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Cultura, Identidade e Desenvolvimento Local: conceitos e perspectivas para regiões em

desenvolvimento
Culture, Identity and Local Development: concepts and perspectives for developing regions
Cultura, Identidad y Desarrollo Local: conceptos y perspectivas para regiones en desarrollo
Emília Mariko Kashimoto, Marcelo Marinho e Ivan Russeff
Universidade Católica Dom Bosco
Contato: marinho@ucdb.br
Resumo: As reflexões acerca do desenvolvimento local de uma determinada comunidade – auto-identificada, em essência,
por referências culturais e ambientais – remetem, necessariamente, à questão da melhoria da qualidade de vida dessa
população. De uma maneira geral, a relação dessa melhoria com o incremento de atividades produtivas é direta, mas não
exclusiva. Ademais, é opinião unânime, dentre os autores que tratam do tema, a necessidade da observação do uso
sustentável dos recursos naturais, simultaneamente à valorização e preservação da cultura do lugar. A cultura será aqui
considerada como conjunto de ações que podem conduzir ao fortalecimento da auto-estima da comunidade. Pode-se
dizer, com Ruijter e Tijssen (1995), que a cultura, ao invés de um obstáculo ao progresso, emerge como manancial de
inusitadas experiências e de evidente sabedoria locais, diretrizes úteis à criação coletiva e compartilhada de uma vida
melhor. Este artigo trata das relações entre cultura e desenvolvimento, com ênfase no papel do patrimônio cultural
(tangível e intangível) para o fortalecimento da identidade local e o desenvolvimento comunitário.
Palavras-chave: Cultura; Desenvolvimento Local; Identidade.
Abstract: Reflections as to the local development of a certain community – self-identified, in essence, by cultural and
environmental references – necessarily go back to the question of the improvement of the quality of life of this population.
Furthermore, the authors who handle this theme are unanimous as to the necessity of observing the sustainable natural
resources, simultaneously with the appraisal and preservation of local culture. Culture here will be considered as a set of
actions that can lead to the strengthening of the self-esteem of the community. It can be said with Ruijter and Tijssen
(1995) that culture, instead of being an obstacle to progress, emerges as an ever-flowing stream of surprising experiences
and of evident local wisdom, useful directions for the collective creation and sharing of a better life. This article approaches
the relationships between culture and development, with emphasis on the role of cultural patrimony (tangible and
intangible) for the strengthening of local identity and community development.
Key words: Culture; Local Development; Identity.
Resumen: Las reflexiones acerca del desarrollo local de una determinada comunidad - autoidentificada, en esencia, por
referencias culturales y ambientales - remiten, necesariamente, a la cuestión de la mejoría de calidad de vida de esa
populación. De una manera general, la relación de esa mejoría con el incremento de actividades productivas es directa,
mas no exclusiva . Además, es opinión unánime, entre los autores que tratan del tema, la necesidad de la observación del
uso sostenible de los recursos naturales, simultáneamente a la valorización y preservación de la cultura del lugar.La
cultura será aquí considerada como un conjunto de acciones que pueden conducir al fortalecimiento del autoestima de la
comunidad. Se puede decir, con Ruijter y Tijssen (1995), que la cultura, al revés, de un obstáculo al progreso,emerge como
manantial de inusitada experiencias y de evidente sabiduría locales, directrices útiles a la creación colectiva y compartillada
de una vida mejor. Este artículo se refiere a las relaciones entre cultura y desarrollo, con énfasis en el papel del patrimonio
cultural ( tangible e intangible) para el fortalecimiento de la identidad local y el desarrollo comunitario.
Palabras claves: Cultura; Desarrollo Local; Identidad.

