Você está na página 1de 158

CADERNOS ESPINOSANOS

Estudos sobre o século XVII

XV
São Paulo – 2006
ISSN 1413-6651

cadernos_15_ok.pmd 1 5/10/2007, 11:39


Ficha Catalográfica

Cadernos Espinosanos / Estudos sobre o século XVII


São Paulo: Departamento de Filosofia da FFLCH-USP,
1996 - 2006.
Periodicidade semestral. ISSN: 1413-6651.

cadernos_15_ok.pmd 2 5/10/2007, 11:39


CADERNOS ESPINOSANOS
ESTUDOS SOBRE O SÉCULO XVII
N. XV, JUL-DEZ DE 2006 – ISSN 1413-6651
Editora Responsável Institucional
Marilena de Souza Chaui
Editora Responsável
Tessa Moura Lacerda
Comissão Editorial
Eduardo Baioni, Henrique Xavier, Luís César Oliva.
Conselho Editorial
Atilano Domínguez (Univ. de Castilla-La Mancha), Bento Prado Júnior (UFSCar/
USP), Diego Tatián (Univ. de Córdoba), Diogo Pires Aurélio (Univ. Nova de Lisboa),
Franklin Leopoldo e Silva (USP), Jacqueline Lagrée (Univ. de Rennes), Maria das
Graças de Souza (USP), Olgária Chain Féres Matos (USP), Paolo Cristofolini
(Scuola Normale Superiore de Pisa) e Pierre-François Moreau (École Normale
Supérieure de Lyon).
Publicação do Grupo de Estudos Espinosanos e de Estudos sobre o Século XVII
Universidade de São Paulo
Reitora: Suely Vilela
Vice-Reitor: Franco Maria Lajolo

FFLCH - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas


Diretor: Gabriel Cohn
Vice-Diretora: Sandra Margarida Nitrini

Departamento de Filosofia
Chefe: Moacyr Novaes
Vice-Chefe: Caetano Ernesto Plastino
Coordenador do Programa de Pós-Graduação: Marco Antônio de
Ávila Zingano

Endereço para correspondência:


Profa. Marilena de Souza Chaui
A/C Grupo de Estudos Espinosanos
Departamento de Filosofia – USP
Av. Prof. Luciano Gualberto, 315
05508-900 – São Paulo-SP – Brasil
Telefone: 0 xx 11 3091-3761 – Fax: 0 xx 11 3031-2431
e-mail: gtanpofsecxvii@usp.br
Capa: Camila Mesquita
Editoração eletrônica: Pablo Enrique Abraham Zunino
Tiragem: 1000 exemplares
AComissão Editorial reserva-se o direito de aceitar, recusar ou reapresentar o original ao autor com sugestões de mudanças.

cadernos_15_ok.pmd 3 5/10/2007, 11:39


cadernos_15_ok.pmd 4 5/10/2007, 11:39
APRESENT
PRESENTAÇÃO
AÇÃO
PRESENTAÇÃO

O Grupo de Estudos Espinosanos do Departamento de Filosofia


da Universidade de São Paulo, em 2004, completou 10 anos. Ao longo
deste período, diversas atividades foram desenvolvidas e procurou-se
fazer o registro delas para, como diz Espinosa, tentar contornar as
forças do “tempo voraz que tudo abole da memória dos homens”. Os
Cadernos Espinosanos se inspiram nesse propósito.
Desde o número X, dedicado ao Professor Lívio Teixeira, os
Cadernos estão dedicados também a Estudos sobre o século XVII,
seu subtítulo. O que, na verdade, expressa algo que já acontecia na
prática, pois textos acerca de vários outros filósofos do período sempre
estiveram presentes a cada edição.
O objetivo destes Cadernos continua sendo publicar
semestralmente trabalhos sobre filósofos seiscentistas, constituindo
um canal de expressão dos estudantes e pesquisadores deste e de outros
departamentos de Filosofia do país.
Porque destinados a auxiliar bibliograficamente aos que
estudam o Seiscentos, tanto para os trabalhos de aproveitamento de
cursos, quanto para a elaboração de outros projetos de pesquisa, estes
Cadernos também publicarão, regularmente, ensaios de autores
brasileiros e traduções de textos estrangeiros, contribuindo com o
acervo sobre o assunto.
Esperamos que esta iniciativa estimule os estudos sobre os
filósofos daquele período a que esta publicação é inteiramente dedicada
e permita criar ou ampliar a comunicação entre os que estão envolvidos
com a pesquisa desses temas, incentivando, inclusive, outros
departamentos de Filosofia a colaborar conosco no desenvolvimento
deste trabalho.

Franklin Leopoldo e Silva

cadernos_15_ok.pmd 5 5/10/2007, 11:39


cadernos_15_ok.pmd 6 5/10/2007, 11:39
SUMÁRIO
UMÁRIO

1. A ÚLTIMA METAFÍSICA DE LEIBNIZ E A QUESTÃO DO IDEALISMO


Michel Fichant 09

2. UNIVERSALIDADE E SIMBOLIZAÇÃO EM LEIBNIZ


Franklin Leopoldo e Silva 41

3. BONDADE DIVINA E CONTINGÊNCIA EM LEIBNIZ


Luís César Oliva 59

4. LEIBNIZ: EXPRESSÃO E CARACTERÍSTICA UNIVERSAL


Tessa Moura Lacerda 87

5. A FILOSOFIA ESPINOSANA PARA ALÉM DO CORPO-MÁQUINA: O PARALELISMO


EM QUESTÃO
Ericka Marie Itokazu 111

6. DESCARTES E A “REFLEXÃO ESPESSA”: UMA LEITURA MERLEAU-PONTIANA


DO DUALISMO CARTESIANO
Silvana de Souza Ramos 139

7. NOTÍCIAS 153

8. CONTENTS 157

cadernos_15_ok.pmd 7 5/10/2007, 11:39


cadernos_15_ok.pmd 8 5/10/2007, 11:39
MICHEL FICHANT

A última metafísica de Leibniz


e a questão do idealismo*
MICHEL FICHANT**

Résumé:
La question de la nature et du sens d’un “idéalisme leibnizien”
se trouve, depuis plus d’une vingtaine d’années, au centre d’un grand
débat dans les études leibniziennes, principalement anglo-saxonnes.
La conception la plus conséquente et la plus radicale d’un tel idéalisme
a été exposée par Robert Merrihew Adams (Leibniz, Determinist,
Theist, Idealist, 1994): “Le principe le plus fondamental de la
métaphysique de Leibniz est que ‘il n’y a rien d’autre dans les choses
que les substances simples et, en elles, les perceptions et les appétitions’.
Cela signifie que les corps, qui ne sont pas des substances simples,
peuvent seulement être construits à partir des substances simples et
de leurs propriétés de perception et d’appétition” (p. 217).
Ce débat en rencontre un autre, qui porte sur la reconnaissance
de périodes dans la formation de la métaphysique leibnizienne et sur le
point de vue qui permet d’en rendre compte de la façon la plus adéquate:
expression constante d’un « Système de Leibniz » invariant dans ses
thèses et sa structure, ou plutôt recherche ouverte où l’invention
conceptuelle ne se referme jamais sur une formule systématique unique?
En effet, ceux-là même qui ont voulu reconnaître une période des
“années moyennes” (Daniel Garber), où Leibniz n’aurait pas adhéré à
l’idéalisme, ont généralement concédé que la dernière métaphysique,
celle qui se déploie proprement selon la thèse monadologique, est
bien caractérisée finalement par cette adhésion.

*
Versão de uma conferência proferida na Universidade de São Paulo, em 16 de
outubro de 2006. Agradeço imensamente Tessa Lacerda por sua tradução para o
português.
**
Professor da Sorbonne (Paris 4).

1_Fichant_9_40.PMD 9 5/10/2007, 11:39


CADERNOS ESPINOSANOS XV - 2006

Je me propose de développer les arguments suivants :


1. Du point de vue génétique, la thèse monadologique répond
bien originellement à la requête d’un fondement de la réalité des corps.
2. Les développements de la métaphysique leibnizienne de la
dernière période (après 1700) ne donnent pas congé à la recherche de
caractérisation d’une vraie “substance corporelle”.
3. C’est la spécificité de ce qu’il appelle l’ “Organisme” qui
retient Leibniz de laisser le dernier mot à un idéalisme tel que celui qui
lui est attribué. Si idéalisme il y a, il faut l’entendre en un autre sens.

Resumo:
A questão da natureza e do sentido de um “idealismo
leibniziano” encontra-se, já há vinte anos, no centro de um grande
debate nos estudos leibnizianos, principalmente anglo-saxões. A
concepção mais conseqüente e mais radical desse idealismo foi exposta
por Robert Merrihew Adams (Leibniz, Determinist, Theist, Idealist,
1994): “o princípio mais fundamental da metafísica de Leibniz é que
não há nada mais nas coisas que substâncias simples e, nelas, as
percepções e as apetições” (p. 217).
Esse debate encontra um outro sobre o reconhecimento de
períodos na formação da metafísica leibniziana e sobre o ponto de
vista que permite dar conta desses períodos da maneira mais adequada:
expressão constante de um “Sistema de Leibniz” invariável em suas
teses e sua estrutura, ou, antes, pesquisa aberta na qual a invenção
conceitual não se fecha nunca em uma fórmula sistemática única? Com
efeito, mesmo aqueles que quiseram reconhecer um período de “anos
intermediários” (Daniel Garber), durante o qual Leibniz não teria
aderido ao idealismo, geralmente concederam que a última metafísica,
aquela que se desenvolve propriamente segundo a tese monadológica,
está, finalmente, bem caracterizada por essa adesão.
Proponho-me desenvolver os seguintes argumentos:
1. Do ponto de vista genético, a tese monadológica responde
originariamente à exigência de um fundamento da realidade dos corpos.
2. Os desenvolvimentos da metafísica leibniziana do último
período (depois de 1700) não dispensam a caracterização de uma
verdadeira “substância corporal”.

10

1_Fichant_9_40.PMD 10 5/10/2007, 11:39


MICHEL FICHANT

3. É a especificidade do que chama de “Organismo” que impede


Leibniz de deixar a última palavra a um idealismo tal como o que se
atribui a ele. Se há idealismo, é preciso entendê-lo em outro sentido.

***

Uma experiência ora bastante longa convenceu-me da estreita


complementaridade que associa as maiores apostas interpretativas,
feitas pelos grandes pensadores da história da filosofia, ao tratamento
técnico o mais rigoroso dos problemas postos pela constituição dos
textos, sua recepção, sua edição.
Os estudos leibnizianos oferecem, hoje ainda, um caso exemplar
dessa complementaridade. Estes são caracterizados pelo fato maior
de que não existe ainda uma edição das “Obras completas de Leibniz”.
O corpus dos escritos de Leibniz está imerso em uma massa de mais
de dois metros cúbicos de papéis, conservados, a maior parte, na
Biblioteca regional de Hannover, sob a forma de minutas de cartas,
notas de leitura, esboços mais ou menos elaborados, que vão desde
uma folha de papel de alguns centímetros recoberta por uma reflexão
prematura até conjuntos acabados, várias vezes recopiados, relidos e
rearranjados, prontos para uma publicação que, o mais freqüentemente,
não aconteceu. Sabe-se que, de seu incessante trabalho de escrita,
Leibniz só tornou acessível em vida por suas publicações pouquíssimos
vestígios, na maior parte das vezes sob a forma de artigos nos jornais
científicos. Daí sua advertência: “Quem só me conhece pelo que
publiquei, não me conhece” 1 . Mas Leibniz providenciou para que
pudesse ser um dia mais bem conhecido que pelos seus
contemporâneos, já que quis também conservar toda essa quantidade

11

1_Fichant_9_40.PMD 11 5/10/2007, 11:39


CADERNOS ESPINOSANOS XV - 2006

de papéis. Desde a sua morte, em 14 de novembro de 1716, a história


de Leibniz — a história de seu pensamento em todos os domínios
com os quais se ocupou e, logo, também de sua concentração em
metafísica —, é a história de todas as explorações e escavações feitas
nesse legado, do qual os arqueólogos apresentaram edições diversas,
de extensão, ambição e rigor variáveis, que constituem a base acessível
dos escritos de Leibniz em nossas bibliotecas.
Essa base, da qual naturalmente emergem as contribuições
maiores das grandes coleções reunidas por Foucher de Careil, Gerhardt,
Couturat, Grua, mas também outras contribuições que se limitaram a
exumar materiais textuais mais restritos, é por natureza divergente,
uma vez que as intenções, os critérios de escolha e os preceitos de
estabelecimento dos textos estão eles mesmos sujeitos a todo tipo de
variação. Não há, portanto, para Leibniz nada de equivalente ao que
nos oferecem Adam et Tannery para Descartes, Gebhardt para
Espinosa, a Akademie Ausgabe para Kant, Colli-Montinari para
Nietzsche, Robinet para Malebranche. Mas a essa variedade da
qualidade editorial se acrescenta o fato quantitativo de que ainda hoje
a integralidade do corpus ainda não foi completada pela reunião dessas
múltiplas publicações.
Como se sabe, há mais de um século, por ocasião do Congresso
Internacional de Filosofia que aconteceu em Paris em 1900, foi tomada
a decisão, pelos mais eminentes historiadores alemães e franceses da
época, de trabalhar numa edição verdadeiramente e definitivamente
integral de todas as cartas e escritos de Leibniz, sob a dupla patronagem
do Instituto de França e da Academia de Berlim. Depois que a guerra
de 1914 rompeu a cooperação para fazer dessa edição uma tarefa
exclusivamente alemã, ela prosseguiu em meio às dificuldades geradas
pelos sobressaltos e tragédias da história da Alemanha, até a queda do

12

1_Fichant_9_40.PMD 12 5/10/2007, 11:39


MICHEL FICHANT

muro de Berlim. Desde esse último acontecimento, a reunificação do


país permitiu o estabelecimento de uma prática racional e coordenada
para o prosseguimento do trabalho.
A história da edição, por suas vagas sucessivas de amplitude
desigual, teve um efeito determinante na percepção que cada época
pôde ter da filosofia de Leibniz (mas também de sua matemática ou de
sua dinâmica ou de suas idéias religiosas), e, portanto, nas
interpretações que eram concebíveis em função do que poderia ser
chamado a abertura e a profundidade do campo de visão assim definido,
sobre um plano de fundo ainda virtual. Os exemplos são numerosos.
Citar-se-á o da publicação do segundo volume dos Philosophische
Schriften de Gerhardt, que contém a correspondência com De Volder,
na qual a definição da substância pela lei de uma série teve um efeito
determinante sobre a interpretação neo-kantiana de Natorp e de
Cassirer 2 . Há também exemplos inversos, quando uma hipótese de
interpretação orientou a seleção de textos até então inéditos: é porque
Couturat tinha uma idéia precisa do que era chamado em seu tempo
de álgebra da lógica, depois logística, que pôde encontrar interesse e
sentido em manuscritos que outros tinham percorrido sem nada
compreender3 .
Poder-se-ia pensar que o efeito de uma publicação integral
seria o de colocar um fim nos deslocamentos históricos desse tipo de
circularidade que une estado da edição e interpretação. Esse será talvez
o caso quando a edição estiver acabada, mas na medida em que ela é
ainda uma obra em curso, o trabalho de edição produz também, à sua
maneira, efeitos sobre o sentido, pelo próprio fato de suas escolhas
metodológicas. Estas foram principalmente duas: 1/ um princípio de
divisão em séries disjuntivas, que era uma condição para poder avançar
no estabelecimento dos textos e de sua publicação. Correspondências

13

1_Fichant_9_40.PMD 13 5/10/2007, 11:39


CADERNOS ESPINOSANOS XV - 2006

e outros escritos de natureza diferente foram separados; para cada


grupo, uma divisão temática foi adotada, de maneira que temos séries
distintas de volumes que reúnem: I. A Correspondência geral, política
e pessoal, II. A Correspondência filosófica, III. A Correspondência
matemática e científica, IV. Os Escritos políticos, VI. Os Escritos
filosóficos, VII. Os Escritos matemáticos, VIII. Obras científicas4 . 2/
A escolha metodológica mais importante foi a de publicar todas as
peças de cada Série segundo a ordem cronológica de redação melhor
determinada ou mais provável e justificada pelas mais seguras razões
de datação. Essa escolha procedia de uma suposição da qual a inteira
força só pôde ser constatada pelos efeitos, quando a edição já estava
bastante avançada, notadamente na série dos Escritos filosóficos: é
que a prática de escritura incoativa e fragmentária de Leibniz implica
que os textos adquiram seu sentido uns em relação aos outros em sua
sucessão diacrônica, mais que em uma copresença idealmente
sincrônica. Eles são menos os elementos coordenados de um sistema
que os momentos de uma experiência de escritura pensante sempre
recomeçada (que poderia ser comparada talvez com o que revelam as
notas e os manuscritos de Husserl). Essa segunda escolha foi reforçada
e radicalizada pela decisão, tomada quando do reinício do trabalho
editorial depois da segunda guerra mundial, de apresentar, a partir de
então, sistematicamente todos os textos, quaisquer que fossem a
amplitude, a forma e o tema, reproduzindo o conjunto das variantes
genéticas do ou dos manuscritos de um mesmo opus: palavras ou
passagens rasuradas, substituições, acréscimos, são postos sob os olhos
do leitor e lhe fornecem, em princípio, a possibilidade de reconstituir
os estados da escritura desde o primeiro esboço até o estado no qual
Leibniz considerou seu texto como acabado, a menos que ele tenha
abandonado o prosseguimento do texto. Assim, foi generalizada a

14

1_Fichant_9_40.PMD 14 5/10/2007, 11:39


MICHEL FICHANT

intenção cuja fecundidade tinha sido provada, em se tratando de textos


essenciais, pela admirável edição de Lestienne do Discurso de
metafísica (1907), depois pelas edições de Clara Strack (1917) e em
seguida de André Robinet (1954) da Monadologia e dos Princípios
da Natureza e da Graça.
Eis, aqui, pois, onde estamos hoje: a Série II, Correspondência
filosófica, comporta apenas um volume editado, que foi um dos
primeiros a ser publicado (1926); ele acabou de ser inteiramente refeito
para se adequar às normas da edição atual. Ele compreende as cartas
que se distribuem de 1663 a 16855 . A Série VI, Escritos filosóficos,
colocando à parte o sexto volume, centrado nos Novos ensaios sobre
o entendimento humano, publicado antecipadamente (1962), consta
de quatro volumes publicados. O último publicado (1999) reúne, em
um conjunto impressionante de 3000 páginas de textos e 500 páginas
de índices e tabelas diversas, todos os textos da primeira maturidade
de Leibniz, a que se ordena filosoficamente em torno do Discurso de
metafísica, de 1677 a junho de 1690 (retorno a Hannover depois da
viagem à Itália) 6 .

***

Essa referência ao estado da edição permite precisar a


dificuldade que comporta a referência a uma “última metafísica” de
Leibniz. Com efeito, nota-se que essa “última metafísica” tem seu
começo para além do que avançou a edição integral dos Escritos
filosóficos até seu estado atual. Enquanto conhece-se hoje tão bem
quanto é possível, através de um denso conjunto de textos, a gênese
das concepções que tomam corpo anteriormente e logo depois do

15

1_Fichant_9_40.PMD 15 5/10/2007, 11:39


CADERNOS ESPINOSANOS XV - 2006

ponto de equilíbrio do Discurso de metafísica, o período posterior a


1690 só nos é acessível através das edições existentes, as quais nos
apresentam uma restituição forçadamente fragmentária, descontínua,
que não permite, portanto, um controle precisamente ponderado das
proposições interpretativas. E é esse justamente o caso da proposição
a respeito do idealismo atribuído a essa última metafísica.
Conhece-se há muito tempo uma “primeira filosofia de
Leibniz”, estudada na admirável tese latina de Arthur Hannequin
(1895)7 , que cobre o período que se completa no momento da chegada
de Leibniz a Paris em 1672, logo depois da publicação das duas
Theoriae motus de 1671. A filosofia do chamado “jovem Leibniz”
pôde ser estudada recentemente em numerosas publicações e
colóquios, com uma grande precisão, tornada agora possível com o
avanço da edição integral. Como conseqüência, estendeu-se esse
período de juventude até o fim dos anos parisienses, em 1676, quando
Leibniz tinha trinta anos. Algumas vezes, incluiu-se mesmo o primeiro
tempo de instalação em Hannover nesse período. Como quer que seja,
reconhece-se em vista de declarações autobiográficas concordantes
de Leibniz que a maturidade de seu pensamento, satisfeito a respeito
de questões fundamentais, estabelece-se definitivamente no curso dos
primeiros anos da década de 80. O Discurso de metafísica é a primeira
síntese dessa maturidade, na ordem de questões metafísico-teológicas
que é a sua, aí juntando-se, na vertente da lógica, o grande estudo
inacabado das Generales Inquisitiones de Analysi notionum et
veritatum 8 .
Por muito tempo agiu-se como se, a partir daí, tudo estivesse
posto, e como se estivesse constituído de uma vez por todas, sob a
forma de um invariável “Sistema”, um conjunto de conceitos
fundamentais, de teses principiais e de argumentos, o qual, em seguida,

16

1_Fichant_9_40.PMD 16 5/10/2007, 11:39


MICHEL FICHANT

bastaria que Leibniz haurisse segundo os pontos de vista preparados


por intenções particulares ou circunstâncias exteriores, fazendo
somente com que se variasse a expressão, como espectadores girando
em torno da mesma cidade da qual têm perspectivas de visão variadas
que se reúnem na unidade de seu geometral. Com efeito, a preocupação
constante de coerência ao dar inteligibilidade a um universo ordenado,
que de fato sempre foi a preocupação de Leibniz, poderia, até certo
ponto, legitimar essa representação. Entretanto, por todo tipo de
razões, algumas das quais, ligadas ao trabalho editorial, já foram
evocadas, e que em geral dizem respeito à mudança das práticas do
ofício de historiador da filosofia, que dão agora um lugar maior à
materialidade do fato textual, esse modo de ver, que poderia ser
qualificado de idealista à sua maneira, foi, senão abandonado, em todo
caso fortemente ameaçado por uma atenção maior dedicada às
transformações múltiplas que o pensamento de Leibniz não deixa de
fabricar em seu período de maturidade.
A transformação maior, que permite estabelecer nesse período
uma divisão identificável, é aquela que encontra sua completude na
coordenação de todos os componentes do que chamo a tese
monadológica. A tese monadológica propriamente dita, ausente do
Discurso de metafísica e da primeira fase da Correspondência com
Arnauld, começa a despontar nas discussões da segunda fase que dizem
respeito ao sentido das formas substanciais e, portanto, ao estatuto de
substancialidade dos corpos9 . Presente sob uma forma ainda pouco
nítida na primeira parte do Sistema novo da natureza e da comunicação
das substâncias, publicado em 1695 (no qual os leitores
contemporâneos não a viram, para se concentrar na discussão da
correspondência entre a alma e o corpo apresentada na segunda parte
do artigo), ela é afirmada a partir do momento em que o recurso à

17

1_Fichant_9_40.PMD 17 5/10/2007, 11:39


CADERNOS ESPINOSANOS XV - 2006

própria palavra mônada, em 1696, condensa todo um trabalho de


análise e de elaboração conceitual anterior. Reduzida à sua formulação
elementar, a tese monadológica consiste na afirmação de que existem
substâncias simples, chamadas unidades verdadeiras, ou mônadas, uma
vez que existem “coisas” compostas, pois “sem o simples, não haveria
compostos” ou, ainda, porque “as multiplicidades supõem as
unidades”10 . A partir daí, toda a complexidade associada à tese, e da
qual seu enunciado simplificado não dá conta, está ligada à ordenação
das soluções que serão dadas às questões da natureza dessas
substâncias simples, da natureza das coisas compostas, da relação entre
essas duas ordens, na medida em que essas questões envolvem, para
Leibniz, o conjunto da metafísica tal como ele a entende.

***

É desse ponto de vista que a questão do sentido e da natureza


de um idealismo leibniziano está, há mais de vinte anos agora, no
centro de um grande debate nos estudos leibnizianos, principalmente
de língua inglesa. Uma certa indeterminação de vocabulário faz com
que esse idealismo seja chamado às vezes também “fenomenalismo”
(dir-se-ia antes em francês “phénoménisme” [“fenomenismo”]).
Esse debate é característico da orientação tomada doravante
pela maior parte dos trabalhos, numerosos e, em geral, de excelente
qualidade, consagrados à filosofia de Leibniz na área anglo-saxã. A
ênfase colocada prioritariamente durante muito tempo nas
interpretações que privilegiavam a lógica e a filosofia da linguagem
foi suplantada por um interesse, antes de tudo, pela metafísica enquanto
tal. Os argumentos lógicos e o tratamento analítico de problemas não

18

1_Fichant_9_40.PMD 18 5/10/2007, 11:39


MICHEL FICHANT

desapareceram, mas aparecem apenas como meios de elucidação e de


justificação entre outros, e não são mais considerados como
inteiramente determinantes do sentido da metafísica de Leibniz, como
era o caso enquanto dominava o modelo de abordagem que se apoiava
nos grandes precedentes de Bertrand Russell e de Louis Couturat.
Em sua abertura, o debate em torno do fenomenismo e do
idealismo atribuídos a Leibniz levou a maior parte dos participantes,
mas não todos, a admitir um recorte segundo o qual, durante um
período chamado de “anos intermediários”, que abrangeria as duas
décadas de 1680 e 1690, Leibniz teria defendido uma concepção
aristotélica da substância corporal, como composta de matéria e forma,
ele teria sido inclinado a isso pela preocupação prioritária de dar à
física fundamentos conceituais sólidos11 .
Pôde-se conceder ou contestar a validade da interpretação
assim proposta dos anos intermediários, mesmo admitindo, em todo
caso, que a esses anos seguia-se um último período, o de uma última
metafísica que abandonaria as escolhas realistas precedentemente
justificadas pela prioridade atribuída à questão dos fundamentos da
física. Seja como conseqüência do Sistema Novo (1695) e da introdução
consecutiva da palavra “mônada” como designação da substância em
sentido primeiro, seja a partir dos primeiros anos 1700, com a
formulação definitivamente completa da tese monadológica (a transição
tendo sido operada na correspondência com De Volder), Leibniz teria
abandonado essa concepção em proveito da restrição da noção de
substância às mônadas, concebidas como almas ou sujeitos análogos
às almas, recusando qualquer realidade substancial aos corpos,
remetidos ao plano de fenômenos.
A expressão mais conseqüente e mais acabada de um idealismo
leibniziano desse tipo foi exposta por Robert Merrihew Adams,

19

1_Fichant_9_40.PMD 19 5/10/2007, 11:39


CADERNOS ESPINOSANOS XV - 2006

principalmente na terceira parte de sua grande obra Leibniz.


Determinist, Theist, Idealist, Oxford University Press, 199412 .
R. M. Adams cita uma passagem bem conhecida da carta de
30 de junho de 1704 a De Volder, da qual dou aqui a restituição
completa:
E inclusive, para considerar a questão com atenção,
é preciso dizer que não há nada nas coisas além das
substâncias simples e, nelas, a percepção e a apetição; a
matéria e o movimento, porém, não são substâncias ou
coisas, mas fenômenos dos que percebem e sua realidade
reside na harmonia dos que percebem consigo mesmos
(em tempos diferentes) e com os outros que percebem. 13

R. M. Adams explora esse texto em termos que são, a meu


ver, hiperbólicos: “O princípio mais fundamental da metafísica de
Leibniz é que ‘não há nada nas coisas além de substâncias simples e,
nelas, as percepções e as apetições’ (GP II, 270). Isso implica que os
corpos, que não são substâncias simples, só podem ser construídos a
partir de substâncias simples e de suas propriedades de percepção e
apetição” (op. cit., p. 217).
É sempre arriscado isolar de seu contexto um enunciado
leibniziano para reconhecer nele um princípio, e mais ainda um princípio
declarado mais fundamental que os outros. Quando formula essa
proposição, Leibniz evitou atribuir a ela uma tal caracterização. Esse
seria antes para ele o lugar que o princípio de razão ocupa – mas
deixemos isso de lado. Eu observaria, antes de voltar a isso, quanto à
estrutura e ao léxico do argumento apresentado aqui:
1/ que Leibniz fala, para aí reconhecer os “fenômenos dos que
percebem”, da matéria e do movimento, mas não, como lhe atribui a

20

1_Fichant_9_40.PMD 20 5/10/2007, 11:39


MICHEL FICHANT

paráfrase de Adams, de corpos. Para que essa paráfrase fosse uma


tradução conceitual correta, seria preciso que Leibniz considerasse
que matéria e movimento são os constituintes suficientes da natureza
do corpo, o que não é o caso.
2/ que Leibniz não apresenta a redução fenomênica da matéria
e do movimento (e não dos corpos enquanto tais) como uma
conseqüência extraída do princípio de que as únicas substâncias são
as substâncias simples, mas antes como uma proposição que é
complementar a esse princípio e independente dele, e que deve,
portanto, ter recebido alhures sua justificação.
As posições tomadas e presentes no debate partem, em geral,
da dificuldade que haveria em conciliar duas teses de Leibniz: essa
mencionada agora, segundo a qual os corpos seriam apenas fenômenos
das mônadas, estes compreendidos como o que aparece às mônadas
como a sujeitos que percebem, e aquela segundo a qual os corpos são
“agregados de mônadas” ou, como Leibniz sublinha ser preferível dizer,
“resultantes das mônadas”. A versão mais radical da primeira tese
consiste em reduzir toda a realidade do fenômeno apenas à realidade
objetiva, no sentido escolástico-cartesiano, isto é, em um outro
vocabulário, ao que seria identificado como conteúdo representacional
da percepção de uma mônada qualquer. Atribui-se a Leibniz, assim,
uma forma de idealismo próxima à de Berkeley. A questão é
evidentemente, então, construir uma interpretação coerente dos textos,
de resto mais numerosos, que fazem dos corpos agregados (resultantes)
de mônadas. Se se parte antes dessa segunda tese, tratar-se-á então de
compreender como um agregado de mônadas de algum modo se
fenomenaliza: concebe-se nesse caso que haja nos corpos uma realidade
outra que a da mônada que percebe, a saber, a realidade de uma

21

1_Fichant_9_40.PMD 21 5/10/2007, 11:39


CADERNOS ESPINOSANOS XV - 2006

infinidade de outras mônadas que são os ingredientes ou os requisitos


desse corpo14 . Qualquer precaução que se tome, não se pode fazer
outra coisa que propor variantes da teoria da deformação perceptiva,
segundo a qual a apreensão de multiplicidades por um espírito finito
embaralha a distinção de seus elementos na representação confusa de
um corpo contínuo e de suas propriedades sensíveis (missperception
thesis)15 .

