta
seguisse ao longo de todo o comprimento do corredor. Quando deslizou por uma
última curva, mal conseguia distinguir o calor das formas do monstro através do
frio do exosqueleto ósseo, cujas camadas tinham quase a mesma temperatura da
pedra que o rodeava.
Percebeu que havia pelo menos cinco desses animais gigantescos, dois deles
alapados na pedra fria e guardando o corredor, e três outros mais atrás, num
pequeno beco, brincando com um objecto qualquer — algo que chorava.
Drizzt acalmou os nervos e prosseguiu pela laje, usando todas as capacidades
de dissimulação que aprendera para passar pelas sentinelas. Então viu a pequena
princesa, caída e enrolada no chão aos pés de um daqueles monstruosos bípedes.
As sacudidelas dos soluços indicaram a Drizzt que a criança estava viva. Drizzt
não tinha qualquer intenção de enfrentar os monstros, se o pudesse evitar,
esperando em vez disso ser capaz de entrar à socapa, raptar a criança e fugir.
Depois, a patrulha surgiu à sua frente após a curva do corredor, forçando-o a
entrar em acção.
— Sentinelas! — gesticulou, avisando, e provavelmente salvando as vidas dos
primeiros quatro do grupo. A atenção de Drizzt virou-se depois abruptamente
para a criança ferida, enquanto um dos monstros com garras erguia um pé
pesado e cheio de garras para a esmagar.
A grande besta tinha quase o dobro da altura de Drizzt e pesava pelo menos
cinco vezes mais do que ele. Estava completamente couraçada com as duras
conchas do exosqueleto e adornada com gigantescas mãos com garras e um
longo e poderoso bico. Havia três daqueles monstros entre Drizzt e a criança.
Drizzt não se podia importar com qualquer desses pormenores, nesse
momento crítico. Os seus receios pela criança sobrepunham-se a qualquer
preocupação com o perigo que se erguia à sua frente. Era um guerreiro drow, um
combatente treinado para lutar e equipado para o combate, enquanto a criança
estava indefesa.
Dois dos horrores de garras correram para a laje, dando a Drizzt a aberta de
que precisava. Pôs-se de pé e saltou por cima deles, descendo numa nuvem de
gestos de combate ao lado do horror de garras que restava. O monstro esqueceu
por completo a criança quando as cimitarras de Drizzt carregaram repetidamente
contra o seu bico, procurando desesperadamente uma abertura na armadura
facial.
O horror de garras caiu para trás, vencido pela fúria do oponente e incapaz de
responder a tempo aos movimentos velozes das lâminas de Drizzt.
Drizzt soube que estava em vantagem contra este, mas sabia também que os
outros dois depressa estariam atrás de si. Não esmoreceu. Desceu da posição
onde estava e rebolou para o lado do monstro, bloqueando-lhe a retirada, e
caindo entre as suas pernas semelhantes a estalagmites, fazendo-o tropeçar nas
pedras. Depois, ficou em cima dele, picando furiosamente enquanto o monstro
caia de borco.
O horror de garras tentava desesperadamente responder, mas a sua armadura
era demasiado pesada para lhe permitir virar-se e fugir ao ataque.
Drizzt sabia que a sua própria situação era ainda mais desesperada. A batalha
estalara no corredor, mas Hatch’net e os outros não poderiam passar pelas
sentinelas a tempo de parar os dois horrores de garras que decerto estariam a
avançar para as suas costas. A prudência recomendaria que Drizzt desistisse da
sua posição sobre este monstro e girasse para assumir nova postura defensiva.
O grito agonizante da criança, porém, sobrepôs-se à prudência. A raiva ardia
nos olhos de Drizzt de forma tão evidente que até mesmo o estúpido horror de
garras soube que a sua vida estava prestes a acabar. Drizzt colocou as pontas das
cimitarras a formar um «V» e mergulhou-as na nuca do monstro com toda a sua
força. Vendo uma ligeira abertura na crosta do monstro, Drizzt cruzou os punhos
das armas, inverteu as pontas, e rasgou uma abertura clara nas defesas do
monstro. Depois, uniu os punhos e mergulhou as lâminas em conjunto, a direito,
através da carne macia e até ao cérebro da criatura.
Uma pesada garra delineou uma linha profunda no ombro de Drizzt, rasgando-
lhe o piwafwi e fazendo brotar sangue. Drizzt saltou para a frente, rebolando, e
ergueu-se com as costas feridas contra a parede. Só um horror de garras
avançava para ele; o outro fora apanhar a criança.
— Não! — gritou Drizzt. Começou a avançar, para de imediato ser lançado de
novo para trás por uma palmada do monstro atacante. Então, paralisado, viu
horrorizado o outro monstro a pôr fim aos gritos da criança.
A raiva tomou o lugar da determinação nos olhos de Drizzt. O horror de garras
que estava mais próximo correu para ele, com intenção de o esmagar contra a
pedra. Drizzt percebeu essas intenções e nem tentou desviar-se do caminho. Em
vez disso, mudou a posição das mãos nos punhos das armas e empunhou-as
encostadas à parede, acima dos ombros.
Com o ímpeto dos quatrocentos quilos do monstro a avançar, nem mesmo a
casca da sua armadura o poderia proteger das cimitarras de adamantite. Esmagou
Drizzt contra a parede, mas ao fazê-lo trespassou-se com as espadas na barriga.
A criatura saltou para trás, tentando sacudir-se e libertar-se, mas não podia
escapar à fúria de Drizzt Do’Urden. Selvaticamente, o jovem drow fez girar as
lâminas enfiadas no monstro. Depois, afastou-se da parede com a força da ira,
forçando o monstro a recuar.
Dois dos inimigos de Drizzt estavam mortos, e outro de entre as sentinelas do
corredor tinha sido abatido, mas Drizzt não encontrou alívio nesse facto. O
terceiro horror de garras ergueu-se acima dele enquanto tentava
desesperadamente libertar as armas da vítima mais recente. Drizzt não tinha
maneira de escapar a este.
A segunda patrulha chegou nesse momento, e Dinin e Berg’inyon Baenre
correram para o beco, pela mesma laje que Drizzt usara. O monstro desviou a
atenção de Drizzt quando os dois hábeis guerreiros avançaram para ele.
Drizzt ignorou o doloroso golpe nas costas e as fracturas que sem dúvida teria
sofrido nas frágeis costelas. Respirar era-lhe doloroso, mas também isso não
tinha importância. Conseguiu finalmente libertar uma das armas, e carregou
sobre as costas do monstro. Apanhado entre três drow hábeis, o horror de garras
caiu em poucos segundos.
O corredor estava finalmente livre, e os elfos negros correram todos pelo
beco. Apenas tinham perdido um estudante na batalha contra as monstruosas
sentinelas.
— Uma princesa da Casa Barrison’del’armgo, notou um dos estudantes da
patrulha de Dinin, olhando para o corpo da criança.
— Disseram-nos que era da Casa Baenre — disse outro estudante do grupo de
Hatch’net. Drizzt não deixou de reparar na discrepância.
Berg’inyon Baenre correu para ver se a vítima era de facto sua irmã mais
nova.
— Não é da minha casa — disse com óbvio alívio depois de uma rápida
inspecção. Depois riu-se, quando um exame mais aprofundado revelou outros
pormenores do cadáver: — Nem sequer é uma princesa! — declarou.
Drizzt observava tudo aquilo com curiosidade, notando acima de tudo a
atitude impassível, dura, dos seus companheiros.
Outro estudante confirmou a observação de Berg’inyon:
— Uma criança macho — disse. — Mas de que casa?
O mestre Hatch’net avançou para o pequeno corpo e baixou-se para retirar a
bolsa que estava pendurada ao pescoço da criança. Despejou o conteúdo nas
mãos, revelando a insígnia de uma casa menor.
— Um órfão perdido — riu-se para os estudantes, atirando a bolsa para o
chão, e metendo ao bolso o conteúdo. — Sem consequências.
— Uma bela luta — acrescentou logo Dinin. — Com apenas uma baixa.
Regressarão a Menzoberranzan orgulhosos do trabalho que hoje aqui cumpriram.
Drizzt fez bater as lâminas das suas cimitarras uma contra a outra, num tilintar
sonoro de protesto.
O mestre Hatch’net ignorou-o.
— Voltem a formar e regressemos — disse para os outros. — Todos se saíram
bem hoje — depois, olhou intensamente para o estudante irado, fazendo-o parar.
— Excepto tu! Não posso ignorar o facto de teres abatido dois dos monstros e de
teres ajudado a eliminar um terceiro — escarneceu Hatch’net —, mas puseste
em perigo todos os restantes com as tuas ousadias irracionais!
— Avisei-vos das sentinelas — resmungou Drizzt.
— Raios partam o teu aviso! — gritou o mestre. — Avançaste sem ordens!
Ignoraste os métodos aceites de combate! Trouxeste-nos para aqui às cegas!
Olha para o cadáver do teu companheiro caído! — rugiu Hatch’net, apontando
para o estudante morto no corredor. — O sangue dele mancha as tuas mãos!
— A minha intenção era salvar a criança — argumentou Drizzt.
— Todos nós tínhamos essa intenção! — retorquiu Hatch’net.
Drizzt não tinha assim tanta certeza disso. Que andaria uma criança a fazer
por ali sozinha, naqueles corredores? Que conveniente que um grupo de horrores
de garras, uma criatura raramente vista na região de Menzoberranzan, calhasse
estar por ali, para proporcionar treino a esta «patrulha de treino». Demasiado
conveniente, sabia Drizzt, considerando que as passagens mais afastadas da
cidade eram vigiadas por verdadeiras patrulhas de guerreiros experientes, de
magos e até de sacerdotisas.
— Sabias o que estava para lá da curva, naquele túnel — disse Drizzt
calmamente, semicerrando os olhos para o mestre.
A pancada seca de uma espada em cheio na ferida que tinha nas costas fez
Drizzt encolher-se de dor, e quase se foi abaixo. Virou-se para dar com Dinin a
olhar severamente para ele.
— Mantém as tuas palavras tontas para ti — avisou Dinin num sussurro irado
—, ou serei eu que te corto a língua.
— A criança foi um embuste — insistiu Drizzt quando ficou a sós com o irmão,
no quarto de Dinin.
A resposta de Dinin foi uma estalada violenta na cara de Drizzt.
— Sacrificaram-na apenas para a finalidade do exercício — resmungou o
teimoso Do’Urden mais jovem.
Dinin lançou um segundo golpe, mas desta vez Drizzt parou-lhe a mão a meio
do caminho.
— Sabes bem que as minhas palavras são a verdade — disse Drizzt. — Sabias
daquilo desde o início.
— Aprende o teu lugar, Segundo Rapaz — respondeu Dinin, numa ameaça
clara. — Na Academia e na família.
Afastou-se do irmão.
— Que a Academia vá para os Nove Infernos! — cuspiu Drizzt para Dinin. —
E se a família sustenta tais…
Reparou que as mãos de Dinin empunhavam agora uma espada e uma adaga.
Drizzt saltou para trás, puxando as cimitarras para uma posição de prontidão.
— Não tenho qualquer desejo de lutar contra ti, meu irmão — disse. — Mas fica
sabendo que, se atacares, me defenderei. E só um de nós sairá daqui vivo.
Dinin considerou cuidadosamente o seu passo seguinte. Se atacasse e
vencesse, poria fim à ameaça à sua posição no seio da família. Certamente que
ninguém, nem mesmo a Matrona Malice, questionaria a punição exercida contra
o seu impertinente irmão mais novo. Mas Dinin já vira Drizzt em combate. Dois
horrores de garras! Até mesmo Zaknafein teria dificuldade em proclamar uma tal
vitória. Mesmo assim, Dinin sabia que, se não levasse por diante a ameaça, se
deixasse que Drizzt o menosprezasse, poderia estar a dar-lhe a confiança
necessária para as futuras lutas contra ele, e possivelmente a incitar a traição que
sempre esperara que viesse do segundo Rapaz.
— Mas o que vem a ser isto? — ouviu-se uma voz vinda da porta do quarto.
Os dois irmãos viraram-se para ver a sua irmã Vierna, mestra de Arach-Tinilith.
— Baixem as armas — comandou. — A Casa Do’Urden não se pode dar ao luxo
de tais lutas internas neste momento!
Percebendo que se tinha livrado da situação, Dinin cumpriu imediatamente a
ordem, e Drizzt fez o mesmo.
— Considerem-se com sorte — disse Vierna — por eu não contar à Matrona
Malice esta estupidez. Não seria nada piedosa convosco, garanto-vos.
— Porque vieste tu a Melee-Magthere sem te fazeres anunciar? — perguntou
o Rapaz Mais Velho, perturbado pela atitude da irmã. Também ele era mestre da
Academia, mesmo sendo apenas um macho, e por isso merecia algum respeito.
Vierna olhou para a entrada, e depois fechou a porta trás de si.
— Vim avisar os meus irmãos — explicou calmamente. — Há rumores de
vingança contra a nossa casa.
— De que família? — insistiu Dinin. Drizzt limitava-se a manter-se num
silêncio confundido e deixou os outros continuar. — Por que acto?
— Pela eliminação da Casa DeVir, presumo — respondeu Vierna. — Pouco se
sabe; os rumores são vagos. Mas queria avisar-vos a ambos, para que
mantenham a guarda especialmente atenta nos meses que aí vêm.
— A Casa DeVir caiu há muitos anos — disse Dinin. — Que punição poderia
ainda ser exercida?