1. Cultura: questões e conceitos soluções originais que um grupo de seres


humanos inventa, a fim de se adaptar a seu
Eu vejo o mundo pelos olhos de minha aldeia. meio ambiente natural e social. Nesse sentido,
(Leon Tolstói) a cultura abrangeria diferentes aspectos da
vida: savoir-faire, conhecimentos técnicos,
O termo “cultura”, em função de seu costumes relativos a roupas e alimentos,
emprego iterativo e aleatório nas mais diver- religião, mentalidade, valores, língua, sím-
sas áreas do conhecimento, tornou-se vago e bolos, comportamento sócio-político e econô-
ambíguo como poucos, tanto em nosso mico, formas autóctones de tomar decisões e
quanto em outros idiomas. É possível ver de exercer o poder, atividades produtoras e
reputados veículos de comunicação, como o relações econômicas, entre outros.
Le Monde, empregarem expressões como Nessa perspectiva, tal como apontam
“cultura de guerra” ou “cultura da fome”, documentos publicados pela UNESCO, a
expressões compostas por noções mutuamen- cultura, ao constituir-se em conjunto distin-
te excludentes e que, ao final, nada dizem por tivo de atributos espirituais e materiais,
muito dizerem. No intuito de delimitar o con- intelectuais e afetivos que caracterizam uma
ceito, consideram-se aqui definições consa- sociedade ou grupo social, engloba não
gradas como aquela que caracteriza a cultura somente as artes e a literatura, mas também
como um conjunto de atividades e crenças os modos de vida, os sistemas de valores, as
que uma comunidade adota para enfrentar tradições e crenças e os direitos fundamentais
os problemas impostos pelo meio ambiente, do ser humano (Claxton, 1994). A propósito,
noção que será complementada pela definição esse autor considera que a cultura também
segundo a qual a cultura é o conjunto de abrange uma interpretação global da natu-

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Revista Internacional de Desenvolvimento Local. Vol. 3, N. 4, p. 35-42, Mar. 2002.
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reza, constituindo um sistema totalizante para Lugar e de sua população. Portanto, a


compreensão e transformação do mundo, e valorização da cultura popular contribui para
estabelecendo, por outro lado, relações siste- que a sociedade fortaleça a individuação e a
máticas entre todos os aspectos da vida auto-estima diante do Outro, numa busca de
humana, todas as expressões produtivas das desenvolvimento originário de sua própria
comunidades, sejam elas tecnológicas, criatividade e conforme os seus valores,
econômicas, artísticas ou domésticas. porque é por intermédio da cultura que o
Assim, ao abranger o conjunto de indivíduo e a sociedade interagem com o
crenças, valores, técnicas e comportamentos mundo à sua volta. Thierry Verhelst, célebre
elaborados e apreendidos em comunidade ativista de organizações não governamentais
pelos indivíduos ao longo de suas existências, na ajuda internacional aos povos, escreveu em
a cultura constitui-se, segundo Ullmann 1992 “O Direito à Diferença”, texto no qual
(1991), num orientador à “humanização” do afirma que a melhor ajuda para a libertação
homem, impondo limites também ao de um povo é aquela direcionada para a