***

Há, entretanto, boas razões para pensar que a última metafísica


de Leibniz não se reduz a essa caracterização unilateral de um idealismo
que negaria qualquer possibilidade de legitimar, no contexto da tese
monadológica, um conceito de substância corporal propriamente dita.
Consideraremos aqui as três seguintes razões:
1/ Do ponto de vista genético, a tese monadológica provém
originariamente da busca de um fundamento para a realidade dos
corpos.
Um ponto foi suficientemente estabelecido em 1986 por André
Robinet16 : quando o conceito de mônada encontra definitivamente
sua denominação em 1696, é para assumir o posto da operação já
tentada na época anterior através da reabilitação das formas
substanciais. O Discurso de metafísica apresentava uma dupla
concepção da substância: de um lado a substância individual definida
por sua noção completa (segundo o que deu lugar à chamada teoria
lógica da substância), exemplificada principalmente pelos sujeitos de
ação ou “personagens” da história do mundo (Alexandre, César, Pedro,

22

1_Fichant_9_40.PMD 22 5/10/2007, 11:39


MICHEL FICHANT

Judas, etc.); de outro, a forma substancial, exigida para se conceber


em que os corpos podem comportar uma realidade além da
simplesmente fenomênica. Tratando-se dessa segunda versão, André
Robinet também estabeleceu de forma indiscutível que, lido através
de todos os estratos de escritura de seus estados genéticos, o texto do
Discurso de metafísica é atravessado por uma tensão (uma
“disjunção”) entre duas interpretações: de um lado, se os corpos são
substâncias, e uma vez que a extensão, contrariamente ao que sustenta
Descartes, não basta para constituir uma substância, então é preciso
recorrer às formas substanciais reabilitadas pela noção de força para
dar conta da identidade persistente da realidade corporal; mas, de um
outro lado, a fórmula permanece condicional e pode dar-se que os
corpos não sejam substâncias, mas somente fenômenos verdadeiros
como o arco-íris. Que seja dito entre parênteses, essa tensão ou
disjunção deveria ser suficiente para estabelecer que a possibilidade
do idealismo já estava inscrita no princípio mesmo dos anos ditos
médios e para, assim, colocar em dúvida a univocidade da adesão de
Leibniz durante esse período a um realismo aristotélico da substância
composta de matéria e forma.
Tentei, de minha parte, mostrar que é a discussão com Arnauld
que levou Leibniz pouco a pouco às fórmulas que balizam o campo da
tese monadológica, totalmente ausente do Discurso de metafísica17 .
Pois, contrariamente ao que uma longa tradição de aproximações
conceituais permitiu sustentar, a substância individual do Discurso
não é a mônada. Nem do lado da substância individual, nem do lado
da forma substancial intervém o argumento que coloca em jogo as
multiplicidades e as unidades, os compostos e os simples.

23

1_Fichant_9_40.PMD 23 5/10/2007, 11:39


CADERNOS ESPINOSANOS XV - 2006

Uma primeira fase da correspondência com Arnauld apóia-se


exclusivamente na doutrina da noção completa de substância individual.
É somente uma vez que esse debate se encerra que se abre uma nova
discussão, apoiada simultaneamente na solução proposta ao problema
da união da alma e do corpo, que ainda não é chamada de harmonia
preestabelecida, e na questão da substancialidade dos corpos. O
desenvolvimento das respostas suscitadas pelas interrogações de
Arnauld sobre o sentido da reabilitação das formas substanciais, nesse
segundo período da correspondência, permitiu produzir pouco a pouco
as condições da formulação da tese monadológica. A carta de 30 de
abril de 1687 marca, desse ponto de vista, o momento decisivo no
qual Leibniz termina por reconhecer como sua a caracterização da
substância que Arnauld tinha desvelado nos textos em que ela era
tacitamente assumida, sem ser ainda expressamente formulada: “A
substância exige uma verdadeira unidade” (GP II, 96), ou ainda,
“ … não concebo nenhuma realidade sem uma verdadeira unidade”
(97). Uma vez que a completude da noção cede o passo à unidade do
ser, a tese monadológica pode ser enunciada pela primeira vez, muito
antes do recurso à denominação mesma de “mônada”. Deixando de
lado as definições escolásticas, é preciso agora “considerar as coisas
de bem mais alto”, no nível da relação entre o uno e o múltiplo, que
uma série de formulações vai munir de suas variações:
Todo ser por agregação supõe seres dotados de
uma verdadeira unidade, porque só tem realidade a partir
da realidade dos seres de que é composto […] Se há
agregados de substâncias, é preciso também que haja
verdadeiras substâncias de que os agregados são feitos

24

1_Fichant_9_40.PMD 24 5/10/2007, 11:39


MICHEL FICHANT

[…] Não há multiplicidade sem verdadeiras unidades […]


O plural supõe o singular (GP II, 96-97).

Faltam ainda, evidentemente, etapas a cumprir, mas as


condições conceituais que exigem, por assim dizer, por si mesmas o
recurso à velha palavra grega que quer dizer unidade já estão reunidas.
Se, então, a tese monadológica e, com ela, a constituição definitiva do
próprio conceito de mônada intervêm diretamente na continuidade da
discussão sobre as formas substanciais, é exatamente porque ela deve
responder à mesma questão: a de saber em que consiste a
substancialidade dos corpos, se eles são substâncias ou, pelo menos,
se comportam em si alguma coisa de substancial. É preciso acrescentar,
enfim, que, no momento em que a análise dá essa volta, ela assume
uma interpretação que se aproxima mais do sentido da versão idealista.
Pois, se é preciso reconhecer unicamente por substâncias os “Seres
completos, dotados de uma verdadeira unidade [...], todo o resto sendo
apenas fenômenos, abstrações ou relações!”, segue que os compostos,
possuindo uma unidade apenas acidental, não são propriamente
substâncias. Sem dúvida conceder-se-á
que há graus de unidade acidental, que uma
sociedade regrada tem mais unidade que uma turba
confusa, e que um corpo organizado ou uma máquina tem
mais unidade que uma sociedade, isto é, é mais adequado
concebê-los como uma única coisa, porque há mais
relações entre os ingredientes; mas, enfim, todas essas
unidades recebem seu acabamento dos pensamentos e
aparências, como as cores e outros fenômenos, que não
deixam de ser chamados de reais. […] pode-se, portanto,

25

1_Fichant_9_40.PMD 25 5/10/2007, 11:39


CADERNOS ESPINOSANOS XV - 2006

dizer desses compostos e coisas semelhantes o que


Demócrito falava tão acertadamente deles, a saber, esse
opinione, lege, nómôi. E Platão tem a mesma opinião a
respeito de tudo o que é puramente material (GP II, 101).

Notemos que aqui o corpo organizado, colocado no mesmo


plano que a máquina, não se diferencia senão por um grau das outras
formas de multiplicidade. Veremos na seqüência a importância desse
ponto.
2/ O desenvolvimento da metafísica leibniziana do último
período, mesmo situando seu início depois de 1700, não dispensa a
exigência de uma caracterização de uma verdadeira “substância
corporal”.
Coloquemo-nos agora bem perto do fim, no momento em
que Leibniz chega à expressão final de sua última metafísica. As
primeiras linhas do texto sem título, ao qual seu tradutor alemão deu
um em 1720, o universalmente conhecido Monadologia, e as dos
Princípios da Natureza e da Graça restituem o conteúdo essencial
dessa metafísica sob a forma mais lapidar: a mônada é uma substância
simples que entra nos compostos, e é preciso que haja mônadas, uma
vez que há compostos e que as multiplicidades supõem sempre as
unidades de que são feitas ou das quais tiram sua realidade derivada.
Assim formulada, a tese pode sem dúvida sustentar uma
interpretação idealista e fenomenista. De um lado haveria as mônadas,
substâncias simples, sem partes, cuja natureza é perceber e passar de
uma percepção a outra e a percepção é inexplicável por razões
mecânicas. De outro lado, haveria apenas agregados, que não possuem
nunca unidade intrínseca, e cuja unidade nominal é sempre relativa à
percepção, isto é, ao mesmo tempo à seqüência coerente de percepções

26

1_Fichant_9_40.PMD 26 5/10/2007, 11:39


MICHEL FICHANT

de uma mônada e ao acordo das percepções das mônadas entre si. O


texto da Monadologia, lido estritamente, pode encorajar essa maneira
de ver: a substância figura nele apenas como substância “simples”,
portanto como mônada, e jamais como “substância composta”; o termo
“composto(s)” é empregado sempre como um neutro, para designar
alguma coisa que, precisamente, não chega ao nível ontológico da
substância.
É verdade que Wolff, sobre o qual se afirma, como
conseqüência de um trabalho de A. Lamarra, ser o autor da tradução
latina da Monadologia publicada em 172118 , não se incomodou por
forçar o texto para o sentido de sua própria interpretação da física do
simples e do composto, traduzindo “les composés” [“os compostos”]
por “substantiae compositae”, ao passo que ele devia se contentar em
designar sem adição como os “composita”. Mas isso talvez se dê
porque ele tinha também sob os olhos uma cópia do texto
contemporâneo àquele, os Princípios da Natureza e da Graça, que
sugeria essa infidelidade literal, uma vez que dessa vez encontramos
as expressões “substância composta”, e mesmo “substância viva”,
assim introduzidas:
1. A substância é […] simples ou composta. A
substância simples é aquela que não possui partes. A
composta é a reunião de substâncias simples ou mônadas
[…] 3. […] cada substância simples ou Mônada distinta,
que constitui o centro de uma substância composta (como,
por exemplo, um animal) e o princípio de sua Unicidade,
está rodeada por uma Massa composta de uma infinidade
de outras Mônadas, que constituem o corpo próprio desta
Mônada central, a qual representa, segundo as afecções

27

1_Fichant_9_40.PMD 27 5/10/2007, 11:39


CADERNOS ESPINOSANOS XV - 2006

desse corpo, como em uma espécie de centro, as coisas


que estão fora dela. […] 4. Cada Mônada, com seu corpo
particular, constitui uma substância viva.

Em que sentido a massa que rodeia a “mônada distinta” pode


ser dita “composta de uma infinidade de outras Mônadas”, uma vez
que se admita o uso do conceito de “substância composta”? No curso
dos anos precedentes, e ao longo de todo o período que se diz ser
dominado pela tese idealista, em que se nega aos corpos a realidade
substancial, há, todavia, numerosas provas da busca constantemente
empreendida de uma caracterização, no quadro monadológico, de uma
verdadeira “substância corporal” ou “substância composta”. Deixo
de lado aqui o emprego central de “substância composta” na
correspondência com Des Bosses, que está associada à elaboração
particular do Vinculum substantiale. Mas a noção de substância
composta permanece, entretanto, independente dessa doutrina, e em
textos como o dos Princípios da Natureza e da Graça pode ser
considerada como o equivalente da doutrina da substância corporal.
Sem entrar no detalhe das provas textuais, lembrarei, entre outras
menções possíveis, um fragmento muito interessante, recentemente
publicado, para o qual proporei de bom grado a data de 1709: “A
substância composta é a Mônada considerada com seu corpo orgânico,
como um homem, um carneiro”. Ou ainda uma carta de 1711, na qual
Leibniz define a substância corporal como a que “consiste em uma
substância simples ou mônada (isto é, uma alma ou alguma coisa
análoga à alma) e no corpo orgânico que está unido a ela”19 .
Donde resulta que uma cláusula inteiramente especial é
requerida para que haja propriamente substância corporal: para isso,
é preciso que, do lado do que constitui o componente físico dessa

28

1_Fichant_9_40.PMD 28 5/10/2007, 11:39


MICHEL FICHANT

substância, seja preenchida uma condição especial, é preciso que se


trate de um corpo orgânico. O que é, então, para Leibniz, um corpo
que corresponde a essa característica?
3/ O Organismo é aquilo cuja consideração impede Leibniz
de deixar a última palavra a um idealismo tal como o que lhe atribuem
as variantes da interpretação anglo-saxã.
Tentei em um artigo recente 20 circunscrever o momento
decisivo no qual Leibniz apodera-se da caracterização do corpo
orgânico que lhe é própria: ela se enuncia no conceito e na denominação
de “maquina da natureza”, e é precisamente em 1695, no Sistema
novo, que Leibniz elabora pela primeira vez esse conceito.
Imediatamente, ele introduz uma diferença que desta vez não é mais
gradual, mas essencial, entre as máquinas da natureza e as outras
máquinas como em geral e a fortiori todas as outras formas de
multiplicidade material; em um texto escrito em 1702, ele associa
diretamente o conceito de “máquina da natureza” à publicação do
Sistema novo, evocando “a grande diferença […] que há entre as
máquinas da natureza e a arte, explicada quando foi publicado o sistema
novo no Journal des savants”21 . A grande diferença é que as máquinas
artificiais originadas de nossa engenhosidade comportam apenas um
número finito de órgãos, que, separados, não são eles mesmos
máquinas, enquanto “uma máquina natural permanece máquina ainda
nas suas menores partes, e mais ainda, ela permanece sempre essa
mesma máquina que ela foi, transformando-se apenas pelas diferentes
dobras que recebe, e tanto extensa como condensada, quando se crê
que ela se perdeu”22 . No § 64 da Monadologia, isso dará:
[…] uma Máquina, construída segundo a arte
humana, não é Máquina em cada uma de suas partes. Por
exemplo, o dente de uma roda de latão tem partes ou

29

1_Fichant_9_40.PMD 29 5/10/2007, 11:39


CADERNOS ESPINOSANOS XV - 2006

fragmentos que não são mais para nós algo artificial e não
têm mais nada que identifique a Máquina para o uso da
qual está destinada a roda. Mas as Máquinas da Natureza,
isto é, os corpos vivos, são Máquinas inclusive em suas
menores partes até o infinito.

A partir de 1704, Leibniz usará o termo de sua invenção,


“Organismo”, para significar não, como em nosso uso corrente, tal
ser determinado, que designamos como um organismo, e que nos
permite falar no plural em organismos vivos, mas o modo de ser, sempre
no singular, segundo o qual o corpo orgânico é constituído pelo
envolvimento infinito de órgãos, no qual os elementos da máquina
são sempre também máquinas, isto é, composições funcionais de
instrumentos ordenados a um fim.
É precisamente esse modo de ser que permite a um corpo
determinado adquirir um regime de substancialidade, constituindo o
que Leibniz chama também de um “animal”; só correspondem a
substâncias corporais os animais cujo corpo orgânico – máquina da
natureza – é atualizado ou realizado por uma alma ou, melhor, pela
enteléquia primitiva da substância simples que é sua mônada dominante
ou principal.
Só conto como substâncias corporais as máquinas
da natureza que possuem almas ou algo de análogo; de
outra maneira não haverá verdadeira unidade (A Jaquelot,
22 de março de 1703, GP III, 457).

Na declaração citada, na qual Robert Adams vê a fórmula do


que será “o princípio mais fundamental de (sua) metafísica”, Leibniz,
como já observei, atribui apenas à matéria e ao movimento não serem
substâncias ou coisas, mas fenômenos da percepção. Não são, pois,

30

1_Fichant_9_40.PMD 30 5/10/2007, 11:39


MICHEL FICHANT

os corpos que são ditos assim, uma vez que Leibniz, precisamente,
jamais reduziu a realidade dos corpos ao movimento e à matéria. Em
uma carta de 1699 a Thomas Burnett, na qual é exposta uma
aproximação muito precisa da realidade da substância corporal segundo
sua fundação monadológica, Leibniz opera rigorosamente a distinção,
nos corpos, “entre a substância corporal e a matéria”, e “distingue a
matéria primeira da segunda”. Com essa distinção é introduzida uma
noção tradicional cuja significação dada por Leibniz precisa ser
analisada: o que é a “matéria segunda”?
A matéria segunda é um agregado ou composto
de várias substâncias corporais, como um rebanho é
composto de vários animais. Mas cada animal e cada planta
também é uma substância corporal, tendo em si o princípio
de unidade, que faz com que seja uma verdadeira
substância e não um agregado. E esse princípio de unidade
é o que se chama Alma ou então alguma coisa que tem
analogia com a alma. Mas além do princípio de unidade, a
substância corporal tem sua massa ou matéria segunda,
que é ainda um agregado de outras substâncias corporais
menores, e isso vai ao infinito (GP III, 260).

Trata-se exatamente, portanto, de estabelecer ao mesmo tempo


a realidade de uma verdadeira “substância corporal” e, por outro lado,
sua irredutibilidade à matéria (e a fortiori, à extensão à qual Descartes
identificava erroneamente a matéria). O conceito essencial que intervém
aqui é o de matéria segunda: é por ela que o corpo se apresenta, por
um dos aspectos de sua constituição, como um agregado, do qual a
composição numérica do rebanho (de ovelhas) fornece um modelo
intuitivo. Mas o próprio animal (a ovelha), que é um componente do

31

1_Fichant_9_40.PMD 31 5/10/2007, 11:39


CADERNOS ESPINOSANOS XV - 2006

agregado do rebanho, é outra coisa diferente do simples agregado do


rebanho, precisamente porque ele tem uma verdadeira unidade de
composição. Leibniz diz isso pelo menos uma vez de maneira
perfeitamente explícita: “Há, com efeito, uma grande diferença entre
um animal e um rebanho”23 .
Segundo um modelo cuja proveniência aristotélica é patente,
Leibniz constitui o animal de uma Enteléquia, que “é ou alma ou alguma
coisa análoga à alma, e sempre realiza naturalmente o corpo orgânico”,
e desse próprio corpo, que, “considerado separadamente, isto é, pondo-
se à parte ou retirada a alma, não é uma substância única, mas um
agregado de várias, designando uma máquina da natureza”24 .
Pode-se, pois, distinguir-se agregado de agregado: um
amontoado de pedras ou um rebanho, por exemplo, não constituem
propriamente uma matéria segunda, uma vez que não são enformados
por uma enteléquia ou por alguma coisa análoga a uma alma. Dizer
um rebanho enuncia apenas uma unidade nominal e mental, inteiramente
relacionada à unicidade do nome que exprime a reunião de vários
elementos distintos sob uma só concepção ou percepção. Tais
agregados não são evidentemente substâncias corporais, e não se
concebe que eles possam ser. E o mesmo vale para as pedras que
compõem o amontoado, que tampouco são substâncias corporais. Mas
em relação à ovelha do rebanho, a análise toma um outro caminho: o
corpo dos animais constitui uma matéria segunda enformada pela alma
do animal25 . Ora, a matéria segunda que entra em uma substância
corporal se caracteriza como um agregado cujos componentes são
também substâncias corporais. Dito de outra maneira, a matéria
segunda não é diretamente um agregado de substâncias ou de mônadas,
mas um agregado composto de outras substâncias corporais cuja
implicação ao infinito funda a composição do corpo orgânico enquanto

32

1_Fichant_9_40.PMD 32 5/10/2007, 11:39


MICHEL FICHANT

máquina da natureza. Temos aí uma definição da substância corporal


que poderia ser dita, segundo nosso vocabulário atual, recursiva,
repousando, via sua matéria segunda, sobre uma infinidade de
substâncias corporais que, por sua vez, por sua própria matéria
segunda, supõem uma outra infinidade de substâncias corporais, e
assim por diante.
Pode-se compreender, então, como as mônadas “concorrem”
para a máquina orgânica. E, respondendo a essa questão, responde-se
também em que sentido os corpos, como agregados, “resultam” das
mônadas, de maneira diferente de uma reunião de partes em um todo26 :
o concurso das mônadas para a constituição da matéria segunda não é
direto, pois cair-se-ia nas aporias clássicas da composição de uma
extensão a partir de elementos inextensos. Esse concurso, pelo qual
as substâncias simples sustentam o que há de definitivamente real nos
agregados, é mediado pela articulação ao infinito das substâncias
corporais umas nas outras: ora, é precisamente isso que faz dessa
matéria segunda uma “máquina da natureza” naquilo que a distingue
de uma reunião qualquer em que nenhuma vida pode se atualizar, uma
vez que a vida consiste, segundo Leibniz, em percepção e apetite27 .
Em toda parte em que há corpos orgânicos, cuja unidade não
é de simples justaposição, mas resulta de um envolvimento ao infinito
de órgãos, a função de unicidade da enteléquia é efetivamente realizada
na formação de uma substância corporal. O mesmo corpo pode
comportar simultaneamente duas referências distintas à esfera
monádica: enquanto multiplicidade remete às unidades plurais que ela
requer; enquanto substancial e, portanto, comportando uma unidade,
relaciona-se à mônada única que constitui a enteléquia primitiva de
sua matéria segunda, que é a de um corpo orgânico, cujos componentes
são também outras substâncias corporais.

33

1_Fichant_9_40.PMD 33 5/10/2007, 11:39


CADERNOS ESPINOSANOS XV - 2006

É por isso que haverá também, inversamente, corpos orgânicos


em toda parte, mesmo onde permanecem imperceptíveis a nossos
sentidos. Há como que uma lei de reciprocidade que exige a correlação
constantemente e universalmente mantida entre cada mônada e o corpo,
do qual Leibniz diz de maneira feliz, antecipando um uso futuro, que
o corpo é “próprio” a ela, e sem o qual, se ela fosse separada, ela seria
“um desertor da ordem universal”28 . A cada mônada seu corpo próprio
significa, então, tantas substâncias simples, quantas substâncias
corporais. Este é, no fim das contas, o princípio de adesão de Leibniz
a uma visão pan-animalculista da natureza “por onde se vê que há um
Mundo de criaturas, de viventes, de Animais, de Enteléquias, de Almas
na menor parte da matéria” e onde “cada porção da matéria pode ser
concebida como um jardim cheio de plantas e como um Lago cheio de
peixes. Mas cada ramo da planta, cada membro do animal, cada gota
de seus humores é também um jardim ou um lago” (Monadologia, §§
66 e 67). Essa visão, que Leibniz sustentava muito seriamente e que
era confirmada pelas pesquisas empíricas de seu tempo, não é
compatível com a redução idealista.

***

Há, entretanto, uma outra maneira de ser idealista diferente da


de Berkeley, a quem Leibniz tomava, alhures, por “ser desse gênero
de homens que querem se dar a conhecer por seus paradoxos”29 . Em
uma Anotação célebre da Ciência da Lógica, Hegel define assim o
idealismo: “A proposição que o finito é ideal constitui o Idealismo. O
Idealismo, segundo a filosofia, não consiste em nada mais que não

34

1_Fichant_9_40.PMD 34 5/10/2007, 11:39


MICHEL FICHANT

reconhecer o finito como um verdadeiro Ente. Toda filosofia é


essencialmente Idealismo ou, pelo menos, o Idealismo em seu princípio,
e a questão é, então, somente, até que ponto esse princípio é
efetivamente acabado”. Algumas páginas adiante, em uma outra
Observação, ele nota ainda: “O ser representante de Leibniz, a Mônada,
é uma coisa essencialmente ideal”30 .
Em linguagem leibniziana, isso seria: o que o pensamento põe
como elementos últimos da realidade, as mônadas, são efetivamente
elementos inteligíveis. É de fato um idealismo, se se entende ainda, à
maneira platônica, uma ontologia segundo a qual os constituintes
últimos do ser são elementos ideais. Mas Leibniz quis também mostrar
como esses elementos reúnem-se em um Ente verdadeiro, desde que
compõem-se como a mediação infinita da qual a estrutura recursiva
das máquinas da natureza expõe a figura sensível. Isso certamente
não é um idealismo que reduziria indiferentemente a realidade dos
corpos unicamente ao conteúdo objetivo das representações sensíveis.
O que havia em Leibniz de fidelidade constante ao aristotelismo o
dissuadiu de dar a última palavra a um idealismo filosófico que não
teria sabido dar conta, com e na realidade orgânica, da concretude
sensível do inteligível. É assim que sua filosofia cumpre, efetivamente,
o princípio do Idealismo, a ponto de Hegel poder dizer ainda que ela
“é a contradição completamente desenvolvida”31 .

35

1_Fichant_9_40.PMD 35 5/10/2007, 11:39


CADERNOS ESPINOSANOS XV - 2006

Notas
1
“Qui me non nisi editis novit, non novit”, carta a Placcius, 1696, in
Leibnitii Opera omnia, ed. Dutens (1769), VI, 1, p. 65. E também:
“Scripsi innumera et de innumeris ; sed edidi pauca et de paucis”,
carta a Jacob Bernoullli, 1695, in Mathematische Schriften, ed.
Gerhardt, III, p. 61.
2
Cf. a “Probevorlesung” (1881) de Paul Natorp, “Leibniz und der
Materialismus”, publicado por H. Holzhey, Studia Leibnitiana, XVII
(1985).
3
Opuscules et fragments inédits de Leibniz, Extraits des manuscrits
de la Bibliothèque royale de Hanovre, publicado por Louis Couturat,
Paris, 1903.
4
Uma Série V está prevista para reunir as obras históricas de Leibniz,
mas ela ainda não é objeto de nenhum trabalho preparatório.
5
Esse volume é de livre acesso em: http://www.uni-muenster.de/
Leibniz/downloadbereich.html. As informações completas sobre o
estado da edição em seu conjunto se encontram no site http://
www.leibniz-edition.de.
6
Leibniz, Sämtliche Schriften und Briefe - VI. Reihe Herausgegeben
von der Berlin-Brandenburgischen Akademie der Wissenschaften und
der Akademie der Wissenschaften in Göttingen - Philosophische
Schriften - Band 4: 1677–Juni 1690. Bearbeitet von Heinrich Schepers,
Martin Schneider, Gerhard Biller, Ursula Franke und Herma Kliege-
Biller, Akademie Verlag, Berlin, 1999. O conteúdo integral está
acessível na internet no mesmo endereço.
7
A versão francesa foi publicada na obra póstuma Etudes d’Histoire
des sciences et d’Histoire de la philosophie, vol. 2, Paris, 1908.

36

1_Fichant_9_40.PMD 36 5/10/2007, 11:39


MICHEL FICHANT

8
Originalmente publicados por Couturat, Opuscules et fragments
inédits, op. cit., p. 356-399. Excelente edição com tradução alemã e
comentários por Franz Schupp, Allgemeine Untersuchungen über die
Analyse der Begriffe und Wahrheiten, Felix Meiner Verlag, Hamburg,
1982.
9
Para mais detalhes, cf. meu ensaio “L’invention métaphysique”, in
Introduction à Leibniz. Discours de métaphysique suivi de
Monadologie, et autres textes. Edição estabelecida, apresentada e
anotada por Michel Fichant, Gallimard, Paris, 2004.
10
Cf. respectivamente, Princípios da natureza e da graça, art. 1, “É
preciso que em toda parte haja substâncias simples porque sem as
simples não haveria compostos”, e “não há multiplicidades sem
verdadeiras Unidades”, carta à Princesa Sophie, 31 de octobre de 1705,
in Die philosophischen Schriften, ed. Gerhardt (citado doravante GP),
VII, p. 558, fórmula já literalmente presente na carta a Arnauld de 30
de abril de 1687, GP, II, p. 97.
11
O artigo de referência aqui é o de Daniel Garber : “Leibniz and the
Foundations of Physics : The Middle Years”, em The Natural
Philosophy of Leibniz, ed. by K. Okruhlik and J.R. Brown, Reidel,
Dordrecht, 1985.
12
Esse capítulo retoma e estende consideravelmente o artigo mais
antigo do mesmo autor “Phenomenalism and Corporeal Substance in
Leibniz”, Midwest Studies in Philosophy, 8 (1983),
13
GP, II, p. 270.
14
Essa interpretação foi exposta por Donald Rutherford em uma série
de artigos: “Phenomenalism and the Reality of Body in Leibniz’s Later
Philosophy”, Studia Leibnitiana, 22 (1990); “Leibniz Analysis of

37

1_Fichant_9_40.PMD 37 5/10/2007, 11:39


CADERNOS ESPINOSANOS XV - 2006

Multitude and Phenomena into Unities and Reality”, Journal of the


History of Philosophy, 28 (1990); “Leibniz and the Problem of Monadic
Aggregation”, Archiv für Geschichte der Philosophie, 76 (1994).
15
Sustentada, por exemplo, por Nicholas Jolley, “Leibniz and
Phenomenalism”, Studia Leibnitiana, 18 (1986).
16
Architectonique disjonctive, automates systémiques et idéalité
transcendantale selon G. W. Leibniz, Paris, Vrin, 1986.
17
“L’invention métaphysique”, op. cit., p. 81-95.
18
Cf. Antonio Lamarra, Roberto Palaia, Pietro Pimpinella. Le prime
traduzioni della “ Monadologie” di Leibniz (1720-1721). Introduzione
storico-critica, sinossi di testi, concordanze contrastive, Firenze,
Olschki, 2001.
19
Respectivamente: “Substantia composita est Monas sumta cum suo
corpore organico, ut homo, ovis” (Texto inédito publicado por Enrico
Passini em sua obra Corpo et funzione cognitivi in Leibniz, Franco
Angeli, Milano, 1996, p. 208); “Substantiam corpoream voco, quae in
substantia simplice seu monade (id est anima vel Animae analogo) et
unito ei corpore organico consistit”, a Bierling, 12 de agosto de 1711
(GP VII, p. 501).
20
“Leibniz et les machines de la nature”», Studia Leibnitiana, 35/1
(2003) [publicado em 2005]. Uma versão preliminar desse artigo foi
publicada em português: “Leibniz e as máquinas da natureza”, Dois
Pontos, Revista dos Departamentos de Filosofia da Universidade
Federal do Paraná e da Universidade Federal de São Carlos, vol. 2,
num. 1, 2005.
21
Adição à Explicação do Sistema novo …, GP IV, p. 575.

38

1_Fichant_9_40.PMD 38 5/10/2007, 11:39


MICHEL FICHANT

22
Sistema novo da natureza e da comunicação das substâncias, GP
IV, p. 482.
23
“Multum enim interest inter animal et gregem”, em um opúsculo de
1702, GP IV, p. 395.
24
Ibid., p. 395-396.
25
“Assim, não digo na verdade que um pedaço de pedra seja em si
mesmo uma substância corporal animada ou dotada de um princípio
de unidade e de vida; mas antes que há em toda parte tais substâncias
e que não há nenhum pedaço da matéria no qual não haja ou animal ou
planta, ou qualquer outro corpo orgânico vivo, embora só conheçamos
plantas e animais. De sorte que uma massa de matéria não é
propriamente o que chamo de uma substância corporal, mas um
amontoado ou um resultado (aggregatum) de uma infinidade dessas
substâncias, como um rebanho de carneiros ou um monte de larvas”,
Eclaircissement sur les Natures Plastiques et les Principes de Vie et
de Mouvement (GP VI, 550).
26
“Accurate autem loquendo materia non componitur ex unitatibus
constitutivis, sed ex iis resultat”, carta a De Volder de 30 de junho de
1704 (GP II, p. 268).
27
A vida consiste para Leibniz em “percepção e apetite”,
Animadversiones circa assertiones aliquas Theoriae medicae verae
Clar. Stahlii, § VIII (Dutens II-2, p. 137).
28
“Os corpos orgânicos não estão nunca sem almas, e […] as almas
não estão nunca separadas de qualquer corpo orgânico […] Não
admito, portanto, que haja almas inteiramente separadas, nem que
haja Espíritos criados inteiramente destacados de algum corpo […] as
criaturas que ultrapassassem ou estivessem livres da matéria estariam

39

1_Fichant_9_40.PMD 39 5/10/2007, 11:39


CADERNOS ESPINOSANOS XV - 2006

destacadas, ao mesmo tempo, da ligação universal, e seriam como


desertores da ordem geral”, Considérations sur les Principes de Vie
et sur les Natures plastiques, 1705 (GP VI, p. 545-546).
29
“Qui in Hybernia corporum realitatem impugnat, videtur nec rationes
afferre idoneas, nec mentem suam satis explicare. Suspicor esse ex eo
hominum genere, qui per Paradoxa cognosci volunt”, carta a Des
Bosses de 15 de março de 1715 (GP II, p. 492). Tradução francesa de
Christiane Frémont em L’être et la relation. Lettres de Leibniz à Des
Bosses, Paris, Vrin, 1981, p. 237.
30
A Ciência da Lógica, Doutrina do Ser, Primeira seção,
respectivamente do cap. 2, c, Anotação 2, depois do cap. 3 A, b,
Anotação.
31
Encyclopédie des sciences philosophiques, I La Science de la
Logique, § 194. Trad. Bernard Bourgeois, Paris, Vrin, 1979, p. 435.