Vierna encolheu os ombros.
— São apenas rumores — disse. — Rumores a que devemos prestar atenção!
— Fomos acusados de um acto errado? — perguntou Drizzt. — Certamente a
nossa família deve chamar à pedra esse falso acusador!
Vierna e Dinin trocaram um sorriso.
— Errado? — riu-se Vierna.
A expressão de Drizzt revelava a sua confusão.
— Na própria noite em que nasceste — explicou Dinin —, a Casa DeVir
deixou de existir. Um excelente ataque, aliás.
— Foi a Casa Do’Urden? — perguntou Drizzt quase sem fôlego, incapaz de
lidar com estas notícias espantosas. Claro que Drizzt sabia acerca destas
batalhas, mas mantivera sempre a esperança de que a sua própria família
estivesse acima desse tipo de acção assassina.
— Uma das melhores eliminações que alguma vez levámos a cabo —
vangloriou-se Vierna. — Nenhuma testemunha foi deixada viva.
— Vocês… A nossa família… Assassinaram outra família?
— Cuidado com as tuas palavras, Segundo Rapaz — avisou Dinin. — O acto
foi perfeitamente executado. Aos olhos de Menzoberranzan, portanto, nunca
aconteceu.
— Mas a Casa DeVir deixou de existir — disse Drizzt.
— Até à última criança — disse Dinin, rindo-se.
Milhares de possibilidades assaltaram Drizzt nesse momento terrível, mil
perguntas urgentes que precisava de ver respondidas. Uma, em especial,
destacava-se vivamente, inchando como um nó de fel na sua garganta.
— Onde estava Zaknafein nessa noite? — perguntou.
— Na capela das sacerdotisas da Casa DeVir, claro — respondeu Vierna. —
Zaknafein desempenha muito bem o seu papel nesses assuntos.
Drizzt cambaleou sobre os calcanhares, quase incapaz de acreditar no que
estava a ouvir. Sabia que Zak já tinha morto outros drow, que já tinha morto
sacerdotisas de Lolth, mas sempre presumira que o mestre de armas agira por
necessidade, em auto-defesa.
— Deverias demonstrar mais respeito pelo teu irmão — avisou-o Vierna. —
Puxar de armas contra Dinin! Deves-lhe a tua vida!
— Sabes disso? — riu-se Dinin, lançando um olhar curioso para Vierna.
— Estávamos em sintonia nessa noite — lembrou-lhe Vierna. — É claro que
sei.
— De que estão vocês a falar? — perguntou Drizzt, quase com medo de ouvir
a resposta.
— Eras para ser o terceiro macho nascido na família — explicou Vierna. — O
terceiro filho vivo.
— Ouvi falar do meu irmão Nalfein… — O nome parou na garganta de Drizzt
quando começou a perceber. Tudo o que conseguira saber acerca de Nalfein era
que tinha sido morto por outro drow.
— Aprenderás nos teus estudos em Arach-Tinilith que o terceiro filho vivo é
geralmente sacrificado a Lolth, a Rainha Aranha — prosseguiu Vierna. — E
assim tu tinhas sido prometido. Na noite em que nasceste, na noite em que a
Casa Do’Urden combateu a Casa DeVir, Dinin ascendeu à posição de rapaz mais
velho — lançou um olhar ao irmão, que se mantinha com os braços
orgulhosamente cruzados sobre o peito. — Agora posso falar disso — sorriu
Vierna para Dinin, que acenou com a cabeça em assentimento. — Aconteceu
tudo há demasiado tempo para que qualquer castigo recaia sobre Dinin.
— Que estão para aí a dizer? — perguntou Drizzt. O pânico abatia-se sobre
ele. — Que fez Dinin?
— Enfiou um punhal nas costas de Nalfein — disse Vierna calmamente.
Drizzt estava à beira da náusea total. Sacrifício? Assassinato? Aniquilação de
uma família, incluindo as crianças? De que estavam para ali a falar os seus
irmãos?
— Mostra respeito para com o teu irmão! — exigiu Vierna. — Deves-lhe a tua
vida. E aviso-vos aos dois — rosnou baixinho, com o seu olhar intenso a fazer
tremer Drizzt e fazendo Dinin descer do seu pedestal confiante: — A Casa
Do’Urden pode estar a caminho da guerra. Se algum de vocês atacar o outro,
chamará a si a ira de todas as nossas irmãs e da Matrona Malice. Quatro altas
sacerdotisas contra a vossa alma sem préstimo!
Confiante de que a sua ameaça tinha peso suficiente, virou costas e saiu do
quarto.
— Vou-me embora — murmurou Drizzt, apenas desejando deslizar para
algum canto escuro.
— Sairás quando te der permissão — escarneceu Dinin. — Lembra-te do teu
lugar, Drizzt Do’Urden, na Academia e na família.
— Tal como tu te lembraste do teu relativamente a Nalfein?
— A batalha contra a Casa DeVir estava ganha — respondeu Dinin, sem se
ofender. — O meu acto não acarretou perigo para a família.
Uma nova onda de nojo varreu Drizzt. Sentia-se como se o chão estivesse a
abrir-se debaixo dos pés para o engolir, e quase desejou que isso acontecesse
mesmo.
— Vivemos num mundo difícil — disse Dinin.
— Somos nós que o fazemos assim — replicou Drizzt. Queria ir mais além,
implicar a Rainha Aranha e toda aquela religião amoral que sancionava acções
tão traiçoeiras e destrutivas.
Mas, sensatamente, conteve-se. Dinin queria vê-lo morto; agora percebia isso.
Drizzt percebia também que, se desse ao irmão calculista uma oportunidade para
virar as irmãs da família contra ele, este seguramente o faria sem hesitar.
— Tens de aprender — disse Dinin de novo com um tom controlado —, a
aceitar as realidades do que te rodeia. Tens de aprender a reconhecer os teus
inimigos e a derrotá-los.
— Por quaisquer meios que tenha — concluiu Drizzt.
— Essa é a marca que distingue um verdadeiro guerreiro! — respondeu Dinin
com um sorriso malévolo.
— E os nossos inimigos são elfos drow?
— Somos guerreiros drow — declarou Dinin com convicção. — Fazemos o
que temos de fazer para sobreviver.
— Tal como tu fizeste, na noite em que nasci — raciocinou Drizzt, embora,
nesta altura, já não houvesse vestígios de indignação no seu tom resignado. —
Foste suficientemente astuto para saíres imaculado do teu gesto.
A resposta de Dinin, embora completamente esperada, espantou
profundamente o jovem drow.
— Nunca aconteceu.
— Sou Drizzt…
— Eu sei quem tu és — respondeu o estudante mago, nomeado tutor de Drizzt
em Sorcere. — A tua reputação precede-te. A maioria na Academia já ouviu
falar de ti e das tuas proezas com as armas.
Drizzt fez uma vénia, um pouco embaraçado.
— Essa destreza com as armas será de pouca utilidade aqui — prosseguiu o
mago. — Compete-me ser teu tutor nas artes de magia, no lado negro da magia,
como lhe chamamos. Isto é um teste à tua mente e ao teu coração; meras armas
de metal não terão qualquer relevância. A magia é o verdadeiro poder da nossa
gente!
Drizzt aceitou o menosprezo das armas sem responder. Sabia que as virtudes
que este jovem mago estava a gabar também eram qualidades necessárias de um
verdadeiro guerreiro. Os atributos físicos só desempenhavam um papel menor no
estilo de batalha de Drizzt. Uma forte força de vontade e manobras bem
calculadas, tudo aquilo que o mago aparentemente acreditava que só os magos
conseguiam usar, ajudavam a vencer os duelos que Drizzt enfrentava.
— Mostrar-te-ei muitas maravilhas nos próximos meses — prosseguiu o
mago. — Artefactos que nem acreditarás e feitiços de uma força que nunca
viste!
— Posso saber o teu nome? — perguntou Drizzt, tentando soar de alguma
forma impressionado pela torrente contínua de auto-glorificação do estudante.
Drizzt já tinha aprendido bastante acerca dos magos com Zaknafein, e
sobretudo sobre as fraquezas inerentes à sua classe. Devido à utilidade da magia
em situações fora da batalha, os magos drow recebiam uma posição elevada na
sociedade, só atrás das sacerdotisas de Lolth. Era um mago, afinal de contas,
quem acendia a brilhante Narbondel, o relógio da cidade, e eram magos quem
acendia os fogos feéricos das esculturas das casas decoradas.
Zaknafein tinha pouco respeito pelos magos. Conseguiam matar rapidamente
e à distância, avisara Drizzt, mas quando se conseguia chegar perto deles, pouca
defesa tinham contra uma espada.
— Masoj — respondeu o mago. — Masoj Hun’ett, da Casa Hun’ett. Estou a
começar o meu trigésimo e último ano de estudo. Em breve serei reconhecido
como um mago de direito de Menzoberranzan, com todos os privilégios
decorrentes da minha posição.
— Saudações, Masoj Hun’ett — respondeu Drizzt. — Também a mim me
falta apenas um ano de treino na Academia, pois um guerreiro passa aqui apenas
dez anos.
— Um talento menor — notou imediatamente Masoj. — Os magos estudam
durante trinta anos até serem considerados devidamente experientes para saírem
e praticarem a sua arte.
Mais uma vez, Drizzt aceitou o insulto com graciosidade. Queria ver acabada
esta fase da instrução o mais depressa possível, e depois terminar o ano e sair de
uma vez por todas da Academia.
Drizzt acabou por considerar que os seus seis meses sob a tutela de Masoj eram,
na verdade, os melhores da sua estadia na Academia. Não que tivesse acabado
por simpatizar com Masoj; o vaidoso mago estava constantemente em busca de
maneiras para lembrar a Drizzt a inferioridade dos guerreiros. Drizzt pressentiu a
existência de uma competição entre ele próprio e Masoj, quase como se o mago
estivesse a prepará-lo para algum conflito futuro. O jovem guerreiro passou por
cima disso, como sempre fizera, e tentou absorver o mais que podia das suas
lições.
Descobriu que era bastante hábil com a magia. Todos os drow, incluindo os
guerreiros, possuíam um grau de talentos mágicos e certas capacidades inatas.
Até mesmo as crianças drow conseguiam convocar um globo de escuridão ou
confundir os seus oponentes com uma multiplicidade de chamas coloridas e
inofensivas. Drizzt lidava com estas tarefas com facilidade e, em poucas
semanas, já era capaz de executar vários truques e alguns feitiços menores.
Com os talentos mágicos inatos dos elfos negros vinha também uma certa
resistência a ataques mágicos, e fora aí que Zaknafein descobrira a principal
fraqueza dos magos. Um mago podia lançar o seu feitiço mais poderoso na
perfeição, mas se a sua vítima era um elfo drow, o mago podia ver os seus
esforços resultarem em falhanço. A segurança de um ataque bem executado com
uma espada sempre impressionara Zaknafein; e Drizzt, depois de ver os pontos
fracos da magia drow durante essas primeiras semanas com Masoj, começou a
apreciar o curso de treino que lhe tinha sido dado.
Continuava a encontrar grande prazer em muitas coisas que Masoj lhe
mostrava, e particularmente nas coisas enfeitiçadas guardadas na torre de
Sorcere. Drizzt empunhou varinhas com poderes incríveis e passou por várias
rotinas de ataque com uma espada tão fortemente encantada que as suas mãos
sentiam um formigueiro só de lhe pegar.
Também Masoj observava Drizzt atentamente durante todo esse tempo,
estudando todos os movimentos do jovem guerreiro, em busca de alguma
fraqueza que pudesse mais tarde explorar se a Casa Hun’ett e a Casa Do’Urden
chegassem a entrar no esperado conflito. Por diversas vezes Masoj viu
oportunidade para eliminar Drizzt, e sentira no fundo que esse teria sido um acto
prudente. Mas as instruções da Matrona SiNafay tinham sido bem explícitas e
irrevogáveis.
A mãe de Masoj tinha secretamente manobrado para que ele fosse o tutor de
Drizzt. Esta era uma situação que nada tinha de invulgar; a instrução dos
guerreiros durante os seus seis meses em Sorcere era sempre dada
individualmente por estudantes de Sorcere de níveis mais elevados. Quando
falara a Masoj sobre este arranjo, SiNafay lembrara-lhe desde logo que as suas
sessões com o jovem Do’Urden não iriam além de uma missão de
reconhecimento. Não deveria fazer nada que pudesse sequer sugerir o conflito
planeado entre as duas casas. E Masoj não era tolo ao ponto de desobedecer.
Mesmo assim, havia um mago à espreita nas sombras e que estava tão
desesperado que nem mesmo os avisos da Matrona mãe conseguiriam fazer
muito para o deter.
Quando Masoj ficou com Drizzt de novo na privacidade do quarto do tutor, tirou
do bolso a estatueta de ónix polido com a forma de uma pantera e chamou
Guenhwyvar de novo para o seu lado. O mago respirava com mais facilidade
depois de ter apresentado o felino a Drizzt, pois Drizzt não mencionou mais o
incidente com Alton.
Nunca Drizzt vira coisa mágica tão maravilhosa. Sentia em Guenhwyvar uma
tal força, uma tal dignidade, que negavam a natureza mágica da criatura. Na
verdade, os músculos elegantes e os movimentos graciosos do animal resumiam
as qualidades de predador que os elfos drow tanto desejavam obter. Apenas por
observar os movimentos de Guenhwyvar, Drizzt acreditava que conseguiria
melhorar os seus próprios movimentos.