comportamento agressivo que caracteriza a conservação e recuperação da sua identidade,
face instintiva da humanidade. Ao mesmo de sua cultura. Perfilhando convicção
tempo em que norteia o comportamento semelhante, Mário de Andrade, nos idos da
humano, a cultura também incorpora trans- década compreendida entre 1920 e 1930, já
formações advindas da interculturalidade, alertava seus leitores e correspondentes para
fenômeno de natureza tanto vertical (em a relevância da cultura – que, para ele,
termos sócio-econômicos ou intelectuais) incorporava desde “os bordados de sua tia”,
quanto horizontal (em termos espaciais ou ao próprio idioma nacional – na afirmação da
temporais). Desse ponto-de-vista, é possível identidade brasileira.
ainda dizer que, no movimento reverso, a Nesse sentido, podem-se considerar
interculturalidade predispõe os indivíduos a manifestações da cultura popular local a
se assumirem como a medida de todas as culinária, o artesanato, o folclore, os idioletos
coisas, de maneira que possam imprimir o seu e a paremiologia (ditados, provérbios, ditos
ritmo à marcha do mundo. Com essa e aforismas), a literatura oral (lendas e mitos),
“hominização da vida”, no dizer de Paulo a poesia popular, a história oral, a vestuária
Freire (2000), tornam-se mais vívidas e inten- quotidiana, a música popular, os instru-
sas as relações sociais, não sendo, portanto, mentos musicais de uso local, a arquitetura
ingênua a pretensão de se construir uma espontânea, a fotografia incidental, os ritos
sociedade verdadeiramente justa e demo- de passagem, as manifestações religiosas, as
crática, com o concurso da interculturalidade; festas populares, a farmacopéia extrativista,
para tanto, cada povo deverá contribuir com a meteorologia popular, as relações locais às
sua identidade para o cadinho da cultura modalidades de trabalho e de lazer, as
universal, frustrando as expectativas autori- relações locais aos elementos da Natureza,
tárias, sempre redivivas, de inviabilizar as formas de distribuição e exercício do poder
idiossincrasias nacionais. Mesmo porque, local, entre outros.
retomando a epígrafe de Tolstói, é pelo olhar Por outro lado, a cultura erudita local
da nossa aldeia que vemos o mundo; e é desse reflete o grau de auto-estima da população,
ponto-de-vista que atuaremos sobre ele. pois, na medida em que manifestações
Cultura popular e cultura erudita na culturais eruditas recuperam elementos da
perspectiva do desenvolvimento cultura popular local em detrimento de
A cultura popular local, por ser oriunda elementos importados da cultura de alhures,
das relações profundas entre a comunidade percebe-se que o lugar passa a tecer laços
do lugar e o seu meio (natural e social), simbo- afetivos também com as classes dominantes,
liza o homem e seu entorno, implicando um aquelas classes que são, em última instância,
tipo de consciência e de materialidade social as detentoras dos bens e dos meios de
que evidencia o grau de afeição ou apego a produção. Igualmente, a cultura erudita local,
um lugar; esse é um fator de extrema impor- em seu processo de difusão em espaços
tância para o desenvolvimento local, posto exteriores aos limites do lugar, serve como
que permite a configuração da Identidade do veículo de informações sobre esse mesmo