40

1_Fichant_9_40.PMD 40 5/10/2007, 11:39


FRANKLIN LEOPOLDO E SILVA

Universalidade e Simbolização em Leibniz


FRANKLIN LEOPOLDO E SILVA*

Resumo: A partir da concepção de um racionalismo integral, em que


vigora o ideal da plena demonstrabilidade segundo o paradigma
identitário da verdade, configura-se em Leibniz a questão da
universalidade, que seria enunciada com mais pertinência como a do
determinismo universal. São dois aspectos de uma mesma questão:
em primeiro lugar, a universalidade no sentido arquitetônico,
correspondente à totalidade; em segundo lugar, a determinação
absoluta do indivíduo singular. Tanto num caso quanto no outro, a
plena determinação é inalcançável para a mente humana. Mas as
operações simbólicas de determinação permitem, de alguma maneira,
contornar a impossibilidade de uma visão simultânea e articulada de
todos os elementos de um composto e, assim, nos encaminham na
direção de uma universalidade determinante. Os fundamentos, os
procedimentos e os riscos aí envolvidos constituem o tema desse texto.

Abstract: Based on the conception of an integral rationalism, in which


the ideal of a full demonstrability takes place according to the identitary
paradigm of the truth, the question of universality is configured in
Leibniz, which would then be more pertinently enunciated as the sub-
ject of universal determinism. The following are two aspects of a single
question: in the first place, universality in its architectural sense, cor-
responding to the totality; in the second place, the absolute determi-
nation of the singular individual. In one case as well as the other,
complete determination cannot be reached by the human mind. But
symbolic determination operations allow, somehow, for the avoidance

*
Professor titular do Departamento de Filosofia da FFLCH-USP.

41

2_Franklin_41_58.PMD 41 5/10/2007, 11:39


CADERNOS ESPINOSANOS XV - 2006

of the impossibility of a simultaneous and articulate vision of all of the


elements of a compound and, thus, we are lead in the direction of a
determinable universality. The fundaments, procedures and risks in-
volved therein constitute the subject of this text.

***

“A mathesis universalis é a ciência da quantidade em geral, ou


da razão que calcula (de ratione aestimandi) que assinala os limites
dentro dos quais algo possa ocorrer. E porque toda criatura tem limites,
então pode-se dizer que, tal como a metafísica é a ciência geral das
coisas (scientia rerum generalis), assim a mathesis universalis é a
ciência geral das criaturas (scientiam creaturarum generalem).”1 A
diferença que se pode estabelecer entre Leibniz e Descartes a partir de
um texto como este serve para nos introduzir na compreensão da
concepção leibniziana de universalidade. Para Descartes, a Mathesis
Universalis, ao revelar os fundamentos metódicos da Matemática,
desvenda os arcanos da razão. O teor de racionalidade que se pode
esperar de qualquer conhecimento possível está de antemão ilustrado
na evidência matemática, que deve a partir daí ser entendida como
modelo universal. Descartes distingue claramente a Matemática da
Mathesis Universalis: tal distinção, entretanto, não deixa de carregar
uma ambigüidade, posto que esta instância mais profunda da
matemática nos permitirá atingir, ao fim e ao cabo, o caráter
matematizante de todo conhecimento. Poderíamos dizer, portanto,
que, embora Descartes ambicione chegar a um nível de evidência
metódica mais profundo e mais abrangente do que a aritmética e a
geometria, esta camada fundamental estaria ainda no domínio de uma

42

2_Franklin_41_58.PMD 42 5/10/2007, 11:39


FRANKLIN LEOPOLDO E SILVA

Matemática, desde que a consideremos nas suas possibilidades mais


fundamentais de racionalidade. Afinal a ciência geral da Ordem e da
Medida não se constitui como um gênero diferente da Matemática,
vista na sua maior generalidade possível. Assim, o caráter
demonstrativo do conhecimento estará definitivamente comprometido
com um modelo de evidência que, estabelecido a partir de uma ciência
determinada, assegura, sem superar a configuração desta ciência, a
universalidade da certeza.
Leibniz julga poder apontar as limitações nesta visão cartesiana
dos fundamentos e do alcance da evidência, e isto a partir de uma
identificação da definição de Mathesis como ciência da Ordem e da
Medida à ciência da quantidade. Essa identificação entre o sentido
geral da Matemática e a quantidade atua como um operador crítico
frente ao processo cartesiano de constituição dos fundamentos da
evidência, indicando a restrição do modelo. Desta forma fica
questionada a legitimidade da passagem da evidência matemática à
universalidade da evidência. O que a crítica de Leibniz atinge, na
verdade, é a afirmação, implícita na concepção cartesiana, da
identificação entre evidência e evidência matemática. Embora Descartes
nunca tenha dito que a noção de Mathesis Universalis implicava uma
simples extensão da evidência matemática para o domínio de todo o
conhecimento, a universalidade da Ordem e da Medida como critérios
fundamentais de inteligibilidade aparece, para Leibniz, como a
sobreposição, indevida, da Matemática ao conhecimento racional. A
Mathesis Universalis, como ciência da quantidade, não tem o alcance
geral que Descartes reivindicara. Ela não pode ser considerada
verdadeiramente como uma ciência geral, mas sim como “ciência da
quantidade em geral”. Ora, poderíamos dizer que o geometrismo

43

2_Franklin_41_58.PMD 43 5/10/2007, 11:39


CADERNOS ESPINOSANOS XV - 2006

cartesiano não precisaria operar uma diferença entre ciência geral e


ciência da quantidade em geral uma vez que, para Descartes, é pela
Ordem e Medida (isto é, pela quantidade) que se conhecem todas as
coisas. Basta lembrar os dois extremos do conhecimento: Deus pode
ser demonstrado, como indica a Quinta Meditação, de forma tão clara
quanto um teorema; e o mundo material somente pode ser conhecido
através de propriedades suscetíveis de serem representadas
geometricamente, como mostra a Sexta Meditação. Ocorre que Leibniz
colocará em questão precisamente esta extensão do modelo
matemático. É este o significado da identificação, feita no texto que
citamos, entre “ciência da quantidade em geral” e “ciência geral das
criaturas”.
Com isto Leibniz não põe em dúvida que a Ordem e a Medida
são critérios de conhecimento “físico” em sentido largo; mas não aceita
que tal conhecimento se estenda além deste domínio. É neste sentido
que a metafísica aparece como mais abrangente: não apenas ciência
creaturarum generalis, mas ciência rerum generalis.
Fica impugnada, desta maneira, a Mathesis Universalis como
fundamento da Metafísica. Pelo contrário, esta, sim, seria a verdadeira
ciência geral, conhecimento de todas as coisas e não somente daquelas
que podem ser representadas a partir do critério da quantidade.
Portanto, nos dois exemplos que mencionamos acima, Leibniz aceitaria
que a Matemática é a um tempo mediação e fundação do conhecimento
da natureza, mas não aceitaria a identificação entre demonstração
matemática e demonstração metafísica. Com isto fica prejudicada a
concepção matematizante da universalidade do conhecimento. O que
a evidência possui de universal não deve ser concebido a partir da
matemática, nem mesmo a partir da Mathesis, posto que há uma ciência
mais universal do que a própria Mathesis.

44

2_Franklin_41_58.PMD 44 5/10/2007, 11:39


FRANKLIN LEOPOLDO E SILVA

A menção que Leibniz faz da Metafísica como ciência geral


deve nos levar então a identificá-la como esta ciência mais universal
do que a Mathesis? Isto constitui um problema porque podemos
entender a pergunta de duas maneiras. Se a generalidade e a
universalidade neste caso forem entendidas como abrangência, então
certamente a Metafísica é mais geral do que a Mathesis, já que, na
definição de Leibniz, esta é a ciência das criaturas e a metafísica é a
ciência das coisas, sem a restrição da criaturalidade, se entendermos
aí a palavra “coisas” como sinônimo de “objetos”. Mas se em vez da
abrangência, entendida como o leque de objetos, entendermos a
universalidade e a generalidade no nível dos fundamentos e dos
requisitos de certeza, então será legítimo indagar acerca da instância
fundamentadora da própria certeza da Metafísica. Para Descartes,
como se sabe, a Mathesis fundamenta o conhecimento metafísico
porque, em que pese a diferença entre Matemática e Metafísica, a
índole matematizante do conhecimento justifica a universalidade da
Mathesis. Aquilo que fundamenta a certeza da Matemática é também
aquilo que fundamenta a certeza da Metafísica. Ora, como já vimos,
este fundamento não é entendido por Descartes como exterior ao
universo da Matemática. Trata-se da ambigüidade a que já nos
referimos: a Mathesis não se confunde com a Matemática, mas também
não pode ser colocada num outro gênero cognitivo. A solução
cartesiana não pode ser aceita por Leibniz, tendo em vista a
consideração da diferença de gênero que ele parece apontar entre a
ciência da quantidade, geral no seu gênero, e a Metafísica, que seria o
conhecimento efetivamente universal. Por outro lado, o problema de
Leibniz reencontra de certa maneira o de Descartes quando assumimos
que a generalidade da metafísica não nos isenta da tarefa de pensar as
condições de sua evidência.

45

2_Franklin_41_58.PMD 45 5/10/2007, 11:39


CADERNOS ESPINOSANOS XV - 2006

Pode-se dizer também que a leitura da comparação feita por


Leibniz entre a Mathesis Universalis e a Metafísica sugere três níveis
ou escalas de generalidade ou universalidade, até porque o filósofo
não deixa de empregar o termo “geral” nas duas definições: scientiam
creaturarum generalis e scientia rerum generalis. A interpretação de
que para Leibniz haveria mais do que uma ciência geral a nosso ver
não se sustenta, pois não há razões que levem a ver em Leibniz o
abandono do pressuposto cartesiano da unidade da razão, que é em
última instância também o da unidade do conhecimento. Seria preciso,
portanto, compatibilizar uma visão unitária de universalidade do saber
com o que chamamos há pouco de níveis ou escalas de generalidade.
Num texto de 16862 , Leibniz formula a seguinte classificação das
verdades: verdades contingentes relativas a indivíduos singulares;
verdades contingentes a que se chega por indução, observando o que
ocorre ordinariamente; verdades universais subalternas, que concernem
à regularidade dos fenômenos da natureza (leis científicas); verdades
universalíssimas, cuja validade é incondicionada. Em todos esses tipos
de verdade, a universalidade está de alguma maneira presente. Naquelas
relativas à singularidade, embora não possamos atingir inteiramente a
necessidade de que se revestem, existe uma ligação entre o indivíduo
e o universo no qual está inserido, de modo que o inteiro cálculo de
todas as relações, o que na prática é impossível para o intelecto humano,
revelaria as conexões entre o indivíduo e a totalidade, de modo a
compatibilizar o conhecimento individual com as determinações
necessárias e universais da totalidade. As proposições representativas
da generalidade indutiva revelam aquilo que ordinariamente ocorre
no universo, isto é, a ordem se torna visível pela observação continuada.
Teríamos aqui algo como uma universalidade relativa às instâncias de

46

2_Franklin_41_58.PMD 46 5/10/2007, 11:39


FRANKLIN LEOPOLDO E SILVA

observação efetiva. A regularidade inerente às leis científicas, que não


depende do número de casos observados, nos fornece a universalidade
própria da ciência dos fenômenos, o domínio das leis científicas, que
Leibniz denomina de subalternas porque subordinadas a princípios
racionais mais elevados, como o princípio de contradição e o de razão
suficiente. O caráter subalterno destas verdades deve-se a que, embora
de validade universal no domínio do mundo criado, estão afetadas por
uma certa contingência e relatividade decorrentes da opção divina
por uma certa organização cósmica, de tal modo que não seria
contraditório conceber outras verdades (outras leis) ou mesmo a
suspensão das leis vigentes a critério dos desígnios divinos (milagre).
Finalmente, existem “certas proposições universalissimamente
verdadeiras, que jamais podem ser infringidas, nem mesmo por milagre,
não porque Deus não tenha o poder de infringi-las, mas porque Ele
mesmo, quando elegeu esta série de coisas decretou observá-las (como
propriedades específicas desta determinada série de coisas).”3 É
possível verificar, nesta tipologia de verdades, a diferença, mencionada
por Leibniz no primeiro texto que citamos, entre a universalidade do
mundo das criaturas e a universalidade absoluta, já que podemos
atribuir às leis subalternas o qualificativo de universais, embora outras
leis permaneçam de direito possíveis, como também a exceção à regra,
ainda que fruto do milagre. Pelo contrário, a verdade denominada
“universalíssima” corresponde a uma lei que não pode ser infringida
nem mesmo por Deus. A este tipo de verdade se vinculam as razões de
ser do próprio mundo das criaturas, numa ordem metafísica do
pensamento, pois “com estas proposições, uma vez estabelecidas, pode-
se dar razão de outras proposições contingentes, sejam universais,
sejam válidas ordinariamente, que se podem constatar neste universo.”4

47

2_Franklin_41_58.PMD 47 5/10/2007, 11:39


CADERNOS ESPINOSANOS XV - 2006

A “razão” de outras proposições contingentes encontra-se na


compreensão metafísica da estrutura do universo. Através destas razões
todas as verdades, mesmo as contingentes, são remetidas à necessidade
e à universalidade.
Esta última observação nos remete à questão da vigência, em
Leibniz, do pressuposto cartesiano da unidade da razão. Não só este
pressuposto é conservado, como também se pode dizer que a teoria
leibniziana da verdade o leva até as últimas conseqüências. “Verdadeira
é uma afirmação cujo predicado está incluído no sujeito, e assim, em
toda proposição afirmativa, necessária ou contingente, universal ou
singular, a noção do predicado de algum modo está contida na noção
do sujeito; de maneira que quem compreendesse perfeitamente ambas
as noções do modo como Deus as compreende veria assim claramente
que o predicado está incluído no sujeito.”5 O caráter analítico da
verdade implica a absoluta necessidade regendo qualquer relação entre
sujeito e predicado, de tal forma que a verdade da proposição repousa
em última análise na identidade fundamental entre os dois termos.
Como isso se aplica a toda proposição, “necessária ou contingente,
universal ou singular”, o conhecimento repousa num fundamento
universal que garante a relação analítica dos termos da proposição.
Existe, portanto uma instância de inteligibilidade fundamental que
justifica o projeto de racionalismo integral como característica do
pensamento de Leibniz: tal instância deve ser concebida como anterior
a todo e qualquer conteúdo proposicional, seja ele de caráter físico ou
metafísico. Só pode, neste sentido, ser uma instância formal, aquém
mesmo da distinção da evidência matemática, caso exemplar de
demonstrabilidade e de ligação analítica. Esta instância, para Leibniz,
é a Lógica.

48

2_Franklin_41_58.PMD 48 5/10/2007, 11:39


FRANKLIN LEOPOLDO E SILVA

Leibniz entende que esta concepção representa um avanço em


relação a Descartes porque com ela atingimos o nível formal da
possibilidade de evidência, superando assim as limitações de uma teoria
da verdade sujeita ao âmbito de uma ciência da quantidade. A verdade
está primeiramente na forma identitária da proposição; a partir desta
exigência temos de descobrir, por via de análise demonstrativa, a
ligação analítica, que existe em toda proposição, entre sujeito e
predicado. A identidade é a forma universal da proposição verdadeira.
Esta descoberta, entretanto, vem junto com uma incômoda
ressalva: “Porém nunca se pode chegar, por qualquer análise, às leis
universalíssimas nem às razões perfeitas das coisas singulares, pois
este conhecimento, necessariamente, é próprio somente de Deus.”6
Os dois extremos da tipologia das verdades são inacessíveis ao intelecto
humano: no caso do indivíduo singular, a sua determinação necessária
e a sua inserção na totalidade dependeriam da visão analítica de todos
os elementos e conexões existentes na realidade total; no caso das leis
universalíssimas, o completo conhecimento delas equivaleria à visão
da estrutura analítica da realidade, um tipo de conhecimento dotado
de um tal teor de racionalidade que lógica e ontologia se identificariam
perfeitamente. Naturalmente isto só pode constituir um ideal para o
conhecimento humano. É interessante refletir acerca destes dois
horizontes no sentido de compreender a relação profunda que existe
entre o universal e o particular. A impossibilidade de conhecer
perfeitamente o indivíduo deriva da impossibilidade de o intelecto
humano determiná-lo inteiramente na sua singularidade. A
compreensão da singularidade consiste na visão de todas as razões
das contingências que constituem a particularidade. Ora, a
compreensão de todas as razões suficientes que determinam o particular

49

2_Franklin_41_58.PMD 49 5/10/2007, 11:39


CADERNOS ESPINOSANOS XV - 2006

deve, no limite, vinculá-lo, por mediação de várias regras e leis


subalternas, às leis universalíssimas que em última instância explicam
o lugar de cada indivíduo na totalidade, e nos fariam ver também que
ele a expressa necessariamente. A plena racionalidade levaria a
compreender a individualidade, na sua singularidade própria, como
expressão sempre adequada do universal. Por isto podemos dizer que
o motivo pelo qual não podemos conhecer nem o indivíduo nem o
universal pleno é, no limite, o mesmo. As relações estabelecidas entre
contingência e necessidade no §13 do Discurso de Metafísica não
deixam dúvida quanto à possibilidade, existente de direito, ao menos,
de compreender o contingente como necessário ex hypothesi como
um grau menor de necessidade se comparado à necessidade absoluta,
aquela que deriva diretamente do princípio de contradição. Embora a
primeira dependa de uma escolha de Deus, existencialmente explicitada
por meio de um decreto, o que permite que pensemos escolhas diversas
como possíveis e não contraditórias com as efetivamente decretadas,
ainda assim a regra de perfeição que nos impede de conceber um mundo
mais perfeito nos leva a atribuir necessidade aos decretos, e por esta
via às realidades livremente decretadas por Deus. É preciso lembrar
que o Deus leibniziano se caracteriza pela absoluta consistência entre
todos os seus predicados, o que não permite que estabeleçamos nele o
primado da vontade, como seria o caso do Deus cartesiano, nem
mesmo, creio que se possa dizer, qualquer diferença, em termos de
efetividade de ação, entre os predicados lógicos e os predicados ligados
à perfeição moral. Por isto, à integridade da estrutura lógica do mundo
criado corresponde a sua máxima perfeição, embora esta derive da
liberdade divina e não do Princípio de contradição unicamente. Como
em Deus o saber e o poder não podem ser concebidos por meio de

50

2_Franklin_41_58.PMD 50 5/10/2007, 11:39


FRANKLIN LEOPOLDO E SILVA

qualquer relação de subordinação, a universalidade racional recobre


tanto o aspecto lógico quanto o aspecto moral da ação criadora. Daí
a possibilidade de reconduzir a contingência à necessidade e a
particularidade individual à universalidade das leis fundamentais.
Permanece, no entanto, a impossibilidade de fato de que isto
ocorra no plano do intelecto humano. É preciso desde logo afastar
uma possível objeção ou falso problema. Esta impossibilidade não
configura uma oposição entre o intelecto humano e o intelecto divino.
Para Leibniz, a relação entre o humano e o divino no plano da
racionalidade é de participação. Mesmo não aceitando o pressuposto
ontológico da Teoria da Reminiscência em Platão (pré-existência da
alma) Leibniz adota os resultados desta teoria, que nele passa a ter
uma base ontológica na concepção do inatismo radical conjugada com
a idéia de virtualidade. A partir disto temos condições de pensar o
intelecto humano como participante do divino, de forma tal que a
homogeneidade fundamental não impeça a diferença radical, concebida
na fronteira entre qualidade e quantidade, posto que se trata de uma
relação entre finito e infinito. Assim, não devemos entender que Deus
tem simplesmente um conhecimento mais completo do que o nosso,
mas que o seu conhecimento é de outra qualidade – qualidade esta
que deriva da possibilidade da visão simultânea de todas as relações e
assim também da simultaneidade das razões e dos seus efeitos, sejam
estes necessários ou contingentes. Desta forma Leibniz, no
cumprimento de seu projeto de racionalidade integral, concebe a
unidade da Razão de modo a incluir a razão humana no mesmo âmbito
formal da razão infinita de Deus.
No entanto, como já dissemos, esta homogeneidade
fundamental não impede as limitações do intelecto humano, que Leibniz

51

2_Franklin_41_58.PMD 51 5/10/2007, 11:39


CADERNOS ESPINOSANOS XV - 2006

concebe positivamente como participação. E então o problema que se


coloca é o de entender como o conhecimento humano opera na sua
condição de participante limitado da racionalidade infinita; o que
significa também relacionar as limitações de fato com a completude
de direito. Para tanto um texto de 1684, “Meditações sobre o
conhecimento, a verdade e as idéias” nos instrui significativamente.
Numa hierarquia de graus de conhecimento, que tem entre
outros propósitos o de corrigir a perspectiva cartesiana sobre o mesmo
assunto7 , Leibniz distingue: o conhecimento é claro quando possuo
os requisitos para reconhecer a coisa representada; é confuso quando
não posso enumerar as características distintivas da coisa e assim não
posso chegar analiticamente à sua noção; o conhecimento é distinto
quando tenho condições de analisar um composto e compreender
separadamente os seus elementos de modo a chegar à noção primitiva
que o definiria realmente. Quando a análise não atinge completamente
este objetivo tenho apenas definição nominal. Neste caso o
conhecimento é dito inadequado. “Quando tudo aquilo de que se
compõe uma noção distinta é também conhecido distintamente ou
quando a análise chega até os últimos elementos, o conhecimento é
adequado, e não sei se os homens podem oferecer um exemplo perfeito
deste, embora a noção de número se aproxime bastante.”8
Se se pode legitimamente duvidar de que o conhecimento
adequado tenha sido alguma vez atingido pelo intelecto humano, isto
por outro lado não inviabiliza o conhecimento porque temos como
superar operatoriamente esta dificuldade. Ela deriva, como se vê, da
impossibilidade de análise completa, isto é, da consideração distinta
de todos os elementos envolvidos no conhecimento. Por que isto não
impossibilita o conhecimento? “Em geral, e especialmente numa análise

52

2_Franklin_41_58.PMD 52 5/10/2007, 11:39


FRANKLIN LEOPOLDO E SILVA

de maior extensão, não vemos, com efeito, a natureza total da coisa


de um modo simultâneo, mas empregamos signos no lugar das coisas
cuja explicação, ao meditar, omitimos por razão de economia, sabendo
ou crendo que a possuímos. (...) Chamo a este tipo de pensamento
cego ou também simbólico (...)”9 . Os exemplos com que Leibniz ilustra
esta operação são apropriados para uma reflexão acerca dos problemas
que ela apresenta. Quando penso no quiliógono como um polígono
de mil lados iguais não penso distintamente as noções de lado, milhar
e igualdade, mas elas estão contidas na idéia de quiliógono, pois fazem
parte de sua definição. Assim, posso falar de quiliógono empregando
as palavras lado, mil e iguais porque a estas palavras correspondem
idéias, não pensadas atualmente mas que tenho certeza de possuir,
tanto que poderia recorrer a elas se tivesse de analisar a noção de
quiliógono. Como estou tratando no caso com idéias matemáticas, a
lembrança da evidência é suficiente para a consistência daquilo em
que esta evidência entra como elemento de composição. Mas costumo
operar da mesma maneira quando falo do ouro. Ora, pode ocorrer
que não haja conhecimento distinto de todas as “notas distintivas” do
ouro, assim como peso, cor, ácido nítrico, as quais permaneceriam
confusas, ainda que se saiba que são componentes do ouro.
Há, portanto duas maneiras de se entender o conhecimento
simbólico. No exemplo matemático, as palavras empregadas
correspondem realmente a idéias distintas que a mente não focaliza
atualmente, mas nas quais poderia pensar se quisesse, pois são idéias
claras. No caso do ouro, as idéias dos elementos que o compõem
podem também ser pensadas, mas confusamente: não disponho
propriamente de um conhecimento claro de todos os componentes do
ouro, embora possa nomeá-los de alguma maneira. Isto quer dizer

53

2_Franklin_41_58.PMD 53 5/10/2007, 11:39


CADERNOS ESPINOSANOS XV - 2006

que se pode pensar o composto de duas formas: a partir da clareza


dos elementos implícitos que não são pensados simultaneamente; e a
partir de elementos pensados confusamente e, portanto não explicados
evidentemente em etapa anterior do conhecimento. Ambas as maneiras
de se falar do composto são, por assim dizer, tecnicamente inadequadas;
mas a segunda envolve um risco, mencionado na própria definição de
conhecimento simbólico: omitimos algumas explicações “sabendo ou
crendo” que possuímos. “E sucede sem dúvida que freqüentemente
cremos infundadamente possuir no espírito as idéias das coisas, quando
supomos infundadamente que já explicamos alguns termos
utilizados.”10 É desta forma que se torna perfeitamente possível falar
a respeito do que não se conhece. Podemos nomear aquilo de que não
possuímos idéia clara; na verdade, para Leibniz podemos até falar
daquilo de que não possuímos idéia alguma, porque nem sempre temos
na mente o significado da palavra que empregamos.
No entanto, a análise, se levada suficientemente longe, nos
revelaria a inconsistência do pensamento por meio da descoberta da
contradição no conjunto de elementos que fazem parte do composto.
Não vemos esta contradição se não analisamos completamente o
composto. Portanto, a verdade do conhecimento simbólico depende
da análise, e a lembrança da evidência que sustenta o conhecimento
simbólico está fundamentada nesta análise que deve ter sido feita
alguma vez. Daí o risco de supormos uma análise que realmente não
foi efetuada, já que a linguagem opera muitas vezes sem o respaldo de
significados analiticamente estabelecidos. A flutuação semântica,
característica inevitável da linguagem natural, constitui uma dificuldade
para o alcance efetivo da teoria analítica da verdade. É por isso que o
conhecimento simbólico não oferece, no plano da matemática, os

54

2_Franklin_41_58.PMD 54 5/10/2007, 11:39


FRANKLIN LEOPOLDO E SILVA

mesmos problemas que aparecem no plano das verdades de fato. Mas


isto nos mostra também a relevância do símbolo para o conhecimento:
é precisamente porque podemos estabelecer significados unívocos para
os símbolos matemáticos que esta ciência é verdadeiramente
demonstrativa. A certeza da matemática provém de uma eficiência
simbólica — se assim se pode dizer — que as palavras não possuem.
O caráter analítico das significações matemáticas está sempre presente
em todas as operações simbólicas. Eis a razão pela qual nem sequer se
coloca o problema da universalidade nas demonstrações desta ciência.
O princípio de contradição é fundamento direto.
A relevância do conhecimento simbólico não modifica a sua
condição epistemológica, inferior à dos conhecimentos claros e
distintos. Por isto dissemos antes que se trata de superar
operatoriamente a dificuldade de conhecer claramente os compostos.
O ideal seria a visão clara, distinta e simultânea de todos os elementos
do composto, o que seria o conhecimento intuitivo, termo que tem
em Leibniz uma acepção diferente da cartesiana, já que reúne as
virtudes do conhecimento analítico e do conhecimento direto, que
para Leibniz só é possível como identidade formal. Como a forma
intuitiva está fora do alcance do intelecto humano no caso dos
compostos — a menos que cada composto fosse sempre inteiramente
analisado, o que não é factível — Leibniz procura resgatar a
legitimidade do conhecimento simbólico, mesmo porque ele está
presente necessariamente com muita freqüência em nossa atividade
intelectual. Por isto mesmo é que cumpre estabelecer com rigor os
requisitos que deveriam tornar o conhecimento simbólico
absolutamente seguro, eliminando assim o risco, mencionado
anteriormente, da substituição da explicação analítica dos termos pela

55

2_Franklin_41_58.PMD 55 5/10/2007, 11:39


CADERNOS ESPINOSANOS XV - 2006

crença em tê-la feito. Somente assim a universalidade do conhecimento


decorreria efetivamente do caráter analítico da verdade.
Neste sentido o projeto de uma Língua ou Característica
Universal corresponde em Leibniz a uma necessidade epistemológica
incontornável. O que no entanto é verdadeiramente notável é o estatuto
metafísico-teológico atribuído às possibilidades que seriam oferecidas
por uma língua perfeitamente adaptada ao conhecimento simbólico.
Também aqui — e talvez sobretudo aqui — se percebe o esforço
leibniziano para ultrapassar o significado cartesiano de Mathesis
Universalis. Pois o filósofo não hesita em vincular a universalidade
das possibilidades simbólicas desta língua ao próprio Deus: “É antigo
o dito de que Deus fez tudo com peso, medida e número”11 . A referência
à procura da língua adâmica e à língua da natureza — investigação da
qual, como se sabe, não estavam ausentes motivações místico-religiosas
— também nos fornece idéia da dimensão em que Leibniz pensa o
problema. Trata-se de encontrar o meio de tratar em bases unívocas
todos os conceitos, liberando-os da carga de flutuação semântica
inerente à linguagem habitual. Aparentemente o modelo é matemático
— e Leibniz insiste inclusive na vantagem de utilização do número.
Mas a atribuição ao número de uma figura “quase metafísica” mostra,
por outro lado, que o número é exemplo privilegiado por realizar
mais completamente o propósito unificador e universalizador de uma
língua fundamental. O caráter heurístico da notação aritmética e
algébrica devem ser considerados, neste sentido, sinais de que “Deus
houvera querido advertir-nos especialmente de que em nosso
entendimento se escondia um segredo muito mais importante do qual
estas ciências seriam somente sombras.”12 A organização de um léxico
e de regras de combinatória entre os símbolos ofereceria possibilidades

56

2_Franklin_41_58.PMD 56 5/10/2007, 11:39


FRANKLIN LEOPOLDO E SILVA

de comunicação do pensamento, de juízos e de invenção dotados de


total demonstrabilidade. Desta forma a expressão permitiria uma
ponderação (o “peso” da sabedoria bíblica) que poderia ser efetuada
simultaneamente aos enunciados, de forma que o acordo acerca de
possíveis controvérsias se faria por meio do cálculo, isto é, por meio
de uma operação que utilizaria símbolos unívocos e regras
explicitamente estabelecidas. Trata-se, portanto do instrumento
privilegiado, talvez o único perfeitamente adequado, da razão
calculadora.
Vê-se porque um tal instrumento permitiria superar os riscos
do conhecimento simbólico. Não haveria qualquer elemento lexical
que não correspondesse à transparência analítica requisitada pelo
conhecimento simbólico. Neste caso, a universalidade da certeza,
derivada da evidência de todos os termos utilizados na cadeia
demonstrativa, estaria assegurada de antemão, pela própria índole dos
termos empregados. Nenhuma obscuridade subsistiria numa tal notação
de idéias. E a expressão da realidade ficaria garantida pelo pressuposto
leibniziano da identidade entre lógica e ontologia no plano das relações.
Como o conhecimento é cálculo de relações, todos os campos do
saber poderiam contar com a mesma evidência matemática, não por
terem sido “matematizados”, mas por corresponderem às formas
fundamentais do cálculo demonstrativo. Em todos os setores do saber
a universalidade lógica estaria então imediatamente presente.
Trata-se de um instrumento, mas pode-se ver o quanto ele é
necessário para a realização do ideal leibniziano de um racionalismo
integral. Não é por outra razão que um tal instrumento está revestido
das características metafísicas e teológicas com que ele se apresenta
na exposição leibniziana. Apesar de todos os problemas que a

57

2_Franklin_41_58.PMD 57 5/10/2007, 11:39


CADERNOS ESPINOSANOS XV - 2006

Característica Universal apresenta — apontados por vários


comentadores — o projeto se inscreve perfeitamente na concepção
rigorosamente formalista da universalidade da verdade. A
universalidade deve ser atingida, como diz Leibniz, “para além das
palavras”.