Masoj deixou-os brincar e lutar durante horas, agradecido por Guenhwyvar o
poder ajudar a fazer desvanecer-se qualquer dano que Alton pudesse ter criado.
Drizzt já tinha posto o encontro com o Sem Rosto para trás das costas.
— Drizzt Do’Urden.
Drizzt graduou-se — formalmente — no momento previsto e com as mais altas
honras da sua classe. Talvez a Matrona Malice tivesse sussurrado alguma coisa
nos ouvidos certos, suavizando as indiscrições do filho, mas Drizzt suspeitava
que o mais provável era que nenhum dos presentes na Cerimónia de Graduação
sequer se lembrasse de que ele tinha saído.
Passou pelo portão decorado da Casa Do’Urden, atraindo os olhares dos
soldados comuns, e avançou pelo chão da caverna, por debaixo da varanda.
— Estou então em casa — murmurou. — O que quer que isso queira dizer.
Depois do que acontecera no antro do drider, Drizzt interrogava-se se alguma
vez conseguiria voltar a ver a Casa Do’Urden como a «sua» casa. A Matrona
Malice esperava-o. Não se atreveria a chegar atrasado.
— É bom que estejas em casa — disse-lhe Briza quando o viu a subir para a
varanda.
Drizzt avançou hesitante pela entrada ao lado da irmã mais velha, tentando
absorver atentamente tudo o que o rodeava. Casa, chamava-lhe Briza; mas para
Drizzt, a Casa Do’Urden parecia tão pouco familiar como a Academia lhe
parecera no primeiro dia de estudante. Dez anos não eram assim tanto tempo nos
séculos de vida que um elfo drow podia conhecer; mas para Drizzt, algo mais do
que a década de ausência o separava agora daquele lugar.
Maya juntou-se-lhes no grande corredor que dava para a antecâmara da
capela.
— Saudações, príncipe Drizzt — disse. E Drizzt não conseguiu perceber se
ela estava a ser sarcástica ou não. — Ouvimos falar da honra que atingiste em
Melee-Magthere. As tuas aptidões encheram de orgulho a Casa Do’Urden —
apesar das suas palavras, Maya não conseguiu disfarçar uma risadinha quando
terminou a linha de pensamento. — Fico muito contente por não te teres tornado
comida para drider.
O olhar gélido de Drizzt fez desaparecer o sorriso da cara da irmã.
Maya e Briza trocaram olhares preocupados. Sabiam do castigo que Vierna
tinha querido infligir ao irmão mais novo, e do severo sermão que recebera da
Matrona Malice. Ambas pousaram uma mão cautelosa sobre os chicotes de
cabeças de serpente, sem saberem até que ponto aquele irmão mais novo se
poderia tornar insensato.
Não era a Matrona Malice, nem as irmãs de Drizzt, quem agora avaliava cada
passo que Drizzt dava. Drizzt sabia a sua posição relativamente à mãe, e sabia o
que tinha de fazer para a aplacar. Mas havia outro membro da família que
evocava confusão e raiva a Drizzt. De todos os da sua família, apenas Zaknafein
fingia ser algo que não era. Enquanto Drizzt prosseguia em direcção à capela,
olhava ansiosamente para cada passagem lateral, indagando-se quando seria que
Zak iria aparecer.
— Quanto tempo tens até partires em patrulha? — perguntou Maya,
chamando Drizzt das suas elucubrações.
— Dois dias — respondeu Drizzt distraidamente, com os olhos ainda a saltar
de uma esquina para outra.
Depois, deu consigo à porta da antecâmara, e nem sinais de Zak. Talvez o
mestre de armas estivesse lá dentro, ao lado de Malice.
— Sabemos das tuas indiscrições — disparou Briza, subitamente fria,
enquanto pousava a mão no ferrolho da porta da antecâmara. Drizzt não ficou
surpreendido com a explosão dela. Começava a suspeitar que tais explosões
eram de esperar da parte das altas sacerdotisas da Rainha Aranha.
— Porque não conseguiste simplesmente desfrutar dos prazeres da cerimónia?
— acrescentou Maya. — Tivemos sorte em as mestras e a matrona mestra da
Academia estarem demasiado envolvidas na sua própria excitação para darem
pelos teus movimentos. Terias feito recair a vergonha sobre a nossa casa inteira!
— Poderias ter deixado a Matrona Malice em desfavor junto de Lolth —
apressou-se Briza a acrescentar.
«A melhor coisa que poderia fazer por ela», pensou Drizzt. Mas afastou
rapidamente esse pensamento, lembrando-se da eficiência assustadora com que
Briza conseguia ler as mentes.
— Esperemos que não o tenha feito — disse Maya sombriamente para a irmã.
— Os ventos da guerra agitam-se cada vez mais no ar.
— Já aprendi o meu lugar — garantiu-lhes Drizzt. Fez uma profunda vénia.
— Perdoai-me, minhas irmãs, e sabei que a verdade do mundo drow está a abrir-
se diante dos meus olhos muito rapidamente. Nunca mais voltarei a desonrar a
Casa Do’Urden de uma tal maneira.
Tão agradadas ficaram as irmãs com esta proclamação que a ambiguidade das
palavras de Drizzt lhes passou ao lado. Depois, não querendo abusar da sorte,
Drizzt passou por elas, avançando para a porta, notando com alívio que
Zaknafein não estava na audiência.
— Todos os louvores à Rainha Aranha! — gritou Briza atrás dele.
Drizzt fez uma pausa e virou-se, para enfrentar o olhar dela. Fez uma nova
vénia.
— Como sempre deverá ser — tartamudeou.
Drizzt passou o dia seguinte a descansar, a maior parte do tempo no seu quarto,
tentando manter-se fora do caminho dos outros membros da família mais
próxima. Malice mandara-o embora sem lhe dizer uma palavra durante a reunião
inicial, mas Drizzt não queria ter de a enfrentar de novo. De igual forma, pouco
tinha a dizer a Briza e a Maya, receando que mais cedo ou mais tarde acabariam
por começar a perceber as verdadeiras conotações da sua torrente constante de
respostas blasfemas. Acima de tudo, porém, Drizzt não queria ver Zaknafein, o
mentor que em tempos pensara ser a sua salvação contra as realidades que o
rodeavam, a única luz brilhante na escuridão que era Menzoberranzan.
Também isso, acreditava Drizzt, fora uma mentira.
No segundo dia em casa, quando Narbondel, o relógio da cidade, mal tinha
iniciado o seu ciclo de luz, a porta para o pequeno quarto de Drizzt abriu-se e
Briza entrou.
— Audiência com a Matrona Malice — disse sombriamente.
Mil pensamentos correram pela cabeça de Drizzt enquanto pegava nas botas e
seguia a irmã mais velha pelas passagens para a capela da casa. Teriam Malice e
as outras descoberto os seus verdadeiros sentimentos acerca da malévola
divindade? Que castigo teriam agora à sua espera?
Inconscientemente, Drizzt olhou para os baixos-relevos representando aranhas
que ornavam a entrada da capela.
— Deverias estar mais familiarizado, e mais à vontade, com este local —
escarneceu Briza, notando o desconforto dele. — Este é o local das maiores
glórias da nossa gente.
Drizzt baixou os olhos e não respondeu — e teve o cuidado de nem sequer
pensar nas muitas respostas azedas que sentia no coração.
A confusão aumentou quando entraram na capela, porque Rizzen, Maya e
Zaknafein estavam diante da Matrona Mãe, como seria de esperar. Mas, para
além destes, estavam também Dinin e Vierna.
— Estamos todos presentes — disse Briza, tomando o seu lugar ao lado da
mãe.
— Ajoelhem-se — mandou Malice. E toda a família se pôs de joelhos. A
matrona Mãe passeou em volta deles lentamente, enquanto cada um baixava os
olhos com reverência, ou por simples senso comum, enquanto a grande senhora
passava perto deles.
Malice parou ao lado de Drizzt.
— Estás confundido pela presença de Dinin e Vierna — disse Malice. Drizzt
levantou os olhos para ela. — Não compreendes os métodos subtis da nossa
sobrevivência?
— Pensei que o meu irmão e a minha irmã continuariam na Academia —
explicou Drizzt.
— Isso não seria benéfico para nós — respondeu Malice.
— Mas ter mestres e mestras com lugar na Academia não traz poder à casa?
— atreveu-se Drizzt a perguntar.
— Assim é — respondeu Malice. — Mas divide o poder. Já ouviste os
rumores de guerra?
— Ouvi sugestões de sarilhos — disse Drizzt, olhando para Vierna —, mas
nada de tangível.
— Sugestões? — riu-se Malice, irritada por o filho não conseguir
compreender a importância disto. — Esses rumores são mais do que a maioria
das casas alguma vez ouve antes de as armas se abaterem sobre elas! — Afastou-
se de Drizzt e dirigiu-se a todo o grupo. — Os rumores encerram em si alguma
verdade — declarou.
— Quem? — perguntou Briza. — Que casa conspira contra a Casa Do’Urden?
— Nenhuma que esteja atrás de nós em posição — respondeu Dinin, muito
embora a pergunta não lhe tivesse sido dirigida, e não estivesse em posição de
falar sem ordem para isso.
— Como sabes isso? — perguntou Malice, deixando passar a impertinência de
Dinin. Malice compreendia o valor de Dinin e sabia que as contribuições dele
para esta discussão seriam importantes.
— Somos a nona casa da cidade — raciocinou Dinin —, mas nas nossas
fileiras contamos com quatro altas sacerdotisas, duas das quais ex-mestras de
Arach-Tinilith — e olhou para Zak — Temos também dois ex-mestres de Melee-
Magthere, e Drizzt foi galardoado com altos elogios na escola de guerreiros. Os
nossos soldados totalizam quase quatrocentos, todos hábeis e experientes em
batalha. Poucas são as casas que possam afirmar o mesmo.
— Onde queres chegar? — perguntou Briza com ênfase.
— Somos a nona casa — riu-se Dinin —, mas poucas acima de nós poderiam
derrotar-nos…
— E nenhuma das que estão atrás de nós — terminou a Matrona Malice por
ele. — Mostras perspicácia, Rapaz Mais Velho. Também eu cheguei à mesma
conclusão.
— Uma das grandes casas receia a Casa Do’Urden — concluiu Vierna. —
Precisa de se ver livre de nós para proteger a sua posição.
— Assim creio — respondeu Malice. — Uma prática invulgar, já que as
guerras de famílias são geralmente iniciadas pela casa de posição mais baixa,
desejosa de ganhar uma melhor posição na hierarquia da cidade.
— Então, temos de tomar muita precaução — disse Briza.
Drizzt ouviu cuidadosamente as palavras de todos, tentando perceber o que
significava tudo aquilo. Porém, os seus olhos nunca largavam Zaknafein, que se
mantinha ajoelhado impassivelmente a um lado. O que pensaria o rijo mestre de
armas de tudo isto, interrogava-se Drizzt. Seria que o pensamento de uma tal
guerra o entusiasmava? A ideia de poder matar mais elfos negros?
Fossem quais fossem os seus sentimentos, Zak não dava qualquer sinal
exterior. Estava ali em silêncio e dava até a ideia de que não estava a ouvir nada
da conversa.
— Não será Baenre — disse Briza, com as palavras a soarem como um pedido
de confirmação. — Certamente não nos tornámos ainda uma ameaça para eles!
— Temos de esperar que estejas correcta — respondeu Malice sombriamente,
recordando vividamente a sua visita à casa governante. — É mais provável que
seja uma das casas mais fracas acima de nós, receando pela sua própria posição
instável. Ainda não consegui saber de nenhuma informação incriminatória contra
nenhuma casa em particular. Por isso, temos de nos preparar para o pior. Assim,
chamei Dinin e Vierna de novo para o meu lado.
— Se soubermos quem são os nossos inimigos… — começou Drizzt a dizer,
impulsivamente.
Todos os olhos assentaram nele. Já era suficientemente mau que o Rapaz Mais
Velho tivesse falado sem ter sido solicitado, mas agora o Segundo Rapaz, que
apenas acabara de se graduar na Academia, fazia o mesmo. Isso já poderia ser
considerado blasfemo.
Querendo ouvir todas as perspectivas, a Matrona Malice mais uma vez deixou
passar o deslize.
— Continua – exortou.
— Se descobrirmos que casa conspira contra nós — disse Drizzt calmamente
—, não podemos expô-la?
— Com que finalidade? — troçou Briza. — Conspirar apenas, mas sem
cometer o acto, não é crime.
— Mas então não poderíamos usar a razão — insistiu Drizzt, prosseguindo
apesar da barragem de olhares de incredulidade que lhe eram dirigidos por todas
as caras naquela sala, excepto os de Zak. — Se somos os mais fortes, então eles
que se submetam sem batalha. Que a Casa Do’Urden assuma a posição que lhe
compete e que assim se acabe a ameaça à casa mais fraca.
Malice agarrou Drizzt pela frente da capa e fê-lo erguer-se.
— Perdoo-te os teus pensamentos insensatos — rugiu —, por esta vez!
Deixou-o cair no chão e as reprimendas silenciosas dos restantes irmãos
caíram sobre ele.
Mais uma vez, porém, a expressão de Zak não era a mesma dos restantes
presentes na sala. Na verdade, Zak colocara uma mão em frente da boca, para
dissimular o seu ar divertido. Talvez permanecesse um pouco do Drizzt
Do’Urden que tinha conhecido, atreveu-se a ter esperança. Talvez a Academia
não tivesse maculado completamente o espírito do jovem guerreiro.
