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A. ler “Um médico rural”, leitor sente estar dante deum dos mais enigméticos contos de Franz Kafka, O prazer do ato de interpretar & logo espicagado, mas o mesmo leitor se mostra temero- so pela certeza de estar diante também de uma obracprima da short-story. Sendo assim, s6 restaa ele tatear 0 mundo insélito do natrador e dar-se pot contente se achou aqui eali uns indicios que fazem sentido, Seu desconcerto ocorre, entre ou- ‘ras raz6es, por sero comto um tanto diferente do restante da obra, pois estérelativamente distante do conhecido “antipsicologismo” de Kafka, ou.20 ‘menos distante do “falar frio e sbrio” do comum de seus narradores. Na verdade, hé nele uma co- mogo que nio hé em nenhum outro conto do autor, além de ser dos poucos em que aparecem insinuagbes sexuais como as de estupro'. Da mesma forma que em outros textos do li- vr0, hé no conto “Um médico rural” 9 motivo recorrente da “existéncia que passa e da viagem vital que munca alcangao fim’, nas palavras de seu tradutor?, Mas esse motivo épico por natureza aparece adensado por uma multiplicidade intcincada e’insélita de cenas, de tal forma que algumas passagens se diriam sem sentido, Nao €0 que ocorre, sem diivida, ea razo esté num fato evidente: sea narrativa nfo tivesse sentido, deonde viria tanta forca? E que 0 sentido deve estar no conto da mesme forma “contrafda’ que a lembran- cada vida na meméria do avé de “A préxima al- deia’. ‘Aimportancia da narrativa para 6 conjunto do livro e pata o autor est indiciada no fato de dar titulo 20 volume, Qual razo para isso? Como ARIOVALDO JOSE VIDAL* consta da edigao brasileira, até agosto de 1917 0 titulo da obra era outro; em agosto ocorrea mu- ddanga, ustamente no més em que Kafka sofe sua primeira ctise da doenca queria vitimé-to. Ainda queseja coincidéncia, o fare équeo conto possui certa analogia com outros, nos quas figura cen tral éa desse jovem franzino e doentio, imagem que ganha uma énfase particular ao iniciar-se 0 processo de debilidade do autor. Mhis do que em “A preocupacio do pai de fa- sntlia® ou “Onze filhos' énesse conto que Kafka est presente com seu drama de jovem doente. [Nem pensar em algo como conto confessional ou coisa propriamente biogréfica; pensar, isto sim, numa analogia com a situagio do autor, mas tra- tada de forma “bela e madura’, como queria seu editor’, Para isso, concorre no conto uma riqueza de pontos de vista que nada tém de lamentoso, piegas, ainda que muito de desencanto irremedig- vel. O ponto de partida é devidamente banal, como convéma Kafla: um médico deve fzer uma viagem urgente a uma aldeia distante, onde um jovem estd em estado grave. A noite é de frio in- tenso, 0 médico niio tem quem Ihe empreste os cavalos, a situacio de desespero. Mas ha, sim, cavalos:"A gente no sabe as coisas que ter arma- zenadas na propria casa’ (p. 10). Com o apareci- mento dos cavalos edo cavalatigo, instaura-se na narrativao estranhamento que ird persistit até~o fim. Cria-se, na verdade, uma sintaxe de alterndncia entre o realismo ¢ 0 insdlito, como ‘num filme em que em determinados momen- tos 0 projetar se descuidasse, ¢0 personagem se MAGMA REVISTA OUTISS 51 52 visse impotente para conter 0 redemoinho dos fatos e do cempo. De posse dos cavalos ~ ¢ talvez fosse me hor dizer: apossado pelos cavalos — 0 médico encaminha-se até a aldeia ea casa do doente. E maior a rapider com que ele entra no quarto do estranho do que seria se entrasse no de sua casa para salvar Rosa, que estd sendo violentada pelo cavalarigo desconhecido. Depois de uma cura frustrada~a passagert mais incompreenstvel do conto ~ ele retoma 0s cavalos para 0 percurso devvolta, agora