Notas

1
Leibniz, G., Mathesis Universalis, in Gerhardt, Matematische
Schriften, VII, p.53, apud Cardoso, A., Leibniz Segundo a
expressão, Lisboa: Colibri, 1992, p.32.
2
Leibniz, G., Verdades necessárias y contingentes, in Escritos
Filosóficos, org. Ezequiel de Olaso, Buenos Aires: Charcas, 1982,
p.338ss (o título foi dado pelo organizador do volume).
3
Idem, ibidem, p.331.
4
Idem, ibidem, p.331.
5
Idem, ibidem, p.328.
6
Idem, ibidem, p.332.
7
Leibniz, G., Meditaciones sobre el conocimiento, la verdad y las
ideas, in Escritos Filosoficos, ob. cit., pp.271 ss.
8
Idem, ibidem, p.272-273.
9
Idem, ibidem, p.273.
10
Idem, ibidem, p.273.
11
Leibniz, G., Historia y Elogio de la Lengua ou Característica
Universal, in Escritos Filosóficos, ob. cit., p.165.
12
Idem, ibidem, p.166.

58

2_Franklin_41_58.PMD 58 5/10/2007, 11:39


LUÍS CÉSAR OLIVA

Bondade Divina e Contingência em Leibniz


LUÍS CÉSAR OLIVA*

Resumo: Em sua correspondência com Arnauld, Leibniz mostra como


o recurso à vontade divina é fundamental para garantir o espaço da
contingência no interior de uma metafísica que não permite a
indeterminação. No entanto, ainda resta perguntar se a bondade divina,
uma das perfeições incluídas na noção de Deus, não torna necessário
aquilo que Leibniz chamara de contingente. Por isso faremos um exame
da concepção leibniziana de vontade divina, sobretudo a distinção entre
vontade antecedente e vontade conseqüente, visando determinar até
que ponto a bondade divina (entendida como vontade perfeitíssima)
implica ou não um necessitarismo universal.
Palavras-chave: Leibniz, contingência, bondade divina, vontade
antecedente, vontade conseqüente.

Abstract: In his correspondence with Arnauld, Leibniz shows us how


the appeal to the divine will is fundamental to guarantee a space to
contingency in a metaphysics that does not allow indetermination.
Nevertheless, we must still ask if divine goodness, one of the perfec-
tions included in the notion of God, does not render necessary what
Leibniz had called contingent. This is why we will examine Leibniz’s
notion of divine will, especially the distinction between antecedent
and consequent will, intending to determine in which measure divine
goodness (understood as the most perfect will) implies or not a uni-
versal necessitarism.
Key-words: Leibniz, contingency, divine goodness, antecedent will,
consequent will.

*
Professor do Departamento de Filosofia da FFLCH-USP.

59

3_LuisCesar_59_86.PMD 59 5/10/2007, 11:39


CADERNOS ESPINOSANOS XV - 2006

A alternativa de Adams

Com a Correspondência com Arnauld, Leibniz conquistou


definitivamente um lugar para a vontade divina no processo criador
(com o apelo aos decretos livres de Deus1 ) e na fundamentação de
um estoque de mundos possíveis não criados que garantam a cidadania
ontológica à contingência. Mas será que a colocação da vontade divina
no jogo basta para afastar a ameaça necessitarista? A Correspondência
parecia sugerir que sim, entretanto resta ainda uma questão: a bondade
divina não tornaria necessário o decreto de fazer sempre o melhor,
que funda a contingência?
Comecemos pela primeira ordem de questionamentos. Fundar
o contingente na escolha divina do melhor coloca o intérprete de
Leibniz numa encruzilhada que foi bem caracterizada por Adams: De
acordo com Leibniz, este mundo, em vez de qualquer outro mundo
possível, é o real porque Deus escolhe realizar o melhor, seja o que
for, e este é o melhor dentre todos os mundos possíveis. Portanto, se
é contingente que este mundo é o real, ou bem deve ser contingente
que Deus escolha o melhor, seja o que for, ou bem deve ser contingente
que este é o melhor. Qual é o contingente?2 Note-se que a preocupação
de Adams não é apenas sobre a contingência do mundo em si mesmo,
a qual poderia ser respondida pelo fato de que há outros mundos
possíveis não auto-contraditórios. O questionamento é sobre se é
contingente o fato de este mundo ter sido criado. Logo o que está em
jogo é a contingência não do próprio mundo, mas do ato criador
enquanto tal, o que traz evidentes conseqüências para a liberdade de
Deus. Em outras palavras, Deus tem, de fato, alternativas à criação
deste mundo? É para garantir isto que Adams impõe ao menos uma de
duas possibilidades: ou é contingente que Deus escolha o melhor, seja
lá o que for, ou é contingente que este mundo seja o melhor.

60

3_LuisCesar_59_86.PMD 60 5/10/2007, 11:39


LUÍS CÉSAR OLIVA

A contingência do mundo melhor

Apesar de as duas possibilidades não serem excludentes e


Leibniz oscilar bastante em opúsculos diversos, Adams inclina-se para
a segunda e toma por base textual sobretudo o seguinte trecho: Ora,
não reconheço como necessária nenhuma proposição que não pode
ser demonstrada por uma redução àquilo cujo contrário implica
contradição. É o mesmo argumento: “Deus quer necessariamente a
obra mais digna de sua sabedoria”. Digo que ele quer, mas não
necessariamente, já que , embora esta obra seja a mais digna, isto
não é uma verdade necessária. É verdade que esta proposição “Deus
quer a obra mais digna dele” é necessária. Mas não é verdade que
ele a queira necessariamente. Pois esta proposição “esta obra é a
mais digna” não é uma verdade necessária, é uma verdade
indemonstrável, contingente, de fato.3
Se não é demonstrável que este mundo é o melhor, então é
contingente que ele seja o melhor, de modo que, ainda que fosse
necessário que Deus quisesse o melhor (hipótese que Leibniz concebe
no mesmo texto), Deus não o quereria necessariamente. Em outras
palavras, poderíamos atribuir a Leibniz a seguinte formulação: é
necessário que Deus queira contingentemente o melhor. Esta
ambigüidade que dá verdadeiros nós na cabeça do leitor se deve à
maneira como Leibniz aplica o adjetivo necessário . Ele o aplica à
totalidade da proposição (“Deus quer o melhor”), mas não ao conteúdo
do predicado (“o melhor”). Como esta armadilha é possível? Graças à
indemonstrabilidade de que este mundo é o melhor. Tal operação
requereria uma análise infinita, não só dos elementos deste mundo,
mas de todos os infinitos mundos possíveis com os quais o melhor é
comparado. E isso nossa finitude não permite realizar.

61

3_LuisCesar_59_86.PMD 61 5/10/2007, 11:39


CADERNOS ESPINOSANOS XV - 2006

Esta explicação da distinção entre verdades necessárias e


contingentes pela idéia de análise infinita está presente em vários textos
leibnizianos de diversos períodos. Tomemos um deles como exemplo:
Nisto também aparece o misterioso critério da distinção entre
verdades necessárias e contingentes, que não se compreende
facilmente sem algum conhecimento de matemática. Nas proposições
necessárias, chega-se a uma equação idêntica quando a análise é
prosseguida até um certo ponto; e isto é demonstrar uma verdade
segundo o rigor geométrico; mas nas contingentes o progresso da
análise vai ao infinito, de razão em razão, de modo que não se obtém
jamais uma demonstração acabada.4 Ora, nenhuma proposição se
enquadra melhor neste critério do que aquela que afirma que este
mundo é o melhor.
A objeção mais evidente é que esta distinção se baseia não nas
coisas mesmas, mas na nossa capacidade intelectual finita. A resposta,
porém, é imediata: sem a consideração do infinito, sem a oposição
entre a análise finita dos necessários, que se termina nas noções
primitivas, e a análise dos contingentes, que vai ao infinito, não
haveria como escapar à alternativa ou necessidade absoluta, ou o
acidental puro e simples. Donde a importância dos textos em que
Leibniz insiste em que a oposição entre os dois modelos de análise
não é relativa à nossa finitude, e que nem mesmo Deus poderia
demonstrar uma verdade contingente, corrigindo aqueles outros que
poderiam sugerir uma inexaustibilidade de fato, devida ao nosso
estatuto de mens creata.5 Nem Deus poderia percorrer uma série
infinita como a da análise de uma proposição contingente. Se o fizesse,
estaria realizando uma ação contraditória porque não pode haver o
passo final de uma análise infinita, assim como não pode haver o último
dos números. Está então garantido o caráter contingente da afirmação
de que este mundo é o melhor?

62

3_LuisCesar_59_86.PMD 62 5/10/2007, 11:39


LUÍS CÉSAR OLIVA

Talvez não. Se prosseguirmos no texto de Leibniz acima citado,


encontraremos o seguinte: nas contingentes o progresso da análise
vai ao infinito, de razão em razão, de modo que não se obtém jamais
uma demonstração acabada; todavia a razão da verdade subsiste
sempre, embora ela seja perfeitamente compreendida apenas por
Deus, único que penetra a série infinita em um só ato do espírito.6
Sem percebê-lo, Leibniz oferece uma objeção poderosa a sua própria
argumentação. É bem verdade que a demonstração do contingente é
igualmente interminável para nós ou para Deus, mas isto se dá por
causa do caráter sucessivo, temporalmente desdobrado, do processo
de análise. Mas Deus não conhece desta maneira: Apenas Deus vê,
não, bem entendido, o fim da resolução, que não existe, mas pelo
menos a ligação dos termos, quer dizer, o envolvimento do predicado
no sujeito, pois ele vê tudo o que está na série.7 O caráter intuitivo do
conhecimento divino homogeneíza os dois campos que Leibniz buscava
tornar heterogêneos com o apoio da análise infinita. Os limites são do
procedimento, seja ele executado por um ser finito ou infinito, mas só
nós estamos condenados a tal procedimento. Deus percebe que este
mundo é o melhor tão imediatamente quanto nós percebemos A=A.
Sendo assim, este critério valioso, que nos permite mapear o campo
da contingência no mundo criado, bem como no interior dos outros
mundos possíveis, é inócuo para Deus no avaliar a possibilidade da
criação. Ou, como diz Ribeiro de Moura: a contingência,
mundanamente aclimatada pelo recurso à análise infinita, na verdade
carece de sustentação metafísica.8
E o que poderia dar tal sustentação? Algo que garantisse a
Deus alternativas reais. No caso em questão, a possibilidade
metafisicamente garantida de que outros mundos fossem o melhor.
Mas quais são as alternativas para algo que se define exatamente por

63

3_LuisCesar_59_86.PMD 63 5/10/2007, 11:39


CADERNOS ESPINOSANOS XV - 2006

excluí-las? Sendo necessariamente um só, o melhor não oferece as


alternativas que nos permitiriam falar de “melhores possíveis”. No
limite, poderíamos dizer que perguntar se este mundo poderia não ser
o melhor é perguntar se este mundo poderia não ser este mundo, ou
se o melhor poderia não ser o melhor. Não se trata, é bom repetir, de
questionar a contingência do mundo (isto, em tese, já resultaria da
afirmação de que há outros mundos possíveis não-melhores), mas de
questionar a contingência da afirmação de que este mundo é o melhor,
o que não é possível. Sócrates poderia não ter existido. Foi portanto
um ser contingente. Mas Sócrates não poderia não ter sido Sócrates,
já que isto feriria, como no caso do melhor, o princípio de não
contradição.9 Por conseguinte, esta saída parcial de Leibniz privilegiada
por Adams não se apresenta como sólida.

A contingência da escolha

Resta-nos então o outro lado da alternativa proposta por


Adams. Se não é contingente que este mundo seja o melhor, deve
então ser contingente que Deus escolha o melhor, seja ele qual for.
Não faltam referências textuais para corroborar esta hipótese. Veja-
se, por ex.: Assim, que Deus se ame é algo necessário, como cabe
demonstrar a partir de sua própria definição. Contudo não cabe
demonstrar que Deus faça o mais perfeito, já que o contrário não
implica contradição.10 O próprio Adams reconhece que a Teodicéia
favorece esta solução, contudo o comentador prefere a outra
interpretação, baseando-se em outros escritos de Leibniz
contemporâneos à preparação da Teodicéia. De qualquer modo, não
se podem ignorar textos como: Há portanto em Deus uma liberdade,

64

3_LuisCesar_59_86.PMD 64 5/10/2007, 11:39


LUÍS CÉSAR OLIVA

isenta não somente de coação, mas também de necessidade. Refiro-


me à necessidade metafísica; pois é uma necessidade moral que o
mais sábio seja obrigado a escolher o melhor.11 Ou então como: Pode-
se dizer, em certo sentido, que é necessário que os bem aventurados
não pequem; que os demônios e os condenados pequem; que o próprio
Deus escolha o melhor; que o homem siga o partido que mais o afeta.
Mas esta necessidade não é oposta à contingência; não é ela que se
chama lógica, geométrica ou metafísica, cujo oposto implica
contradição.12 Também o trecho do parágrafo 13 do Discurso de
Metafísica dizendo que fazer sempre o mais perfeito foi o primeiro
decreto livre de Deus parece ir na mesma direção. Se fazer o melhor
fosse constitutivo da essência divina, semelhante decreto seria
totalmente redundante.
A pedra no sapato desta interpretação reside no fato de que
Deus é o ser perfeitíssimo (logo necessário) e que uma de suas
perfeições é a suprema bondade. Como dizer que Deus é
necessariamente bom e que ao mesmo tempo fazer o melhor não
decorre necessariamente disso? Em outras palavras, para que a solução
funcione é preciso dizer que a bondade de Deus é contingente, o que
tem conseqüências teológicas muito complicadas, além de conflitar
com o argumento ontológico, ao qual Leibniz nunca chegou a renunciar
claramente.
Embora Leibniz não se pronuncie explicitamente sobre o caráter
contingente da bondade divina, nem possa fazê-lo, há indícios fortes
de que detectava isto como um problema. Na abertura do Discurso de
Metafísica, quando discute a noção de Deus como um ser
absolutamente perfeito, é curioso que, das perfeições divinas, o autor
só apresente duas, a onipotência e a onisciência, que correspondem
analogicamente a nossa força de existir e a nossa percepção limitadas,

65

3_LuisCesar_59_86.PMD 65 5/10/2007, 11:39


CADERNOS ESPINOSANOS XV - 2006

mas nada fala da bondade, correspondente a nossa vontade limitada.


Esta terceira perfeição divina é explicitamente apresentada em textos
posteriores, como a Monadologia. Vejamos: 48: há em Deus a
Potência, origem de tudo; depois o Conhecimento, contendo a
particularidade das idéias; por fim a Vontade, que provoca as
mudanças ou produções segundo o princípio do melhor. É isto que
corresponde ao que constitui, nas Mônadas criadas, o sujeito ou a
base, a faculdade perceptiva e a faculdade apetitiva. Em Deus, no
entanto, estes atributos são absolutamente infinitos ou perfeitos, e,
nas mônadas criadas ou nas enteléquias, não passam de imitações
proporcionais à perfeição nelas contida.13 Ou na Teodicéia: Muitos
creram que havia aí uma relação secreta à santíssima Trindade; que
a potência se liga ao Pai, ou seja, à fonte da divindade; a sabedoria
ao Verbo eterno, que é chamado logos pelo mais sublime dos
evangelistas; e a vontade ou amor ao Espírito santo. Quase todas as
expressões ou comparações tomadas da natureza da substância
inteligente para aí tendem.14 Tanto do ponto de vista da revelação
cristã, que aproximaria os atributos divinos da Santíssima Trindade,
quanto da analogia com as faculdades humanas, a bondade se faria
necessária entre as perfeições divinas. É difícil explicar tal ausência,
no início do Discurso, por um deslize. Leibniz tem suas razões para
trazer a bondade divina apenas nos parágrafos seguintes. Em outras
palavras, se Leibniz esboça uma prova a priori da existência de Deus
a partir das perfeições divinas, não quer contudo que a bondade divina
seja demonstrada a priori. Ele deduz diretamente da onipotência e
onisciência divinas o fato de que Deus age da maneira mais perfeita e
praticamente joga para a criação divina a responsabilidade de fundar a
prova (a posteriori) de que Deus é sumamente bom.

66

3_LuisCesar_59_86.PMD 66 5/10/2007, 11:39


LUÍS CÉSAR OLIVA

Assim, afasto-me muito da opinião dos que sustentam que


não há quaisquer regras de bondade e de perfeição na natureza das
coisas ou nas idéias que Deus tem delas, e que as obras divinas são
boas apenas pela razão formal que Deus as fez.15 As obras divinas
devem ser intrinsecamente boas e não boas apenas porque foram feitas
por Deus. A bondade própria do mundo se deixa provar pela própria
revelação bíblica, em que se diz que Deus contemplou o mundo criado
e viu que era bom, o que seria desnecessário se as coisas fossem boas
só porque Deus as fez. Além do mais, diz Leibniz, Isto é tanto mais
verdadeiro quanto é pela consideração das obras que se pode
descobrir o operário. Portanto, é preciso que estas obras tragam em
si o caráter de Deus. Confesso que a opinião contrária me parece
extremamente perigosa e bastante semelhante à dos últimos
inovadores, cuja opinião é a beleza do universo e a bondade atribuída
por nós às obras de Deus não passarem de quimeras dos homens que
concebem Deus à sua maneira.16 Se tivéssemos tido no primeiro
parágrafo a versão completa da prova ontológica, como no opúsculo
O Ser perfeitíssimo existe17 , o caminho natural seria passar da suprema
bondade, como perfeição divina, à bondade do mundo que resulta de
uma ação perfeita. No entanto, não é isso que ocorre. E o que chama
Leibniz de opinião perigosa dos inovadores? Não apenas que o mundo
não é bom em si, mas que é pela consideração do operário que se
podem descobrir as obras. Por esta via, teríamos que a perfeição do
operário só permite a existência de uma obra perfeita, sem outra
possibilidade, o que tornaria o mundo uma criação necessária.
Havendo mostrado no artigo 2 que as regras de bondade e
perfeição não são fruto de uma vontade arbitrária, Leibniz deve mostrar
no artigo 3 do Discurso que Deus agiu, segundo estas regras, da melhor

67

3_LuisCesar_59_86.PMD 67 5/10/2007, 11:39


CADERNOS ESPINOSANOS XV - 2006

maneira. Como vimos, não fará isso colocando a contradição de uma


ação imperfeita com um Deus sumamente bom por sua própria essência.
Também não pode simplesmente deduzir sua tese a partir da onipotência
e da onisciência divinas como sugerira no artigo 1. Por isso lançará
mão de outra noção: a glória de deus. Esta pode ser compreendida em
dois sentidos (parágrafo 109 da Teodicéia): ou é a satisfação de Deus
com o conhecimento de suas próprias perfeições, e então Deus a possui
sempre, ou é o conhecimento dessas perfeições por outros seres
inteligentes, e então está vinculada à criação. Para haver glória, neste
segundo sentido, Deus deve ser necessariamente louvável por tudo
que faz. Quando Leibniz disse no fim do artigo 1 quanto mais
estivermos esclarecidos e informados sobre as obras de Deus, tanto
mais dispostos estaremos a achá-las excelentes e inteiramente
satisfatórias em tudo o que possamos desejar 18 , o autor referia-se à
glorificação de deus. Ora, por que louvar Deus se ele não fez o melhor
possível? Afinal, diz Leibniz, assim como um mal menor tem caráter
de bem, um bem menor tem caráter de mal. Esta imperfeição atingirá
qualquer ação de Deus, por melhor que seja, se esta não chegar à ação
ótima. Só há um ótimo, ao passo que as imperfeições desdobram-se
infinitamente. Não há nenhum grau de imperfeição que não tenha
infinitos graus de imperfeição acima ou abaixo; o que colocaria Deus
numa situação sempre “inglória” se não escolhesse o melhor possível.
Só o melhor merece a glória, do contrário ela não teria razão de ser e
o princípio de razão suficiente seria novamente infringido, bem como
as Escrituras.
No Discurso, ao que parece, é por visar a glória que Deus
escolhe o melhor. No limite, poderíamos dizer que Deus não é
considerado bom porque isto está necessariamente inscrito na sua

68

3_LuisCesar_59_86.PMD 68 5/10/2007, 11:39


LUÍS CÉSAR OLIVA

essência, e sim porque obedece seu intelecto, de modo a ser digno de


glória. Mas tal desvio é inútil se não for mostrado que esta obediência
é contingente. Daí a importância, mesmo na Teodicéia, em que a
estratégia é diferente, de deixar claro que o desejo de glória não é
necessário. Não é verdade que Deus ame sua glória necessariamente,
se por isto se entende que ele é levado necessariamente a
proporcionar-se sua glória por meio das criaturas. Pois se assim fosse,
ele se proporcionaria esta glória sempre e em toda parte. O decreto
de criar é livre.19
O percurso do Discurso parece sorrateiramente tornar
contingente a bondade divina. Mas outros textos põem sérias
dificuldades para este caminho: 67 – Ademais, se Deus não tivesse
escolhido a melhor série do universo (na qual está incluído o pecado),
teria admitido algo pior que todo o pecado das criaturas, pois teria
cerceado suas próprias perfeições e, como conseqüência, também as
alheias; com efeito, a perfeição divina não deve deixar de escolher o
mais perfeito, já que o menos bom tem algo de mau. E suprimir-se-ia
Deus, suprimir-se-iam todas as coisas, se Deus fosse afetado de
impotência, ou seu entendimento se equivocasse ou sua vontade
falhasse.20 Bertrand Russell também destacou o problema: As boas
ações de Deus são, por conseguinte, contingentes, e verdadeiras
somente dentro do mundo real. Elas são a origem da qual deriva
toda explicação dos fatos contingentes por intermédio da razão
suficiente. Elas próprias, contudo, têm sua razão suficiente na
bondade de Deus, que se deve supor metafisicamente necessária.
Leibniz não consegue explicar por que, um vez que as coisas se passam
assim, as boas ações de Deus não são também necessárias. Mas se
elas fossem necessárias, a série total de suas conseqüências também

69

3_LuisCesar_59_86.PMD 69 5/10/2007, 11:39


CADERNOS ESPINOSANOS XV - 2006

o seria e sua filosofia cairia assim no espinosismo.21 As colocações


de Russell pautaram amplamente a tradição anglo-americana de
comentário, sobretudo por causa da nota de rodapé apresentada neste
trecho pelo inglês para justificar que a bondade divina seja necessária:
Em parte alguma, pelo que sei, Leibniz afirma claramente que a
bondade de Deus é necessária, mas esta conclusão parece decorrer
de sua filosofia. Porque a bondade divina é uma verdade eterna que,
ao contrário de seus atos, não se refere somente ao mundo real.
Dificilmente podemos imaginar que, em outros mundos possíveis,
Deus não tivesse sido bom, ou que seja meramente contingente o fato
de ser bom. Mas se fizéssemos esta suposição, apenas adiaríamos a
dificuldade, uma vez que em seguida precisaríamos de uma razão
suficiente para a bondade de Deus. Se essa razão fosse necessária, a
bondade divina seria também necessária; se contingente, ela própria
exigiria uma razão suficiente, a respeito da qual se repetiria a mesma
dificuldade.22
É a esta nota, mais até do que aos argumentos leibnizianos,
que vários intérpretes tentaram responder. Curley comenta: Este é um
dilema bem real. Se algo segue de Deus ser um ser soberanamente
perfeito, deveria ser sua bondade. E ainda assim penso ser claro que
Leibniz sustentaria que em alguns mundos possíveis Deus não teria
sido bom – p. ex., em um no qual os inocentes fossem torturados
eternamente no inferno e os vis recompensados no céu.
Se a bondade de Deus é contingente, isto de fato conduz à
regressão ao infinito a que Russell se refere. Mas em pelo menos um
lugar Leibniz parece não apenas aceitar esta regressão, mas insistir
nela: “Se alguém me pergunta por que Deus decidiu criar Adão,
digo que é porque decidiu fazer o mais perfeito. Se me perguntam
agora por que ele decidiu fazer o mais perfeito, ou por que ele escolhe

70

3_LuisCesar_59_86.PMD 70 5/10/2007, 11:39


LUÍS CÉSAR OLIVA

o mais perfeito... respondo que ele o quis livremente, isto é, por que
quis. Então ele quis porque quis querer, e assim infinitamente...”(Grua
302).23 O texto invocado por Curley apresenta uma argumentação
incomum na obra de Leibniz. Adams apresenta vários textos, referidos
tanto aos homens quanto a Deus, em que Leibniz recusa a série de
infinitas volições. A vontade se dirige a ações, não ao próprio querer.
E a razão disso é que semelhante regressão ao infinito viola o princípio
de razão suficiente. Como explica Adams, o uso leibniziano do princípio
na prova da existência de Deus requer que não se aceite uma regressão
infinita de razões como constituindo, em si mesma, uma razão
suficiente. Ao contrário, a razão suficiente do contingente deve
encontrar-se em um ser metafisicamente necessário, Deus, cuja
natureza impeça a regressão.
Mas se é assim, parecem esgotadas todas as alternativas para
evitar a necessidade da bondade divina e, como já mostramos as
fragilidades da tese de que este mundo é apenas contingentemente o
melhor, resulta que a contingência está mesmo expulsa do real. Não
podemos, porém, fazer tal afirmação antes de verificar como o próprio
Leibniz apresenta a bondade divina, não em suas conseqüências (o
que foi nossa perspectiva até o momento), mas nela mesma.