Malice passou o olhar pelo resto da família, com uma fúria em crescendo a
brilhar-lhe nos olhos.
— Não é altura para ter medo. É o momento — gritou com um dedo magro
estendido diante da cara — para sonhar! Somos a Casa Do’Urden, Daermon
N’a’shezbaernon, com um poder que está para além da compreensão das grandes
casas. Somos a entidade desconhecida desta guerra. Temos todas as vantagens!
— Fez uma pausa. — Nona casa? — riu-se. — Dentro em breve, apenas sete
casas estarão à nossa frente!
— E a patrulha? — atalhou Briza. — Devemos permitir que o Segundo Rapaz
vá para a patrulha sozinho, ficando exposto?
— A patrulha dará início à nossa vantagem — explicou a astuciosa matrona.
— Drizzt irá para a patrulha, e no seu grupo haverá um membro de pelo menos
uma das casas acima de nós.
— Assim se poderá atacá-lo — raciocinou Briza.
— Não — garantiu-lhe Malice. — Os nossos inimigos na guerra que se
avizinha não se revelariam assim tão facilmente; não para já. O assassino
designado teria de matar dois Do’Urden num tal confronto.
— Dois? — perguntou Vierna.
— Mais uma vez, Lolth demonstrou-nos o seu favor — explicou Malice. —
Será Dinin a liderar o grupo de patrulha de Drizzt.
Os olhos do Rapaz Mais Velho acenderam-se perante esta notícia.
— Então, Drizzt e eu poderemos vir a ser os assassinos neste conflito —
ronronou.
O sorriso desapareceu da cara da matrona.
— Não agirás sem meu consentimento — avisou, num tom tão gélido que
Dinin compreendeu imediatamente as consequências da desobediência. — Como
já fizeste no passado.
Drizzt percebeu a referência a Nalfein, seu irmão assassinado. A mãe sabia!
Malice nada fizera para punir aquele filho assassino. Agora, a mão de Drizzt
subia-lhe à cara, para esconder uma expressão de horror que apenas lhe poderia
trazer dissabores naquele momento.
— Estarás lá para recolher informações — disse Malice para Dinin —, e para
proteger o teu irmão, tal como Drizzt estará lá para te proteger a ti. Não arruínes
a nossa vantagem apenas para ganhar uma única morte — e um sorriso malévolo
voltou a desenhar-se no rosto cor de osso. — Mas se souberes do nosso
inimigo…
— Se a oportunidade certa se apresentar… — concluiu Briza, adivinhando os
pensamentos malévolos da mãe e fazendo um sorriso igualmente vil para a
matrona.
Malice olhou para a filha mais velha com ar de aprovação. Briza haveria de
mostrar ser uma boa sucessora para a casa!
O sorriso de Dinin abriu-se e tornou-se prazenteiro. Nada agradava mais ao
Rapaz Mais Velho da Casa Do’Urden do que uma oportunidade para um
assassinato.
— Ide, pois, minha família — disse Malice. — Lembrem-se de que olhos
inimigos estão apontados para nós, a observar cada movimento nosso, à espera
do momento para atacar.
Zak foi o primeiro a sair da capela, como sempre, e desta vez com um passo
ainda mais apressado. Não era, porém, a perspectiva de lutar mais uma guerra
que guiava os seus movimentos, se bem que o pensamento de matar mais
sacerdotisas da Rainha Aranha certamente lhe agradasse. Antes era a exibição da
ingenuidade de Drizzt, as suas continuadas demonstrações de não perceber o
sentido geral da existência drow, que davam esperança a Zak.
Drizzt viu-o afastar-se, pensando que o passo apressado dele representava o
desejo de matar. Drizzt não sabia se deveria segui-lo e confrontá-lo agora
mesmo, ou se deveria deixar passar, ignorando o assunto tal como ignorava a
maior parte do mundo cruel que o rodeava. A decisão foi tomada por ele quando
a Matrona Malice se pôs à sua frente e o manteve na capela.
— A ti, digo isto — começou, quando ficaram sozinhos. — Ouviste a missão
que te coloquei nos ombros. Não tolerarei falhanços!
Drizzt encolheu-se perante a força da voz da mãe.
— Protege o teu irmão — foi o aviso sinistro —, ou entregar-te-ei a Lolth para
seres julgado — Drizzt compreendia as implicações disto, mas a matrona não
prescindiu do prazer de lhe explicar, mesmo assim: — Não gostarias da vida
como drider.
Drizzt tapou os olhos enquanto usava uma tocha para selar as feridas de um troll
morto. Apenas o fogo garantia que os trolls não recuperariam, mesmo depois de
mortos.
As restantes batalhas também tinham terminado, notou Drizzt, e viu as
chamas das tochas a surgir por toda a margem do lago. Interrogou-se se todos os
seus doze companheiros drow teriam sobrevivido, embora interrogando-se
também se realmente isso lhe importava. Havia outros mais do que preparados
para tomar o lugar dos caídos.
Drizzt sabia que o único companheiro que realmente lhe importava —
Guenhwyvar — estava em segurança, de regresso ao seu Plano Astral.
— Formem guarda! — ecoou a ordem de Dinin, enquanto os escravos, orcs e
duendes, avançavam para procurar tesouros dos trolls e saquear o que pudessem
dos corpos dos scrags.
Quando o fogo acabou de consumir o scrag que incendiara, Drizzt mergulhou
a tocha na água negra, e depois fez uma pausa para deixar os olhos adaptarem-se
de novo à escuridão.
— Mais um dia — disse calmamente. — Mais um inimigo derrotado.
Gostava da excitação das patrulhas, da emoção do perigo à espreita e de saber
que estava agora a pôr as armas em uso contra monstros malévolos.
Mesmo assim, porém, Drizzt não conseguia escapar à letargia que acabara por
invadir a sua vida, à resignação geral que marcava cada passo que dava. Porque,
ainda que as batalhas fossem agora contra os horrores do Subescuro, contra
monstros que eram mortos por necessidade, Drizzt não esquecera a reunião na
capela da Casa Do’Urden.
Sabia que as suas cimitarras em breve seriam postas em uso contra a carne de
elfos drow.
Zaknafein olhou por sobre Menzoberranzan, como tantas vezes fazia quando o
grupo de patrulha de Drizzt estava fora da cidade. Zak estava dividido entre a
vontade de se escapulir para fora da casa para lutar ao lado de Drizzt e a
esperança de que a patrulha regressasse com a notícia de que Drizzt tivesse sido
chacinado.
Encontraria Zak alguma vez a resposta para o dilema do jovem Do’Urden?
Zak sabia que não podia sair da casa; a Matrona Malice mantinha-o debaixo de
olho. Sentia a angústia dele quanto a Drizzt, e Zak sabia disso, e sabia também
que ela não aprovava minimamente tal coisa. Zak era frequentemente seu
amante, mas partilhavam muito pouco para além disso.
Zak pensou nas batalhas que ele e Malice tinham lutado por causa de Vierna,
outro filho que era preocupação de ambos, séculos antes. Vierna era fêmea, com
o destino selado desde que nascera, e Zak nada podia fazer para deter o assalto
da esmagadora religião da Rainha Aranha.
Recearia Malice que ele pudesse ter uma maior influência nas acções de um
filho macho? Aparentemente, a matrona acreditava nisso, mas nem mesmo Zak
tinha tanta certeza de que esses receios fossem fundados; nem mesmo ele
conseguia avaliar a sua influência sobre Drizzt.
Espreitou para a cidade, olhando silenciosamente em busca do grupo de
patrulha que estaria a regressar; esperava, como sempre, o regresso a salvo de
Drizzt, mas secretamente esperava também que o seu dilema terminasse por
meio das garras e presas de um monstro oculto.
— As minhas saudações, ó Sem Rosto — disse a alta sacerdotisa, passando por
Alton para entrar nos aposentos privados do mestre de Sorcere.
— E as minhas para ti, Mestra Vierna — respondeu Alton, tentando ocultar o
medo da sua voz.
Que Vierna Do’Urden viesse visitá-lo nesta altura tinha de ser mais do que
uma simples coincidência.
— A que devo a honra da visita de uma mestra de Arach-Tinilith?
— Já não sou mestra — disse Vierna. — Regressei a minha casa.
Alton fez uma pausa para avaliar esta notícia. Sabia que Dinin Do’Urden
também se tinha demitido das suas funções na Academia.
— A Matrona Malice reuniu de novo a família — prosseguiu Vierna. — Há
rumores de guerra. Sem dúvida já os ouviste?
— Apenas rumores — hesitou Alton, começando agora a perceber por que
razão Vierna fora visitá-lo. A Casa Do’Urden já antes usara o Sem Rosto nas
suas maquinações — na sua tentativa de assassinar o próprio Alton DeVir!
Agora, com rumores de guerra correndo por Menzoberranzan, a Matrona Malice
estava a restabelecer a sua rede de espiões e assassinos.
— Sabes de alguma coisa? — perguntou Vierna directamente.
— Pouco ouvi — respondeu Alton, receoso de irritar a poderosa fêmea. —
Nada que valesse a pena relatar à tua casa. Nem sequer suspeitava de que a Casa
Do’Urden estivesse implicada nisso até agora, até me teres informado.
Alton só podia esperar que Vierna não tivesse nenhum feitiço de detecção
dirigido às suas palavras.
Vierna descontraiu-se, aparentemente apaziguada pela explicação.
— Ouve mais atentamente os rumores, ó Sem Rosto — disse-lhe. — O meu
irmão e eu já não estamos na Academia; agora, tu és os olhos e os ouvidos da
Casa Do’Urden neste sítio.
— Mas… — gaguejou Alton.
Vierna levantou uma mão para o fazer calar-se.
— Sabemos da nossa falha na última transacção — disse Vierna. Fez uma
profunda vénia, coisa que uma alta sacerdotisa muito raramente faria diante de
um macho. — A Matrona Malice manda as suas sinceras desculpas por o
unguento que recebeste depois do assassinato de Alton DeVir não ter restaurado
os traços do teu rosto.
Alton quase ficou sem fôlego perante estas palavras, só agora compreendendo
por que razão um mensageiro desconhecido lhe tinha entregue um boião de
mezinha curativa, uns trinta anos antes. A figura embuçada era um agente da
Casa Do’Urden, que viera trazer ao Sem Rosto a paga pelo seu assassinato de
Alton DeVir! Claro que Alton nunca experimentara sequer o unguento. Com a
sorte que tinha, decerto o unguento teria resultado e teria recuperado as feições
de Alton DeVir.
— Desta vez, a tua paga não poderá falhar — prosseguiu Vierna, embora
Alton, demasiado ensimesmado pela ironia de tudo aquilo, quase não a ouvisse.
— A Casa Do’Urden possui todo o equipamento de um mago, mas nenhum
mago capaz de o usar. Pertencia a Nalfein, meu irmão, que morreu na vitória
contra a Casa DeVir.
Alton queria atacá-la. Mas nem mesmo ele era assim tão estúpido.
— Se conseguires descobrir qual a casa que está a conspirar contra a Casa
Do’Urden — prometeu Vierna —, tudo isso será teu! Um verdadeiro tesouro em
troca de um gesto tão pequeno.
— Farei o que puder — respondeu Alton, sem nenhuma outra resposta
possível perante tão incrível oferta.
— É apenas isso que a Matrona Malice te pede — disse Vierna. E deixou o
mago, muito segura de que a Casa Do’Urden tinha garantido um agente muito
eficiente dentro da Academia.
Zaknafein saiu da sala de audiência de olhos baixos e com uma mão a acariciar
nervosamente o punho da arma. Zak recordou-se da vez em que tinha enganado
Drizzt com a bomba de luz, em que tivera Drizzt à sua mercê, indefeso e abatido.
Poderia ter poupado o jovem inocente ao seu destino horrendo. Poderia ter morto
Drizzt ali mesmo, piedosamente, e tê-lo libertado das inevitáveis circunstâncias
da vida em Menzoberranzan.
Zak fez uma pausa no corredor e voltou-se para observar a sala; Drizzt e Dinin
estavam a sair; Drizzt lançou-lhe um único olhar acusador e depois virou-lhe
ostensivamente as costas, seguindo por outro corredor.
Aquele olhar trespassou o mestre de armas.
— E assim, chegámos a isto — murmurou para consigo. — O mais jovem
guerreiro da Casa Do’Urden, tão cheio do ódio que personifica a nossa raça,
aprendeu a desprezar-me por aquilo que sou.
Zak pensou mais uma vez nesse momento na sala de treino, nesse segundo
fatídico em que a vida de Drizzt estivera por um fio, suspensa de uma espada já
apontada. Teria de facto sido um gesto piedoso, se tivesse morto Drizzt nessa
altura.
Com a dor do olhar penetrante do jovem drow ainda a feri-lo até ao coração,
Zak não conseguia decidir se esse acto teria sido mais piedoso para com Drizzt
ou para consigo mesmo.
Drizzt deu consigo ainda mais feliz por ter a companhia de Guenhwyvar quando
passaram para além dos túneis familiares das rotas de patrulha habituais. Havia
um dito em Menzoberranzan segundo o qual «ninguém está mais só do que o
ponta de lança de uma patrulha drow», e Drizzt acabara por compreender isso
profundamente durante os últimos meses. Parou no extremo de uma larga
abertura e ficou completamente imóvel, concentrando os olhos e os ouvidos nos
rastos que havia atrás de si. Sabia que mais de quarenta drow se estavam a
aproximar da sua posição, completamente preparados para a batalha e agitados.