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lugar, podendo reforçar a auto-estima das vimento para a qualidade de vida em uma
populações locais e fortalecer o intercâmbio sociedade.
necessário ao bom andamento do desenvol- Todavia, face à índole corrediça de um
vimento do lugar. No plano da cultura erudita povo em permanente mutação, tal como
local, as principais manifestações culturais acontece com o povo brasileiro, é preciso
serão a literatura, a musicografia e a fotografia evitar os riscos de caracterizações fáceis e
ditas “artísticas”, as artes plásticas, o cinema, generalizantes como aquelas que resultam em
a arquitetura e o urbanismo (incluindo-se o estereótipos estéreis e nocivos. Nota-se, com
paisagismo), o estilismo vestimentar, a Darcy Ribeiro (1995), que a multiplicidade de
historiografia oficial, as formas idioletais origens raciais e étnicas da população brasi-
cultas, entre outros. Obviamente, rasgos de leira não se constitui em fator que origine, em
cultura erudita são igualmente incorporados si mesma, um movimento de separação em
em maior ou menor grau pelas camadas componentes opostos – processo motivado,
populares, fato que é facilmente observável sim, pela estratificação de classes; no conjunto
na culinária, na música ou na vestuária, por da população brasileira é preciso ver, com
exemplo. Todavia, será preciso lembrar que mais propriedade, a coincidência de oposi-
Mário de Andrade, grande representante e ções, a simultaneidade de contrários. Sérgio
defensor da cultura eminentemente brasileira Buarque de Holanda elenca, nessa perspec-
(e de nossa identidade nacional), deixou clara tiva, certas características peculiares herdadas
a idéia de que a discussão sobre cultura dos povos ibéricos pelo povo brasileiro, tais
popular e cultura erudita é estéril e inopor- como espírito aventureiro, lealdade e gosto
tuna: a preocupação deve centrar-se sobre a pronunciado pelo ócio ao detrimento do
ampliação do acesso da população a todas as negócio, manifestando-se, em conseqüência,
formas de manifestação cultural. uma certa frouxidão, desordem, indisciplina
e indolência, assim como uma tendência para
2. Identidade Cultural e Desenvolvimento o autoritarismo e tirania; Darcy Ribeiro, em
Local em Mato Grosso do Sul contrapartida, sublinha aspectos positivos
dessa índole, tais como a criatividade do
Além dos problemas levantados por aventureiro, a adaptabilidade do flexível, a
uma nomenclatura e por conceitos dema- vitalidade do ousado e a originalidade dos
siadamente amplos quanto ao significado e à indisciplinados no Brasil. Nesse sentido, é
abrangência do termo “cultura”, também é preciso abrir parênteses para lembrar que, em
preciso estar atento ao fato de que a região seu livro O ócio criativo, Domenico de Masi
central da América do Sul, em especial o traça um amplo libelo em defesa do ócio e do
Brasil, constitui-se num espaço marcado por lazer, da fruição prazerosa de produtos cul-
corredores migratórios que criam um verda- turais, como fontes inquestionáveis de inspi-
deiro caldeirão étnico e, por conseqüência, ração à produção e de implemento da quali-
uma verdadeira “caldeirada” cultural, aquele dade de vida. Infere-se que o alargamento das
melting pot, cadinho de fundição, no qual se bases econômico-sociais para a fruição da
encontram, se fundem e se misturam elemen- cultura e do “ócio criativo” deve instaurar-se
tos de origem indígena, portuguesa, africana, como uma das metas de qualquer projeto de
árabe, armênia, japonesa, italiana, alemã, desenvolvimento em solo brasileiro, ou em
paraguaia, boliviana, entre tantas outras. qualquer outra nação do planeta. Afinal,
Acrescente-se, aos ingredientes do “prato”, a recorrendo novamente a Mário de Andrade,
dupla e antinômica condição da origem sócio- é do bocejo solene da preguiça que surge a
econômica dos elementos que formam o con- inspiração e a felicidade da vida. E para não
junto da cultura de um lugar, amalgamando deixar qualquer dúvida sobre o tema, o poeta
camadas populares e elites (econômica, acaba consagrando o bordão “Ai que
intelectual, política), e tem-se um complexo preguiça!”, de Macunaíma, no emblema da
objeto de estudo e interpretação rumo à malemolente criatividade nacional.
construção da noção de identidade de um Quanto à identidade do povo brasileiro,
lugar e de sua população, noções capitais para esse fator reflete-se, segundo Roberto Da
o estabelecimento de metas de desenvol- Matta (1991), na maneira pela qual os