A vontade divina

A bondade, segundo Leibniz, é a vontade absolutamente


perfeita. Mas o que é, afinal, a vontade? Vejamos a noção geral de
vontade que Leibniz apresenta na Teodicéia: no sentido geral, pode-
se dizer que a vontade consiste na inclinação a fazer algo na proporção
do bem que ele envolve.24 Tal apresentação é válida tanto para Deus,

71

3_LuisCesar_59_86.PMD 71 5/10/2007, 11:39


CADERNOS ESPINOSANOS XV - 2006

em que a vontade é perfeita, quanto para nós. Em primeiro lugar, é


preciso salientar o que significa dizer que a vontade é uma inclinação.
Do mesmo campo semântico do conatus, ou esforço, esta inclinação
não é a pura potência para uma ação, mas já uma ação infinitesimal.
No contexto da dinâmica, referindo-se à força ativa, Leibniz diz que
esta envolve um conatus ou tendência à ação, de tal modo que a ação
se segue se algo não a impede.25 Leibniz, aliás, nem poderia aceitar
aceitar uma faculdade nua, desligada das tendências que a determinam:
as faculdades sem algum ato, em uma palavra, as puras potências da
Escola, também não são senão ficções, que a natureza não conhece e
que só se obtêm fazendo abstrações. Pois onde achar-se-á no mundo
uma faculdade que se encerra na só potência e não exerce nenhum
ato? Há sempre uma disposição particular à ação e a uma ação em
vez de outra. E além da disposição há uma tendência à ação, de que
há sempre uma infinidade ao mesmo tempo em cada sujeito; e estas
tendências nunca são sem algum efeito.26 Em outras palavras, a
vontade não é um poder absoluto e indiferente de escolher a partir de
representações ou inclinações exteriores a ela, e sim a própria inclinação
resultante.
Isto não significa, mesmo no interior da mônada sem portas
nem janelas, que a vontade seja independente de tudo mais afora as
próprias tendências. Pelo contrário, as inclinações de que ela é o
resultado são, por sua vez, motivadas por percepções de variados
tipos e graus de distinção. Quando dizemos que uma substância
inteligente é movida pela bondade de seu objeto, não pretendemos
que este objeto seja necessariamente um ser existente fora dela, e
nos basta que ele seja concebível; pois é sua representação que age
na substância, ou melhor, a substância age sobre si mesma na medida
em que é disposta e afetada por esta representação.27

72

3_LuisCesar_59_86.PMD 72 5/10/2007, 11:39


LUÍS CÉSAR OLIVA

Por outro lado, é preciso destacar que esta determinação da


vontade por razões não significa uma identificação pura e simples de
entendimento e vontade, nem uma determinação absolutamente
necessária da segunda pelo primeiro. A separação dos dois é
explicitamente defendida por Leibniz: E quanto ao paralelo entre a
relação do entendimento ao verdadeiro e da vontade ao bem, é preciso
saber que uma percepção clara e distinta de uma verdade contém
nela atualmente a afirmação desta verdade; assim o entendimento é
por ela necessitado. Mas no caso de uma percepção que se tenha do
bem, o esforço de agir segundo o juízo, que penso constituir a essência
da vontade, dela se distingue.28 Mesmo que fôssemos perfeitos e só
tivéssemos conhecimentos distintos, não haveria confusão entre
vontade e intelecto porque a volição não é um juízo, e sim uma
tendência determinada por um juízo. A percepção clara e distinta não
se distingue da afirmação da verdade, logo o próprio princípio de
identidade garante o nexo absolutamente necessário entre entendimento
e juízo. No caso da vontade, o esforço de agir, mesmo decorrendo do
juízo ou percepção distinta, não se identifica com ele. Daí que Leibniz
possa concluir, no fim do parágrafo, que a ligação entre juízo e vontade
não é tão necessária quanto se poderia pensar.
Além disso, e à diferença de Deus, não somos perfeitos, não
temos apenas conhecimentos distintos, nem seguimos sempre o juízo
do entendimento. Mesmo a possibilidade, aventada por Leibniz, de
suspendermos a ação desviando a atenção para motivos diversos dos
que mais nos inclinam no momento não garante um predomínio
absoluto do entendimento: não obrigo a vontade a seguir sempre o
juízo do entendimento porque distingo este juízo dos motivos que
vêm das percepções e inclinações insensíveis. Mas considero que a
vontade segue sempre a representação mais vantajosa, seja ela distinta

73

3_LuisCesar_59_86.PMD 73 5/10/2007, 11:39


CADERNOS ESPINOSANOS XV - 2006

ou confusa, do bem e do mal, a qual resulta das razões, paixões e


inclinações, ainda que ela possa também achar motivos para
suspender seu juízo. Mas é sempre por motivos que ela age.29
Por isso o domínio do voluntário, em Leibniz, vai além do
consciente, de modo que não se constitui apenas de volições, a saber,
tendências que resultam da apercepção do bem e do mal envolvidos
em um objeto, mas também de outras apetições: Há ainda esforços
que resultam das percepções insensíveis, de que não nos apercebemos,
os quais prefiro chamar apetições ao invés de volições (embora haja
também apetições aperceptíveis), pois apenas chamamos ações
voluntárias aquelas de que podemos nos aperceber e sobre as quais
nossa reflexão pode recair quando seguem da consideração do bem
e do mal.30 Tais apetições, sendo este o termo mais geral para o
princípio de espontaneidade contido em toda mônada, não são elas
mesmas voluntárias, já que inconscientes, mas podem, somadas entre
si ou associadas a volições, compor um esforço voluntário quando a
inclinação resultante é apercebida. Várias percepções e inclinações
concorrem para a volição perfeita, que é o resultado do seu conflito.
Há algumas imperceptíveis isoladamente, cuja soma faz uma
inquietude que nos impulsiona sem que vejamos a razão; há várias
reunidas que levam a um certo objeto, ou que dele se afastam, e
então é desejo ou temor, acompanhado também de uma inquietude,
mas que nem sempre chega ao prazer ou desprazer. Enfim, há impulsos
acompanhados efetivamente de prazer e de dor, e todas estas
percepções são ou sensações novas ou imaginações remanescentes
de alguma sensação passada (acompanhadas ou não de lembrança)
que, renovando os atrativos que estas mesmas imagens tinham nas
sensações precedentes, renovam também os impulsos antigos na

74

3_LuisCesar_59_86.PMD 74 5/10/2007, 11:39


LUÍS CÉSAR OLIVA

proporção da vivacidade da imaginação. E de todos estes impulsos


resulta enfim o esforço prevalente, que faz a vontade plena.31
Assim, pode-se ver que toda a complexa hierarquia perceptiva
da doutrina leibniziana do conhecimento, indo do conhecimento
puramente obscuro até o adequado, também corresponde a uma
igualmente complexa rede afetiva, composta de inclinações, desejos,
prazeres, inquietude, etc., determinando a vontade; com a diferença
de que a separação vontade-entendimento permite que às vezes a
quantidade e a recorrência de inclinações provenientes de pequenas
percepções obscuras as torne tão ou mais efetivas que aquelas oriundas
do conhecimento distinto.
Vejamos agora como tudo isso pode aplicar-se a Deus. Como
dissemos, a bondade divina é a vontade perfeita. E como se dá esta
perfeição? A potência vai ao ser, a sabedoria ou entendimento, ao
verdadeiro, e a vontade, ao bem. E esta causa inteligente [Deus]
deve ser infinita de todas as maneiras e absolutamente perfeita em
potência, em sabedoria e em bondade, já que ela vai a tudo o que é
possível.32 Este salto para a perfeição que difere as qualidades divinas
das nossas é caracterizado pela idéia de que em Deus elas se estendem
a todo o possível. Livres da nossa finitude, as perfeições divinas podem
aplicar-se a todos os objetos próprios a elas. No caso da bondade, a
vontade se dirige a todo bem possível. Esta vontade é chamada
antecedente quando é destacada e visa cada bem à parte enquanto
bem. Neste sentido, pode-se dizer que Deus tende a todo bem enquanto
bem, ad perfectionem simpliciter simplicem, para falar como a
escolástica, e isto por uma vontade antecedente. Ele tem uma séria
inclinação a santificar e salvar todos os homens, a excluir o pecado
e a impedir a danação. Pode-se mesmo dizer que esta vontade é eficaz

75

3_LuisCesar_59_86.PMD 75 5/10/2007, 11:39


CADERNOS ESPINOSANOS XV - 2006

por si (per se), isto é, de maneira que o efeito se seguiria se não


houvesse alguma razão mais forte que o impedisse; pois esta vontade
não vai ao último esforço (ad summum conatum), do contrário ela
não deixaria nunca de produzir seu efeito pleno, sendo Deus o senhor
de todas as coisas. O sucesso inteiro e infalível só pertence à vontade
conseqüente, como é chamada. É ela que é plena, e em relação a ela
vale a regra de que jamais se deixa de fazer o que se quer quando se
pode. Ora, esta vontade conseqüente, final e decisiva, resulta do
conflito de todas as vontades antecedentes, tanto daquelas que tendem
ao bem quanto daquelas que repelem o mal; e é do concurso de todas
estas vontades particulares que vem a vontade total.33
Tudo que não implica auto-contradição é desejado
antecedentemente pela vontade divina bondosa, e só não se realiza
devido a incompatibilidades lógicas que limitam a vontade conseqüente
ou decretória ao grupo de possíveis que constituem o melhor. Isto
não significa, porém, que a vontade antecedente seja inócua e que a
bondade não se estenda aos bens incriados. Ao contrário, todas estas
vontades contribuirão idealmente para constituir a vontade do melhor,
assim como em nós as inclinações apercebidas (volições) e
inapercebidas (apetições) competem e conjugam-se para constituir a
vontade plena. A diferença é que Deus perfeitíssimo não está sujeito a
inclinações provenientes de representações obscuras. A percepção
divina, integralmente adequada, identifica-se com o próprio intelecto
divino, de modo que não há aquela defasagem entre percepções
distintas e ações voluntárias tal como havia em nós. Em Deus, todos
os impulsos vêm do entendimento puro, daí que a distinção
entendimento-vontade seja muito mais sutil do que na criatura. Os
possíveis não compatíveis, distintamente percebidos, digladiam-se num
espelhamento perfeito do combate das volições de bens particulares

76

3_LuisCesar_59_86.PMD 76 5/10/2007, 11:39


LUÍS CÉSAR OLIVA

que não podem constar simultaneamente do decreto final. Este


espelhamento, aliás, não deveria surpreender-nos: se o bem desejado
é ser, e o ser é o possível, qual a diferença efetiva entre os objetos do
intelecto e da vontade divina? É apenas nossa limitação que cria o
descompasso.
Seja em Deus seja em nós, todavia, não há vontade ou
inclinação sem um objeto ao qual tenda, e este objeto, como
mostramos, terá de ser um bem. O bem é constitutivo da vontade
(constando da noção geral de vontade, já apresentada) pois é o grau
de bem, mesmo aparente (no caso da criatura finita), que determinará
a tendência prevalente. Não há vontade de mal pois não se quer o
não-ser. Portanto é necessário que a bondade divina se dirija
antecedentemente a todo bem, e conseqüentemente ao melhor, já que
este é a proporção de bem (contida na definição de vontade) quando
aplicada a Deus, ou seja, estendida a todo possível. Bondade e vontade
de Deus são idênticos. Por isso a definição de vontade torna sem sentido
a hipótese de uma vontade divina que não seja necessariamente
bondade, a não ser que pensássemos a vontade como faculdade nua, o
que já vimos Leibniz recusar. Em suma, parece não haver saída: Deus
é necessariamente bom. Logo, se a contingência tem mesmo espaço
no universo leibniziano, não será pela dupla via proposta por Adams.

O querer e o criar

Mas talvez ainda haja uma escapatória. O excerto seguinte é o


que mais longamente discorre sobre a questão: Deus não faz o melhor
necessariamente, mas porque quer. Quem me perguntasse se Deus
quer necessariamente, teria de explicar previamente a que tipo de

77

3_LuisCesar_59_86.PMD 77 5/10/2007, 11:39


CADERNOS ESPINOSANOS XV - 2006

necessidade se refere ou então colocar a questão mais amplamente,


perguntando, por exemplo, se Deus quer necessária ou livremente,
isto é, em virtude de sua natureza ou de sua vontade. A meu modo de
ver, Deus não pode querer voluntariamente, pois de outro modo se
daria a vontade de querer ao infinito. Mas há de se afirmar que Deus
quer o melhor devido a sua própria natureza. Logo quer
necessariamente, dir-se-á. Trata-se de uma feliz necessidade, dir-se-
á com santo Agostinho. Daí se deduzirá que as coisas existem de
modo necessário. Por quê? Porque implica contradição que não exista
o que Deus quer? Nego que esta proposição seja absolutamente
verdadeira. De outro modo tudo que Deus não quer não seria possível.
Quando em realidade continua sendo possível, embora não escolhido
por Deus. Pois é possível existir aquilo que Deus não quer que exista,
já que poderia existir por sua natureza se Deus quisesse que existisse.
Mas Deus não pode querer que exista. Apesar disso continuará sendo
possível por sua natureza, embora não seja possível com relação à
vontade divina. Pois definimos como possível por natureza o que
não implica contradição em si mesmo, ainda que sua coexistência
com Deus pudesse implicar algum tipo de contradição.34
Poderíamos dividir o texto em duas partes: antes e depois das
interrogações. A primeira parte é um dos locais em que Leibniz sugere
mais fortemente que a bondade é necessária a Deus. Ao explicar o
tipo de necessidade com que Deus quer o melhor, Leibniz assume a
distinção tradicional entre “por natureza” e “por vontade”, associando-
a aos adjetivos “necessário” e “livre”, para então aplicá-la à própria
vontade. Se o necessário aqui se opõe ao livre, é porque Leibniz não
está se referindo à mera necessidade moral, mas à necessidade absoluta.
Ora, ao dizer na seqüência que Deus quer o melhor por sua natureza,
está inserindo necessidade absoluta no querer divino. Mas,

78

3_LuisCesar_59_86.PMD 78 5/10/2007, 11:39


LUÍS CÉSAR OLIVA

surpreendentemente, disso Leibniz não conclui que as coisas existam


necessariamente, mesmo terminando a citação dizendo que a existência
dos possíveis que não constituem o melhor seria contraditória com a
existência de Deus, o ser necessário.
Esta afirmação de possíveis não existentes não pode mesmo
levar em conta Deus como causa necessária. Do contrário, jamais
haveria possíveis em si para além do mundo criado. A Teodicéia é
explícita sobre o assunto: Em uma palavra, quando se fala da
possibilidade de uma coisa, não se trata das causas que devem fazer
ou impedir que ela exista atualmente; do contrário mudar-se-ia a
natureza dos termos e tornar-se-ia inútil a distinção entre o possível
e o atual... Eis por que, quando se pergunta se uma coisa é possível
ou necessária, e se faz entrar em consideração o que Deus quer ou
escolhe, muda-se de questão.35 O que nos interessa aqui, no entanto,
é justamente o ponto de vista divino, é saber se Deus (a causa) tinha
ou não alternativas, considerando que a bondade lhe é necessária. Sem
alternativas, ao menos uma, a necessidade reinará e os possíveis não
existentes serão ficções.
Em resumo: como pode ser necessário que Deus queira o
melhor e ser contingente que o melhor exista? Nossa hipótese de
trabalho é que isto depende de uma ruptura entre o querer o melhor,
que é necessário, e o querer fazer (ou criar) o melhor, que é
contingente, como Leibniz anuncia já na primeira frase da penúltima
citação (Deus não faz o melhor necessariamente, mas porque quer).
Se os dois fossem o mesmo, tudo seria absolutamente necessário. Mas,
ao que parece, Leibniz pensa que não são. É por isso que o texto
passa a relativizar a necessidade assim que a existência entra em questão
(após as interrogações). É esta delicada transição que corresponde
àquele primeiro decreto livre de Deus, mencionado no artigo 13 do

79

3_LuisCesar_59_86.PMD 79 5/10/2007, 11:39


CADERNOS ESPINOSANOS XV - 2006

Discurso de Metafísica. O referido decreto não impunha querer o


melhor, o que seria redundante para um ser cuja bondade e sabedoria
são necessárias, e sim fazer o melhor ou, segundo outros textos,
escolhê-lo. Tanto o fazer como o escolher entre possíveis distinguem-
se do puro querer bem por implicarem a idéia de criação. Não seria,
todavia, razoável duvidar da pertinência desta distinção entre “querer
algo” e “querer fazê-lo”? O que é querer algo senão querer fazê-lo? O
estranhamento aí envolvido aumenta ainda mais se levarmos em conta
a já citada definição de vontade da Teodicéia (a vontade consiste na
inclinação a fazer algo na proporção do bem que ele envolve). Toda
vontade deveria ser de fazer e, por conseguinte, a solução apresentada
estaria condenada a ser descartada. Isto, é claro, se o próprio Leibniz
já não tivesse aberto uma brecha naquela definição geral, de modo a
distinguir indiretamente o querer e o querer criar. É aí que podemos
situar a passagem das vontades antecedentes para a vontade
conseqüente.
É verdade que Leibniz afirma explicitamente que a liberdade é
constitutiva da vontade divina, seja ela antecedente ou conseqüente.
Vejamos o seguinte texto da Teodicéia: ainda que Deus ame
necessariamente sua sabedoria, as ações a que sua sabedoria o conduz
não deixam de ser livres, e os objetos a que sua sabedoria não o leva
não deixam de ser possíveis. Além de que a sabedoria o conduziu a
querer a salvação de todos os homens, mas não por uma vontade
conseqüente e decretória. E esta vontade conseqüente, sendo apenas
o resultado das vontades livres antecedentes, não pode deixar de ser
também livre.36 Apesar de Leibniz reconfirmar aqui que as vontades
antecedentes são livres, também afirma que Deus ama necessariamente
sua sabedoria, ou seja, quer todos os infinitos possíveis que constituem
seu entendimento infinito. E os quer necessariamente pois, como

80

3_LuisCesar_59_86.PMD 80 5/10/2007, 11:39


LUÍS CÉSAR OLIVA

dissemos, todos são bens e inexiste combate entre eles enquanto está
ausente a perspectiva de criação. Não há muito sentido, portanto, em
falar de contingência, já que não há exclusão de possíveis, sendo todos
igualmente queridos pela bondade divina. Ao contrário, quando a
existência entra em jogo, e só então, a vontade conseqüente seleciona
o melhor, sem contudo tornar impossível aquilo que foi excluído. Daí
não ser descabido pensar que as vontades antecedentes sejam vistas
como necessárias, mantendo a necessidade da bondade divina, e a
vontade conseqüente, ou seja, o decreto divino, como contingente,
garantindo a contingência da criação. É necessário a Deus ser bom,
porém não lhe é necessário ser criador, pois Deus poderia permanecer
satisfeito apenas com a contemplação de suas próprias perfeições.
Deus não carece de nada que implique criação, não precisa da
glorificação dos seres criados, que em nada aumenta Sua infinita
perfeição.
Por que então decide criar? O princípio de razão suficiente
nos impõe esta pergunta ou uma versão dela: Assentado este princípio,
a primeira pergunta que temos direito de formular será: por que há
algo em vez de nada? Pois o nada é mais simples e mais fácil que
algo.37 Todavia a pergunta não tem resposta. O primeiro decreto livre
atesta a opção divina pelo ser, pela criação, mas não revela as razões
disso. Talvez os seres criados representem maior variedade, mas quem
negará que o nada é imbatível quanto à simplicidade?
Dado o Deus perfeitíssimo, é necessário que seja bom e queira
o melhor; dado o decreto de fazer, toda a criação segue com igual
necessidade. Entretanto, como o decreto em si mesmo não é
metafisicamente necessário, seu vínculo necessário com a criação não
basta para torná-la metafisicamente necessária, mas apenas
hipoteticamente. E mais ainda, a contingência do decreto, decorrente

81

3_LuisCesar_59_86.PMD 81 5/10/2007, 11:39


CADERNOS ESPINOSANOS XV - 2006

do fato de não haver razões necessitantes para a criação, derrama-se


também sobre o objeto do verbo fazer, ou seja, o melhor. Se o decreto
não brota necessária e diretamente da essência divina, por que exigir
que o melhor criado brote necessária e diretamente da bondade divina?
Ele decorre apenas do decreto. Mantém-se assim a possibilidade de
outros mundos piores, necessariamente ligados a decretos possíveis
também piores. É verdade que eles são incompatíveis com o Deus
perfeitíssimo, mas já vimos que confrontá-los com as causas produtoras
não é a maneira adequada de tratar as puras possibilidades (pelo menos
na medida em que não há razões para a criação). Como o próprio
primeiro decreto não é necessário, não podemos excluir as outras
alternativas. Elas só são excluídas por necessidade hipotética, dado o
decreto.
Esta parece a resposta que vai mais longe nos porquês da
contingência e é isso que nos fez privilegiá-la. Mas no fundo ela sofre
de uma fragilidade similar à das outras. Qual é, afinal, sua base? É a
ausência de resposta à pergunta metafísica. Sem o decreto criador,
Deus continuaria querendo o melhor, que neste caso se reduziria ao
Seu próprio ser, o qual abarca todos os possíveis no intelecto, sem as
exclusões decorrentes da existência. Devido a nossa limitação
cognitiva, não podemos ver por que o ser é melhor que o nada. Mas o
fato é que deve haver uma razão para isso, sejamos ou não capazes de
apreendê-la, do contrário a validade do princípio de razão não será
irrestrita, contrariando a letra de Leibniz. Por outro lado, se há uma
razão para isso, ela certamente estará em Deus e estabelecerá um
vínculo necessário entre a essência divina (que inclui a bondade) e o
decreto de fazer o bem, o que tornaria toda a criação absolutamente
necessária. Leibniz também não pode aceitar esta opção. Ou seja, a

82

3_LuisCesar_59_86.PMD 82 5/10/2007, 11:39


LUÍS CÉSAR OLIVA

questão da contingência em Leibniz, aqui tratada do ponto de vista da


bondade divina, parece mesmo condenada ao paradoxo, o qual tem
na irresolução da pergunta metafísica apenas a sua mais primitiva
manifestação.

Notas

1
Carta de Leibniz a Arnauld de 4 de julho de 1686, in Leibniz, G.W.
Discours de Metaphysique et correspondance avec Arnauld. Paris,
Vrin, 1993, pág. 115.
2
Adams, R. M. Leibniz´s Theories of Contingency in Woolhouse, R.
S. (ed.) Gottfried Wilhelm Leibniz: Critical Assessments. Londres e
Nova York, Routledge, 1994, vol I, pág. 141.
3
Leibniz, G. W. Textes Inédits, editados por Gaston Grua, Paris, PUF,
1948, pág. 493.
4
Leibniz, G.W. Sobre a Contingência in Recherches Générales sur
l’Analyse des Notions et des Vérités, 24 thèses métaphysiques et autres
textes logiques et métaphysiques. Introd. et notes par J.-B. Rauzy.
Paris: PUF, 1998, pág. 326.
5
Ribeiro de Moura, C.A. Contingência e Infinito in Racionalidade e
Crise: estudos sobre História da Filosofia Moderna e Contemporânea.
São Paulo-Curitiba, Discurso-Ed. UFPR, 2001, pág. 81.
6
Leibniz, G. W. Recherches..., pág. 327.
7
Leibniz, G. W. Sur la liberté in Recherches..., pág. 333.
8
Ribeiro de Moura, C. A. Leibniz, a liberdade e os Possíveis, in Vários
autores, O filósofo e sua história. Campinas, CLE, 2003, pág. 283.

83

3_LuisCesar_59_86.PMD 83 5/10/2007, 11:39


CADERNOS ESPINOSANOS XV - 2006

9
Além disso, outra conseqüência perigosa para o pensamento
leibniziano segue da desconsideração de que o melhor é único: se o
melhor não for único, recairemos no meio da escala de perfeição dos
mundos, o que impossibilitaria uma escolha divina fundamentada;
caminho este que o princípio de razão não comporta. Neste espírito, o
próprio texto da Teodicéia parece nos indicar que é necessário que
este mundo seja o melhor: E como nas matemáticas, quando não há
maximum nem minimum, nada enfim de distinto, tudo é feito
igualmente; ou, quando isto não é possível, não se faz nada; pode-se
dizer o mesmo em matéria de perfeita sabedoria, que não é menos
regrada que as matemáticas, que se não há melhor (optimum) entre
todos os mundos possíveis, Deus não teria produzido nenhum. Leibniz,
G.W. Essais de Théodicée. Paris, Garnier-Flammarion, 1969, par. 8,
pág. 108.
10
Leibniz, G. W. Em torno da liberdade e da necessidade. In Escritos
en torno a la libertad, el azar y el destino. Madrid, Tecnos, 1990,
pág. 7.
11
Leibniz, G. W. Essais de Théodicée, par. 230, pág. 256.
12
Id., par. 282, pág. 285.
13
Leibniz, G. W. Monadologia in Discurso de Metafísica e outros
textos. São Paulo, Martins Fontes, 2004, pág. 139.
14
Leibniz, G.W. Essais de Théodicée, par. 150, pág. 201.
15
Leibniz, G. W. Discurso de Metafísica, 2, pág. 4.
16
Id. Ibid.
17
Leibniz, G. W. El Ser perfectísimo existe in Escritos Filosóficos.
Ed. de E. Olaso; notas de E. Olaso y R. Torretti; trad. de R. Torretti,
T. Zwanck, E. Olaso. Buenos Aires: Editorial Charcas, 1982, pág.
148.
18
Leibniz, G.W. Discurso de Metafísica, par.1, pág. 3.

84

3_LuisCesar_59_86.PMD 84 5/10/2007, 11:39


LUÍS CÉSAR OLIVA

19
Leibniz, G.W. Essais de Théodicée, par. 230, pág. 256.
20
Leibniz, G.W. Defesa da Causa de Deus, par. 67, in Escritos
Filosoficos, pág. 545.
21
Russell, B. Russell, B. A Filosofia de Leibniz (uma exposição
crítica). São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1968, pág. 40.
22
Id. Ibid.
23
Curley, E. The Root of Contingency. In Woolhoouse, R. op. cit. ,
pág. 204.
24
Leibniz, G. W. Essais de Théodicée, par. 22, pág. 117.
25
Leibniz, G. W. Exame da física de Descartes in Escritos Filosóficos,
pág. 437.
26
Leibniz, G. W. Nouveaux Essais sur l´entendement humain. Paris,
Garnier-Flammarion, 1966 II, I, 2, pág.92.
27
Leibniz, G. W. Notas sobre o livro Da origem do mal publicado há
pouco na Inglaterra. In Essais de Théodicée, pág. 409.
28
Leibniz, G. W. Essais de Théodicée, par. 311, pág. 302.
29
Leibniz, G. W. Notas sobre o livro..., pág. 399.
30
Leibniz, G.W. Nouveaux Essais..., II,XXI, 5, pág. 146.
31
Id., II, XXI, 39, pág. 164
32
Leibniz, G. W. Essais de Théodicée, par. 7, pág. 108.
33
Id., par. 22, pág. 117.
34
Leibniz, G.W. Em torno da liberdade e da necessidade in Escritos
en torno a la libertad..., pág. 8.
35
Leibniz, G. W. Essais de Théodicée, par. 235, pág. 258.
36
Id., par. 237, pág. 259.
37
Leibniz, G.W. Princípios da Natureza e da Graça fundados em
razão, par. 7 in Escritos Filosóficos, pág.601.

85

3_LuisCesar_59_86.PMD 85 5/10/2007, 11:39


CADERNOS ESPINOSANOS XV - 2006

Bibliografia

Leibniz,G.W. Discours de Metaphysique et correspondance avec


Arnauld. Paris:Vrin, 1993.
Discurso de Metafísica e outros textos. São Paulo: Martins
Fontes, 2004.
Escritos en torno a la libertad, el azar y el destino. Madrid:
Tecnos, 1990.
Escritos Filosóficos. Ed. de E. Olaso; notas de E. Olaso y R.
Torretti; trad. de R. Torretti, T. Zwanck, E. Olaso. Buenos Aires:
Editorial Charcas, 1982.
Essais de Théodicée. Paris: Garnier-Flammarion, 1969.
Nouveaux Essais sur l´entendement humain. Paris, Garnier-
Flammarion, 1966
Recherches Générales sur l’Analyse des Notions et des Vérités,
24 thèses métaphysiques et autres textes logiques et
métaphysiques. Introd. et notes par J.-B. Rauzy. Paris: PUF,
1998.
Textes Inédits, editados por Gaston Grua, Paris: PUF, 1948.
Adams, R. M. Leibniz´s Theories of Contingency in Woolhouse, R.
S. (ed.) Gottfried Wilhelm Leibniz: Critical Assessments. 2 vol.
Londres e Nova York: Routledge, 1994.
Russell, B. A Filosofia de Leibniz (uma exposição crítica). São Paulo:
Companhia Editora Nacional, 1968.
Ribeiro de Moura, C.A. Racionalidade e Crise: estudos sobre História
da Filosofia Moderna e Contemporânea. São Paulo-Curitiba:
Discurso-Ed. UFPR, 2001.
Vários autores, O filósofo e sua história. Campinas: CLE, 2003.

86

3_LuisCesar_59_86.PMD 86 5/10/2007, 11:39


TESSA MOURA LACERDA

Leibniz:
Expressão e Característica Universal*
TESSA MOURA LACERDA**

Resumo:
A crítica de Leibniz à prova a priori da existência de Deus,
retomada de Anselmo por Descartes, resume-se à observação de que,
antes de admitir a existência de um ser perfeitíssimo, é preciso provar
a possibilidade da noção de um tal ser; e, para isso, é preciso mostrar
a compatibilidade entre as perfeições divinas. A prova é correta, mas
incompleta.
Leibniz jamais completou essa prova, com exceção de um texto
escrito em 1676, porque, para isso, precisaria lançar mão de sua
Característica universal, cujos elementos seriam os pensamentos
simples que exprimiriam as formas simples ou perfeições divinas.
O projeto de criação de uma língua formal ou Característica
universal, embora tenha permanecido inacabado, jamais foi abandonado
por Leibniz. Todavia, ao delinear o projeto, Leibniz esclarece que a
Característica explicaria com exatidão as verdades necessárias, mas
não as verdades contingentes (as quais poderiam ser admitidas com
alta probabilidade, mas não com exatidão).
Ora, se fosse possível provar a compatibilidade entre as
perfeições divinas, seria também necessário explicar como a
incompatibilidade entre os mundos possíveis se origina dessa
compatibilidade primordial; seria preciso explicar como o contingente
nasce do interior do necessário.

*
Este texto foi originalmente apresentado no XII Encontro da Associação Nacional
de Pós-Graduação em Filosofia, ANPOF, realizado em Salvador, em outubro de
2006 e é parte de uma pesquisa financiada pela Fapesp.
**
Pós-doutoranda em Filosofia no Departamento de Filosofia da FFLCH-USP.

87

4_Tessa_87_110.PMD 87 5/10/2007, 11:39


CADERNOS ESPINOSANOS XV - 2006

Nossa hipótese é que o aparente fracasso do projeto da


Característica e a incompreensão da relação entre necessidade e
contingência tem como resultado uma teoria da expressão que, contra
a clareza da intuição, reserva um lugar para o confuso e obscuro.

Abstract:
Leibniz’s criticism of the a priori proof of God’s existence,
taken from Anselm by Descartes, is restricted to the observation that,
before the existence of a perfect being may be admitted, one must
prove the possibility of the notion of such a being, which, in turn,
requires a demonstration of the compatibility between divine perfec-
tions. The proof is correct, but incomplete.
Leibniz never completed this proof, except for a text written
in 1676, since, to manage that, he would have to employ his universal
Characteristic, the elements of which would be the simple thoughts
expressing the simple forms, or divine perfections.
The project to create a formal language, or universal Charac-
teristic, was never abandoned by Leibniz, even though it was to re-
main unfinished. However, in outlining the project, he clearly states
that the Characteristic would accurately explain the necessary truths,
but not the contingent truths (which could be admitted with a high
degree of probability but not with exactness).
If it were possible to prove the compatibility between divine
perfections, it would also be necessary to explain how the incompat-
ibility between possible worlds stems from this primordial compatibil-
ity, and how the contingent originates from within the necessary.
Our hypothesis is that the apparent failure of the Characteris-
tic project and the lack of understanding of the relationship between
necessity and contingency results in a theory of expression that, in
opposition to the clarity of intuition, reserves a place for the confuse
and the obscure.