Mesmo assim, Drizzt não conseguia detectar um único ruído, e nenhum
movimento era discernível nas grotescas sombras da pedra fria. Drizzt olhou
para Guenhwyvar, que esperava pacientemente ao seu lado, e começou a avançar
de novo.
Conseguia sentir a presença quente do grupo de combate atrás de si. Essa
sensação intangível era a única coisa que contrariava a sensação de que ele e
Guenhwyvar estavam completamente sós.
— Esta câmara tem muitas saídas — gesticulou Dinin para Drizzt quando se
reuniram de novo. — As outras patrulhas estão a pôr-se em posição em volta dos
gnomos.
— Não poderíamos parlamentar com eles? — perguntaram as mãos de Drizzt,
quase inconscientemente. Percebeu a expressão que alastrava agora na cara de
Dinin, mas sabia que já era tarde demais. — Não podemos mandá-los embora
sem conflito?
Dinin agarrou-o pelo colarinho do piwafwi e puxou para perto, para
demasiado perto, da sua expressão irada.
— Vou esquecer que fizeste essa pergunta — sussurrou, e deixou Drizzt cair
de novo na pedra, considerando o assunto encerrado. — Tu começarás o
combate — gesticulou. — Quando vires o sinal de trás, escurece o corredor e
passa a correr pelos guardas. Vai em busca do chefe dos gnomos; ele é que
detém a força deles, com a pedra.
Drizzt não compreendia completamente a que poder dos gnomos o irmão se
estava a referir, mas as instruções pareciam razoavelmente simples, embora um
pouco suicidárias.
— Leva a pantera, se ele te seguir — prosseguiu Dinin. — A patrulha inteira
estará ao teu lado daí a pouco. Os grupos restantes entrarão pelas outras
passagens.
Guenhwyvar aninhou-se junto de Drizzt, mais do que pronta para o seguir em
combate. Drizzt sentiu-se reconfortado por isso quando Dinin se foi embora,
deixando-o sozinho mais uma vez na frente. Poucos segundos depois, veio a
ordem para atacar. Drizzt abanou a cabeça incrédulo quando viu o sinal; que
rapidamente tinham os guerreiros drow assumido as suas posições!
Espreitou os guardas gnomos, que ainda estavam na sua silenciosa vigília,
sem fazerem ideia do que os esperava. Drizzt sacou das espadas e deu a
Guenhwyvar uma palmadinha de boa sorte; depois convocou a magia inata da
sua raça e largou um globo de escuridão no corredor.
Guinchos de alarme ecoaram pelos túneis, e Drizzt carregou directamente para
a escuridão, por entre os guardas que não via e rebolando até se pôr de novo de
pé do outro lado da escuridão da sua magia, a apenas dois passos da pequena
câmara. Viu uma dúzia de gnomos a correr por ali, tentando preparar as defesas.
Poucos deles, porém, prestaram qualquer atenção a Drizzt, porque os sons de
batalha surgiam de vários corredores laterais.
Um gnomo avançou com uma pesada albarda em direcção ao ombro de
Drizzt. Drizzt levantou uma cimitarra para bloquear o golpe, mas ficou
espantado com a força dos braços do diminuto gnomo. Poderia ter desde logo
morto este atacante com a outra cimitarra. Demasiadas dúvidas, e demasiadas
recordações, porém, assombravam os seus gestos. Ergueu um pé e assestou-o na
barriga do gnomo, fazendo a pequena criatura rebolar para longe.
Belwar Dissengulp, que era o próximo na direcção de Drizzt, reparou na
facilidade com que o jovem drow tinha despachado um dos seus melhores
guerreiros, e soube que tinha chegado o momento de usar a sua magia mais
poderosa. Puxou da esmeralda de convocação que tinha ao pescoço e lançou-a
ao chão, aos pés de Drizzt.
Drizzt saltou para trás, sentindo as emanações da magia. Atrás de si, ouvia a
aproximação dos companheiros, dominando os guardas gnomos surpreendidos e
correndo para se unirem a ele na câmara. Depois, as atenções de Drizzt
dirigiram-se para os padrões de calor do chão de pedra à sua frente. As linhas
acinzentadas tremiam e ondulavam, como se a pedra estivesse, de certa forma, a
ganhar vida.
Os outros guerreiros drow passaram a correr por Drizzt, caindo sobre o líder
dos gnomos. Drizzt não os seguiu, calculando que o que se estava a passar diante
dos seus pés era mais crítico do que a batalha que agora ressoava por todo o
complexo.
Com quatro metros de altura e dois de largura, um monstro enorme e irado
erguia-se agora diante de Drizzt.
— Um Elementar! — ouviu alguém gritar mais ao lado. Drizzt olhou e viu
Masoj, com Guenhwyvar ao seu lado, a folhear um livro de encantamentos,
aparentemente à procura de um feitiço para combater este monstro inesperado.
Para espanto de Drizzt, o assustado mago gaguejou umas palavras e
desapareceu.
Drizzt apoiou bem os pés no chão e avaliou o monstro, pronto a saltar para o
lado a qualquer momento. Conseguia sentir o poder daquela coisa, a força bruta
da terra incorporada em braços e pernas vivos.
Um braço grosso como um tronco girou, passando com um assobio por cima
da cabeça de Drizzt e abatendo-se contra a parede da caverna, despedaçando
pedra.
— Não deixes que te acerte — murmurou Drizzt para si próprio, num sussurro
que saiu como um soluço desesperado. Enquanto o Elementar recolhia o braço,
Drizzt espetou-lhe uma cimitarra, arrancando-lhe um pequeno pedaço, mal
fazendo um arranhão. O elementar gritou de dor; aparentemente, Drizzt podia de
facto magoá-lo com as suas armas encantadas.
Ainda de pé no mesmo sítio, mais para o lado, o invisível Masoj estava a
verificar o seu próximo feitiço, observando o espectáculo e à espera de que os
combatentes se enfraquecessem um ao outro. Talvez o Elementar conseguisse
destruir Drizzt completamente. Os ombros invisíveis de Masoj encolheram-se
resignados. Decidiu deixar que a força dos gnomos fizesse o trabalho sujo por
ele.
O monstro lançou um novo golpe, e depois outro, e Drizzt mergulhou para a
frente e rebolou por entre aquelas pernas que mais pareciam pilares de pedra. O
Elementar reagiu rapidamente e bateu pesadamente com os pés, quase acertando
no ágil drow, e provocando rachas enormes no chão, que se prolongavam por
muitos metros em todas as direcções.
Drizzt pôs-se rapidamente de pé, rodopiando e picando com as suas cimitarras
nas costas do Elementar, saltando depois de novo para fora do alcance deste
enquanto o monstro girava, desferindo novos golpes ferozes.
Os sons de batalha estavam cada vez mais distantes. Os gnomos tinham
fugido — os que ainda restavam vivos —, mas os guerreiros drow estavam a
persegui-los, deixando Drizzt sozinho a enfrentar o Elementar.
O monstro voltou a bater com os pés, e o estrondo quase fez Drizzt saltar no
ar; depois, avançou pesadamente, usando as suas toneladas de peso como arma.
Se Drizzt tivesse sido apanhado de surpresa, mesmo que apenas por um segundo,
ou se os seus reflexos não tivessem sido desenvolvidos quase até à perfeição,
teria sido seguramente esmagado. Mas conseguiu saltar para o lado do monstro,
recebendo apenas um golpe de raspão de um braço do Elementar.
Ergueram-se colunas de poeira devido ao impacto terrível; paredes e tectos da
caverna racharam-se deixaram cair lascas e pedras no chão. Enquanto o
Elementar se punha de pé novamente, Drizzt recuou, ultrapassado por uma tão
grande força.
Estava sozinho contra ele, ou assim pensava. Uma súbita bola de fúria quente
envolveu a cabeça do Elementar, com garras a rasgar profundas feridas na sua
cara.
— Guenhwyvar! — gritaram Drizzt e Masoj em uníssono, com Drizzt
entusiasmado por ter encontrado um aliado, e Masoj enraivecido. O mago não
queria que Drizzt sobrevivesse a esta batalha, mas não se atreveria a lançar
nenhum ataque mágico, quer para Drizzt quer para o Elementar, quando a sua
preciosa Guenhwyvar estava no caminho.
— Faz qualquer coisa, mago! — gritou Drizzt, reconhecendo a voz do mago e
percebendo agora que Masoj continuava ali.
O Elementar encolheu-se, dolorido, com o seu rugido a soar como o estrondo
de rochedos a rebolar pela encosta de uma montanha rochosa. Enquanto Drizzt
recuava para ajudar o amigo felino, o monstro ergueu-se de novo, de forma
quase impossivelmente rápida, e mergulhou de cabeça para o chão.
— Não! — gritou Drizzt, percebendo que Guenhwyvar seria esmagada.
Então, a pantera e o Elementar, em vez de embaterem contra a pedra,
mergulharam nela!
Drizzt correu para o local, mas apenas uma parte do chão permanecia intacta.
— Masoj? — gritou, à espera de alguma resposta daquele que era o mais
treinado em tão estranhas magias.
Antes que o mago pudesse responder, o chão ergueu-se atrás de Drizzt. Saltou,
com as armas prontas para enfrentar o enorme Elementar.
Depois, assistiu, numa agonia impotente, quando a nuvem indistinta que fora a
grande pantera, o seu mais querido companheiro, deslizou pelos ombros do
Elementar e se desfez ao aproximar-se do chão.
Drizzt desviou-se de mais um golpe, embora os seus olhos nunca largassem a
nuvem de neblina e poeira que se começava a dissipar. Teria Guenhwyvar
morrido? Teria o seu único verdadeiro amigo desaparecido para sempre? Uma
nova luz brilhou nos olhos cor de alfazema de Drizzt, uma raiva primordial que
fervilhava no seu corpo. Olhou de novo para o Elementar, sem medo.
— Estás morto — prometeu. E avançou.
O Elementar pareceu confuso, embora, evidentemente, não pudesse
compreender as palavras de Drizzt. Deixou cair um braço pesado na direcção de
Drizzt, para esmagar aquele tolo adversário. Drizzt nem sequer ergueu uma
espada em defesa, sabendo que nem toda a sua força poderia desviar tal golpe.
Quando o braço estava a chegar perto dele, saltou para a frente, ainda ao seu
alcance.
A rapidez desse movimento surpreendeu o Elementar, e a fúria de golpes de
cimitarra que se seguiu deixou Masoj boquiaberto. O mago nunca vira tanta
graciosidade em combate, tanta fluidez de movimentos. Drizzt trepava e descia
pelo corpo do Elementar, cortando e picando com as pontas das armas,
arrancando pedaços da pele de pedra do monstro.
O Elementar rugiu como uma avalanche e rodopiou em círculos, tentando
apanhar Drizzt e esmagá-lo de uma vez por todas. A fúria cega concedeu, porém,
novos níveis de perícia ao magnífico jovem guerreiro, e o Elementar nada
apanhou a não ser ar, ou o seu próprio corpo de pedra com os seus pesados
murros.
— Impossível — murmurou Masoj quando conseguiu recuperar o fôlego.
Conseguiria o jovem Do’Urden vencer de facto um Elementar? Masoj vasculhou
o resto da área. Vários drow e muitos gnomos jaziam mortos ou gravemente
feridos, mas o grosso da batalha estava a afastar-se dali, enquanto os pequenos
gnomos fugiam pelos estreitos túneis de fuga que tinham aberto. Os drow,
enraivecidos para além do que mandaria o bom senso, seguiam-nos.
Guenhwyvar desaparecera. Nesta sala, apenas Masoj, o Elementar e Drizzt
restavam como testemunhas. O mago invisível sentiu a boca a desenhar um
sorriso. Este era o momento certo para atacar.
Drizzt pusera o Elementar em desequilíbrio, quase vencido, quando o raio
rugiu na sua direcção, com uma explosão de luz que o cegou e o fez voar contra
a parede mais recuada da sala. Drizzt viu as mãos a tremer, e a dança selvagem
dos seus cabelos brancos diante dos olhos parados. Não sentia nada — nenhuma
dor, nenhuma golfada de ar revivescente a entrar-lhe nos pulmões — e nada
ouvia, como se a sua força de vida tivesse sido, de alguma forma, suspensa.
O ataque desfez o feitiço de invisibilidade de Masoj, e este surgiu de novo à
vista, rindo malevolamente. O Elementar, caído e transformado numa massa
informe e desfeita, deslizou lentamente de volta para a segurança do chão de
pedra.
— Estás morto? — perguntou o mago a Drizzt, com a voz quebrando a surdez
de Drizzt em ondas dramáticas. Drizzt não conseguia responder, e também nem
sequer sabia a resposta. — Demasiado fácil — ouviu Masoj a dizer, e suspeitou
de que o mago se estivesse a referir a ele, e não ao Elementar.
Depois, Drizzt sentiu um formigueiro nos dedos e nos ossos, e os pulmões
incharam-lhe de repente, engolindo uma massa de ar. Arquejou numa sucessão
rápida de inspirações, e depois recuperou o controlo do corpo e percebeu que
sobreviveria.
Masoj olhou em volta, à cata de testemunhas, e não viu ninguém.