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indivíduos interrelacionam-se, como, por combate à exclusão também na esfera da


exemplo, no mítico “jeitinho” das relações cultura, para que um maior número de
interpessoais, no sincretismo religioso, na pessoas possa gozar do prazer de existência
lealdade aos amigos, no amor ao futebol, ao e usufruir de uma melhor qualidade de vida.
carnaval, à comida misturada, aos amigos e Também aí devem centrar-se pesquisadores,
parentes, características que emergem simul- agentes e projetos de desenvolvimento.
taneamente a preconceitos altamente velados, Ao mesmo tempo, a identidade sul-
visto que a sociedade ainda não se concebe e mato-grossense é referenciada por elementos
não se assume como altamente hierarquizada. associados ao ambiente pantaneiro, tais como
Essa recusa em assumir sua forte hierar- o trem, a flora e a fauna do pantanal, a música
quização é um fato que se reflete até mesmo do grupo Acaba, de Paulo Simões, Almir
no despojamento da vestuária cotidiana, no Sater, Geraldo Roca, a poesia de Manoel de
emprego de pronomes e no tratamento Barros e de Lobivar de Mattos, a pintura de
pessoal informal em situações formais de Humberto Espíndola, a culinária regional, a
trabalho. percepção do espaço (dimensões espaciais,
Com relação à identidade sul-mato- cores, matéria e texturas, odores). Nesse
grossense, costuma-se dizer que é fragmen- espaço múltiplo, segundo Ziliani (2000), o
tária pelo fato de a região ter sido povoada poder hegemônico delineia os aportes
há pouco tempo, sobretudo a partir da década identitários da cultura sul-mato-grossense,
de 70, período em que a população duplicou pois seleciona símbolos, ícones e obras, os
aproximadamente a cada ciclo de 10 anos. quais, por intermédio de instituições e meios
Campo Grande, a capital do Estado, somava de divulgação, tornam-se recorrentes na
em 1970, segundo o IBGE, uma população de elaboração dessa identidade. De qualquer
140.233 habitantes; 30 anos mais tarde, a forma, o reconhecimento da multiplicidade
população já atingiu a cifra aproximada de intercultural de Mato Grosso do Sul é um
700 mil habitantes. Os diversos fluxos migra- campo pouco explorado e amplamente aberto
tórios acrescentaram marcas de culturas dis- a pesquisas de natureza científica. Assim,
tintas que aqui se estabeleceram e encontra- como incrementar-se o desenvolvimento sul-
ram terreno propício para o seu desenvolvi- mato-grossense se a sua cultura é múltipla e
mento: tereré, churrasco, mandioca amarela, ainda majoritariamente desconhecida pelos
sobá, farinha, piqui, garapa, esfiha, tabule, estudiosos, se a sua identidade não é vislum-
quibe, palmito guariroba, sopa paraguaia, brada ou experimentada em sua plenitude
torresmo, pacu recheado, picanha na chapa, por uma população em permanente estado
muitas vezes compõem uma mesma mesa, na de movimento?
mesma ocasião em que se ouvem polca ou No Brasil, culturas locais abrangem, em
guarânia, pagode, chamamé ou canções essência, comunidades relativamente indivi-
sertanejas. Enquanto igrejas cristãs são dualizadas no conjunto da sociedade globa-
inúmeras, proliferam-se terreiros de umban- lizada, tais como colônias de migrantes,
da, centros espíritas, mesquitas e templos de imigrantes, remanescentes de quilombos e
origem oriental; lojas de umbanda oferecem indígenas. As pesquisas acerca dessas comu-
incensos indianos, símbolos católicos e afro- nidades implicam uma aproximação etno-
brasileiros, testemunhando um intenso lógica ou microssociológica que, segundo
sincretismo religioso, marca formal da cultura Laplantine (1997), volta-se à escala do peque-
brasileira, segundo Da Matta. Dessa mistura no e do cotidiano, para a análise de práticas
heteróclita decorre grande parte do prazer da sócio-culturais mais recorrentes, tais como
existência, da joie de vivre da população local, hábitos alimentares e expressões corporais,
ainda que uma boa parcela da comunidade como forma de se buscar a compreensão das
esteja excluída desse processo. Portanto, é construções intelectuais, doutrinas ou outras
preciso compartilhar de maneira mais justa e manifestações de poder. Nesse sentido, é
equânime a fruição dos bens culturais incipiente, nos dias de hoje, a análise de
produzidos coletivamente, de forma a cultura local face ao desenvolvimento, pois,
fortalecer a identidade comunitária. Não conforme Kilani (1994), a antropologia estuda
basta apenas gerar empregos: é preciso dar apenas os grupos sujeitos ao desenvol-