com uma lentidao desesperadora, como se toda a energia houvesse desaparecido. ‘Aos cavalos esté associada aidéia de virilida- de ou forca vital; quando incontrolével e supe- rior ao homem, como em muitos exemplos da literatura, essa orga encarna ima entidade ma- ligna que o leva a destruicio. E 0 caso exemplar do conto Metzengerstein, de Edgar Allan Poe, cem que aparece na estrebaria do Baro Frederick ‘um portentoso cavalo que pertencera ao inimi- go do bario. Certa noite tenebrosa, depois de montado e de uma cavalgada pela propriedade do nobre, 0 cavalo atira-se ao castelo em cha- mas, destruindo seu novo senhor, ‘Nos dois contos, o motivo dos cavalos exer- cea fungio de forca incontrolivel e de origem desconhecida, mesmo que em Kafka nio haja setes catregados de pathos como sao os de Poe. Ennosdois casos, o cavalo é instrumento de vin- ganga do inimigo, com uma diferenga funda- mental: em Poe, € 0 cavalo do Conde de Berlifitzing que volta para vingar as humilha- (ges e dertotas softidas por seu antigo proprie- tario; mas em Kafka, 0 novo proprietirio é um pacifico burgués, médico e cura das aldeias a0 redor, que se vé de repente nas maos de um es- tranho e familiar cavalarigo, saido da escuridao do espago privada, e que ele nem mesmo sabia que tinha em casa O médico de Kafka passui, 20 invés do or- gulho dos personagens de Poe, uma impoténcia comum a todos os herdis do escritor tcheco, ¢ por isso a idéia de uma vinganca por parte do cavalatigo (e dos cavalos) seria injustificada no conto. Isso explica-se por no ser Kafka roman- tico: seu médico nao vive a questo do duplo como uma mistura de soberba e culpa; no MAGMA REVISTA OUTIN antipsicologismo de Kafka, nfo €0 personagem que é ambiguo, e sim a situagio. Mas nao esta- semos muito longe de decifrat a situagao, se dis- setmos que 0 cura e o cavalarigo so, em algu- ma medida, 0 médico eo monstro. O jovem eo cavalarigo O conto esté estruturado a partir de dualidades, que se iniciam com o espago: a casa do médico e a casa do paciente. A partic dessa dualidade, se estabelecem outras que fazem cru- zar os ambientes, de tal modo que a cena da cura na casa do paciente seja tho importante quanto os acontecimentos da outra casa, com- provando que em Kafka tudo est’ mesmo no primeiro plano. Dito de outro modo, mal co- mega 0 conto, ¢0 que sugere uma situagio cla- ramente diplice ganha logo a indefinigéo do ambiguo, Assim, a contradigéo inicial jé esta dadat ir salvar um doente significa condenar a empregada e protegida violencia do cavalatigo, ‘o que éuma maneira de negar sua acio profiss onal. Por ser médico, vive igualmente a ambi- silidade de transitar nos espagos piiblicos e pri- vvados, sala e quartos, em que tem acesso A apa- réncia e 3 intimidade dos pacientes; e por isso, deve levar a eles um alivio que inclua o corpo ¢ aalma, de acordo com a antiga nogio do sacer- décio médico. Tanto que, no nticleo incompre- ensivel do conto ~ o didlogo com 0 jovem en- fermo -, a terapéutica que prescreve resume-se a palavras, a conselhos que dé ao jovem. Por tudo, as feridas fisicas do conto so também fe- ridas psiquicas. ‘Ao descabriro rapaz, o médico percebe a fe- rida horrfvel que 0 outro possui: “No seu lado direito, na regio dos quadris, abrit-se uma fe- rida grande como a palma da mao. Cor-de-rosa, em vitios matizes, escura no fundo, tornando- se clara nas bordas, delicadamente granulada, como sangue coagulado de forma irregular, aber- tacomo a boca de uma mina luz do dia. As- sim parece & distancia. De perto mostra mais uma complicacZo. Quem pode olhar para isso sem dar um leve assobio? Vermes da grossura e comptimento do meu dedo minimo, rosados por natureza e além disso salpicados de