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Regulagem de Velas

Arnaldo Paes de Andrade – Cognac Velas Ltda. (RJ)

I)
30 de novembro de 2015 – Inicialmente para o fórum Flotilha da Guanabara

Alerta: O meu texto abaixo pode assustar velejadores sensíveis. Partidários do pensamento
positivo e cardiopatas, abstenham-se.

Eduardo, Digão e companheiros,

A resposta do Rodrigo é sempre correta: Se o seu objetivo está a seu barlavento você tem que
orçar. E tem que fazer isso com velocidade tal que a VMG ("velocity made good") seja a melhor
possível. A VMG é a componente da velocidade real do barco (SOG) projetada na linha do vento.
Se você está orçando a 45 graus com o vento real (o que dá uns 30 de aparente), e se a sua
velocidade real é de 5.5 nós, por exemplo, a VMG será 5.5 x cos(45), o que dá aproximadamente
3.9 nós. É essa VMG que você tem que tentar maximizar. “Espete” o barco no contravento e ela
provavelmente diminuirá. Ande numa orça folgada e verá o barco aumentar de velocidade (SOG)
mas verá a VMG diminuir. Não há muita latitude na escolha do rumo para se obter uma boa VMG.

A má notícia é que o "bom ângulo de orça" (angulo feito com o vento aparente e, indiretamente,
com o vento real) depende ENORMENTE da qualidade do velame (inclusive área vélica), da
regulagem da mastreação, da eficiência dos elementos de controle e da habilidade da tripulação.
Como há uma tendência distraída para se desvalorizar tudo isso em cruzeiro, o que termina
acontecendo é que o barco de cruzeiro que tenta orçar, acaba forçosamente por navegar muito
arribado. A velocidade real cresce bastante, dando sensação de que se está "com a bola
cheia", mas a VMG cai assombrosamente. E cai a tal ponto que, havendo uma corrente
contrária, um casco meio sujo ou outros fatores intervenientes, o barco simplesmente não
consegue avançar para barlavento do seu ponto de partida!

O lamentável quadro acima tem a ver com nosso clima, a forma com que nossos velejadores de
cruzeiro navegam e o material que usam. AO CONTRÁRIO do que se diz frequentemente - e
SEMPRE a título de desculpa - os desenhos dos nossos barcos de cruzeiros são bons orçadores.
Não conheci nenhum, em 35 anos de profissão, que não fosse capaz de orçar direito. Então, as
causas para o desempenho patético na orça apresentado por 98 a cada 100 veleiros de cruzeiro
aqui na costa sudeste não estão no desenho do barco, estão alhures. Vejamos:

Primeiramente, o que são "os nossos barcos" de cruzeiro? Com as (poucas) exceções de praxe
são:

1) Bons projetos de regata, batizados de "cruzeiro-regata" por razões mais comerciais do que
reais.

2) Quase sempre projetos de duas ou três décadas atrás. Ainda com certa freqüência, barcos
projetados na década de 70, isto é, com 40 anos de concepção técnica nas costas. Nota
intermediária: Não pela idade, mas pela forma com que foram projetados, NÃO PERDOAM NADA
DO QUE APARECE NOS PRÓXIMOS ITENS. Punem sem proprietários com um comportamento
horrível no contravento, e "cafajeste" no vento folgado, condição erroneamente dita "de cruzeiro".
No vento folgado o comportamento cafajeste se traduz por um barco mansinho em vento fraco e
quase incontrolável com mais vento.
O que, então, os “nossos barcos” não perdoam, punindo seus proprietários:

3) Convés atafulhado com mil trozobas, algumas delas impedindo mesmo a operação adequada
do barco.

4) Velas senescentes, notadamente aquelas com as quais se quer fazer o contravento!

5) Material de controle da mastreação do velame (cabos, escotas, catracas, moitões, stoppers,


esticadores) igualmente senescentes.

6) Regulagem inicial do barco "travada", isto é, sem resposta automática da mastreação às


rajadas e mudanças de vento.

7) Tripulação tecnicamente despreparada, levando à escolha errada de velas, regulagens e


rumos.

8) Tripulação que não vai escorar o barco.