***

88

4_Tessa_87_110.PMD 88 5/10/2007, 11:39


TESSA MOURA LACERDA

Em uma carta de 1678, à rainha Elisabeth, discorrendo sobre a


prova cartesiana da existência de Deus, Leibniz afirma:
“... no momento me basta observar que o que é o
fundamento de minha característica é também da
demonstração da existência de Deus. Porque os
pensamentos simples são os elementos da característica
e as formas simples são a fonte das coisas. Ora, sustento
que todas as formas simples são compatíveis entre si. É
uma proposição de que não poderia dar a demonstração
sem explicar longamente os fundamentos de minha
característica. Mas, estando acordada, segue-se que a
natureza de Deus, que envolve todas as formas simples
tomadas absolutamente, é possível. Provamos acima que
Deus é, uma vez que seja possível. Logo existe. O que era
a demonstrar.”1

Para completar a prova imperfeita da existência de Deus dada


por Descartes, Leibniz pretendia lançar mão de sua Característica,
ainda um projeto. Menos de uma década separam esta carta e as
“Meditações sobre o conhecimento, a verdade e as idéias”, texto em
que Leibniz desconfia da possibilidade humana de chegar ao
conhecimento dos primeiros possíveis ou atributo absolutos de Deus.
Reflete Leibniz, “certamente não me atreveria a determinar agora se
é possível levar a cabo em algum momento uma análise perfeita das
noções ou se é possível reduzir os pensamentos aos primeiros possíveis
e noções não suscetíveis de decomposição ou (o que é o mesmo) aos
próprios atributos absolutos de Deus”2 . Anos antes, provavelmente
em 1676, o filósofo ensaiara em um pequeno opúsculo intitulado Quod
Ens Perfectissimum existit, estabelecer essa prova com argumentos

89

4_Tessa_87_110.PMD 89 5/10/2007, 11:39


CADERNOS ESPINOSANOS XV - 2006

in forma. Mas, de acordo com a carta a Elisabeth, sabemos agora que


a Característica seria o instrumento de aperfeiçoamento da prova, seria
pela Característica que o filósofo demonstraria, através do
conhecimento das formas simples, a compatibilidade entre elas (e, logo,
a possibilidade da noção de ser perfeitíssimo) que, sem a Característica,
parece se reduzir a uma prova apenas “formal” — no mal sentido da
palavra.
Qual é a crítica que Leibniz faz à prova cartesiana da existência
de Deus?
A prova ontológica da existência de Deus, que Descartes
retoma de Anselmo, “é muito bela e engenhosa na verdade, mas há
um vazio a ser preenchido”3 , afirma Leibniz. A prova não é um
paralogismo, como sugeriu São Tomás, e não é sem razão que Anselmo
se felicita por ter encontrado um meio de provar a existência de Deus
por sua própria noção, sem ter que recorrer aos efeitos, mas é uma
prova imperfeita, incompleta. Eis como Leibniz a resume: Deus é o
maior ou, na linguagem de Descartes, o mais perfeito dos seres — o
que, para Leibniz, significa dizer que Deus é um ser que envolve todos
os graus de ser, tem uma grandeza ou perfeição suprema. Ora, existir
é mais que não existir, ou seja, a existência acrescenta um grau à
grandeza ou perfeição, ou, segundo Descartes, a existência é uma
perfeição; portanto, segundo a definição ou a noção de Deus, Ele
existe, senão careceria desse grau de perfeição ou dessa perfeição que
é a existência. O problema dessa prova está na suposição tácita de que
essa noção de Deus, como ser totalmente perfeito, é possível. Por
isso, a partir dessa prova podemos apenas ter uma conclusão moral e
uma suposição de que, se Deus é possível, então necessariamente Ele
existe, o que é um privilégio da noção de Deus. E como podemos
presumir a possibilidade de qualquer ser até que se prove o contrário,

90

4_Tessa_87_110.PMD 90 5/10/2007, 11:39


TESSA MOURA LACERDA

a prova cartesiana nos leva a uma conclusão moral de importância


para a vida prática — devemos agir conforme a suposição de que
Deus existe —, mas não fornece uma certeza matemática.
A argumentação dessa prova pressupõe que tudo o que se pode
predicar de uma noção deve ser atribuído à coisa definida. Antes de
atribuir a existência a Deus, porém, é preciso provar que a noção de
um ser que possui todas as perfeições e, portanto, dessa essência se
segue a existência, é possível. Com efeito, não basta considerar que
Deus tem uma grandeza ou uma perfeição suprema, isto é, que envolve
todos os graus de perfeição ou é o maior de todos os seres, pois também
podemos pensar em um número de todos os números, ou em um
movimento mais veloz que qualquer outro, e, no entanto, essas são
noções contraditórias — Leibniz recorre freqüentemente a esse
exemplo para mostrar a insuficiência da prova cartesiana: supondo-se
que uma roda gira com o movimento mais veloz, o que impede que se
prolongue o raio dessa roda e que, então, o ponto que tinha o
movimento mais veloz caia alguns graus em relação àquele que agora
está no extremo da roda? Eis por que também a prova cartesiana da
existência de Deus pela idéia que temos dele é criticada por Leibniz.
Segundo Descartes, há em nós a idéia de Deus porque pensamos nele
e não o faríamos se não tivéssemos a idéia de Deus; se essa idéia é a
idéia de um ser infinito e é verdadeira não poderia ser causada por
qualquer coisa menor que um ser infinito, portanto Deus é sua causa
e, logo, Ele existe. Naturalmente está em jogo a teoria de conhecimento
desses filósofos. Enquanto Descartes considera que não podemos
pensar em nada de que não tenhamos uma idéia, e nem mesmo falar
de algo sem essa condição4 , Leibniz afirma que a idéia é uma noção
possível: não temos a idéia do movimento mais veloz, porque se trata
de uma noção contraditória, e no entanto falamos e pensamos nele,

91

4_Tessa_87_110.PMD 91 5/10/2007, 11:39


CADERNOS ESPINOSANOS XV - 2006

“freqüentemente pensamos apenas confusamente naquilo de que


falamos, e não temos consciência da idéia que existe em nossa mente
a menos que entendamos a coisa e a decomponhamos em seus
elementos de maneira suficiente”5 . Daí a exigência de que se mostre
a possibilidade de uma essência que envolva existência ou da noção
de um ser que possui todas as perfeições em grau supremo. É claro
que a noção de Deus não é como todas as demais, porque dela
necessariamente se segue a existência, se for possível, enquanto
qualquer outra noção de que provemos a possibilidade não
necessariamente existe, tem uma existência possível. Mas não por isso
podemos nos privar de demonstrar a possibilidade da noção de Deus.
Se pensarmos a crítica do ponto de vista da teoria do
conhecimento podemos dizer, em resumo, que, para Leibniz, Descartes
se contenta com uma definição nominal de Deus, na medida em que
não mostra a possibilidade dessa noção e não chega, pois, a uma
definição real. Descartes deixaria o interlocutor no meio do caminho,
sem mostrar como ele pode dar os passos da premissa à conclusão do
argumento, “não basta que Descartes tenha invocado a experiência
e alegado o que sentia clara e distintamente nele mesmo, pois põe
um fim à demonstração sem acabá-la, a menos que mostre por que
meio outros podem chegar a uma experiência desse gênero”6 . Este é
o problema da experiência: sempre que se recorre à experiência no
curso de uma demonstração, afirma Leibniz, deve-se indicar aos outros
a maneira de fazer essa experiência se não quisermos convencê-los
pela autoridade. Mas para um filósofo preocupado com a forma lógica,
como Leibniz, o melhor mesmo é fornecer os argumentos in forma:
“Toda demonstração rigorosa que não omite nada que seja necessário
à força do raciocínio é desse tipo (...), uma vez que a forma ou a
disposição de todo esse raciocínio é causa da evidência”7. Diante

92

4_Tessa_87_110.PMD 92 5/10/2007, 11:39


TESSA MOURA LACERDA

dessa afirmação podemos supor que é possível estabelecer as prova


da existência de Deus com argumentos in forma e chegar, assim, a
uma definição real da noção do ser perfeitíssimo. Não deixa de ser
curioso que Leibniz se aplique em tantos textos a mostrar a insuficiência
do argumento cartesiano sem, no entanto, preencher explicitamente o
vazio que vê nessa argumentação. Talvez isso se explique ainda pela
teoria do conhecimento. Uma definição real, diz o filósofo8 , deve
provar a possibilidade do definido de maneira a priori, ou seja, quando
decompomos a noção em seus requisitos ou em outras noções de
possibilidade conhecida; se a análise foi levada a cabo e não surgiu
nenhuma contradição, então a noção é absolutamente possível. Eis o
papel da Característica no aperfeiçoamento da prova: os pensamentos
simples ou os números característicos exprimiriam os requisitos da
noção de Deus, ou seja, as formas simples que exprimem a essência
divina e são a fonte de tudo o que existe. As formas simples são os
elementos das coisas, os pensamentos simples, os elementos da
Característica. Nossas idéias convêm com as idéias de Deus nas mesmas
relações. Nossas idéias exprimem as idéias de Deus. Isso significa
que, se determinarmos o alfabeto dos pensamentos humanos, ou seja,
se forjarmos signos característicos que exprimam os termos simples
de nossos pensamentos, então, analogicamente poderemos, pela relação
entre esses termos, conhecer de que maneira as formas simples,
positivas e absolutas, que exprimem a essência divina, se relacionam
dando origem a uma variedade de idéias.
Mas qual é exatamente o projeto da Característica universal?
Em um dos esboços desse projeto 9 , Leibniz define sua
Característica universal estabelecendo uma distância entre seu projeto
e o misticismo de uma língua adâmica e da crença de que os números
escondem grandes mistérios. A Característica seria a atribuição a todas

93

4_Tessa_87_110.PMD 93 5/10/2007, 11:39


CADERNOS ESPINOSANOS XV - 2006

as coisas de um número característico próprio. A Característica


leibniziana diferiria também de uma língua universal capaz de ordenar
todas as noções e matérias, permitindo que cada um lesse em sua
própria língua o que outro escreveu na dele. A originalidade do projeto
de Leibniz em relação a essa língua universal capaz de harmonizar as
diferentes línguas naturais, segundo o próprio filósofo, é que sua
Característica universal envolveria ao mesmo tempo a arte de inventar
e a arte de julgar: os próprios caracteres funcionariam como os
caracteres matemáticos (que designam números na Aritmética e
grandezas na Álgebra). Leibniz descreve, então, seu percurso na
elaboração desse projeto: parte dos predicamentos, considerando que,
se há predicamentos ou noções simples, é possível criar predicamentos
complexos ou proposições e ordená-los de maneira natural, tal como
os geômetras10 . A partir da consideração dos predicamentos, Leibniz
concebe a idéia de um alfabeto dos pensamentos humanos11 . Propõe-
se, então, a construir uma Característica, dotada de uma gramática e
de um dicionário das ocorrências mais freqüentes, ou seja, obter os
números característicos de todas as idéias. E imagina que, fundando
um curso de filosofia e matemáticas, baseado em um novo método
indicado por ele, o projeto estaria pronto no espaço de sete anos!
Em linhas gerais, o audacioso projeto da Característica
universal consistiria em decifrar a estrutura da realidade. Se, como já
dizia Galileu, o livro do mundo está escrito em caracteres matemáticos,
então, ao decifrar os “caracteres” que exprimem a causa do mundo,
isto é, ao chegar aos nossos pensamentos simples que exprimem as
formas simples divinas, ao conhecer a maneira como as formas simples
que exprimem a essência de Deus se articulam no entendimento divino,
poderíamos efetivamente ler a realidade por meio dos caracteres
forjados em uma língua formal. Então, se fôssemos capazes de conhecer

94

4_Tessa_87_110.PMD 94 5/10/2007, 11:39


TESSA MOURA LACERDA

as formas simples, explicaríamos não só o real, mas também o possível?


Conheceríamos inteiramente a contingência e os possíveis
contingentes? O ser seria transparente, límpido? Nada haveria de
obscuro para nosso entendimento?
Se fosse esse o projeto que fracassou, podemos perguntar em
que medida houve efetivamente um fracasso. Porque, até que ponto
Leibniz acreditava que o entendimento humano pudesse, mesmo com
as limitações impostas pela nossa forma de conhecer, ou seja, por
nosso entendimento simbólico e incapaz de intuição, se igualar ao
entendimento divino? Não se tratava de um projeto destinado por
princípio ao fracasso? Era esse mesmo o projeto da Característica
universal? Leibniz o abandonou?
Textualmente Leibniz jamais afirmou que, por meio da arte
característica, o entendimento humano se igualaria ao entendimento
divino. Com efeito, ao elencar as vantagens que a Característica traria
para o conhecimento humano, Leibniz apresenta basicamente duas
aquisições decorrentes da construção dessa língua universal. A primeira
é acabar com as disputas entre os filósofos e a quem perguntasse “o
que faz vossa razão mais correta que a minha, que critério de verdade
vós possuís?”, responder simplesmente “Calculemos!”12 . Mas a
segunda é empregar a Característica para tudo o que depende de
conjecturas — as pesquisas de história civil e natural, a arte de examinar
os corpos naturais ou as pessoas sábias, o direito, a medicina, o
governo, etc. Nesse caso teríamos a escolha de, partindo de conjecturas,
determinar demonstrativamente o “grau de probabilidade” a partir dos
dados, ou, estabelecer uma “aproximação ao infinito”, e poderíamos,
então, “colocar na balança” prós e contras de cada decisão para escolher
“como o perfeito campeão nos jogos que misturam razão e sorte”13.

95

4_Tessa_87_110.PMD 95 5/10/2007, 11:39


CADERNOS ESPINOSANOS XV - 2006

Dois anos antes de sua morte, em 10 de janeiro de 1714, Leibniz


escreve a Rémond:
“Se eu tivesse sido menos disperso, ou se fosse
mais jovem ou assistido por pessoas jovens e bem
dispostas, teria esperanças de apresentar um tipo de
Espécime Geral, na qual todas as verdades de razão
seriam reduzidas a uma maneira de cálculo. Isso poderia
ser ao mesmo tempo uma espécie de língua ou escritura
universal, mas infinitamente diferente de todas aquelas
que foram projetadas até hoje, pois os caracteres e as
próprias palavras dirigiriam a razão, e os erros (com
exceção dos erros de fato) seriam apenas erros de cálculo.
Seria muito difícil formar ou inventar esta Língua ou
Característica, mas muito fácil aprendê-la sem qualquer
Dicionário. Ela serviria também para estimar os graus
de verossimilhança (quando não tivéssemos dados
suficientes para chegar a verdades certas) e para ver o
que é preciso para completar [as verdades]. E essa
estimativa seria das mais importantes para o uso da vida
e para as deliberações da prática, nas quais, estimando
as probabilidades, erramos o cálculo na maioria delas.”14

De acordo com essa carta podemos afirmar que, embora


Leibniz tenha de fato abandonado o projeto da Característica universal,
esse abandono se deu não por razões teóricas, mas por impedimentos
contingentes. O que a missiva deixa claro também é que Leibniz não
pretendia reduzir as verdades contingentes ou verdades de fato a
verdades de razão, mas apenas oferecer um meio de determinar com a
máxima probabilidade possível verdades sobre as quais jamais

96

4_Tessa_87_110.PMD 96 5/10/2007, 11:39


TESSA MOURA LACERDA

poderíamos ter uma certeza matemática. Eis talvez a explicação para


o fato de Leibniz jamais ter voltado à prova cartesiana da existência
de Deus, a não ser para criticá-la. Na carta à rainha Elisabeth, de
1678, Leibniz sugeria que seria possível mostrar a compatibilidade
das perfeições divinas ou das formas primitivas que exprimem a essência
de Deus servindo-se dos mesmos fundamentos de sua Característica.
Ora, na carta a Rémond, de 1714, o filósofo deixa claríssimo que a
Característica reduziria a uma espécie de cálculo todas as verdades
de razão, em outras palavras, as verdades necessárias. Se aplicássemos
os fundamentos da Característica na prova da existência de Deus
(como, aliás, Leibniz fez em 1676, em Quod Ens Perfectissimum
existit), mostraríamos a compatibilidade das formas simples sem jamais
poder justificar como dessa compatibilidade nasce a incompatibilidade
das essências individuais. A perfeição, dizia Leibniz em 1676, é uma
qualidade simples que é positiva e absoluta, ou seja, o que uma
perfeição exprime, exprime sem limites, porque, segundo o filósofo,
uma qualidade puramente afirmativa é infinita, tem tanta grandeza
quanto é possível. Uma vez que é simples, uma perfeição é também
indefinível, ou seja, não pode ser analisada, caso contrário ou não é
uma qualidade simples única, mas um agregado de qualidades, ou, se
é única, está contida dentro de limites de maneira que seria
compreendida e definida a partir de negações, mas nesse caso não
seria puramente positiva, o que contradiz a hipótese inicial. Ora, se as
perfeições são simples, positivas e absolutas, são necessariamente
compatíveis entre si. Dessa maneira, ao aplicar os fundamentos da
arte característica à prova da existência de Deus, mostraríamos que a
distinção entre as formas simples é uma distinção apenas de razão,
cada forma é expressão da essência divina, cada uma é uma perspectiva

97

4_Tessa_87_110.PMD 97 5/10/2007, 11:39


CADERNOS ESPINOSANOS XV - 2006

dessa essência, todas exprimem o mesmo e, juntas, constituem a própria


essência de Deus. Ora, os indivíduos ou as essências individuais
resultam da relação entre essas formas simples, compatíveis entre si,
mas as essências individuais distinguem-se umas das outras por uma
distinção real. E as essências individuais possíveis não são todas
compatíveis entre si, dão origem a universos incompossíveis uns em
relação aos outros. Como explicar que a contradição nasça daquela
compatibilidade original de perfeições? E é preciso explicar isso para
dar a razão da contingência. Ou, afirmar que se trata de algo
incompreensível e, então, silenciar sobre a maneira de mostrar a
compatibilidade das formas simples, para não ser levado a afirmar
com Deleuze15 que, para Leibniz, em algum lugar do entendimento
divino, o Um se combina ao zero, ou o ser ao nada, para dar origem à
variedade de mundos possíveis. Leibniz escolhe o silêncio:
“Quando Locke declara não compreender como
a variedade das idéias é compatível com a simplicidade
de Deus, parece-me que não deve deduzir daí uma objeção
contra o padre Malebranche; pois não há sistema que
possa fazer compreender uma tal coisa. Nós não podemos
compreender o incomensurável e mil outras coisas, cuja
verdade não deixa de nos ser conhecida, e temos o direito
de empregá-las para dar a razão de outras, que dependem
delas. Algo de próximo tem lugar em todas as substâncias
simples, em que há uma variedade de afecções na unidade
da substância.”16

Não podemos explicar como a variedade nasce da simplicidade


divina, como formas simples, absolutas e afirmativas, que são
compatíveis entre si, dão origem à incompatibilidade de mundos

98

4_Tessa_87_110.PMD 98 5/10/2007, 11:39


TESSA MOURA LACERDA

possíveis ou à incompossibilidade entre essências individuais. Entende-


se por que, depois de 1676, Leibniz jamais voltou a completar a prova
incompleta da existência de Deus deixada por Descartes, e se limitou
à crítica. Não se pode explicar, seguindo os fundamentos da arte
característica, a compatibilidade das perfeições divinas. Não se pode,
porque, assim, simplesmente reduziríamos o contingente à necessidade
ou à relação entre verdades de razão. Se nos fosse dado reduzir a
explicação da contingência à explicação das relações necessárias que
exprimem verdades eternas, seria preciso também excluir a contingência
essencial da criação de um mundo. Se fosse dado ao homem
compreender como as formas que se distinguem por uma diferença de
razão dão origem a seres realmente diferentes apenas pela consideração
de relações absolutamente necessárias (como são as relações entre
hipótese e conclusões nas ciências demonstrativas), seria preciso
admitir que a vontade divina não tem qualquer papel na criação, que
Seu entendimento por si só explica a criação, e que, portanto, a criação
é necessária, ou melhor, o mundo é necessário e a criação desnecessária.
Aceitemos que isso seja incompreensível para um entendimento
finito. O ideal leibniziano de um racionalismo integral “esbarra” na
finitude humana, criando um abismo entre a determinação racional
completa (do mundo, dos indivíduos e de Deus mesmo), para Deus, e
a indeterminação trazida pelo contingente, para o homem. Mas
poderíamos dizer que, uma vez que a impossibilidade de determinação
completa do real é uma impossibilidade de fato, não de direito, não há
nada que enfraqueça aquele racionalismo integral. Afinal, é ao homem
que é vedado o conhecimento dos dois extremos da tipologia das
verdades: como mostra F. Leopoldo e Silva17 , o homem não pode
conhecer o indivíduo singular porque, para isso, precisaria ter uma

99

4_Tessa_87_110.PMD 99 5/10/2007, 11:39


CADERNOS ESPINOSANOS XV - 2006

visão analítica de todos os elementos e conexões existentes na realidade


e de que dependem a determinação necessária do indivíduo e sua
inserção na totalidade; tampouco é capaz de conhecer as leis
universalíssimas que dão a razão de ser do mundo, pois para isso
precisaria ter uma visão da estrutura analítica da realidade. Mas se o
homem não pode conhecer nem a singularidade do particular, nem o
universal, nada se furta à onisciência divina, e o racionalismo integral
da realidade permanece intacto.
Se for assim, a Característica universal poderia ser considerada
uma espécie de “paliativo”, diante da impossibilidade de um
conhecimento humano enciclopédico, ou seja, a arte característica teria
lugar de um conhecimento adequado, embora seja a expressão
simbólica de verdades. Mas se a Característica é um “paliativo” é
porque jamais se pretendeu que o entendimento humano se igualasse
ao entendimento divino, ou seja, jamais se pretendeu que os homens
chegassem a conhecimentos plenamente adequados, a não ser quando
restritos a verdades de razão ou verdades matemáticas. O contingente
continuaria com sua sombra, qualquer que fosse o ângulo da
iluminação, a obscuridade jamais deixaria de ter lugar para o
conhecimento humano.
Lebniz sempre desconfiou do conhecimento intuitivo. Se jamais
negou definitivamente a possibilidade de um conhecimento adequado,
não acreditava que esse conhecimento poderia se dar por intuição.
Conhecemos, raciocinamos, descobrimos, provamos por símbolos, em
suma, o pensamento opera com símbolos. Não pensamos
expressamente, ou explicitamente, em todas as marcas que caracterizam
uma noção. Nem poderíamos. Cada pensamento envolve o infinito, as
idéias simples “são simples apenas em aparência, são acompanhadas
de circunstâncias que têm ligação com elas, ainda que essa ligação

100

4_Tessa_87_110.PMD 100 5/10/2007, 11:39


TESSA MOURA LACERDA

não seja entendida por nós, e essas circunstâncias oferecem alguma


coisa explicável e suscetível de análise”18 . Uma idéia verdadeiramente
adequada pressupõe a multiplicidade infinita de substâncias e a intuição
da totalidade desse múltiplo que se exprime em toda idéia. Talvez por
isso, sem jamais abandonar a idéia de uma Característica universal,
Leibniz abandona o projeto de um alfabeto dos pensamentos humanos
acreditando que os nomes primitivos, a partir dos quais se daria a
combinatória para a expressão e a descoberta de verdades, podem ser
postulados para a comodidade do cálculo, sem que sejam pensados
como termos últimos, atômicos “Não existe átomo (...). Segue daí
que em cada partícula do universo está contido um mundo de infinitas
criaturas (...). Não há nenhuma figura determinada nas coisas, porque
nenhuma figura pode satisfazer às infinitas impressões”19 .
Por outro lado, a Característica universal, como instrumento
de comunicação universal — que remete à preocupação de Leibniz
com a questão irênica —, não é jamais pensada como uma língua
universal isenta de ambigüidade ou uma língua filosófica que elimine a
confusio linguarum da linguagem natural celebrada como um fato
positivo por quem, como afirma Umberto Eco, “ficara sempre
fascinado pela riqueza e pluralidade das línguas naturais, a cujas
gerações e filiações dedicara tantas pesquisas”20 . Admitindo a
impossibilidade de fato de descoberta da língua adâmica e o absurdo
da hipótese de voltar a praticá-la, Leibniz pensa a Característica como
a criação de uma linguagem científica, um instrumento de descoberta
da verdade, não como um substituto formal, artificial, da primitiva
língua dos homens.
É preciso levar em conta duas coisas em relação à Característica
universal. Em primeiro lugar, o que fundamenta a idéia de uma
linguagem científica como essa são os pensamentos cegos, isto é,

101

4_Tessa_87_110.PMD 101 5/10/2007, 11:39


CADERNOS ESPINOSANOS XV - 2006

pensamentos que manipulam símbolos sem que se faça necessário


evocar as idéias que lhes correspondem, anulando a necessidade de
uma análise exaustiva das idéias que tornaria a descoberta de verdades
praticamente inviável ou bastante demorada. Assim, a Característica
retira sua força da forma do cálculo, que tem um de seus modelos na
álgebra, e não no significado dos termos, a sintaxe dessa linguagem é
mais importante que a semântica. A Característica permitiria a
realização de um cálculo com rigor quantitativo, embora com a
utilização de noções qualitativas: como na álgebra e na aritmética, em
que “qualquer raciocínio consiste no uso de caracteres [isto é, sinais
escritos, ou desenhados], e todo erro mental é um erro de cálculo”21 ,
a Característica, diz Leibniz, seria o um cálculo feito a partir de
caracteres que substituem pensamentos primitivos e com os quais seria
possível formar caracteres de noções derivadas, das quais,
inversamente, é possível deduzir os requisitos, ou seja, definições e
valores, e as modificações deriváveis das definições. “Uma vez feito
isso”, conclui o filósofo, “quem ao raciocinar e ao escrever se servisse
dos caracteres assim descritos, ou jamais cometeria erros, ou os
reconheceria sempre por si mesmo, sejam seus ou dos outros, por
meio de exames facílimos.”22 Suponhamos que Leibniz não tivesse
decidido abandonar a construção de um alfabeto dos pensamentos
humanos e que a Característica — embora a criação dessa linguagem
não dependa necessariamente desse alfabeto — fosse, então, produzida
a partir de símbolos que exprimissem pensamentos primitivos que estão
na origem de qualquer outro pensamento. Ainda assim, não haveria
uma adequação absoluta de um conhecimento intuitivo. Existiria sim
uma certeza matemática no raciocínio, mas nem por isso o pensamento
seria transparente para si mesmo. Se o “imenso edifício filosófico
lingüístico” de Leibniz, para usar a expressão de Umberto Eco, é

102

4_Tessa_87_110.PMD 102 5/10/2007, 11:39


TESSA MOURA LACERDA

erguido sobre o fundamento dos pensamentos cegos, Leibniz jamais


pretendeu que o conhecimento humano alcançasse a clareza da intuição
— cartesiana ou espinosana. Jamais pensou que fosse humanamente
possível esclarecer a obscuridade, iluminar com clareza meridiana o
fundo obscuro subjacente em cada pensamento distinto. Por melhor
elaborados que fossem os caracteres dessa linguagem universal, seriam
ainda e sempre caracteres, símbolos, expressivos, mas símbolos.
Todavia, e em segundo lugar, como mostra Lebrun, quando
Leibniz pensa uma homogeneidade de direito entre os sentidos e o
entendimento — pelo que é criticado por não preservar a diferença de
natureza do sensível em relação ao inteligível, relegando aquele à
função de deformar as representações do entendimento — “é porque
nenhum signo, no limite, é signo de instituição; ou melhor, é porque
desaparece a fronteira entre signos naturais e signos de instituição,
substitutos que mostram e substitutos que dissimulam a razão de sua
relação com a coisa.”23 É por isso que o símbolo para Leibniz não
pode nunca ser totalmente equívoco, porque, na medida em que
exprime uma coisa, uma idéia, um símbolo não traduz a coisa, nem
substitui a idéia, ele é a coisa ou a idéia sob uma determinada
perspectiva. O símbolo não é um índice, sugere Lebrun, mas um perfil
da coisa: Leibniz não distingue a apresentação da coisa de uma
indicação dela por substituição e, por isso, todo conhecimento pode
ser pensado como representação, ou apresentação, porque estar
representado não é mais pensado a partir da metáfora da visão. Ser
exprimido não é nunca ser expresso ou explícito, não é jamais ser uma
cópia de um original. Se o símbolo oculta algo da coisa ou da idéia
não se trata de uma relação visível, de uma semelhança em sentido
visual, mas da lei correspondência, que exprime a coisa ou a idéia,
que a apresenta, mas de maneira analógica. Há um jogo entre o que o

103

4_Tessa_87_110.PMD 103 5/10/2007, 11:39


CADERNOS ESPINOSANOS XV - 2006

símbolo apresenta e o que esconde, ou melhor, envolve, implica, de


maneira não explícita. É isso que caracteriza a expressão leibniziana.
O que um símbolo “oculta” é precisamente a lei de correspondência, a
harmonia que mantém a analogia entre o que exprime e o exprimido;
mas é assim que ele é a expressão de alguma coisa. O símbolo é a
coisa sob determinada perspectiva. Não há como anular a sombra que
permanece sob o que é distintamente percebido, mas isso não é uma
carência do símbolo, é constitutivo dele; mais que isso, se não há
como anular as diferenças ontológicas de pontos de vista, ainda menos
poderíamos pretender anulá-las formalmente, e essa é a riqueza do
mundo leibniziano, é isso que faz a variedade do mundo. Leibniz não
rejeita o adequado, de alguma maneira a adequação permanece como
um ideal possível e o termo “adequado” nunca deixou de fazer parte
da classificação leibniziana dos tipos de conhecimento, mas é Leibniz
quem diz: “não sei se os homens podem oferecer um exemplo perfeito
deste [conhecimento adequado], embora a noção dos números se
aproxime bastante dele”24 . Imaginar que podemos emergir do fundo
obscuro e, desprezando a perspectiva inerente a cada indivíduo, chegar
a uma expressão plenamente unívoca, seria o mesmo que pensar os
homens como deuses, ou espíritos sem corpos, seria desprezar a
singularidade de cada ser individual. Mas a sabedoria, diz Leibniz,
está em variar: “Multiplicar unicamente a mesma coisa, por mais
nobre que ela seja, seria supérfluo, seria uma pobreza: ter mil Virgílios
bem encadernados na biblioteca, cantar sempre as árias da Ópera
de Cadmus e de Hermione, quebrar todas as porcelanas para não ter
senão xícaras de ouro, ter botões somente de diamante, comer apenas
perdiz, beber somente vinho da Hungria ou de Shiras; isso poderia
ser chamado de razão?” 25

104

4_Tessa_87_110.PMD 104 5/10/2007, 11:39


TESSA MOURA LACERDA

A filosofia expressiva de Leibniz, porque inclui na concepção


de expressão a analogia e a harmonia, é uma filosofia simbólica, Leibniz
jamais separa a expressão dos signos e das variações que eles trazem
— em cada expressão, o distinto e o confuso variam. Mas o símbolo
para Leibniz não é mistificador, como para Espinosa. E o obscuro é
precisamente o que faz a riqueza de um universo em que cada ponto
de vista é como um mundo inteiro, e o mundo é multiplicado por cada
uma das várias perspectivas individuais, por cada expressão singular
do todo.
Se a gênese da teoria da expressão leibniziana está em suas
reflexões sobre a Característica universal, como sugere Lamarra26 ,
então o que poderia ser visto como um fracasso (o fato do projeto da
Característica ter permanecido inacabado) é na verdade a origem de
uma complexa rede explicativa capaz de dar conta dos principais temas
da filosofia de Leibniz. A teoria da expressão, definida pela primeira
vez em 1678, no opúsculo O que é idéia, permite articular as reflexões
de Leibniz sobre as matemáticas, a teologia, a ontologia e a
epistemologia. E, certamente, o silêncio de Leibniz sobre a prova da
existência de Deus a partir do fim da década de 70 diz muito sobre a
maneira como o filósofo vai conceber a expressão e sobre o papel que
vai reservar, no interior da idéia de expressão, ao obscuro, ao confuso,
ao invisível.