sangue, reviram-se para a luz, presos no interior da feri- da, com cabecinhas brancas ¢ muitas perninbas. Pobre rapaz, nfo é possivel ajudé-lo. Descobri sui grande ferida; essa flor no seu flancd vai arruind-to.” (p. 13) jovem esta realmente doente, © rapaz € sua familia reproduzem, de forma cancentrada, a mesma situagio deA metamorfose: pai, mc, rma e irmio, ¢ 0 mesmo filho cujo corpo esté sujeito a estégios /nféros do sex, Nao é casual que 0 médico, ao receber um copo de rum do chefe da familia, refira-se ao garoto como o “te- souro” do pai: dos vermes ele chegars & barata Mais do que doente, estd ferido numa regio “préxima aos quadris”, préxima também & te- gido pubiana: € dificil nio pensar nessa “boca” como uma imagem sugestiva da imporéncia el ou do feminino. Mas se isso for reduzir 0 conto a lugares-comuns, seré possivel ao menos dizer que a ferida fragiliza o jovem personagem na regio central do corpo, aquela que deveria sera sais virile fragiliza, na bela imagem aliterativa da tradugio brasileira: “essa flor no seu flanco”. ‘Num caso, a flor é metéfora de ferida (flor no flanco); no outro, é metéfora de mulher (Rosa). Deimediato, vern-nos a comparacio inevitivel: enquanto o médico — habitante de duas casas — descobre a ferida de um jovem, o outro estupra sua companheira. E note-se a sugestéo erética no desconsolo do rapzz, ao dizer que a “bela ferida” foi “todo o seu dote”, mostrando a inter- digao & sexualidade do casamento, Ni novela “A construgis”, uma das mais deprimentes de Kafka, hd uma espécie de efecu- Jo dialético que pode ser visto como uma forma de‘determinismo natural: 0 animal-narrador devora os animais menores, mas esté exposto & devoracio dos animais maiores. Ao pensar no encontto final com o grande inimigo, ele sabe que “com uma fomé nova e diferente, mesmo queestejainos completamente saciados, mostra- remos, sem sentit, nossas garras¢ nossos dentes um para o outro”. Fa mesmo um sentimento dle maldade inerente aos seres, pois o mal se re- produz em todos os niveis da espécie, 0 que se reforca pelo fato de 9 escritor utilizar animais em seus contos. Kafka ¢ sdbio o suficiente para mostrara crueldade do texugo que dilacera suas vitimas afogado em sangue e pedagos de carne; © animal teme que sew inimigo faga com éle 0 aque ele faz com os outros, Ha em Kafka wana vi- so que parece oscilac de um determinismo his- t6rico (0 superpoder do mundo administrado) a. um determinismo natural (a vida como uma cacada dos fortes aos fracos). O caso da “Peque- na fibula” entre o gato e 0 rato é exemplar: 20 invés de metafisica, sua visio & propriamente fisica, . No caso de “A construsio”, é possivel uma leitura alegérica; mas no caso de “Um médico rural’, a violéncia do contraste é também bas- tante clara, e no parece haver necessidade do alegtico, simplesmente porque a sexualidade post um estatuto temético que nfo requer a transferéncia de sentido. Néo sei dizer até que ponto a leicura de Freud pelo autor tem a ver ‘com isso, mas hd no conto do médico um cfr- culo igualmente fechado, s5 que dessa vez de determinismo sexual - se a expressio nao for de mau-gosto. Com esses varios “determinismos*, no se trata de ler Kafka como escritor do sécu- lo XIX; a expressio busca apenas qualificar um pouco mais o que Anatol Rosenfeld chama de “estruriiras essenciais do homem” (p. 235). O jovem e 0 médico Voltando ao conto, a situaga0 se complica quando o médico é despido e deitado a0 lado do paciente; mostra-se doente como ele, mas também apto a compreendé-Io, por estar na mesma condigéo. O didlogo que se segue é de- cisivo: "— Devo me coitentar gom essa desculpa? Ah, certamente que sim, Tenho sempre de me con- tentar. Vim ao mundo