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vimento – focos temáticos tradicionais dos sivas e inócuas”, da mesma forma que “os
pesquisadores – e raros são os estudos que, projetos bem sucedidos respeitam os
no próprio campo de trabalho e no âmbito de padröes da cultura local ou, pelo menos, não
um determinado projeto de desenvolvimento, se impõem ou sobrepõem a esses padrões”;
consideram simultaneamente tanto os • “apesar de os planificadores se encantarem
agentes responsáveis quanto a comunidade em promover a auto-ajuda comunitária e a
que é o objeto do desenvolvimento. Ao formação de cooperativas, raramente são
analisar-se o desenvolvimento de uma comu- analisadas, com profundidade, as organi-
nidade, será preciso analisar, igualmente, os zações locais tradicionais”, que, aos invés
agentes de desenvolvimento, a saber, organis- de serem concebidas como obstáculos a
mos governamentais e não governamentais, transpor, “deveriam ser identificadas e
especialistas em desenvolvimento, organis- aproveitadas como recursos para o
mos de cooperação e entre-ajuda, agências de desenvolvimento”;
fomento, agências de concepção e avaliação • necessita-se de um “maior uso dos modelos
de projetos. sociais do terceiro mundo para o desen-
Notam-se, em diversos estudos, recor- volvimento do terceiro mundo, modelos
rentes reflexões sobre os impactos negativos que incluem clãs, linhagens e outros grupos
de ações de desenvolvimento sobre as aparentados que possuem e exploram, em
culturas locais. Por exemplo, processos cultu- comum, propriedades e recursos”.
rais podem ser acentuados com o incremento Essas observações enfatizam a neces-
de atividades como o turismo, quando se sidade de se conhecer, em profundidade, a
aumenta a densidade populacional e a identidade cultural local como premissa para
seletividade na oferta de trabalho, conforme o desenvolvimento. Todavia, mais do que ao
observam Bacal e Miranda (1997): essa pesquisador, importa à comunidade reco-
dinamização desafia a sustentabilidade dos nhecer essa autoidentificação cultural e
recursos naturais, assim como a preservação assumir esse eficaz instrumento com o
ou a valorização da identidade local. objetivo de se tornar protagonista do seu
Nessa acepção, Rist (1994) reflete acerca próprio processo de desenvolvimento local.
do fato de que a cultura, privada de sua Segundo Claxton (1994), uma sociedade
autonomia e forçada a justificar objetivos que que confia em sua cultura estará mais aberta
lhe são alheios, poderia tornar-se refém do e receptiva, fato que transforma o (auto)
desenvolvimento. Entretanto, as diferenças conhecimento em um instrumento de integri-
podem ser valorizadas, sem que se criem dade de um povo. Claxton considera ainda
dicotomias ou fricções nocivas à comunidade que a abertura cultural a outras idéias e a
e aos estudos. Na perspectiva de Kottak vontade e capacidade de assimilar idéias de
(2000), não se concretiza, com a severidade outras culturas influenciam na boa marcha do
previsível, o antagonismo entre metas econô- desenvolvimento. Essas considerações foram
micas e bem estar cultural, posto que a aten- delineadas à luz da constatação de que no
ção à cultura também é fator de rendimento modelo ocidental de desenvolvimento, o que
econômico. A partir da análise de 68 projetos importa é a completa integração dos novos
de desenvolvimento rural implementados costumes aos fundamentos culturais de uma
pelo Banco Mundial, em diversos países, comunidade, face à idéia corrente de progres-
dentre outras conclusões de Kottak, ressalta- so e à crença na capacidade humana de domi-
se que: nar o meio ambiente e melhorar as condições
• é improvável que “as pessoas cooperem gerais de existência. Dessa forma, infere-se
com projetos que exijam mudanças de gran- que a auto-identificação cultural fortalece
des dimensões em suas vidas cotidianas, uma comunidade e a torna apta à manutenção
especialmente aquelas que interferem em da integridade face às fricções interculturais.
demasia nas formas de assegurar-se a Tal como salienta Goulet (1997/98), o
subsistência segundo o uso ditado pelos desenvolvimento requer nítidas bases éticas:
costumes”; o respeito à diversidade biológica e cultural;
• “os projetos realistas e viáveis promovem a coexistência de uma pluralidade de cosmo-
mudanças e não apenas inovações exces- visões, traduzindo-se em tolerância; o

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reconhecimento da pluralidade de modelos Ora, a pretensão dos planejadores deve