Do ponto de vista de orça, assunto que deu origem a esse meu texto, o “nosso barco” de cruzeiro
é um lamentável fracasso. Mas o cruzeirista quer uma alternativa que não mexa nos cinco últimos
itens acima. Então embarca na onda de que, velejando arribado, conseguirá chegar com alguma
eficiência a um objetivo a barlavento do seu ponto de partida. E aí entra o “wishful thinking”, o
perigoso “pensamento positivo” que torce a realidade e faz o cruzeirista pensar que o caminho
para se fazer um bom contravento não está na correção dos itens acima, mas numa forma de
velejar “mais solto” (mais arribado)1. O que faz ele, então: Toca de ziguezaguear, como um doido,
por dentro de toda a baía, em alta velocidade, por vezes adernando muito, SEMPRE dando
porrada nas ondinhas, dando “mil cambadas” e, finalmente, chegando tarde, extenuado e muitas
vezes com o barco ensopado, ao objetivo que estava (ó maldade!) a barlavento.

Em resumo, com o barco adequadamente envelado, regulado, equipado e tripulado, orça-se


direito em cruzeiro. Sem isso é sempre um drama, maior ou menor. Não há, em barcos como
os nossos, nenhuma outra receita.

Desculpem-me o tom peremptório e quase belicoso deste texto, mas já escrevi sobre ele tantas
vezes na minha vida que ele não é, para mim, um assunto ameno. O diagnóstico é cristalino, a
solução evidente. Não há cura alternativa e nem pensamento positivo que possam mudar o
quadro.

1
Velejar em orça folgada é, de fato, o único recurso que sobra ao timoneiro cujo barco tem velas demasiadamente gordas. Porém
o que é preciso se dizer é que JAMAIS se conseguirá “subir” eficientemente para barlavento com velas gordas. A VMG despenca
quando se anda arribado, mesmo que a velocidade real aumente. A minha palestra em Ubatuba, em setembro de 2015, falava
justamente sobre a regulagem das velas velhas e suas claras limitações.
II)
Em 1 de dezembro de 2015 09:14, Arnaldo andrade <adrianno@openlink.com.br> escreveu:

Colegas,

Num sábado chuvoso de setembro eu apresentei aos participantes do Cruzeiro dos Tamoios uma
palestra sobre "Regulagem de Velas Velhas". O finado Tonico, da revista Velejar e Meio
Ambiente, sempre me cobrou um texto ou uma palestra sobre isso. Pois bem, fi-la em Ubatuba.

Em resumo, velejar em orça folgada é, de fato, o único recurso que sobra ao timoneiro cujo barco
tem velas demasiadamente gordas. Porém, o que é preciso se dizer é que JAMAIS se conseguirá
"subir" eficientemente para barlavento com velas gordas. A VMG despenca quando se anda
arribado, mesmo que a velocidade real aumente. A minha palestra em Ubatuba, em setembro de
2015, falava justamente sobre a regulagem das velas velhas e suas claras limitações. A minha
explicação sobre a VMG, em reposta a uma pergunta do Eduardo Schwery (vide terceiro texto),
reforça esse meu entendimento.

No entanto, embora haja uma forma de se velejar em orça folgada que permita a um veleiro com
velas gordas chegar a um objetivo a barlavento, essa é uma solução forçosamente temporária.
Notem que:

1) A eficiência, enquanto tentativa de se alcançar um objetivo a barlavento, é baixa porque o VMG


é sofrível.

2) O fato de se andar em orça folgada com velas gordas é sinônimo de barco "adernadão", o que
é sempre incômodo.

3) Finalmente, havendo um pouco mais de vento e mar, vai-se velejar velozmente (embora com
VMG sofrível) e essa velejada em velocidade vai molhar o barco e a tripulação, vai fazer entrar
água pelas gaiutas e vai ser muito desagradável.

Os três fatores acima somam-se para transformar a orça do barco com velas gordas num
suplício.

Na minha palestra eu já mostrava (com imagem a me apoiar) que a forma de se orçar bem, com
mais conforto (menos adernado e dando menos "porrada" na onda) e com melhor VMG era ter
velas chatas. Na postagem de ontem eu dizia, a título de resumo:

"com o barco adequadamente envelado, regulado, equipado e tripulado, orça-se direito em


cruzeiro. Sem isso é sempre um drama, maior ou menor. Não há, em barcos como os nossos,
nenhuma outra receita."

Por isso recomendo buscar uma veleria que possa recuperar (se possível) um formato razoável
para as velas do seu barco. Também recomendo que se faça na mastreação uma regulagem
adequada para as velas (reformadas) do barco. Finalmente, e antes de tudo, que se chame a
bordo um companheiro que possa avaliar o formato atual das velas, fotos adequadas (tomadas
de posições específicas) a apoiá-lo.