105

4_Tessa_87_110.PMD 105 5/10/2007, 11:39


CADERNOS ESPINOSANOS XV - 2006

Bibliografia

Deleuze, G. – Spinoza et le probleme de l’expression. Paris: Minuit,


1968.
Descartes – Oeuvres. Publiées par C. Adams e P. Tannery. 11 volumes.
Paris: Vrin, 1971.
Eco, U. – A busca da língua perfeita. Bauru: Edusc, 2001.
Lamarra, A. – “Sur l’origine de la theorie de l’expression dans la
philosophie de Leibniz” in Recherches sur le XVIIe siècle, número 5.
Lebrun, G. – “A noção de ‘semelhança’ de Descartes a Leibniz” in
Dascal, M. (org.) – Conhecimento, linguagem, ideologia. São Paulo:
Perspectiva, 1989.
Leibniz - Die philosophischen Schriften. Ed. C. I. Gerhardt, 7 vols.,
Berlin, Halle: 1949-63; reimpressão Hildesheim, 1962 (citado PS,
seguido do volume e da página).
______ - Escritos Filosoficos, Edição de Ezequiel de Olaso, Buenos
Aires, Charcas, 1982.
______ - Essais de Théodicée. Paris: Flammarion, 1969.
______ - Nouveaux Essais. Paris: GF- Flammarion, 1990.
______ - Recherches générales su l’analyse des notions et des vérités.
Introduction et notes par J.-B. Rauzy. Paris: PUF, 1998.
______ - Sämtliche Schriften und Briefe, herausgegeben von der
deutschen Akademie der Wissenschaften zu Berlin.
Leopoldo e Silva, F. – “Universalidade e simbolização em Leibniz”,
publicado neste número dos Cadernos espinosanos.

106

4_Tessa_87_110.PMD 106 5/10/2007, 11:39


TESSA MOURA LACERDA

Notas

1
Leibniz – “Carta a Elisabeth, 1678”, in Die philosophischen Schriften.
Ed. C. I. Gerhardt, 7 vols., Berlin, Halle: 1949-63; reimpressão
Hildesheim, 1962 (doravante citado PS, seguido do volume e da
página) – IV, p.296.
2
Leibniz – “Meditações sobre o conhecimento, a verdade e as idéias”,
PS, IV, p.425.
Tradução argentina in Escritos Filosoficos, Edição de Ezequiel de
Olaso, Buenos Aires, Charcas, 1982. – p.275.
3
Leibniz – Novos Ensaios, IV, x, §7. Paris: GF- Flammarion, 1990
(citado NE, seguido de livro e artigo) – p.345.
4
Cf. Descartes – A Mersenne. Oeuvres de Descartes. Publiées par C.
Adams e P. Tannery. 11 volumes. Paris: Vrin, 1971 – III, p.393.
5
Leibniz – “Observações sobre parte geral dos Princípios de
Descartes”, §18. PS, IV, p. 360.
Tradução argentina in Escritos Filosoficos, Buenos Aires: Editorial
Charcas, 1982 – p.422.
6
Leibniz – Quod Ens Perfectissimum existit. Sämtliche Schriften und
Briefe, herausgegeben von der deutschen Akademie der Wissenschaften
zu Berlin, VI, iii, p.578-579.
Tradução francesa in Recherches générales su l’analyse des notions
et des vérités. Introduction et notes par J.-B. Rauzy. Paris: PUF, 1998.
– p. 28.
7
Leibniz – “Carta a Elisabeth, 1978”, PS, IV, p.295.
8
Leibniz – “Meditações sobre o conhecimento, a verdade e as idéias”,
PS, IV, p.425.
Tradução argentina in Escritos Filosoficos, Edição de Ezequiel de
Olaso, Ed. cit. – p.275.

107

4_Tessa_87_110.PMD 107 5/10/2007, 11:39


CADERNOS ESPINOSANOS XV - 2006

9
Sem título, PS, VII – p.184-189 (tradução francesa in Recherches
générales sur l’analyse des notions et des vérités. Paris: PUF, 1998 –
p.63-70).
10
“eu ignorava que os geômetras, quando colocam as proposições
segundo a ordem que permite demonstrá-las umas a partir das outras,
fazem exatamente o que eu desejava.” PS, VII – p.185 (tradução
francesa in Recherches générales sur l’analyse des notions et des
vérités. Ed. cit. – p.65).
11
“Assiduamente dedicado a essa tarefa, era inevitável que eu
chegasse a esta consideração admirável, a saber, que se pode elaborar
um alfabeto dos pensamentos humanos e que a combinação das letras
desse alfabeto, juntamente com a análise das palavras feitas com
elas, permitiriam encontrar e discernir todas as coisas.” PS, VII –
p.185 (tradução francesa in Recherches générales sur l’analyse des
notions et des vérités. Ed. cit. – p.66).
12
PS, VII – p.200 (tradução francesa in Recherches générales sur
l’analyse des notions et des vérités. Ed. cit. – p.163). Cf. também PS,
VII – p.188 (tradução francesa in Recherches générales sur l’analyse
des notions et des vérités. Ed. cit. – p.69).
13
PS, VII – p.201 (tradução francesa in Recherches générales sur
l’analyse des notions et des vérités. Ed. cit. – p.163).
14
PS, VII, Einleitung.
15
Deleuze, G. – Spinoza et le probleme de l’expression. Paris: Minuit,
1968 – p.306.
16
[Zu Lockes Urteil über Malebranche], PS, VI – p.576.
17
Cf. Leopoldo e Silva, F. – “Universalidade e simbolização em
Leibniz”, publicado neste número dos Cadernos espinosanos – p. 49.
18
Leibniz – NE, III, iv, §16. Ed. cit. – p.232-233.

108

4_Tessa_87_110.PMD 108 5/10/2007, 11:39


TESSA MOURA LACERDA

19
Leibniz – Opuscules et fragments inédits (ed. par L. Couturat).
Paris: Alcan, 1903 – pp. 518-23.
20
Eco, U. – A busca da língua perfeita. Bauru: Edusc, 2001 – p.327.
21
Leibniz citado por Eco, U. – A busca da língua perfeita. Ed. cit. –
p. 338.
22
Leibniz citado por Eco, U. – A busca da língua perfeita. Ed. cit. –
p. 338.
23
Lebrun, G. – “A noção de ‘semelhança’ de Descartes a Leibniz” in
Dascal, M. (org.) – Conhecimento, linguagem, ideologia. São Paulo:
Perspectiva, 1989 – p.53-54.
24
Leibniz – PS, IV, p.423.
25
Leibniz – Teodicéia, II, §124. Paris: Flammarion, 1969 – p.181.
26
Lamarra, A. – “Sur l’origine de la theorie de l’expression dans la
philosophie de Leibniz” in Recherches sur le XVIIe siècle, número 5 –
p. 78-83.

109

4_Tessa_87_110.PMD 109 5/10/2007, 11:39


CADERNOS ESPINOSANOS XV - 2006

110

4_Tessa_87_110.PMD 110 5/10/2007, 11:39


ERICKA MARIE ITOKAZU

A filosofia espinosana para além do corpo-


máquina: o paralelismo em questão*
ERICKA MARIE ITOKAZU**

Resumo: Pretendemos analisar alguns trechos da Ética para buscar


compreender uma célebre indagação espinosana: o que pode um corpo?
Tradicionalmente, é a mente que governa o corpo. Tudo o que surge
como criação ou inovação segue-se de uma ação da mente sobre o
corpo. Não sendo este mais do que o lugar das relações necessárias,
mecânicas ou, ainda pior, o lugar dos pecados, a liberdade não viria
senão da sujeição do corpo pela mente. Esta não seria ativa senão na
medida em que aquele fosse passivo. Com Espinosa, esse tradicional
ponto de vista é inteiramente invertido e é esta inversão que acaba por
dar sentido à questão “o que pode um corpo?” Com Espinosa, corpo
e mente deverão ser ativos juntos ou passivos juntos. O corpo ocupa
um lugar proeminente. Será ele também capaz de criação. Será ele um
dos fulcros da liberdade. Eis o trabalho que procuramos empreender
neste artigo. E, se muito já se escreveu sobre como, no século XVII,
o corpo deixa de ser o lugar das doenças e pecados para tornar-se o
lugar das relações necessárias e mecânicas, a inovação espinosana
está justamente em ir para além do corpo-máquina. Contudo, o alcance
desta empreita está estreitamente vinculado a certa tradição de

*
A redação deste artigo muito se deve à contribuição feita por outros pesquisadores
no XII Encontro da ANPOF, realizado em Salvador Bahia em 2006. A compreensão
do que seria o mecanicismo em Espinosa tornou-se fundamental, o que nos levou
a discuti-lo oportunamente no III Congresso Spinoza realizado na Univesidad
Nacional de Córdoba, e que resultou na publicação do resumo da comunicação
como “Spinoza y el mecanicismo en el siglo XVII: ¿una herencia cartesiana?”
Desde então, as articulações internas sobre o mecanicismo foram sopesadas e
reelaboradas, alguns argumentos acrescidos,e a recusa à interpretação do
paralelismo em Espinosa acabou recebendo a ênfase e destaque que ora procuramos
analisar neste artigo.
**
Doutoranda em História da Filosofia pelo Departamento de Filosofia da USP.

111

5_Ericka_111_138.PMD 111 5/10/2007, 11:39


CADERNOS ESPINOSANOS XV - 2006

comentadores que defendem o paralelismo na relação corpo e mente.


A reflexão acerca do paralelismo faz-se portanto necessária para
compreender como o sentido desta indagação espinosana suscita o
desvelamento de todo um horizonte que se abre, finalmente, para o
corpo e a liberdade.
Palavras-chave: corpo, corpo-máquina, mecanicismo, relação corpo/
mente, singularidade.

Abstract: We intend to analyze some passages from Ethics in order


to understand a renowned Spinozian quote: what’s a body capable of?
Traditionally, the mind has dominion over the body. Everything which
becomes real through creation or innovation comes from an action of
the mind over the body. The body being nothing more than the field of
necessary and mechanical relations, or worse, the place of sins, free-
dom would come by the subjection of the body by the mind. The mind
could not be active unless the body were passive. For Spinoza, this
traditional point of view is completely inverted, and, based on this
inversion, we can figure out the meaning of the quote: “what’s a body
capable of?” According to Spinoza, body and mind must be active or
passive together. The body has a prominent role. It’s also capable of
creating. It is one of the fulcrums of freedom as well. That is what we
intend to discuss in the present article. And, if much has been written
on how, in the XVII century, the body ceases to be the place of sick-
ness and of sins to become the place of necessary and mechanical
relations, the innovation in Spinoza consists precisely in going beyond
the body-machine concept. However, the reach of this undertaking is
closely linked to a certain tradition of commentators who defend par-
allelism in the relation between body and mind. The reflection upon
parallelism is, therefore, necessary for the understanding of how the
meaning of the Spinozan quote brings forth the unfolding of a whole
new horizon, which lays open, at long last, for both body and free-
dom.
Key-words: body, body-machine, mechanicism, body/mind relation,
singularity.

112

5_Ericka_111_138.PMD 112 5/10/2007, 11:39


ERICKA MARIE ITOKAZU

I – A geometrização do movimento e o mecanicismo

Os céus e a Terra. Infinita parece ser a distância que os separa.


E a incomensurabilidade de tal distância não se encontra em nenhuma
grandeza. O que separa os céus e a Terra não é passível de ser medido.
Pelo contrário. O Cosmo, na sua concepção clássica e medieval, era
uma unidade fechada de um Todo. Um todo finito, qualitativamente
determinado em esferas concêntricas de realidades distintas cuja
estrutura espacial revelava uma hierarquia de valor e perfeição: a
incorruptibilidade e luminosidade dos céus, a opacidade surda da
corrupção presente nos movimentos percebidos na Terra. A distância
que separa o que contemplamos nos céus do que percebemos na Terra
é incomensurável porque não há medida comum entre desiguais, entre
heterogêneos que, como tais, são legislados por leis distintas.
Um Cosmo finito e hierárquico. Eis o lugar abandonado com a
revolução científica do século XVII. Isento de diferenças, a
geometrização do espaço tornou o campo da extensão homogêneo e
uniforme para todo domínio da matéria, seja a de corpos celestes ou
terrestres, abrindo-lhes um campo isonômico de uma natureza que
até então nenhum homem percebera e jamais concebera: Du monde
clos à l’univers infini, nos dirá Alexandre Koyré. E se este universo
infinito está escrito em caracteres matemáticos, é porque nele não há
hierarquias, nem há lugar para as diferenças qualitativas. Contudo, se
abandonamos um Cosmo todo ele organizado e ordenado, como não
nos sentirmos abandonados neste universo homogêneo e infinito?
Como não nos perdermos em seus tantos labirintos indiferenciáveis,
um universo cujo centro está em toda parte, e no qual navegamos
num mar infinito sem quaisquer referências?

113

5_Ericka_111_138.PMD 113 5/10/2007, 11:39


CADERNOS ESPINOSANOS XV - 2006

Enveredar pelos meandros da infinitude exigia uma tomada de


atitude, uma nova postura frente a uma nova natureza. Exatamente
por este motivo, Alexandre Koyré afirma que esta revolução científica
realiza uma conversão: da scientia contemplativa para scientia activa,
da teoria para a práxis. Deixamos de ser espectadores para tornarmo-
nos senhores e mestres da natureza. Ler este grande livro
continuamente aberto, navegar por este universo infinito, exige
portanto a construção de instrumentos intelectuais sem os quais
vagaríamos errantes sem bússola a nos nortear na terra, sem astrolábio
a nos guiar no mar. Eis como configuram-se dois projetos inovadores
característicos do seiscentos: a geometrização do movimento e o
mecanicismo.
“o abandono da concepção clássica e medieval
do Cosmo (...) e sua substituição pela do Universo, isto
é, de um conjunto aberto e indefinidamente extenso do
Ser, unido pela identidade das leis fundamentais que o
governa, determina a fusão da física celeste com a física
terrestre, e permite a esta última utilizar e aplicar a seus
problemas os métodos matemáticos hipotético-dedutivos
desenvolvidos pela primeira; implica também a
impossibilidade de estabelecer e de elaborar uma física
terrestre ou, pelo menos, uma mecânica terrestre, sem
desenvolver simultaneamente uma mecânica celeste”1

Mecanicismo e geometrização do movimento não são projetos


idênticos: que Galileu tenha aberto a senda para a geometrização do
movimento, tão fortemente defendida por Descartes em seu grande
sonho pela reductione scientiae ad geometriam, a identificação da
extensão à matéria na filosofia cartesiana muito o distancia da física-

114

5_Ericka_111_138.PMD 114 5/10/2007, 11:39


ERICKA MARIE ITOKAZU

matemática galileana2 . Que o atomista Gassendi seja considerado


mecanicista tanto quanto Descartes, que justamente recusava a
existência dos átomos e para quem o vazio não tinha lugar; que a
física de Pascal seja defendida como mecanicista que, por sua vez,
admite o vazio... Como coadunar tantas dessemelhanças sob nomes
tais como “mecanicismo” ou “geometrização do movimento”?
O que há de comum na ousada empreita? Uma nova postura
que colapsou a tradição escolástico-aristotélica e sua autoridade no
conhecimento dos domínio da matéria. O mecanicismo, mais que um
sistema filosófico preciso, é um conjunto de novas atitudes no estudo
da natureza, uma recusa a toda finalidade e a toda diferença qualitativa,
e o seu desafio será, portanto, o de explicá-la de um ponto de vista
quantitativo, restringindo a explicação dos fenômenos corporais
somente à relação entre corpos. Sem apelo a nada que seja externo ao
domínio da matéria, o mecanicismo acaba, finalmente, por conferir
certa autonomia ao conhecimento na esfera dos corpos. Não é por
acaso que a geometrização do movimento ergueu-se como o seu mais
excelente instrumento, porquanto torna possível “reconstruir os
fenômenos do movimento no interior do domínio de uma
inteligibilidade geométrica de tal sorte que os fenômenos, submetidos
à razão geométrica, sejam objetos passíveis de serem deduzidos sob o
modelo dos Elementos de Euclides.”3
Nesta revolução científica, segundo Koyré, encontramos o
nascedouro da física moderna que tem na lei da inércia a sua lei
fundamental (seja implicitamente articulada, como na mecânica de
Galileu, seja explicitamente enunciada, como no caso da de Descartes)
que permite avançar e seguir adiante na formulação de uma mecânica
celeste em perfeita concordância com uma mecânica terrestre. E
Descartes parece ser o primeiro a perceber o alcance destes

115

5_Ericka_111_138.PMD 115 5/10/2007, 11:39


CADERNOS ESPINOSANOS XV - 2006

instrumentos intelectuais. O completo domínio e autonomia do


conhecimento dos corpos deve abarcar, além dos céus e da Terra, um
corpo de outro gênero: o corpo humano. Tanto o mecanicismo quanto
a geometrização do movimento parecem poder tornar cognoscível a
dinâmica e a estrutura do corpo humano sob as mesmas leis pelas
quais se explicam quaisquer outros fenômenos da natureza4 .

II – O corpo humano em Espinosa e Descartes: o mecanicismo


em questão

Distanciando-se da perspectiva qualitativa e do finalismo, o


corpo humano, outrora visto como antro inóspito de moléstias e
pestilências, mestre dos vícios e prisão da alma, porque compartilha
da mesma natureza de qualquer outro corpo físico, pode agora tornar-
se objeto do conhecimento a ser iluminado pela racionalidade
geométrica, assim como explicado pela dinâmica própria aos corpos
pelo seu mecanicismo. Não é por outro motivo que René Guénon5
associa a autonomia dos estudos dos corpos onde a reina a quantidade
como parte do mesmo movimento moderno de desligamento da esfera
profana do sagrado.
Charles Ramond reconhece no projeto seiscentista a cuidadosa
construção mecanicista do corpo humano que afasta o finalismo,
extingue as almas vegetativa e sensitiva, porém, pergunta ele, a que
preço? A crítica de Charles Ramond vai mesmo nesta direção: após
ter mostrado “tão claramente quanto possível a separação, no homem,
de domínios distintos do corpo e do pensamento, os filósofos do XVII
[no qual estão incluídos Descartes, Espinosa, Pascal e Leibniz] só
puderam encontrar sua união, no homem, bastante obscura – todo
progresso no conhecimento do corpo humano parecendo dever ser

116

5_Ericka_111_138.PMD 116 5/10/2007, 11:39


ERICKA MARIE ITOKAZU

pago por um recuo no conhecimento do corpo humano6 . É nesta toada


que segue Chantal Jaquet ao analisar o emblemático homem-máquina
cartesiano, tal qual fora apresentado no Tratado do Homem:
Desejo que se considere que estas funções seguem,
naturalmente nesta máquina, somente da disposição de
seus órgãos, nem mais nem menos que os movimentos de
um relógio ou de outro autômato que se movimenta pelo
contrapeso de suas rodas; de tal maneira que não é
necessário, neste caso, conceber nesta máquina nenhuma
outra alma vegetativa, nem sensitiva, nem outro princípio
de movimento e de vida senão seu sangue e seus espíritos
agitados pelo calor do fogo que arde continuamente em
seu coração, e que não é de modo algum de outra natureza
que todos os fogos que são nos corpos inanimados7

Criticando o mecanicismo cartesiano, Jaquet denuncia a


redução do corpo humano à máquina que, negando-lhe toda
especificidade, torna impossível à primeira vista distinguir o corpo
de um homem do de um autômato. O animal-máquina é submetido
ao princípio de inércia como os outros corpos inanimados, de sorte
que ele não possui leis próprias. “Em suma”, conclui Chantal acerca
do mecanicismo, “Descartes e seus herdeiros explicam a vida
suprimindo-a”8.
Sem dúvida nenhuma, Espinosa é herdeiro de Descartes em
diversos aspectos, contudo, em que medida e até aonde segue a herança
cartesiana para compreender o corpo humano? Diferentemente da
maioria dos comentadores que iniciam a análise comparativa entre
Espinosa e Descartes tendo por base o Tratado do Homem cartesiano
em diálogo com a parte II da Ética espinosana, Martial Guéroult parece

117

5_Ericka_111_138.PMD 117 5/10/2007, 11:39


CADERNOS ESPINOSANOS XV - 2006

ser o primeiro e mais proeminente comentador a perceber que a


compreensão do mecanicismo de cada autor está estreitamente
vinculada à maneira como cada filósofo tratou a geometrização do
movimento. Eis porque destacou como princípio fundante das
diferenças entre Descartes e Espinosa os modelos físicos que orientam
os filósofos: o paradigma dos fluidos e do turbilhão condiciona a
identidade do corpo em Descartes à permanência de sua massa
(relação de grandeza quanto ao volume) e, em segundo lugar, pela
manutenção da mesma quantidade de movimento. Diferentemente, o
paradigma dos sólidos e do pêndulo composto condiciona em Espinosa
a identidade do corpo à proporção constante de movimento e repouso
entre as partes que compõem o indivíduo.

DEFINIÇÃO.
Quando alguns corpos de mesma ou diversa
grandeza são constrangidos por outros de tal maneira
que aderem uns aos outros, ou se movem com o mesmo
ou diverso grau de rapidez, de tal maneira que comunicam
seus movimentos uns aos outros numa proporção certa,
dizemos que esses corpos estão unidos uns aos outros e
todos em simultâneo compõem um só corpo ou Indivíduo,
que se distingue dos outros por essa união de corpos.

LEMA 5.
Se as partes componentes de um Indivíduo se
tornam maiores ou menores, mas em proporção tal que,
como dantes, todas conservam umas com as outras a
mesma proporção de movimento e de repouso, da mesma
maneira o Indivíduo manterá a sua natureza de antes
sem nenhuma mutação de forma.9

118

5_Ericka_111_138.PMD 118 5/10/2007, 11:39


ERICKA MARIE ITOKAZU

Guéroult pergunta-se sobre esta definição espinosana e suas


derivações na parte que se consagrou como sua “pequena física”:
“Quais idéias científicas inspiram a teoria espinosana dos corpos
compostos? O que entender por esta proporção de movimento e
repouso entre as partes que compõem o corpo? (...) Para responder
esta questão é necessário referirmo-nos às pesquisas dos
contemporâneos acerca da dinâmica dos sólidos, especialmente àquelas
que concernem ao problema dos centros de oscilação, bastante célebre
na segunda metade do XVII”10.
As considerações acerca das descobertas de Huygens,
acompanhadas de perto por Espinosa, levam Guéroult a concluir que
o modelo é o centro de oscilação em pêndulos compostos tal como
fora calculado por Huygens, e que torna possível não somente pensar
um movimento composto por vários outros movimentos simultâneos
com variações de grandeza e massa, mas também, a partir de todas
estas variantes calcular e extrair uma proporção constante. Conclui
Guéroult: “Considerando não a quantidade imutável de movimento,
mas a proporção imutável de movimento e repouso imposta às suas
partes, o conjunto do universo é comparável a um gigantesco pêndulo,
cujo ritmo eterno é absolutamente invariável pelo fato de que ele não
pode ser submetido a nenhuma ação perturbadora que venha de fora.”11
Tal conclusão parece, à primeira vista, bastante razoável para
compreender, num recorte bastante preciso, a parte final da pequena
física espinosana:

Concebemos um Indivíduo que não é composto


senão de corpos que se distinguem entre si apenas pelo
movimento e repouso. (...) Se, além disso, concebermos
um terceiro gênero de Indivíduos, compostos de Indivíduos

119

5_Ericka_111_138.PMD 119 5/10/2007, 11:39


CADERNOS ESPINOSANOS XV - 2006

deste segundo gênero, da mesma maneira descobriremos


que podem ser afetados de muitas outras maneiras, sem
nenhuma mutação de sua forma. E se continuarmos assim
ao infinito, conceberemos facilmente que a natureza
inteira é um Indivíduo, cujas partes, isto é, todos os
corpos, variam de infinitas maneiras, sem nenhuma
mutação do Indivíduo inteiro.12

Qual a diferença entre as concepções de corpo em Espinosa e


Descartes? Diferença técnica, afirma-nos Guéroult: “porque Espinosa
substitui o modelo mecânico do turbilhão pelo do pêndulo”, e diferença
de espírito: “porque ampliando sem limites o campo das idéias claras
e distintas, e eliminando de fato a união substancial da mente e do
corpo, Espinosa dá conta da estrutura do corpo humano pelo
mecanicismo somente, o que Descartes reservava à explicação de todos
os outros corpos”15 . O corpo humano, tal qual definido por Espinosa
como um indivíduo composto por outros indivíduos compostos, e
que juntamente a outros, forma indivíduos de segundo e terceiro
gênero, compondo assim sucessivamente ao infinito, parece finalmente
poder ser inserido na mesma malha mecanicista dos outros corpos.
Eis que se atingiria a tão desejada autonomia à totalidade do domínio
da extensão. E se o projeto seiscentista gabava-se por construir uma
mecânica celeste e uma mecânica terrestre sob as mesmas leis, Espinosa
parece ir além, inserindo, nesta mesma cadeia explicativa, também
uma mecânica humana. E a passagem do âmbito macroscópico ao
microscópico de corpos, sejam eles animados ou não, fora possível de
ser deduzida pela noção de “proporção” de movimento e repouso:
para todas as mecânicas, seu fundamento é construído por uma
racionalidade puramente geométrica.

120

5_Ericka_111_138.PMD 120 5/10/2007, 11:39


ERICKA MARIE ITOKAZU

O mecanicismo em Espinosa, poderia reforçar a sua extrema


fidelidade ao legado cartesiano? Teria ele finalmente concretizado o
sonho de reductione scientiae ad geometriam, justamente onde
Descartes falhara? Expliquemo-nos: se o fundamento da identidade
do corpo cartesiano depende da manutenção da quantidade de
movimento determinada por certo turbilhão, assim como da
manutenção da massa deste corpo na persistência de um mesmo volume
sob a diversidade cambiante de suas figuras, como explicar a identidade
do homem desde infância à vida adulta? Para responder a este problema,
Descartes tem que lançar mão da alma ou espírito que ao informar o
corpo humano garante-lhe a identidade e a unidade. O modelo
mecanicista do corpo humano em Descartes é, portanto, “válido apenas
para o corpo humano, por não se tratar de uma substância material,
mas de uma substância composta de matéria e espírito”14.
A geometria cartesiana e o modelo dos turbilhões não parecem
portanto ter sido capazes de explicar a identidade do homem, deixando
o corpo humano escapar ao modelo geométrico defendido nos
Princípios da Filosofia, contudo, a resposta espinosana, encontrada
na manutenção da proporção de movimento e repouso, parece levar
adiante e mais coerentemente o projeto mecanicista em conformidade
com a geometrização do movimento, tal é o que a análise de Guéroult
nos leva a concluir dado que, afirma ele, “não há nada no corpo humano
que não seja da jurisdição das idéias claras e distintas, e o mecanicismo,
liberado dos limites onde Descartes o encerrou, põe fim ao escândalo
da união substancial”. “Espinosa destrói o privilégio do corpo humano
submetendo-o à norma comum de todos os corpos” 15.
Teria este rigor mecanicista de Espinosa e a denúcia ao
escândalo da união substancial, “hipótese mais oculta que todas as
qualidades ocultas”, tornado-o vítima da crítica de Chantal Jaquet

121

5_Ericka_111_138.PMD 121 5/10/2007, 11:39


CADERNOS ESPINOSANOS XV - 2006

direcionada aos “herdeiros de Descartes”? Teria Espinosa retirado a


vida do corpo humano e com ela toda a sua especificidade, ou ainda,
pagando o altíssimo preço, teria Espinosa incorrido na paradoxal
conclusão de Charles Ramond: impulsionar o progresso do
conhecimento do corpo humano às custas do recuo do conhecimento
do corpo humano?

III – O corpo em Espinosa: o paralelismo em questão.