com wma bela ferida; foi esse todo 0 meu dote ~ Jovem amigo —digo~o seu erro : voce nfo tem visio das coisas. Eu, que ja estive em todos os quartos de doentes, por toda par- te, ex the digo: sua fetida nao & assim to mi, Aberta com dois golpes de machado em Angulo agudo. Muitos oferecem o flanco ce quase nfo ouvem o machado na MAGMA REVISTA OUTIO4 53 54 mata, muito menos que ele se aproxima, —E realmente assim ou na febre voce me engand? —E realmente assim, aceite a pa- lavra de honra de um médico ofi- cial” (p15) ‘Cm esse didlogo, o-médico fica parecendo ‘um charlatio, que se propée a curar um doente sem-conhecer a doenca, e sem mesmo perceber queo doente esté doente. Na verdade, ele é mais _um pobre-diabo do que um charlatio, outro caso de “narradot inscience” em Kalla. Algo pareci- do com a cena extraordindria de Morangos Sil- vestres, de Ingmar Bergman, em que um velho miédico relembra o exame de medicina, em que dizia que paciente estava morta; a ‘morta’ abria os olhos¢ soltava uma gargalhada. E 0 equivo- co era metéfora do que fora a vida do médico. HA sem duivida na obra de Kafka a faléncia da sabedoria e da competéncia. Mas o médico, quando fala, possui uma serenidade que ests muito proxima da sabedoria, B note-se que se nao fosse assim, se ele fosse um charlatao e a frase nos passasse somente uma sensacio de riso, pelo despropésico em relacio & gravidade da fe- rida, 0 conto seria banal pelo que teria de éb- vio, tornando a leitura facil. A diferenca osten- siva em relagao a quase todo o restante da obra é que nesse conto as tensdes séo febris. Quer di- zef, 0 tom € 0 ritmo no sio serenos como em outros casos; isso tem uma explicagéo: pode- se dizer que hé um sentimento de desespero do narrador, do paciente, de Rosa, aliado a violén- cia decidida do estranho cavalarigo. Ali, 0 narrador sai de seu tetraimento jé pela prépria profissio, pois como médico deve set portador de uma forca que aplaque as dores dos homens. Num conto tenso como é, a possibilidade da ironia é menor, A dittima expressio, “médico oficial”, po- deria sugerit nele a charlatanice mencionadas ‘mas nem os episédios, nem o tom do conto € cla passagem sugerem isso. Ao falar em “médico oficial’, parece haver certaintengio de dignida- de, de um velho querendo convencer pela auto- ridade ao garoto renitente. Tanto é assim que 0 ‘médico ecarna 0 pai compreensivo que Kafka no teve, pois os conselhos que dé ao jovem sao. uum “veredicto” (p. 11) bem diferente do “Vere- dicto”, outro de seus contos tertiveis. E 0 prd- prio médico reconhece que se “sentiria mal no estreito mundo do velho” (p. 12) O narrador fala de um ponto de vista eleva- do, de alguém que “esteve em todos os quartos de doentes”; o que estranha é nfo falar de um absurdo apocaliptico: 20 contriio, fala de uma possibilidade que se sobzep6e 20 absurdo, 20 dizer que a ferida nao é assim téo mA..Sente-se com o tom da frase justamente um sentido for- te deexperigncia, diga-se de passagem a mesma experigncia funda da vida que esté na vor. do natrador de virios contos de Kafka. De mais a mais, as imagens que 0 médico utiliza para con- vencer o jovem possuem uma forca enigmitica que nao falseiam a “verdade poética’:falam em tom de sabedoria cifrada. Sendo assim, cria-se um problema para 0 leitor, pois uma passagem aparentemente con- tradiz a outra. A opiniao do rapaz sobre si pré- prio confirma a do médico pelas palavras quase idénticas: ele percence& grande familia humana cuja heranga é “uma bela ferida". Com certeza Kafka nao pensava somente nas feridas do cor- po, mas necessariamente naquelas da alma, pois © médico ao invés de medicar 0 outro, aconse- tha-o, dizendo-lhe que sua ferida ni € tio gra- ve. A