possíveis; uma aproximação não reducionista ser a de promover o desenvolvimento local,
da economia; a existência de enfoques não a despeito da cultura que se tem, mas
pluralistas e não reducionistas sobre a tecno- segundo as características étnicas e históricas
logia; a valoração dos seres humanos como da região. Dessa maneira, não há por que
um objetivo último e não meramente como temer o risco apontado por Rist (1994) da
instrumentos; o respeito sagrado à biosfera subalternização da cultura ao desenvol-
como base de sustentação da existência vimento. Mais ainda conviria sublinhar: a
humana; a responsabilidade pela adminis- efetivação de um planejamento eficaz, em que
tração do cosmos e a integridade de sobrevi- a cultura e o desenvolvimento de uma região
vência da natureza. O desenvolvimento, se harmonizem – e aqui é possível considerar
acrescenta Goulet, também deve prever o o contexto sul-mato-grossense –, não pode
aprimoramento de um profundo ethos (ou prescindir da educação, cujos valores
comportamento) solidário, que se expresse na estéticos, políticos e éticos, deverão respaldar
solidariedade interna dos povos, na solida- os projetos para que sejam realistas e viáveis.
riedade internacional e na solidariedade entre
gerações. Somente a solidariedade pode 3. Patrimônio cultural, memória e
estancar os efeitos e as dinâmicas excludentes desenvolvimento
que decorrem das forças de mercado e dos
processos de crescimento alheios a qualquer Ao processo de conhecimento da iden-
controle ou regulação. tidade cultural do local agrega-se, de forma
Assim, a expansão das liberdades reais indissolúvel, a necessidade do acesso da
é enfatizada como o objetivo primordial e o população à educação, à qual compete con-
principal meio do desenvolvimento, nas templar o conhecimento científico e a reflexão
idéias divulgadas por Sen (2000): o desen- acerca das experiências e conhecimentos,
volvimento de uma comunidade deve referir- tanto globais quanto locais. Quando consegue
se às liberdades substantivas inerentes a reconhecer com descortino as características
capacidades humanas elementares, tais como de funcionamento e conseqüências advindas
a capacidade de evitar a fome, de saber ler, de diferentes projetos de desenvolvimento, a
de gozar de liberdade política, entre outras. população local pode melhor selecionar as
Não por acaso, a UNESCO tem enfatizado estratégias com as quais se identifica.
que a educação desejável para o novo milênio Simultaneamente, a educação deve valorizar
deve se assentar em quatro pilares principais: a memória e os costumes da comunidade, em
Aprender a Conhecer; Aprender a Fazer; prol do afloramento da identidade e do
Aprender a Conviver e Aprender a Ser fortalecimento da auto-estima. Em lugar da
(Delors, 1998). São saberes que têm implícitos fragmentação do conhecimento, devem-se
valores fundamentais a uma educação ampliar as possibilidades de questiona-
emancipadora, já explicitados nos Parâmetros mentos e interpretação, assim como o respeito
Curriculares Nacionais, promulgados em 1998: à diversidade cultural, tradições e diferenças.
a “estética da sensibilidade”, presente no O compromisso histórico contribui para
aprender a conhecer e a fazer, indispensável o preservação do patrimônio cultural e
para promover a criatividade e incentivar a natural. A indivisível relação entre o cultural
reação crítica à padronização tecnológica do e o natural pode ser exemplificada a partir
mundo contemporâneo; a “política da da observação do Parque Nacional Serra da
igualdade”, subentendida no aprender a Capivara incluído, em 1991, na lista do
conviver, preserva o Direito e a democracia Patrimônio Cultural da Humanidade, da
da pilhagem dos autoritarismos de toda UNESCO. Situado no Estado do Piauí, esse
espécie, sejam eles políticos, econômicos, Parque destaca-se pelas centenas de sítios
culturais, religiosos, morais...; por fim, o valor arqueológicos – parte dos quais associados
implícito ao aprender a ser está fundado na aos primeiros povoadores das Américas – e
“ética da identidade”, sem a qual não se educa como alternativa de desenvolvimento local.
para a autonomia e responsabilidade (MEC, Sob a coordenação da arqueóloga Niéde
1999). Guidon, a prática de preservação do patrimô-

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nio cultural é ligada, diretamente, ao trabalho espaços para especialistas ou “desocupados”.