— Ora bem — murmurou enquanto via Drizzt recuperar os sentidos. O mago
estava verdadeiramente satisfeito por a morte de Drizzt não ter sido tão isenta de
dor. Pensou noutro encantamento que tornasse o momento mais divertido.
Uma mão — uma gigantesca mão de pedra — espreitou do chão precisamente
nesse momento e agarrou uma perna de Masoj, puxando-lhe os pés bem para o
meio da pedra.
O rosto do mago contorceu-se num grito silencioso.
O inimigo de Drizzt salvara-lhe a vida. Agarrou numa das cimitarras caídas no
chão e atacou o braço do Elementar. A arma trespassou o braço e o monstro, com
a cabeça a reaparecer entre Drizzt e Masoj; o Elementar rugiu de raiva e puxou o
mago capturado ainda mais para dentro da pedra.
Com ambas as mãos a empunhar a cimitarra, Drizzt atacou com toda a força
que podia, abrindo a cabeça do Elementar ao meio. Desta vez, o cascalho não
escorregou de novo para o seu plano terreno; desta vez, o Elementar fora
destruído.
— Tira-me daqui! — exigiu Masoj.
Drizzt olhou para ele, mal acreditando que Masoj ainda estivesse vivo, porque
estava mergulhado até à cintura em rocha sólida.
— Como… — gaguejou Drizzt. — Tu… — Nem sequer conseguia encontrar
as palavras para exprimir o espanto que sentia.
— Tira-me daqui — gritava o mago.
Drizzt andava para trás e para a frente, sem saber por onde começar.
— Os Elementares viajam entre planos — explicou Masoj, sabendo que teria
de acalmar Drizzt se alguma vez quisesse sair do chão. Sabia, também, que a
conversa poderia ajudar a desviar as óbvias suspeitas de Drizzt de que o raio de
luz lhe tinha sido dirigido a ele, e não ao Elementar. — O chão que um
Elementar atravessa torna-se um portal entre o Plano Terreno e o nosso plano, o
Plano Material. A pedra afastou-se à minha volta quando o monstro me puxou,
mas é muito desconfortável — fez um esgar de dor quando a pedra lhe apertou
mais um pé. — O portal está a fechar-se rapidamente!
— Então, Guenhwyvar pode estar… — começou Drizzt a raciocinar.
Retirou a estatueta do bolso da frente de Masoj e inspeccionou-a
cuidadosamente, para ver se havia falhas no seu desenho perfeito.
— Dá-me isso! — exigiu Masoj, embaraçado e irado.
Relutantemente, Drizzt devolveu a estatueta. Masoj olhou-a rapidamente e
meteu-a no bolso.
— Guenhwyvar saiu ilesa? — Drizzt tinha de perguntar.
— Isso não te diz respeito — retorquiu Masoj. Também o mago estava
preocupado com a pantera, mas, nesse momento, Guenhwyvar era o último dos
seus problemas. — O portal está a fechar-se — disse de novo. — Vai chamar as
sacerdotisas!
Antes que Drizzt pudesse afastar-se, uma laje de pedra atrás dele deslizou para
o lado e o punho duro como pedra de Belwar Dissengulp abateu-se com força
contra a sua nuca.
— Os gnomos levaram-no — disse Masoj para Dinin quando o líder da patrulha
regressou à caverna. O mago ergueu os braços acima da cabeça, para dar à alta
sacerdotisa e às suas assistentes uma visão melhor da situação precária em que
se encontrava.
— Por onde? — perguntou Dinin. — E porque te deixaram a ti vivo?
Masoj encolheu os ombros.
— Por uma porta secreta — explicou. — Algures na parede atrás de ti.
Suspeito que também me teriam levado a mim, só que… — Masoj olhou para o
chão, que ainda o agarrava firmemente até à cintura. — Os gnomos ter-me-iam
morto, se não tivessem chegado vocês.
— Tens sorte, mago — disse a alta sacerdotisa a Masoj. — Memorizei um
encantamento hoje mesmo que te libertará da pedra.
Sussurrou as instruções às ajudantes e estas pegaram em bexigas de água e em
bolsas de barro e começaram a desenhar um quadrado com três metros de lado
no chão em volta do mago aprisionado. A alta sacerdotisa afastou-se para junto
da parede da sala e preparou as suas preces.
— Alguns escaparam — disse-lhe Dinin.
A alta sacerdotisa percebeu. Murmurou um rápido encantamento de detecção
e estudou a parede.
— Ali mesmo — disse.
Dinin e outro macho correram para o local e depressa detectaram o contorno
quase imperceptível da porta secreta.
Enquanto a alta sacerdotisa começava o seu encantamento, uma das ajudantes
lançou a ponta de uma corda a Masoj.
— Agarra-te — disse a ajudante — e sustém a respiração!
— Espera — começou Masoj a dizer. Mas o chão a toda a sua volta começou
a transformar-se em lama, e o mago deslizou para baixo.
Duas sacerdotisas, rindo, puxaram Masoj dali para fora, um segundo depois.
— Belo encantamento — notou o mago, cuspindo lama.
— Tem as suas aplicações — respondeu a alta sacerdotisa. — Especialmente
quando combatemos contra os gnomos e os seus truques com a pedra. Trouxe-o
como precaução contra elementares terrenos — olhou para pedaços de cascalho
junto dos seus pés, que eram obviamente um olho e o nariz de uma dessas
criaturas. — Vejo que o meu encantamento não foi necessário para isso.
— Esse, destruí-o eu — mentiu Masoj.
— A sério? — disse a alta sacerdotisa, nada convencida. Conseguia ver, pelo
corte da pedra, que uma espada tinha feito aquele trabalho. Deixou o assunto cair
quando o ruído de uma pedra a deslizar os fez voltarem-se todos para a parede.
— Um labirinto — resmungou o guerreiro ao lado de Dinin quando espreitou
para o túnel. — Como vamos encontrá-los?
Dinin reflectiu por um momento, e depois dirigiu-se a Masoj.
— Eles têm o meu irmão — disse, com uma ideia a vir-lhe à mente. — Onde
está o teu gato?
— Por aí — disse Masoj, tentando empatar e adivinhando o plano de Dinin,
mas não querendo realmente ver Drizzt resgatado.
— Trá-lo até mim — comandou Dinin. — O felino pode farejar Drizzt.
— Não posso… Quero dizer… — murmurou Masoj.
— Já, mago! — comandou Dinin. — A não ser que queiras que eu conte ao
Conselho Governante que alguns dos gnomos escaparam porque tu te recusaste a
ajudar!
Masoj lançou a estatueta para o chão e chamou Guenhwyvar, sem realmente
saber o que se passaria depois. Teria o Elementar realmente destruí-do
Guenhwyvar? A névoa apareceu, transformando-se ao fim de poucos segundos
no corpo tangível da pantera.
— Muito bem — disse Dinin, apontando para o túnel.
— Vai à procura de Drizzt! — ordenou Masoj à pantera.
Guenhwyvar farejou a área por um momento, e depois avançou pelo pequeno
túnel, com a patrulha drow em perseguição silenciosa.
Drizzt pôs um pé na sala de treino de Zak pela primeira vez em mais de uma
década, e sentiu-se como se estivesse a regressar a casa. Tinha passado ali os
melhores anos da sua jovem vida — quase sempre ali. Apesar de todas as
desilusões que encontrara desde então — e que sem dúvida continuaria a
experimentar ao longo da vida — Drizzt nunca esqueceria a breve faísca de
inocência, aquela alegria que conhecera quando era apenas um estudante na sala
de treino de Zaknafein.
Zaknafein entrou e dirigiu-se ao seu antigo aluno. Drizzt nada viu de familiar
ou reconfortante no rosto do mestre de armas. Um sorriso de desprezo tomara
agora sempre o lugar do antigo sorriso franco. Era uma pose irada de quem
odiava tudo à sua volta, e talvez Drizzt acima de tudo. Ou seria que Zak sempre
tivera aquele sorriso? Drizzt tinha de se interrogar. Teria a nostalgia embelezado
as suas recordações desses anos de treino? Seria o seu mentor, que tantas vezes
lhe tinha reconfortado o coração com uma gargalhada bem-disposta, na verdade
o frio monstro que agora via à sua frente?
— O que mudou, Zaknafein? — perguntou Drizzt. — Tu, as minhas memórias
ou as minhas percepções?
Zak pareceu nem ouvir a pergunta murmurada.
— Ah, o jovem herói regressou — disse. — O guerreiro das façanhas
superiores à sua idade.
— Porque troças de mim? — protestou Drizzt.
— Aquele que matou horrores de garras — continuou Zak. Agora, tinhas as
espadas nas mãos, e Drizzt respondeu puxando das suas cimitarras. Não havia
necessidade de perguntar quais as regras daquele confronto, ou a escolha das
armas.
Drizzt sabia, já sabia muito antes de ali ter chegado, que desta vez não haveria
regras. Que as armas seriam as suas armas de eleição, as lâminas que ambos
tinham usado para matar tantos inimigos.
— Aquele que matou um Elementar de terra — troçou Zak. Lançou um ataque
cauteloso, um simples golpe com uma espada. Drizzt desviou-a sem sequer
pensar.
Fogos súbitos iluminaram os olhos de Zak, como se esse primeiro contacto
tivesse apagado todos os elos emocionais que até aí tinham refreado o seu
ataque.
— Aquele que matou a criança dos elfos da superfície — gritou, como uma
acusação, e não como um elogio. Então surgiu o segundo ataque, maléfico e
poderoso, um arco descendente sobre a cabeça de Drizzt. — Que a matou para
apaziguar a sua sede de sangue!
As palavras de Zak deixaram Drizzt emocionalmente abalado, baixando a
guarda, envolvendo o seu coração em confusão como uma espécie de chicote
mental perverso. Drizzt era, porém, um guerreiro calejado, e os seus reflexos não
registaram a distracção emocional. Uma cimitarra subiu para aparar o golpe
descendente da espada e para a desviar inofensivamente para o lado.
— Assassino! — acusou Zak abertamente. — Tiveste prazer ao ouvir os gritos
da criança?
Avançou para Drizzt num ataque furioso, com as espadas a rodopiar e a atacar
por todos os ângulos.
Drizzt, enraivecido pelas acusações hipócritas, respondeu com igual fúria,
gritando por nenhuma razão em especial a não ser a de ouvir a raiva na sua
própria voz.
Quem estivesse a observar aquele combate não teria fôlego durante os
movimentos que se seguiram. Nunca o Subescuro vira um combate tão feroz
como este agora que dois mestres da espada encenavam, cada um perseguindo o
demónio que possuía o outro — e a si próprio.
A adamantite faiscava, havia gotas de sangue a espirrar de ambos os
contendores, embora nenhum deles sentisse dor, e nenhum soubesse que tinha
ferido o outro.
Drizzt avançou com um ataque de lado com as duas lâminas, obrigando as
espadas de Zak a afastar-se. Zak seguiu o movimento rapidamente, fez um
círculo e ripostou contra as cimitarras de Drizzt com força suficiente para fazer o
jovem guerreiro desequilibrar-se. Drizzt deixou-se cair, rebolou e voltou a
erguer-se para enfrentar o adversário que carregava sobre ele.
Um pensamento tomou conta de Drizzt.
Ergueu-se, ergueu-se bem alto, e Zak fê-lo recuar. Drizzt sabia o que viria a
seguir; provocou-o abertamente. Zak manteve as armas de Drizzt ao alto por
meio de diversas manobras combinadas. Depois, avançou com o movimento que
derrotara Drizzt no passado, pensando que o melhor que Drizzt conseguiria seria
ficar em igualdade, com a defesa em cruz baixa.
Drizzt executou a adequada defesa de cruz em baixa, como tinha de fazer, e
Zak ficou expectante, à espera de que o seu feroz oponente tentasse melhorar o
movimento.
— Assassino de crianças! — rugiu, avançando para Drizzt.
Não sabia que Drizzt já encontrara a solução para aquele ataque.
Com toda a raiva que já conhecera, com todas as desilusões da sua jovem vida
a acumular-se, Drizzt apontou um pé a Zak. Aquele rosto trocista, de sorrisos
fingidos e sedento de sangue.
Drizzt deu um pontapé mesmo entre os olhos de Zak, expelindo nesse
movimento toda a raiva num único golpe.
O nariz de Zak ficou esmagado. Os olhos rebolaram para cima e explodiu-lhe
sangue no rosto. Zak soube que estava a cair, que o demoníaco jovem guerreiro
cairia sobre ele num relâmpago, conquistando uma vantagem a que não se
conseguiria opor.
— Então e tu, Zaknafein Do’Urden? — ouviu Drizzt a troçar, à distância,
como se estivesse a cair para longe. — Ouvi contar as tuas façanhas como
mestre de armas da Casa Do’Urden! Como Zaknafein gosta de matar!
A voz estava agora mais perto, enquanto Drizzt o cercava, e enquanto a fúria
de Zak o chamava de regresso à batalha.
— Ouvi contar sobre como o assassinato surge tão facilmente a Zaknafein! —
acusava Drizzt com desprezo. — O assassinato de sacerdotisas, de outros drow!
Gostas assim tanto disso tudo?
Terminou a pergunta com um golpe de cada cimitarra, em ataques destinados
a matar Zak, a matar o demónio que existia em ambos.