mesma mobilidade ins6lita da representa 0, oscilando entre o realismo e o fantéstico quanto & légica dos acontecimentos, mostra-se também na situagéo grave do jovem: seu mal é horrivel nao ¢ to mau assim’. Seca leitura estver correta, digo que se cria pela contradigao uma fresta na negatividade kafkiana, uma possibilidade de o real nao ser visto pela negacio absoluta. Ao que parece, 0 narrador inverte a lac6nica sentenga do avd de “Apréxima aldeia’: nese pequeno conto, o neto apodera-se da experiéncia do avd, ¢ cria para si a impossibilidade da vida, Ou seja, por mais que a experiéncia diga que é impossivel chegar-se & * Deveseobservar que o médica ratfica sua opiniio em tres momentos dstntos do cont: 2) antes de descobriro rapa: “Conf tma-seoquesei:o rape sop, 12);b) duraneo dslogo (p. 15} ec) no final, fla qu havi sido um ‘lara ls" (p. 10. MAGMA AEVISTA OUTIOA } © préxima aldeia durante a vida, nem por isso os netos ~ os jovens — deixario de tentar, 0 que sempre implicard a possibilidade. O laconismo da pequena histéria sugere o drama de um neto de quem a experiéncia do avé se apoderou ¢ imobilizou. Arrisco a dizer que a frase do médi co rural inverte a situagéo-do anciéo do outro conto, ¢ fala nessa possibilidade, aliada inega- velmente 3 juventude. Ousej, sea situacio dos jovens nos dois contos é mesma, de recusa, a dos velhos alterou-se, a0 menos quanto ao con- selho. Essa possibilidade esti no fato de o con- selho afastat-se das relagies de poder, e falar de situagées da esfera privada. Se certo que esta é atingida pela esfera do piiblico, écerto também que nfo so exatamente as mesmas. Ha na obra de Kafka certa modulagao que faz. com que repontem aqui e ali determinadas alternativas, néo de salvacio do homem, mas de possibilidades que tammbém sio reais: “E des- ccubro que, pata mina, as coisas curiosamente no extio to mal quanto muitas'vezes acreditei na certa vou acteditar quando descer & minha morada.” (p. 105) Essas palavras do animal- narrador de “A construcio” mostram as modu- agées mencionadas: o real, 0 menos em alguns contos ¢ novelas, surge como o campo do pos- sivel, nfo se esgotando na absoluta negatividade, Tome-se uma frase de Kafka: “HA muita espe- ranga, mas nfo para nés”*: construgdes antitéticas como essa ~ de Kafka out sobre ele — € que sio lapidares para a compreensio do au- tor, pressupdem sempre um pélo positivo de onde, por certo, 0 sujeito estéalijado, mas para onde olha incessantemente. O desconcertante é que frases como a do mé- ico ou do animal-narrador nem sempre so ape- nas preparagio para o desenlace catastréfico: fi- cam soando soltas durante todo 0 conto como pequenas ilhas de alternancia em relagao a situa- fo geral, sem se sujeitar & negatividade iltima, Ou seja, ndo servem apenas como contraste a0 ddesastre fina; so uma alternativa necessériaa uma representacao que se quer absolutamente negati- va, Uma das dualidades da obra de Kafka ¢.a situ- agio de espera ou desejo que nunca ¢alcangado; mas observe-se que acatésttofe muitas vezes tam bém no chega. Seum estado de perigo éa imagem melhor da consciéncia plena- citando outra das frases éen- trais do autor ~a frase ndo diz que necessariamen- teo petigo deva levar 0 medo ou & imobilidade. Ha momentos em que aconsciéncia descobre que seo medo é uma das faces da tealidade, nao éa tinica, Talvez isso expliqueas imagens ciftadas que ‘o médico receita ao paciente: “Muitos oferecem 0 flanco ¢ quase nao ouvem 0 machado na mata, muito menos que ele se aproxima”. So imagens que recordam o vai-e-vem do pensamento neurd- tico do texugo, sempre as voltas com o inimigo mortal («bicho, o machado na floresta), mas que pode nao vir. O préprio narrador de “A