Essa avaliação inicial dificilmente pode ser feita por um velejador que não tenha bastante
experiência nessa tarefa. Mas há bons "trimmers" (reguladores de velas) em muitos clubes,
velejando os mais diversos barcos. É questão de procurar um deles. Alguns profissionais,
inclusive eu, fazem isso remuneradamente. Mas há quem possa fazer uma avaliação cuidadosa
(que inclua fotos), de forma gratuita.
III)
Em 1 de dezembro de 2015 12:06, Arnaldo andrade <adrianno@openlink.com.br> escreveu:

Guilherme,

Em sua postagem você perguntava: "Poderia explicar o que e uma vela gorda? ". Essa explicação
normalmente toma muitas páginas dos manuais de vela. Mas todos a contém. Então,
preliminarmente, recomendo a compra de alguns desses manuais e livros. Você vai ser
apresentado ao conceitos de "camber", de ângulos de entrada, ângulos de saída, "twist" de
valuma (helicidade) e alguns outros que fazem parte do arsenal de avaliação de uma vela.

O que eu posso dizer aqui é que avaliar o volume de uma vela (em diversas cotas, desde a sua
base até o tope) é uma habilidade que se adquire. E ela deve ser aprimorada e confirmada pela
avaliação fotográfica, que não apenas representa um "olho biônico", mas serve para aguçar a
nossa avaliação puramente visual.

Há, então, uma parte que é teórica, que precisa ser conhecida para que você fale a mesma
linguagem dos seus interlocutores. Quando eu digo, por exemplo, que uma vela mestra está
gorda, eu não lhe ofereço nenhuma avaliação numérica. Passo-lhe apenas a minha impressão de
que, do jeito que está, ela não se prestará, por exemplo, a uma orça de qualidade. Mas por trás
da minha avaliação ótica ou melhor, para embasar essa avaliação ótica, há uma avaliação teórica
eventualmente suportada por uma avaliação fotográfica. Nem a avaliação ótica nem a fotográfica
servem para muita coisa se você não tiver um arcabouço teórico para dar base ao que seus
olhos vêem e suas tabelas (obtidas com medidas nas fotos) lhe mostrarem. Essa parte teórica
está nos livros mais técnicos sobre vela. Os colegas podem recomendar outros mas eu, que sou
velho, gosto do primeiro livro do C.A.Marchaj, Sailing Theory and Practice, publicado pela
Adlard Coles, de Londres.

Nesse livro, assim como em outros, você vai ser apresentado ao conceito de "camber" (os
americanos preferem "draft") que é uma relação Flecha F / Corda C, como mostrada na foto
anexa. Para cada gama de vento, cada vela, cada mastreação, cada estabilidade, cada condição
de mar e até cada modo de velejar, existe um conjunto de "cambers" que podem ser medidos de
baixo até o alto da vela. ISSO DEFINE, GROSSO MODO, O QUE A GENTE CHAMA DE
"BARRIGA". Uma vela "barriguda" para a orça seria, portanto, uma vela que mostrasse,
globalmente, "cambers" mais elevados do que deveríamos esperar para a orça. Os valores
esperados estão nos livros.

Nota: Na imagem abaixo você pode notar que se não houver uma faixa de cor contrastante
paralela à retranca (a chamada "draft line", mostrada em A) a gente pode facilmente errar na
avaliação visual de velas com painéis "crosscut", isto é painéis paralelos entre si e
perpendiculares à valuma. As costuras desses painéis (em B, lado direito da foto), são mais
longas do que a draft line correspondente e as flechas medidas podem ser mais curtas. O
resultado é que a relação F/C fica falseada (para menos) sem uma "draft line" e a gente pode
ficar com a impressão de que uma vela é menos gorda do que ela realmente é.
Não vou me estender muito porque o assunto é longuíssimo. Recomendo que você, velejador
entusiasmado e leitor atento do fórum, procure livros, apostilas, texto de internet e outras mídias
que esclareçam em minúcia o conceito de "camber" e porque ele é importantíssimo para a
performance de um barco, notadamente no contravento.

Não deixe de pesquisar a razão pela qual o "America" foi o vencedor da primeira Copa América
disputada (há mais de 150 anos) e porque ele trouxe o caneco para os EUA . Tem tudo a ver com
"velas chatas contra velas gordas" e a capacidade do barco fazer um bom contravento. Mas essa
história, oficial, é acompanhada de muitas outras que apontam na mesma direção, algumas bem
mais antigas.

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