Mas Zaknafein estava agora de novo plenamente consciente, odiando-se tanto
a si mesmo como a Drizzt. No último momento, as suas espadas subiram e
cruzaram-se, rápidas como um relâmpago, fazendo os braços de Drizzt abrir-se
amplamente. Depois, Zak terminou o movimento com um pontapé, não tão forte
devido à posição agachada em que estava, mas certeiro na direcção das virilhas
de Drizzt.
Drizzt ficou sem fôlego e cambaleou para trás, forçando-se a retomar a
compostura quando viu Zaknafein, ainda estonteado, a tentar pôr-se de pé.
— Gostas assim tanto disso tudo? — conseguiu perguntar outra vez.
— Gostar? — ecoou o mestre de armas.
— Dá-te algum prazer? — perguntou Drizzt com uma careta.
— Satisfação! — corrigiu Zak. — Mato! Sim, mato!
— Ensinas outros a matar!
— A matar drow! — rugiu Zak, e estava de novo perto da cara de Drizzt, com
as armas ao alto, mas à espera do próximo movimento dele.
As palavras de Zak deixaram Drizzt de novo numa nuvem de confusão. Quem
era este drow que tinha à sua frente?
— Pensas que a tua mãe me deixaria viver se eu não servisse os seus
maléficos intentos? — gritou Zak.
Drizzt não compreendia.
— Odeia-me — disse Zak, mais controlado à medida que começava a
perceber a confusão de Drizzt. — Despreza-me por aquilo que sei.
Drizzt inclinou a cabeça para um lado.
— Serás assim tão cego para a maldade que te rodeia? — gritou-lhe Zak na
cara. — Ou já te consumiu, como consome todos eles, neste frenesim assassino a
que chamamos vida?
— Esse frenesim que te agarrou a ti também! — retorquiu Drizzt, mas agora
havia já pouca convicção na sua voz. Se estava a compreender as palavras de
Zak correctamente, se Zak apenas entrava no jogo assassino por causa do seu
ódio pelos perversos drow, o máximo de que poderia acusá-lo seria de cobardia.
— Não me prende nenhum frenesim — respondeu Zak. — Vivo o melhor que
posso. Sobrevivo num mundo que não é meu, não é do meu coração — o
lamento naquelas palavras, o descair da cabeça enquanto admitia a sua
impotência, pareceu familiar a Drizzt. — Mato… Mato os drow, para servir a
Matrona Malice. Para aplacar a raiva, a frustração que conheço na minha alma.
Quando ouço as crianças a gritar… — o olhar intenso de Zak pousou de novo
em Drizzt, e de repente atacou com uma fúria redobrada.
Drizzt tentou erguer as cimitarras, mas Zak fez uma delas saltar-lhe da mão e
voar pela sala. Correu acompanhando Drizzt enquanto este recuava, e deixou-o
encostado a uma parede. A ponta da espada de Zak fez surgir uma gota de
sangue no pescoço de Drizzt.
— A criança está viva! — disse Drizzt quase sem fôlego. — Juro, não matei a
criança elfo!
Zak descontraiu um pouco, mas continuou a segurar Drizzt firmemente, com a
espada junto à garganta.
— Mas Dinin disse…
— Dinin foi enganado — respondeu Drizzt. — Enganado por mim. Fiz a
criança deitar-se, para a poupar, e cobri-a com o sangue da mãe morta, para
esconder a minha própria cobardia!
Zak deu um salto para trás, espantado.
— Não matei nenhum elfo, nesse dia — disse Drizzt. — E os únicos que
desejei matar foram os meus companheiros!
— Agora sabemos, então! — disse Briza, olhando fixamente para a taça, vendo a
conclusão da batalha entre Drizzt e Zaknafein e ouvindo cada palavra que
diziam. — Foi Drizzt quem desagradou à Rainha Aranha.
— Suspeitaste dele desde sempre, tal como eu — respondeu a Matrona Malice
—, embora ambas tivéssemos esperanças opostas.
— Prometia tanto! — lamentou Briza. — Como eu gostava que aquele tivesse
aprendido o seu lugar, os seus valores. Talvez…
— Piedade? — replicou a Matrona Malice. — Mostras piedade, que ainda
enfureceria mais a Rainha Aranha?
— Não, Matrona — respondeu Briza. — Apenas tive esperança de que Drizzt
pudesse vir a ser usado no futuro, como tu usaste Zaknafein durante todos estes
anos. Zaknafein está a ficar velho.
— Estamos prestes a ter uma guerra, minha filha — lembrou-lhe Malice. —
Lolth tem de ser apaziguada. O teu irmão fez cair este destino sobre ele próprio;
os gestos dele foram decisão sua.
— E decidiu erradamente.
As palavras atingiram Zaknafein com mais força do que a bota de Drizzt o fizera
antes. O mestre de armas atirou as espadas para o outro lado da sala e correu
para Drizzt. Enterrou-o num abraço tão intenso que o jovem drow precisou de
um longo momento para perceber o que se estava a passar.
— Sobreviveste! — disse Zak, com a voz embargada pelas lágrimas. —
Sobreviveste à Academia, onde todos os outros morreram! — Drizzt devolveu o
abraço, hesitante, ainda sem perceber bem a profundidade da alegria de Zak. —
Meu filho!
Drizzt quase desmaiou, esmagado pela admissão daquilo que sempre
suspeitara, e mais ainda pelo conhecimento de que não era o único naquele
mundo escuro zangado com os usos dos drow. Não estava só.
— Porquê? — perguntou Drizzt, afastando um pouco Zak. — Porque ficaste?
Zak olhou para ele com incredulidade.
— Para onde haveria eu de ir? Ninguém, nem mesmo um mestre de armas
drow, sobreviveria por muito tempo nas cavernas do Subescuro. Demasiados
monstros, e outras raças, têm sede do sangue doce dos elfos negros.
— Mas certamente terias outras opções.
— A superfície? — respondeu Zak. — Para enfrentar aquele doloroso inferno
todos os dias? Não, meu filho. Estou preso, tal como tu estás preso aqui.
Drizzt já temia essa afirmação. Já receara não encontrar nenhuma solução da
parte do seu pai recém-encontrado para o dilema que era a sua vida. Talvez não
houvesse respostas.
— Dar-te-ás bem em Menzoberranzan — disse Zak, para o reconfortar. — És
forte e a Matrona Malice encontrará um local adequado para os teus talentos,
seja o que for que o teu coração deseje.
— Para viver uma vida de assassinatos, como tu viveste? — perguntou Drizzt,
tentando futilmente manter a raiva fora das suas palavras.
— Que escolhas temos diante de nós? — perguntou Zak, com os olhos em
busca da pedra do chão.
— Não matarei drow — declarou Drizzt simplesmente.
Os olhos de Zak voltaram a fixar-se nele.
— Matarás — garantiu ao filho. — Em Menzoberranzan, ou matas ou és
morto.
Drizzt desviou o olhar, mas as palavras de Zak seguiram-no e não podiam ser
apagadas.
— Não há outra forma — prosseguiu o mestre de armas calmamente. — O
nosso mundo é assim. A nossa vida é assim. Conseguiste escapar-lhe até aqui,
mas depressa descobrirás que a tua sorte mudará — agarrou o queixo de Drizzt
com firmeza e forçou o filho a olhá-lo directamente.
— Quem me dera que fosse de outra maneira — disse Zak honestamente —,
mas nem sequer é uma vida assim tão má. Não me arrependo de ter morto elfos
negros. Vejo as mortes deles como uma salvação desta existência malvada. Se
têm tanta fé na sua Rainha Aranha, então que vão visitá-la!
O sorriso cada vez mais aberto de Zak desapareceu subitamente.
— Excepto no que toca às crianças — murmurou. — Muitas vezes ouvi os
gritos de crianças a morrer, embora nunca, juro-te, tenha causado esses gritos.
Sempre me interroguei se também elas serão más, se já nascem más. Ou se é o
peso do nosso mundo negro que as torce até que se acostumem aos nossos
negros costumes.
— Os costumes da demoníaca Lolth — concordou Drizzt.
Fizeram ambos uma pausa, cada um sopesando as realidades do seu próprio
dilema. Zak foi quem falou a seguir, tendo-se havia muito conformado com a
vida que lhe fora dada.
— Lolth… — riu-se. — Essa é uma rainha malévola. Sacrificaria tudo de boa
vontade para poder ficar cara a cara com ela!
— Quase acredito que serias capaz disso — murmurou Drizzt, encontrando
um sorriso.
Zak afastou-se.
— Seria mesmo — e riu-se com gosto. — E tu também!
Drizzt atirou uma cimitarra ao ar, deixando-a rodopiar duas vezes antes de a
agarrar e embainhar.
— É bem verdade! — gritou. — Mas já não estaria sozinho!
Drizzt vagueava sozinho pelo labirinto de Menzoberranzan, passando pelos
aglomerados de estalagmites, sob as pontas aguçadas das grandes lanças de
pedra que pendiam do alto tecto da caverna. A Matrona Malice tinha dado
ordens claras a toda a família para permanecer dentro de casa, receando uma
tentativa de assassinato por parte da Casa Hun’ett. Demasiado acontecera já a
Drizzt nesse dia para que fosse capaz de obedecer. Tinha de pensar, e ceder a
esses pensamentos blasfemos, mesmo em silêncio, numa casa cheia de
sacerdotisas nervosas, poderia metê-lo em sarilhos complicados.
Esta era a hora mais calma da cidade; a luz de Narbondel já era apenas uma
pequena faixa na base do pilar, e a maioria dos drow dormia confortavelmente
dentro das suas casas de pedra. Pouco depois de se ter escapulido pelo portão de
adamantite da Casa Do’Urden, Drizzt começara a compreender a sabedoria da
ordem de Malice. O sossego da cidade parecia-lhe agora o sussurro de um
predador pronto a atacar. Estava pronto a saltar sobre ele, vindo de trás, de cada
uma das esquinas que dobrava no seu percurso.
Não encontraria aqui abrigo onde pudesse verdadeiramente reflectir sobre os
acontecimentos desse dia, as revelações de Zaknafein, sua família em mais do
que apenas sangue. Drizzt decidiu quebrar todas as regras — esse era o costume
dos drow, afinal de contas — e sair da cidade, pelos túneis que tão bem conhecia
das suas semanas de patrulha.
Uma hora mais tarde, ainda estava a caminhar, perdido em pensamentos e
sentindo-se suficientemente seguro, pois estava bem dentro dos limites da região
das patrulhas.
Entrou num corredor alto, com dez passos de largura e paredes irregulares,
cheio de cascalho e atravessado por muitas arcadas. Dava ideia de que aquela
passagem teria sido em tempos muito mais larga. O tecto perdia-se de vista, mas
Drizzt já por ali atravessara bastantes vezes, muitas delas passando pelas
arcadas, e não pensou mais sobre o local.
Encarou o futuro, os tempos que ele e Zaknafein, seu pai, partilhariam, agora
que não tinham mais segredos a separá-los. Juntos, seriam imbatíveis, uma
equipa de mestres de armas, ligados pelo metal e pelas emoções. Compreenderia
bem a Casa Hun’ett aquilo que ia enfrentar? O sorriso desapareceu da cara de
Drizzt assim que considerou o que isso implicava: ele e Zak, juntos, a cortar a
direito por entre as fileiras da Casa Hun’ett com uma facilidade mortífera,
dizimando fileiras de elfos drow. A matar a sua própria gente.
Drizzt encostou-se à parede, compreendendo agora em primeira mão a
frustração que consumira o pai durante séculos. Não queria ser como Zaknafein,
vivendo apenas para matar, numa esfera protectora de violência; mas que outras
escolhas tinha à sua frente? Sair da cidade?
Zak recuara quando Drizzt lhe perguntara porque não tinha saído da cidade.
«Para onde iria?», murmurava agora Drizzt, fazendo eco das palavras de Zak.
O pai afirmara que estavam ali presos, e assim parecia de facto a Drizzt.
— Para onde iria eu? — voltou a perguntar. — Viajar pelo Subescuro, onde a
nossa gente é tão odiada, e onde um único drow seria um alvo, por onde quer
que passasse? Ou talvez para a superfície, deixando que a bola de fogo queime
os meus olhos para que não possa ver a minha própria morte quando os elfos
descerem sobre mim?
A lógica deste pensamento deixava Drizzt encurralado, tal como deixara Zak.
Para onde poderia ir um elfo drow? Em parte alguma dos Reinos um elfo negro
seria aceite.
Seria, pois, matar a única opção? Matar outros drow?
Drizzt deslizou pela parede, com o seu movimento físico um acto
inconsciente, porque a sua mente rodopiava pelo labirinto do futuro que o
esperava. Demorou um momento a perceber que tinha as costas contra alguma
coisa que não era pedra.
Tentou saltar para a frente, agora alerta para o facto de tudo em seu redor não
ser como devia. Quando tentou avançar, os pés levantaram-se do chão e ficou de
novo na posição original. Freneticamente, e antes de ter tempo para avaliar a
situação complicada em que estava, Drizzt deitou ambas as mãos à nuca.
Também elas ficaram presas à corda translúcida que o sustinha. Então
percebeu a sua insensatez, e nem todos os puxões do mundo conseguiriam soltar-
lhe as mãos da linha do pescador do Subescuro, um caçador das cavernas.
— Louco! — troçou de si mesmo enquanto se sentia a ser puxado do chão.
Deveria ter suspeitado disto, deveria ter sido mais cuidadoso ao andar sozinho
pelas cavernas. Mas, ainda por cima, usara as mãos nuas! Olhou para baixo, para
os punhos das cimitarras, agora inúteis.