constru- 40” lembra-se que melhor era a vida de perigos indiferenciados. © «caso de Odradek é exemplar, pois ele possui uma plenitude, ainda que feita do precé- rio, que € necessariamente uma alternativa 20 universo sufocado do pai de familia. E.o que € mais importante: ele no aponta simplesmente para uma outra ordem, mas vive uma outra or- dem, contrapondo-se ao animal de “A constru- 40”, este cortoido pelo medo. Ao final dessa novela, o animal esté velho e 0 grande inimigo que se aproxima éa morte, momento da revela- do da experiéncia, que jé nao serve mais, como sabemos, porque vem fora de hora. Mas nem por isso deixa de ser iluminadora: “Como é que, durante tanto tempo, tudo correu calmo e feliz? (..) O que eram, diante deste, os pequenos pe- rigos sobre os quais passei o tempo pensando?” (p. 100) E note-se que a0 final da novela tudo “continuou inalterado”. £ certo que aqui estamos Jonge de uma leitura aleg6rica (0 inimigo como o nazismo) e préximos da expeciéneta do sujei- to, quem Kafka, pela reificagao, estd quase que liquidada: talver nao totalmente. O médico e 0 cavalatigo Entretanto, se hé alguma possibilidade para 0 jovem de “Um médico rural” — caso acredite que seu mal nio € tao grave assim ~ 0 médico dectépito por seu lado esté irremediavelmente perdido, pois ao voltar vagaroso cumpre a im- possibilidade de chegar do ava de “A prdxirna aldeia’. Hé ambigiiidades no somente entre os MAGMA AEVISTA OUTS 55 56 ambientes, mas em cada um deles: quando 0 cavalarico bate a porta sobre o médico, numa cena de efeito cinematogrifico, a porta que se fecha é conhecida do leitor, pois é a mesma de “Diante da lei”, em que o poder fecha sobre 0 decrépito camponés, como.a tampa do atatide. No nosso conto, a invasio do cavalarigo possui mesmo significado virtual, o de ser também a consumacio de uma porta que se fecha sobre a impoténcia do decrépito médico camponés Rosenfeld refere-se presenga “quase obsessiva” das portas em Kafka, “esses limiares entre inti- midade € 0 mundo” (p, 237). Hi algo de quixotesco na tentativa do mé- dico em salvar a honra de Rosa, montado num cavalo que no 0 obedece nem na ida nem na volta, Enquanto este vai aldeia vizinha entrar na intimidade de um estranho paciente, um impaciente estranho penetra sua intimidade ¢ toma seu lugar: a satide do médico opée-se-a situagio do doente, assim como a virilidade do cavalatigo opée-se flagrantemente a decrepitude do médico. HA uma forma de descentramento do mundo em que o narrador, que vai visitar a vitima, é cle também uma vitima, um doente visitando outro doente. © iodo como ¢ escorragado pela aldeia lembra 0 grotesco da cena do romintico ale- mio Achim von Arnim, em "Os morgados", Id igualmente a de um médico escorragado: “Sen- tada & boléid esté a morte, a fome ¢ a dor se acham entre os cavalos,espiritos pernetas e ma- netas vom ao redor do coche eexigem do atroz individuo, que as observa com apetites canibais, adevolugio de bracos e pernas, Seus acusadores correm, gritando, atrés dela: so as almas que artebatou do mundo antes do tempo...” Si0 cenas, como diz Kayser, de um “mundo de ponta a ponta podre, caduco, corrupto e criminoso, anterior a irrupgao do caos revolucionario.” (p. 79). Ou como diz 0 médico de nosso conto, cenas “desta época desaforcunada’, em que “uma ver atendido o alarme falso da sineta noturna no hd mais o que remediar, nunca mais.” (p. 15 ¢ 16). No caso deste iltimo, o precétio de sua au- toridade fica claro no fato de ficar sem roupa, expondo a um tempo (pela zombaria das crian- 58) aindigéncia moral, ¢ (pela sugestao do frio rigoroso de inverno) a indigéncia do corpo, “o mais esquecido dos pafses estrangeitos”, como diz, Walter Benjamin’, lendo