de manutenção do ecossistema de caatinga e O patrimônio cultural subsidia ações de
à melhoria da qualidade de vida da comu- divulgação dos conhecimentos, para reflexão
nidade local. Foram criadas escolas e e formação de consciência social, visando ao
desenvolvidas estratégias de conscientização conhecimento da realidade local e regional e
ambiental para evitar caça de animais, à promoção de recursos humanos. Essas
queimadas e extração mineral, criando-se, noções podem ser ilustradas com o projeto
conjuntamente, atividades que valorizam os denominado “Museu Dom Bosco vai à comu-
atributos locais, tais como serviços de nidade”, atualmente em implantação nesse
monitores para o turismo nos abrigos com museu, em Campo Grande. Esse projeto,
pinturas rupestres, assim como para o museu subsidiado pelo CNPq e realizado pela
e para o controle de cupim nos abrigos, pois UCDB, prevê a integração de distintas áreas
essa térmita destrói pinturas; também do conhecimento (etnologia, arqueologia,
desenvolveram-se projetos de implementação zoologia, geologia e paleontologia), e a
de apicultura e de arte cerâmica. Os vínculos interação in loco com professores, estudantes
da comunidade com a paisagem acentuam- e a comunidade em geral.
se, numa perspectiva histórica, ao se
considerar que o local foi vivenciado por 4. Considerações finais
diferentes povos, que se sucederam em
distintas práticas culturais. Infere-se, das reflexões aqui desen-
A proteção do patrimônio cultural é volvidas, a necessidade premente de projetos
prevista pela própria Constituição da de pesquisa cujo objeto será a valorização da
República Federativa do Brasil de 05.10.1988, identidade cultural da comunidade em sua
art. 216, prevendo-se que nele se incluem bens qualidade de ferramenta indispensável ao
de natureza material e imaterial, tangível e desenvolvimento local. Num quadro em que
intangível, referências “à identidade, à ação, atuam forças econômicas e ideológicas, numa
à memória dos diferentes grupos formadores realidade contraditória e fragmentária,
da sociedade brasileira, nos quais se incluem: muitas vezes marcada pela inadequação entre
(...) as formas de expressão, (...) os modos de discurso e ação, é também necessário o
criar, fazer e viver; (...) as criações científicas, estabelecimento de políticas públicas alheias
artísticas e tecnológicas, (...) as obras, objetos, ao movimento flutuante de sucessões
documentos, edificações e demais espaços eleitorais, que dêem sustentação à ampliação
destinados às manifestações artístico- do acesso popular à educação, à saúde, à
culturais, (...) os conjuntos urbanos e sítios de moradia, mas também à cultura e ao “ócio
valor histórico, paisagístico, artístico, criativo”, algumas entre as várias necessi-
arqueológico, paleontológico, ecológico e dades vitais ao ser humano.
científico”. A efetiva preservação dessa O desenvolvimento local pressupõe
memória e dessa paisagem começa no seu esse conjunto de pré-condições para seu cres-
(re)conhecimento e (re)valorização pela cimento, com vistas à manutenção da identi-
própria comunidade local. dade local. A criatividade, fruto da interlo-
Para que essa proteção do patrimônio cução interna à comunidade, instrumentaliza
cultural se efetive, é necessário o incremento o desenvolvimento de projetos adequados às
do processo de educação ambiental e de cons- condições sócio-culturais locais. Em conjunto,
cientização da comunidade, local e nacional. estudos técnico-científicos e projetos de longa
A partir de uma reflexão ampla acerca da duração somam-se ao saber empírico local, e
memória e de sua relação com a qualidade tornam efetivo e producente o conhecimento
de vida, o passado pode ser observado como sobre o lugar. A afirmação da identidade
um bem para o futuro. Nessa perspectiva, cultural é imprescindível ao fortalecimento
pode-se exemplificar que, cada vez mais, cai da comunidade em seu ambiente, possi-
em desuso a associação imediata, fruto do bilitando-lhe a escolha das melhores soluções
senso comum, entre o patrimônio cultural de e, conseqüentemente, a condução do processo
uma comunidade e o ambiente museológico de desenvolvimento local.
formado por gabinetes de antiguidades ou

INTERAÇÕES
Revista Internacional de Desenvolvimento Local. Vol. 3, N. 4, Mar. 2002.
42 Emília Mariko Kashimoto, Marcelo Marinho e Ivan Russeff

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