O pescador das cavernas puxava-o pela longa parede para as suas mandíbulas
expectantes.
Pouco tempo depois, Drizzt saiu de um pequeno túnel, com Guenhwyvar ao seu
lado, e avançou pelo pátio da Academia, para olhar para Menzoberranzan uma
última vez.
— Que local é este — perguntou baixinho ao felino — a que chamo lar? Esta
é a minha gente, pela cor da pele e por herança, mas não sou familiar deles.
Estão perdidos, e estarão para sempre. Quantos outros haverá como eu? Gostava
de saber… — murmurou, olhando uma última vez. — Almas condenadas, como
a de Zak. Pobre Zak. Faço isto por ele, Guenhwyvar; parto, quando ele não
conseguiu partir. A vida dele foi a minha lição, um negro pergaminho rabiscado
com preço pesado pago às promessas malignas da Matrona Malice.
— Adeus, Zak! — gritou, com a voz erguendo-se num desafio final. — Meu
pai… Consola-te sabendo, como eu sei, que da próxima vez que nos
encontrarmos, numa vida depois desta, não será certamente no fogo infernal a
que os nossos familiares estão condenados!
Drizzt fez sinal ao felino para entrar no túnel, na entrada para o Subescuro
selvagem. Vendo os movimentos fáceis da pantera, percebeu de novo o quanto
era afortunado por ter encontrado um companheiro de espírito como o seu, um
verdadeiro amigo. O caminho não seria fácil para ele e para Guenhwyvar, para lá
das fronteiras vigiadas de Menzoberranzan. Estariam desprotegidos e sós, mas
melhor, segundo os cálculos de Drizzt; muito melhor do que alguma vez
estariam entre a maldade dos drow.
Drizzt entrou no túnel atrás de Guenhwyvar e deixou Menzoberranzan para
trás.
EXILIO
Após renegar a sua própria família e partir para longe de Menzoberranzan, a sua
pátria, Drizzt tem que aprender a sobreviver e conquistar um novo lar no imenso
labirinto dos túneis subterrâneos onde se ocultam criaturas das trevas. Mas o
verdadeiro perigo parte da sua própria raça e Drizzt terá que estar atento a sinais
de perseguição, pois os elfos negros não são um povo misericordioso... Venha
descobrir Drizzt, o elfo negro, uma das personagens mais lendárias da fantasia. E
acompanhe-o na épica e intrépida jornada para longe de um mundo onde não
tem lugar... em busca de outro, na superfície, onde talvez nunca o aceitem.
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PRELÚDIO
— Drizzt Do’Urden
A Matrona Malice Do’Urden remexeu-se inquieta no trono de pedra da pequena
e escura antecâmara da grande capela da Casa Do’Urden. Para os elfos negros,
que mediam a passagem do tempo em décadas, este era um dia para ser marcado
nos anais da casa de Malice: o décimo aniversário do conflito em aberto entre a
família Do’Urden e a Casa Hun’ett. A Matrona Malice, que nunca perdia uma
celebração, tinha um presente especial preparado para os seus inimigos.
Briza Do’Urden, a filha mais velha de Malice, uma grande e forte fêmea drow,
andava para trás e para diante na antecâmara, impaciente, o que não era invulgar
nela.
— Já deveria ter acabado, por esta altura — resmungou, enquanto dava um
pontapé num pequeno banco de três pernas. Este rebolou e virou-se, rasgando
um pedaço de estofo de musgo.
— Paciência, minha filha — respondeu Malice, um pouco em tom de
reprimenda, embora partilhasse dos sentimentos de Briza. — Jarlaxle é
cauteloso.
Briza virou costas perante a menção desse ultrajante mercenário, e dirigiu-se
às portas de pedra ricamente trabalhadas. Malice não deixou de perceber o
significado das acções da filha.
— Não aprovas Jarlaxle e o seu bando — comentou sem emoção a Matrona
Mãe.
— São uns vadios sem casa — rosnou Briza em resposta, mas ainda sem se
virar para a mãe. — Não há lugar em Menzoberranzan para vadios sem casa.
Perturbam a ordem natural da nossa sociedade. E são machos!
— Servem-nos bem — lembrou-lhe Malice.
Briza quis argumentar com o custo extremo de contratar mercenários, mas,
sensatamente, manteve a boca fechada. Ela e Malice andavam em oposição
continuamente, praticamente desde o início da guerra Do’Urden – Hun’ett.
— Sem os Bregan D’aerthe, não poderíamos tomar nenhuma atitude contra os
nossos inimigos — prosseguiu Malice. — Usar os mercenários, os vadios sem
casa, como lhes chamas, permite-nos fazer a guerra sem implicar a nossa Casa
como perpetradora.
— Então, porque não despachar o assunto? — perguntou Briza, regressando
rapidamente para junto do trono. — Matamos uns quantos soldados Hun’ett, eles
matam uns quantos dos nossos. E entretanto, ambas as casas continuam a
recrutar substitutos! Assim, nunca acaba! Os únicos vencedores deste conflito
são os mercenários de Bregan D’aerthe… E seja lá qual for o bando que a
Matrona SiNafay Hun’ett tiver contratado… E que se andam a alimentar dos
cofres de ambas as Casas!
— Olha o tom, minha filha — rugiu Malice, num irado aviso. — Estás a falar
com uma Matrona Mãe.
Briza virou costas de novo.
— Devíamos ter atacado a Casa Hun’ett imediatamente, na noite em
Zaknafein foi sacrificado — atreveu-se a resmungar.
— Esqueces as acções do teu irmão mais novo nessa noite — respondeu
Malice sem se alterar.
Mas a Matrona Mãe estava enganada. Nem que vivesse outros mil anos, Briza
nunca esqueceria as acções de Drizzt na noite em que renegara a família.
Treinado por Zaknafein, o amante favorito de Malice e considerado o melhor
mestre de armas de toda a Menzoberranzan, Drizzt atingira um nível de destreza
no combate que estava muito para além do normal entre os drow. Mas Zak dera
também a Drizzt as atitudes perturbadoras e blasfemas que Lolth, a divindade da
Rainha Aranha dos elfos negros, não poderia tolerar. Por fim, os modos
sacrílegos de Drizzt tinham provocado a ira de Lolth, e a Rainha Aranha, por sua
vez, exigira a sua morte.
A Matrona Malice, impressionada pelo potencial de Drizzt como guerreiro,
agira então ousadamente em favor de Drizzt e oferecera a Lolth o coração de
Zaknafein, para a compensar pelos pecados do filho. Perdoara a Drizzt na
esperança de que este emendasse os seus comportamentos e viesse a substituir o
mestre de armas deposto.
Em troca, no entanto, o ingrato Drizzt traíra-os a todos e fugira para o
Subescuro; um gesto que não só deixava a Casa Do’Urden despojada do seu
único potencial mestre de armas, mas que também colocava a Matrona Malice e
o resto da Casa Do’Urden longe do favor de Lolth. No desastroso final de todos
os seus esforços, a Casa Do’Urden perdera o seu excelente mestre de armas, o
favor de Lolth e o seu potencial novo mestre de armas. Não fora um dia bom.
Felizmente, a Casa Hun’ett sofrera desaires semelhantes nesse mesmo dia,
perdendo ambos os seus magos numa tentativa falhada de matar Drizzt. Com
ambas as casas enfraquecidas e caídas em desgraça junto de Lolth, a guerra
esperada transformara-se numa série calculada de raides dissimulados.
Briza nunca esqueceria.
Uma pancada na porta da antecâmara fez Briza e a mãe estremecerem,
acordando-as das suas memórias desses tempos fatídicos. A porta abriu-se e
Dinin, o Rapaz Mais Velho da Casa, entrou.
— Saudações, Matrona Mãe — disse Dinin, com os modos adequados e
fazendo uma profunda vénia. Queria que as suas notícias fossem uma surpresa,
mas o sorriso que acabou por se lhe abrir no rosto revelou tudo.
— Jarlaxle regressou! — murmurou Malice, radiante.
Dinin virou-se para a porta aberta e o mercenário, que esperava pacientemente
no corredor, entrou com ar decidido. Briza, sempre espantada com os
maneirismos invulgares do mercenário, abanou a cabeça enquanto Jarlaxle
passava por ela. Quase todos os elfos negros de Menzoberranzan se vestiam de
uma forma discreta e prática, com vestes adornadas pelos símbolos da Rainha
Aranha ou com cotas de malha leves sob as pregas dos seus mantos mágicos de
camuflagem, os piwafwi.
Jarlaxle, arrogante e espalhafatoso, seguia poucos dos costumes dos habitantes
de Menzoberranzan. Estava longe da norma da sociedade drow e exibia essas
diferenças abertamente, desafiadoramente. Não trajava um manto, nem uma
veste longa, mas uma capa curta e brilhante que exibia todas as cores do
espectro, tanto à luz como ao espectro infravermelho dos olhos sensíveis ao
calor. A magia daquela capa só podia ser calculada, mas os que estavam mais
próximos do chefe dos mercenários diziam que era de facto muito valiosa.
A capa de Jarlaxle não cobria os braços e era tão curta que o estômago magro
e fortemente musculado ficava bem à vista de todos. Usava uma pala sobre um
olho, ainda que os observadores mais atentos percebessem que era ornamental,
pois mudava-a frequentemente de um olho para o outro.
— Minha cara Briza — disse Jarlaxle por cima do ombro, notando o interesse
desdenhoso da alta sacerdotisa pela sua chegada. Girou sobre os calcanhares e
fez uma vénia, fazendo rodopiar o chapéu de abas largas — outra singularidade,
ainda mais invulgar porque o chapéu era adornado por penas monstruosas de
uma diatryma, uma ave gigantesca do Subescuro.
Briza suspirou e virou costas perante a visão da cabeça inclinada do
mercenário. Os elfos drow usavam o cabelo branco e espesso como sinal da sua
posição e afiliação à Casa. Jarlaxle, o vadio, não usava cabelo nenhum e, do
ângulo de visão de Briza, a cabeça rapada parecia uma bola de ónix polido.
Jarlaxle riu-se em silêncio perante a desaprovação continuada da filha mais
velha da Casa Do’Urden e voltou-se de novo para a Matrona Malice, com as
suas muitas jóias a tilintar e com as botas duras e brilhantes a ressoar a cada
passo. Briza notou isso também, pois sabia que aquelas botas, e aquelas jóias, só
pareciam fazer barulho quando Jarlaxle queria que o fizessem.
— Está feito? — perguntou a Matrona Malice, antes que o mercenário
pudesse sequer iniciar a saudação devida.
— Minha cara Matrona Malice — respondeu Jarlaxle com um suspiro
condoído, sabendo que podia deixar de lado as formalidades, tendo em conta as
grandes novidades que trazia. — Duvidaste de mim? Fico evidentemente ferido
no meu coração.
Malice desceu do trono, com os punhos cerrados em sinal de vitória.
— Dipree Hun’ett está morto! — proclamou. — A primeira vítima nobre da
guerra!
— Esqueces Masoj Hun’ett — notou Briza. — Chacinado por Drizzt há dez
anos. E Zaknafein Do’Urden — teve de acrescentar, contra o que mandaria o
bom senso —, morto pelas tuas próprias mãos.
— Zaknafein não era nobre por nascimento — desdenhou Malice para a sua
impertinente filha.
Mas as palavras de Briza tinham-na, mesmo assim, espicaçado. Malice
decidira sacrificar Zaknafein no lugar de Drizzt, contra as recomendações de
Briza.
Jarlaxle pigarreou, para aliviar a tensão. O mercenário sabia que tinha de
terminar os seus assuntos e sair da Casa Do’Urden o mais depressa possível.
Sabia bem — embora os Do’Urden não o soubessem — que a hora marcada
estava a aproximar-se.
— Há ainda o assunto do meu pagamento — relembrou a Malice.
— Dinin tratará disso — respondeu Malice com um gesto da mão, sem
desviar os olhos do olhar fixo e pernicioso da filha.
— Com a vossa licença, então — disse Jarlaxle, acenando para o Rapaz Mais
Velho.
Antes que o mercenário desse o primeiro passo em direcção à porta, Vierna, a
segunda filha de Malice, entrou de rompante na sala, com o rosto a brilhar
fortemente no espectro infravermelho, acalorada por uma óbvia exaltação.
— Raios… — murmurou Jarlaxle.
— Que se passa? — perguntou a Matrona Malice.
— A Casa Hun’ett — gritou Vierna. — Há soldados no nosso complexo!
Estamos a ser atacados!
Claire Kendal
Os fãs de Gone Girl irão arrepiar-se com este thriller sobre poder e
perseguição.
Clarissa está cada vez mais assustada com o seu colega Rafe. Ele não a deixa em
paz e recusa-se a aceitar “não” como resposta. Está sempre presente.
Ser convocada para ser jurada é um alívio. A sala do tribunal é um abrigo
seguro, um lugar onde Rafe não pode estar. Mas à medida que uma narrativa de
rapto e violação se desenrola, Clarissa começa a ver paralelismos entre a sua
situação e a da jovem na barra das testemunhas. Se quer sobreviver, Clarissa terá
que expor o seu perseguidor. Ao desenredar o macabro e perverso conto de fadas
que Rafe teceu em torno deles, descobre que o final que ele visiona é mais
aterrador do que ela poderia alguma vez imaginar. Mas como é que alguém pode
proteger-se de um inimigo que mais ninguém consegue ver?
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