o escritor tcheco’. CO encontro com o jovem é 0 encontro com sua juventude perdida, a impossibilidade de rom- pet o cfrculo da impoténcia e da morte. £ curi (050 que ao tratar com o rapaz, que Ihe pedira para deixé-lo morrer, ele pense: “Tenho ainda de cuidar de Rosa, além disso 0 jovem pode es- tar com a razao e também eu quero morrer.” (p. 12). A contiguidade entre a intengao de cuidar de Rosa ¢ 0 desejo de morrer nio é gratuita: é num conto tao conciso e cheio de transferénci as, a expresso de amor e morte, Essa preocupa- <¢éo subterrinea vem um pouco mais & tona, 20 ize? que, se 0s cavalos fossem répidos, ele sal- taria da cama do invalido para sua cama, onde estatia naquela hora a moga sendo deflorada (p. 15). E fica explicita a preocupagao amorosa ao teferit-se a Rosa: “Essa bela moga que durante anos viveu na minha casa quase sem que eu a percebesse.” (p. 13). ‘Mas a volta dos cavalos ¢ jé sem qualquer cenergia, pois parece a derradeira viagem de vol- taa casa, o médico irremediavelmente envelhe- cido: “Devagar como homens velhos trilhamos 0 deserto de neve” (p. 15). A aproximagio en- tre homens e cavalos esclarece a dualidade fun- damental do conto: por um lado, 0 médico 0s cavalos esto sujeitos ao mundo administra- do e estéril (0 deserto de neve), assim como 0 cavalo do primeiro conto do livro, Bucéfalo, que se tornou advogado, ¢0 simio do iiltimo, trans- formado num pacato burgués. A nocio funda- ‘mental em Kafka do homem-profisséo repete- se aqui com esse médico preocupado com seu “préspeto consultério” (p: 15). Por outro lado, tal situagio opée-se flagrantemente 20 inicio, em que o “cavalarigo” (cuja falta de nome Ihe atribui algo de animalesco) chamava aos cava- los de irmao e irmé (p. 10), e possufa uma vi- talidade préxima’ dos animais, Da mesma for- * Water Benjamin, Obras escolhidas: magia tenia, arte police, rad, de Sérgio Paul Rouanet, io Palo, Braslense, 1985, XI, p 158. Devs notar que, ao ser decade a ado do pz, sm roupa, omédico dypliaionicamente cena da outa cas; para ele para jovem doente;o estranho cavalatiga que aparece edesaparece do conto vem do “mais esquecido dos paises estrangeiros”, MAGMA FeVIsTA OUTS ae ma que ele dera vigor aos cavalos como um ins- trumento de seu poder, os cavalos perdem a energia por influéncia do celibatétio estéril O médico (0 artista) transita entre os quar- tos dos doentes, enquanto seu quarto é invadi- do para mostrar sua indigéncia fisica. Assim como certas invers6es que ocotrem em outros casos de Kafka, aqui também o grande doente é aquele que perdeu a vida tentando curar os ou- tos, sem perceber a esterilidade de sua condi- do, A experiéncia mais uma vez esté ausente do mundo de Kafka, e justamente na vor. de um “médico experiente”; mais uma veza profisio & a pena que seu personagem cumpre, 0 que faz dele nfo um charlatio, mas uma vitima, Talver haja salvagao para o jovem, nfo para ele, MA © Bdigdo utilizada: Franz Kafka, Um médico rural, wad. e posficio de Modesto Carone, Sio Paulo, Brasliense, 1990; és duas expresses cm apa sf de Anaol Rosenflg,Tetlcontexto, io Palo, Pepetv, 1969p. 235¢232. Ed cit, p. 74. © A cagio éde Modesto Caron, nae ct, p-72. © Franz Kafka, Um artista da fome, tad. posico de Modesto Carone, So Paulo, Brasiliense, 1964, p. 105. © Apud Modest Carone, in Um médico rural, ed. ci, p.75. © A ctagio incerpretasio do conto de Arnie eso em Wolfgang Kays, O grotesco, tad. de J. Guinsburg, éo Paulo, Perspec tiva, 1986, p. 78-80. * Doutorando professor do Depanamento de Tova Liedria Literatura Comparads/ FFLCH/USP Na revisio do exo, conte com sugest6es preciosis de Regina ia Ponte, MAGMA REVISTA OUTS

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