Que Espinosa tenha sido rigorosamente mecanicista na dedução


do corpo humano, porquanto este é unicamente explicado pela relação
entre os corpos, disso não temos dúvida. Que tenha se inspirado nas
descobertas de Huygens, também consideramos inquestionável. Porém,
perguntamos, o mecanicismo espinosano estaria restrito às conclusões
de Guéroult? E, em segundo lugar, tais conclusões não restrigem o
mecanismo do corpo humano a uma atividade cega, autorregulada e
inexpressiva? A identidade dos corpos mantida por um equilíbrio
dinâmico, tal parece ser o máximo a ser extraído do modelo do pêndulo
composto. Tornando o corpo ausente de quaisquer especificidades de
corpo humano, finalmente, perguntamos se tais questões não dependem
de um prejuízo anterior sobre o qual este mecanicismo fora concebido,
a saber, o paralelismo entre os atributos Extensão e Pensamento.
De certo modo, o termo “paralelismo” nos auxilia a não
misturar aquilo que nos é interditado mesclar, a Extensão e o
Pensamento, permitindo criar uma imagem explicativa na qual a ordem
e a conexão de ambos os atributos são como desdobramentos que
seguem paralelamente, e que como tais não se entrecruzam, embora
mantenham seus pontos, num e noutro, sempre correspondentes.
Determinadas afecções do corpo portanto corresponderiam a

122

5_Ericka_111_138.PMD 122 5/10/2007, 11:39


ERICKA MARIE ITOKAZU

determinados afetos da mente, sem nenhum apelo à união substancial,


e mais ainda, sem incorrer no governo da mente sobre o corpo,
culminando por finalmente extinguir o império da vontade ou a
misteriosa ação da glândula pineal na ação recíproca entre corpo e
mente.
De certo modo, porque correspondentes, o atributo
Pensamento tornaria inteligível a ordem do atributo Extensão, ou seja,
em nome da racionalidade, estaríamos ao fim e ao cabo subordinando
os fenômenos de um atributo à inteligibilidade do outro. Em geral,
porque o paralelismo é uma boa imagem para seus estudos, os
comentadores de Espinosa acomodam-se com este termo leibniziano,
chegando Charles Ramond a declarar: “Espinosa proíbe pensar uma
tal união [corpo e mente], ou mesmo uma tal interação: eis porque o
termo paralelismo convém tão bem à sua filosofia, ainda que não
faça parte de seu vocabulário.”16 De certo modo, como dissemos, o
paralelismo nos auxilia a imaginar que nem a mente determina um
corpo a agir, nem o corpo determina a mente a padecer ou pensar,
porém, nós agora perguntamos, a que custo?
Linhas que correm paralelamente e que somente se
encontrariam num hipotético ponto localizado no infinito (em Deus,
substância infinitamente infinita), contudo, para nós, seus modos finitos,
construiriam uma imagem clandestina: a de que corpo e mente seriam
duas coisas quase absolutamente separadas, tal a impossível interação,
tamanha a incompreensível união. Uma vez apartados, nosso corpo e
mente parecem ter de carregar consigo o fardo de jamais poderem se
reencontrar. Não estaria este “paralelismo” travestindo o dualismo
substancial cartesiano em nova roupagem, quando, de fato, o esforço
de Espinosa encontra-se em nos fazer compreender que “mente e corpo
são uma só e mesma coisa, ora concebido sob atributo do Pensamento,

123

5_Ericka_111_138.PMD 123 5/10/2007, 11:39


CADERNOS ESPINOSANOS XV - 2006

ora sob o atributo da Extensão”? Afirma-nos Espinosa: “a ordem e a


conexão das idéias é a mesma (idem est) que a ordem e a conexão das
coisas”. Por que tomar este “idem est” como uma correlação entre
paralelos, quando precisamente toda a argumentação é para reforçar
que são um só e o mesmo? “Uma só e mesma conexão de causas”17,
acrescenta Espinosa. Por que não aceitar que a ordem e conexão dos
atributos possam ser a mesma, e que isso não fere a diferença real
entre ambos? Por que não poderíamos compreender este “idem est”
como uma simultaneidade entre os atributos que certamente não podem
ser reduzidos um ao outro?
O custo parece consistir nisso: ao apartá-los indelevelmente
em duas dimensões, e não havendo nenhum apelo a qualquer ação
recíproca entre corpo e mente, só nos resta seguir forjando uma outra
ficção e, desesperadamente, procurar tecer liames que reatem tais
pontos paralelos correspondentes de coisas para as quais se decretou
nunca mais poderem se encontrar. E dissemos desesperadamente
porque há no paralelismo o risco de incorrermos num custo ainda
maior: assim separados os atributos, a ordem da Extensão é abandonada
à si mesma, não restando ao domínio da matéria senão o de ser
explicada por uma prototípica causalidade, a necessidade bruta e cega.
E muito precisaremos tentar escapar da armadilha e não abandonar o
corpo humano a esta ordem e funcionamento inexoráveis, em que
vitorioso retornaria o mecanicismo para o qual, sem nenhuma
possibilidade de refúgio numa mente legisladora, o homem seria ainda
mais máquina do que o animal-máquina cartesiano.
Apresentados alguns dos problemas do paralelismo, cumpre-
nos então primeiramente reivindicar a recusa de sua utilização como
instrumento interpretativo da filosofia espinosana, o que nos convida
a nos debruçar mais acuradamente sobre este âmbito da Extensão

124

5_Ericka_111_138.PMD 124 5/10/2007, 11:39


ERICKA MARIE ITOKAZU

espinosana no qual está inserido corpo humano. Numa breve carta de


Espinosa, poderemos encontrar uma centelha de luz para as nossas
inquietações:
a partir da extensão tal como a concebe Descartes,
a saber, como uma massa em repouso, não só é difícil,
como dizeis, senão totalmente impossível demonstrar a
existência dos corpos. Pois a matéria em repouso
permanecerá, ao que lhe respeita, em seu repouso e não
se colocará em movimento, a não ser por uma causa
externa mais poderosa. Por este motivo, não duvidei em
dizer há tempos que os princípios cartesianos sobre as
coisas naturais são inúteis, para não dizer absurdos.18

Outras heranças à parte, Espinosa justamente recusa os


princípios sobre os quais se fundam uma física e uma medicina
cartesianas. Ora, a diferença entre Descartes e Espinosa não depende
unicamente da diversidade de modelos físicos (o pêndulo ou o
turbilhão) que inspiraram os filósofos. Muito mais profunda e
intrincada, a diferença está na definição mesma da Extensão. O que é
então conceber uma extensão confundida com a matéria inerte que, a
despeito de ser uma substância, tem como princípio primeiro do
movimento uma causa externa e transcendente? Esta concepção não
é demasiadamente diversa da Extensão de Espinosa, um atributo infinito
da única substância e cujo princípio de movimento não lhe é externo,
pelo contrário, sendo ele mesmo a coincidência da causalidade eficiente
com a imanente?
Outra questão parece ter escapado a Guéroult: analisamos a
importância da “quantidade de movimento” na física cartesiana em
contraposição à tese de Espinosa concernente à “proporção de

125

5_Ericka_111_138.PMD 125 5/10/2007, 11:39


CADERNOS ESPINOSANOS XV - 2006

movimento e repouso”, destacando-lhes a importância dos termos


“quantidade” e “proporção” como indicadores das diferenças entre os
autores. Contudo, o que significa colocar na definição do indivíduo
não somente o movimento, mas também o repouso? Se destes dois
termos é possível extrair uma proporção comum que mui precisamente
determina a identidade de algo existente, isto não significaria que,
diferentemente do que pensara Descartes, movimento e repouso não
são opostos que se anulam? Como compreender que o Movimento e
o Repouso não são “estados” da Extensão, mas que são ambos um
mesmo modo infinito da Substância? Aliás, como afirmar algo sobre
movimento ou repouso de substância única, para a qual não há nada
externo que possa servir de fora como referência para determinar seja
o movimento, seja o repouso? Ao percorrer a obra espinosana, pouco
alento encontramos para as nossas inquietações, como o próprio autor
indica em uma de suas últimas cartas:

a matéria é mal definida por Descartes por meio


da Extensão, e que, pelo contrário, deve ser explicada
necessariamente por meio de um atributo que expresse
uma essência eterna e infinita. Talvez um dia, se tiver
vida suficiente, trate mais claramente destas coisas
convosco já que até o momento não tive a oportunidade
de ordenar nada a respeito19

O tempo de vida não permitiu a Espinosa nos deixar uma Física.


E, ainda que por ora nossas interrogações fiquem sem respostas, pelo
menos indicam a ruptura com a herança cartesiana, que não se localiza
no tronco da árvore do saber (a Física), porquanto a crítica dirige-se
ao seu fundamento, às suas mais profundas raízes: a metafísica. Tal
ruptura permite avançar na compreensão do corpo humano para além

126

5_Ericka_111_138.PMD 126 5/10/2007, 11:39


ERICKA MARIE ITOKAZU

do corpo máquina, numa leitura despida dos prejuízos do paralelismo.


E Espinosa não se perguntará mais sobre “o que é o corpo”. Num
célebre trecho da Ética III a questão será: o que pode um corpo?

IV – Para além do corpo-máquina

Acreditamos que Guéroult, ao explicitar o rigoroso


mecanicismo espinosano deixou à margem duas questões principais
presentes na parte II da Ética e que gostaríamos de retomar muito
brevemente. Ao deduzir o corpo e o indivíduo, na parte conhecida
por muitos como sua “pequena física”, percebemos que não se trata
somente de explicar como se dá a proporção de movimento e repouso,
mas de compreender o corpo constituído por uma complexidade
intercorporal marcadamente relacional. O corpo humano é um
indivíduo composto, um complexo de relações internas e externas
com outros tantos corpos complexos. Ele é portanto definido por
uma intra-corporeidade na relação estabelecida entre os corpos
complexos que o compõem, mas também por uma extra-corporeidade,
isto é, a definição de um corpo próprio depende de sua relação com
os outros corpos.
Há porém, um segundo ponto: desta definição de indivíduo
Espinosa acresce sucessivamente composições de indivíduos de
segundo, terceiro gênero e assim até o infinito, sendo a Natureza inteira
um só indivíduo. Por esta dedução Espinosa garante não somente a
relação intercorpórea entre modos finitos, mas também a relação entre
a parte finita e o todo da Natureza. Ora, o que marca então a
individualidade? Espinosa não fala em individualidades, mas em
indivíduos que se compõem ao infinito, sendo os corpos compostos
diferenciados entre si pela proporção de movimento e repouso. Qual

127

5_Ericka_111_138.PMD 127 5/10/2007, 11:39


CADERNOS ESPINOSANOS XV - 2006

é a importância a ser aqui observada? Que com sua definição de


indivíduo, Espinosa segue justamente na direção oposta à da
individualidade, sem perder de vista a diferença entre os modos finitos
posta na proporção de movimento e repouso. Seria esta uma
diferenciação restritamente quantitativa que se perderia no todo da
Natureza? Pela definição de indivíduo pareceria que sim, não fosse
estreitamente articulada com a sétima definição introduzida na Ética
II: a de coisa singular.
Por coisas singulares entendo coisas que são
finitas e têm existência determinada. Se vários indivíduos
concorrem para uma única ação de maneira que todos
sejam simultaneamente causa de um único efeito, nesta
medida considero-os todos como uma única coisa
singular.

Restringir o corpo à individualidade isolada seria como que


pintá-lo numa coloração partes extra partes, considerando-o somente
na esfera do “ser parte da Natureza”. Se somente consideramos a
manutenção da proporção de movimento e repouso, não estaríamos
aprisionando-o na trama da causalidade transitiva existente entre os
modos finitos? Entretanto, a partir da sétima definição da Ética, a
noção de singularidade do corpo composto, Espinosa poderá introduzir
a passagem do “ser parte da Natureza” para “tomar parte na Natureza”.
Expliquemos: o corpo humano é um modo finito que exprime, de
maneira certa e determinada, a essência de Deus enquanto considerado
como coisa extensa, e, enquanto tal, é uma coisa singular existente em
ato cujas partes que o compõem concorrem para uma única e mesma
ação: a interação das partes internas do corpo humano promove
conjuntamente uma ação como causa comum de um só efeito em

128

5_Ericka_111_138.PMD 128 5/10/2007, 11:39


ERICKA MARIE ITOKAZU

suas relações com a exterioridade. Distanciando-se da lógica da finitude


imposta pela causalidade transitiva, é possível nisso perceber a presença
da causalidade eficiente e imanente que orquestra a Natureza inteira
na potência do corpo quando nele todas as partes são como
instrumentos que em uníssono constituem a causa completa de um
efeito. O corpo é agente porque é corpo singular.
Dada a unicidade substancial, de fato, não seria preciso iluminar
os desdobramentos da Extensão por “modelos físicos”, nem torná-los
inteligíveis porque correlacionados ao atributo Pensamento: a
causalidade eficiente imanente presente em ambos os atributos e o
princípio espinosano de causa sive ratio por si só já garantem total
inteligibilidade a quaisquer dos infinitos atributos. Espinosa não precisa
defender um mecanicismo associado à geometrização do movimento,
porquanto sua ontologia é geométrica. Contudo, na ausência de uma
Física espinosana, e dados os infortúnios e riscos nas leituras acerca
da extensão em Espinosa, não poderíamos abdicar do termo
“mecanicismo”? Desta feita, não conseguiríamos ao menos afastar a
imagem do corpo humano como um autômato pêndulo autorregulável
e seguir por um caminho muito mais profícuo, ou seja, como uma
expressão singular da Natureza que se autoproduz geometricamente?
Por esta senda, muitas outras se abririam. E nosso filósofo
permanece ao lado a nos acompanhar por este caminho: o que deduz
Espinosa imediatamente após a pequena física? A aptidão ao múltiplo
simultâneo no corpo e na mente. O que significa este “e”? A aptidão
da mente, idéia do corpo singular existente em ato, não é deduzida de
um corpo destacado do mundo, porque sua própria definição depende
de um complexo de relações internas e externas por ele estabelecidas.
A mente portanto não é a forma, nem o princípio de unidade do corpo,
pelo contrário, ela é tão complexa quanto o corpo, e sua superioridade

129

5_Ericka_111_138.PMD 129 5/10/2007, 11:39


CADERNOS ESPINOSANOS XV - 2006

estará fundada nesta capacidade de comércio com o mundo, com os


outros homens e com as outras coisas. É a partir disto, a complexidade
das relações internas e externas, que se segue a produção de um efeito
conjunto do corpo e da mente. Este “e” não nos indica portanto
nenhuma somatória, nenhuma correspondência. Muito mais forte e
enraizado na existência humana, trata-se de compreender este “e” como
uma simultaneidade, um conceito que aparece justamente na base da
construção da aptidão para o múltiplo simultâneo no corpo e na mente.
Poderemos agora seguir e compreender o que é “tomar parte na
Natureza”.
Fosse o corpo humano reduzido a um pêndulo autorregulado,
destacado do mundo e dos outros corpos, cuja potência estaria somente
na capacidade de manter sua proporção de movimento e repouso frente
às vicissitudes da vida, fosse a mente algo tão separado dele como o é
uma linha paralela à outra, e sendo ambos paralelos e correspondentes,
um atleta poderia ser um bom candidato à carreira filosófica. Não
podemos reduzir a capacidade, aptidão e potência de um corpo singular
somente à manutenção da proporção de movimento e repouso. A
aptidão é construída e ampliada quanto mais complexo tornar-se o
comércio, a comunicação deste corpo com o mundo e com a alteridade,
e, nesta comunicação, torna-se agente capaz de ser a causa de seus
efeitos. Podemos então concluir que é a partir da dinâmica
complexidade de suas relações que o corpo, imerso no mundo, pode
ser expressivamente singular. Sem estes esclarecimentos, seria
impossível compreender o primeiro escólio da Ética III.
Com efeito, ninguém até aqui determinou o que o
Corpo pode, isto é, a ninguém até aqui a experiência
ensinou o que o Corpo pode fazer só pelas leis da natureza

130

5_Ericka_111_138.PMD 130 5/10/2007, 11:39


ERICKA MARIE ITOKAZU

enquanto considerada apenas corpórea, e o que não pode


fazer senão determinado pela Mente. Pois até aqui
ninguém conheceu a estrutura do Corpo tão
acuradamente que pudesse explicar todas as suas funções,
para não mencionar o fato de que nos Animais são
observadas muitas coisas que de longe superam a
sagacidade humana, e que os sonâmbulos fazem no sono
muitíssimas coisas que não ousariam na vigília; o que
mostra suficientemente que o próprio Corpo, só pelas
leis de sua natureza, pode fazer muitas coisas que deixam
sua Mente admirada.20

Espinosa inverte a perspectiva da análise propondo numa


filosofia racionalista um posicionamento sobre certa supremacia da
mente e lança, para a sua época e para o futuro, um desafio: “ninguém,
até o presente, determinou o que o corpo pode”. Em geral, o escólio
é analisado como consolidação da crítica ao preconceito cartesiano
de que o corpo está sob o domínio da mente e da vontade, porém,
seria esta a força do argumento deste escólio? E são mesmo os
defensores do paralelismo que, ao restringir a análise deste escólio à
denúncia da vontade, constrangem-se em explicar quais afetos
corresponderiam às afecções de um corpo sonâmbulo. Afinal, com o
quê responderíamos ao desafio proposto, tendo como instrumentos o
mecanicismo e o paralelismo? Eis porque acreditamos que este escólio
não se apresenta somente como mais uma crítica à ação segundo a
vontade, afinal, já não foram poucas as críticas feitas ao seu império
em inúmeras passagens e para o qual é dedicado todo o final da parte
II da Ética. Qual então a novidade argumentativa? Afirma-nos
Espinosa: é-nos tão desconhecida a estrutura do corpo, que ultrapassa

131

5_Ericka_111_138.PMD 131 5/10/2007, 11:39


CADERNOS ESPINOSANOS XV - 2006

de longe a sagacidade humana, e, desta feita, quase nada se sabe sobre


o quê esta estrutura é capaz de produzir. O desafio funda-se portanto
sobre a potência do corpo.
Uma outra pergunta poderia nos advir ainda aqui: já que se
trata da potência do corpo humano, por que motivo Espinosa não
introduziu este escólio após à demonstração da sua pequena física?
Ao que respondemos: na parte II encontramos a definição da coisa
singular, ponto que já destacamos a importância, porém, é somente na
parte III que Espinosa introduz duas noções capitais: as de causa
adequada/inadequada e de atividade/passividade. Ora, é nas relações
com o universo do qual o corpo é uma parte que ele constrói para si
um universo de imagens, e é nestas relações que ele participa também
de uma trama de causas e efeitos originadas neste corpo agente. É
nesta dinâmica que a potência do corpo aumenta ou diminui nas
muitíssimas relações que estabelece consigo mesmo e com a alteridade,
e, simultaneamente, aumentando ou diminuindo a potência da mente.
O corpo não é, portanto, um projeto mecânico para a manutenção de
sua proporção de movimento e repouso, tal qual o pêndulo composto,
pelo qual suas relações se estabeleceriam neste solo em que a
“quantidade é rainha”. As interações corporais aumentam ou diminuem
a potência, o reino da quantidade acaba finalmente por revelar uma
dinâmica qualitativa. Afinal, como entenderíamos o aumento ou
diminuição de sua aptidão corporal e mental como passagem para
uma maior ou menor perfeição e realidade?
Lembremo-nos que corpo e mente são uma só e mesma coisa,
ora sob o atributo pensamento, ora sob o atributo extensão, e se não
se reduzem ou se identificam um ao outro, são ainda ativos juntos ou
passivos juntos. Seja enquanto causa adequada, seja enquanto causa
inadequada, produzem conjuntamente um efeito que não devemos

132

5_Ericka_111_138.PMD 132 5/10/2007, 11:39


ERICKA MARIE ITOKAZU

traduzir por uma ação e uma idéia correspondente, mas uma ação-
idéia nascida e produzida na rica experiência vivida pela complexidade
relacional simultânea experenciada pelo corpo e pela mente. “Se a
mente não tivesse aptidão para excogitar, o corpo seria inerte”, mas
também “se o corpo fosse inerte, a mente seria simultaneamente inepta
para pensar”21. Além de denunciar o império da vontade, Espinosa
está, em primeiro lugar, defendendo a potência do corpo que “apenas
pelas leis da Natureza considerada como corporal” é capaz de
“construir edifícios, pinturas, edificar um templo”, o que surpreende a
sagacidade humana. Porém, e em segundo lugar, é destacando os
grandes feitos do corpo agente, somente enquanto considerada a sua
potência, que Espinosa parece mesmo repelir que se possa dar qualquer
superioridade de um âmbito racional despido de um corpo imerso no
mundo e em suas construções, em nós ou fora de nós.
Para explicitar o que pretendemos apontar, gostaríamos de
tomar de empréstimo as palavras de outro pensador contemporâneo,
e perguntar se não haveria, no escólio analisado, o repúdio ao “monstro
no qual se desenvolveu até o absurdo a faculdade que temos de extrair
pensamentos de nossos atos em vez de identificar nossos atos com
nossos pensamentos”22 ?
O corpo em Espinosa é portanto, juntamente com a mente,
parte que expressa a potência da Natureza inteira. Ora, não poderíamos
reconhecer que é pelas complexas relações com os outros homens,
com o mundo e as coisas que desvelamos na potência própria do corpo
a produção de feitos surpreendentes, não somente por sua beleza e
engenhosidade, mas porque tais feitos seriam a recriação das formas
mesmas de relação com este mesmo mundo, estes mesmos homens,
estas mesmas coisas? Não poderíamos reconhecer nisto que a expressão
é, inseparavelmente, mental e corpórea? Se assim fosse, Espinosa não

133

5_Ericka_111_138.PMD 133 5/10/2007, 11:39


CADERNOS ESPINOSANOS XV - 2006

devolveria somente a vida ao corpo, mas permitiria abrir para ele a


potência de recriação do próprio mundo a partir do qual ele mesmo se
constituiu.

Notas
1
Koyré, A. Estudos de História do Pensamento Científico, Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 1991, p. 182. Os grifos são de Koyré
(1a. edição francesa pela Éditions Gallimard, 1973)
2
Christiane Vilain faz uma interessante análise sobre as divergentes
concepções da geometrização do movimento no século XVII, tendo
como ponto de partida a comparação das definições de espaço,
extensão e movimento em Galileu e Descartes. Vilain, C. “Espaces
et Mondes au XVIIe siècle” in épistémologiques – philosophie,
sciences, histoire, (Cosmologie et philosophie – hommage à
Jacques Merleau-Ponty), vol. I (1-2), janvier-juin 2000, Paris- São
Paulo: Université Paris 7/Denis Diderot - Discurso Editorial.
3
Blay, M. “Infini, géometrie et mouvement au XVIIe siècle” in
épistémologiques – philosophie, sciences, histoire. Cosmologie et
philosophie – hommage à Jacques Merleau-Ponty, vol. I (1-2),
janvier-juin 2000, Université Paris 7/Discurso Editorial, Paris/São
Paulo, p. 163
4
Cf. Ramond, C. Spinoza et la pensée moderne. Constitutions de
l’objectivité, Paris: Éditions Harmattan, 1998,p. 112 e segs.
5
Cf. Guénon, R. Le Règne de la Quantité et les signes des temps,
Paris: Gallimard, 1945

134

5_Ericka_111_138.PMD 134 5/10/2007, 11:39


ERICKA MARIE ITOKAZU

6
Ramond, C. Spinoza et la pensée moderne, Paris: L’Harmattan,
1998, p. 113. Os grifos são de Charles Ramond.
7
Traité de l’homme, A.T. VI, p. 202. Para este trecho, utilizamos a
tradução feita por Jordino Marques, em Descartes e sua concepção
de homem, São Paulo: Ed. Loyola, 1993.
8
Jaquet, C. Le corps, Paris: PUF, 2001, p. 102.
9
EII P13, grifos nossos. Para todos os trechos citados da Ética, a
tradução utilizada foi realizada pelo Grupo de Estudos Espinosanos,
ainda não publicada.
10
Guéroult, M. Spinoza. II-L’âme, Paris: Aubier, 1974, p. 171.
11
Guéroult, M. Spinoza. II-L’âme, Paris: Aubier, 1974, p. 175.
12
E2 P13 L7 e S.
13
Guéroult, M. Spinoza. II-L’âme, Paris: Aubier, 1974, p. 178.
14
Guéroult, M. Spinoza. II-L’âme, Paris: Aubier, 1974, p. 182
15
Martial, G. Spinoza. II-L’âme, Paris: Aubier, 1974, p. 185
16
Ramond, C. Spinoza et la pensée moderne, Paris: L’Harmattan,
1998, p. 123.
17
EII P7 S
18
Ep.81, escrita a Tschirnhaus em 05 de maio 1676, p. 409
19
Ep. 83, escrita a Tschirnhaus em 15 de julho de 1676. p. 412
20
EIII P2 S
21
EIII P2 S
22
A expressão é de Antonin Artaud em sua obra O teatro e seu
duplo.

135

5_Ericka_111_138.PMD 135 5/10/2007, 11:39


CADERNOS ESPINOSANOS XV - 2006

Bibliografia

1. BLAY, M.: “Infini, géometrie et mouvement au XVIIe siècle” in


épistémologiques – philosophie, sciences, histoire. Cosmologie et
philosophie – hommage à Jacques Merleau-Ponty, vol. I (1-2), janvier-
juin 2000, Université Paris 7/Discurso Editorial, Paris/São Paulo, p.
163

2. ESPINOSA, B.: Correspondencia, Madrid: Alianza Editorial, 1988

3. ____________ : Ética demonstrada em ordem geométrica, Partes


I a III, tradução em andamento realizada pelo Grupo de Estudos
Espinosanos, FFLCH-USP.

4. GUÉNON, R.: Le Règne de la Quantité et les signes des temps,


Paris: Gallimard, 1945

5. GUÉROULT, M.: Spinoza. II-L’âme, Paris: Aubier, 1974

6. JAQUET, C. : Le corps, Paris: PUF, 2001, p. 102.

7. KOYRÉ, A.: Du monde clos à l’univers infini, Paris: Gallimard,


1973.

8. _________ .: Estudos de História do Pensamento Científico, Rio


de Janeiro: Forense Universitária, 1991, p. 182. Os grifos são de Koyré
(1a. edição francesa pela Éditions Gallimard, 1973)

9. MARQUES, J.: Descartes e sua concepção de homem, São Paulo:


Ed. Loyola, 1993.

10. RAMOND, C.: Spinoza et la pensée moderne. Constitutions de


l’objectivité, Paris: Éditions Harmattan, 1998.

136

5_Ericka_111_138.PMD 136 5/10/2007, 11:39


ERICKA MARIE ITOKAZU

11. VILAIN, C.: “Espaces et Mondes au XVIIe siècle” in


épistémologiques – philosophie, sciences, histoire, (Cosmologie et
philosophie – hommage à Jacques Merleau-Ponty), vol. I (1-2),
janvier-juin 2000, Paris- São Paulo: Université Paris 7/Denis Diderot
- Discurso Editorial.

137

5_Ericka_111_138.PMD 137 5/10/2007, 11:39


CADERNOS ESPINOSANOS XV - 2006

138

5_Ericka_111_138.PMD 138 5/10/2007, 11:39


SILVANA DE SOUZA RAMOS

Descartes e a “reflexão espessa”:


Uma leitura merleau-pontiana do
dualismo cartesiano
SILVANA DE SOUZA RAMOS*

Resumo: O artigo investiga os impasses do dualismo cartesiano a


partir das reflexões de Merleau-Ponty acerca do papel do corpo na
experiência.
Palavras-chave: Descartes, Merleau-Ponty, corpo, consciência,
experiência.

Abstract: The article investigates the impasses of cartesian dualism


regarding Merleau-Ponty’s reflections on the role of the body in the
experience.
Key-words: Descartes, Merleau-Ponty, body, conscience, experience.

***

Em sua biografia intelectual de Descartes, Stephen Gaukroger


narra ironicamente uma anedota que circulou a partir do século XVIII
a respeito do filósofo (Gaukroger, 1999, p. 21):
Dizem que, no fim da vida, ele se fazia acompanhar
em suas viagens por uma boneca mecânica em tamanho
natural, a qual... ele mesmo havia construído, “para mostrar
que os animais são apenas máquinas e não têm alma”.
Descartes e a boneca seriam inseparáveis, e há quem diga

*
Doutoranda do Departamento de Filosofia da FFLCH – USP.

139

6_Silvana_139_152.PMD 139 5/10/2007, 11:39


CADERNOS ESPINOSANOS XV - 2006

que dormia com ela a seu lado, guardada num baú. Um


dia, durante uma travessia do mar da Holanda no começo
da década de 1640, enquanto Descartes dormia, conta-se
que o capitão do navio, desconfiado do conteúdo do baú,
entrou furtivamente na cabine e o abriu. Horrorizado,
descobriu a monstruosidade mecânica, retirou-a do baú,
arrastou-a pelo convés e, finalmente, conseguiu atirá-la
na água. Não nos informam se ela terá lutado para se
defender.

A anedota testemunha uma das interpretações do dualismo


cartesiano, cujo expoente máximo é o materialismo do philosophe
iluminista La Mettrie. Segundo o autor, Descartes admitia
secretamente o materialismo ao supor que a vida do corpo pode ser
explicada unicamente por mecanismos naturais, independentemente
da intervenção da alma. Tal interpretação visava estender a idéia
cartesiana de que os animais não passam de autômatos, afirmando
que ela poderia ser aplicada aos humanos de modo a produzir uma
visão materialista da mente. Ora, no contexto do século XVIII, quando
lutava-se contra o materialismo, Descartes era alvo de críticas
sarcásticas, como a que transparece na anedota acima. Resta saber se
uma leitura atenta às preocupações e aos impasses enfrentados pelo
filósofo permite sustentar uma interpretação diversa. Neste sentido,
longe de reduzir a visão de Descartes ao materialismo, cabe mostrar
que os estudos cartesianos sobre o corpo e a consciência colocam em
xeque e até mesmo ultrapassam o dualismo. Quer dizer, o filósofo não
argumenta no sentido de privilegiar o corpo reduzindo a mente a uma
espécie de produção da matéria extensa. Ao contrário, as reflexões de
Merleau-Ponty — um dos maiores interlocutores contemporâneos de

140

6_Silvana_139_152.PMD 140 5/10/2007, 11:39


SILVANA DE SOUZA RAMOS

Descartes — podem mostrar que para Descartes o corpo humano é


mais do que um objeto na medida em que sua unidade se dá através da
união com a alma, sem que esta encerre sua expressividade.
Ora, isto permite questionar uma outra leitura recorrente de
Descartes. Trata-se da interpretação segundo a qual a subjetividade
cartesiana estaria reduzida ao isolamento do cogito, a tal ponto que
não se poderia explicar como a alma se comunica com o corpo. É
certo que Merleau-Ponty admitiu esta posição em vários momentos, e
dirigiu a Descartes severas críticas em relação à impossibilidade de se
pensar, a partir do dualismo substancial, uma subjetividade encarnada.
Entretanto, como pretendemos mostrar adiante, os impasses do
pensamento cartesiano não deixaram de inquietar Merleau-Ponty. Neste
sentido, o filósofo procurou apontar, no interior do próprio pensamento
cartesiano, uma solução para os problemas que Descartes vislumbrara
ao tentar explicar a experiência de sermos simultaneamente corpo e
pensamento.
***

Como mostra Marilena Chaui, nas investigações merleau-


pontianas d’O Visível e o invisível, o privilégio do corpo é uma ruptura
com a tradição metafísica que lhe dera a função de suporte da
consciência, o que permitia, ao mesmo tempo, denegá-lo e dar-lhe o
estatuto de objeto da ciência. Entretanto, “Merleau-Ponty redescobre
no empreendimento filosófico passado linhas de pensamento sobre o
corpo que não ‘cabiam’ no discurso solene da metafísica, levando uma
vida clandestina nos poros do discurso explícito” (Chaui, 2002, p. 141,
nota). Neste sentido, as notas de trabalho d’O visível e o invisível
mostram seu interesse pelo Descartes anterior e posterior ao cogito,

141

6_Silvana_139_152.PMD 141 5/10/2007, 11:39


CADERNOS ESPINOSANOS XV - 2006

ou seja, pelo Descartes que se vê diante dos impasses do logos do


mundo sensível que insistem em extrapolar o dualismo substancial
para dar cidadania filosófica à reflexão espessa que Merleau-Ponty
chamou de carne. Nestes termos, numa nota de trabalho d’O Visível e
o Invisível, o filósofo afirma (Merleau-Ponty, 2000, p. 214):
A idéia cartesiana do corpo humano enquanto
humano não encerrado, aberto enquanto governado pelo
pensamento, é, talvez, a mais profunda idéia da união da
alma com o corpo. É a alma intervindo num corpo que
não pertence ao em si (se fosse em si, seria fechado como
um corpo animal), que só pode ser corpo e vivente —
humano concluindo-se numa “visão de si” que é o
pensamento.

Ora, pode soar um tanto estranho este elogio a Descartes no


terreno mesmo em que por tantas vezes Merleau-Ponty o acusou de
impossibilitar-nos de compreender o corpo e de conseqüentemente
explicar o fenômeno que nos insere no mundo e na experiência. Estaria
Merleau-Ponty renegando o que defendera na Fenomenologia da
Percepção? Lá, o filósofo argumentava contra o mecanicismo: “Só
posso compreender a função do corpo vivo realizando-a eu mesmo e
na medida em que sou um corpo que se levanta em direção ao mundo”
(Merleau-Ponty, 1999, p. 114). Em outros termos, porque sou sujeito
encarnado, por meio do corpo me abro ao mundo, me reconheço nele
e o reconheço a partir de minha encarnação. Quer dizer, é a partir de
sua própria espessura que o sujeito adentra a espessura do mundo. O
sujeito não é, portanto, um cogito que se distingue substancialmente
do corpo, e, enquanto sujeito cognoscente, sobrevoa o mundo. Ora,
mas o dualismo cartesiano não nos condena exatamente a este passeio

142

6_Silvana_139_152.PMD 142 5/10/2007, 11:39


SILVANA DE SOUZA RAMOS

aéreo do pensamento e, neste sentido, não é completamente alheio à


espessura corpórea do sujeito? Como explicar então o inesperado
elogio de Merleau-Ponty a Descartes n’O visível e o invisível?
Vejamos o problema mais de perto. É significativo que em “As
relações entre a alma e o corpo”, último capítulo de sua primeira obra,
A estrutura do comportamento, e no último ensaio publicado em vida,
O olho e o espírito, Merleau-Ponty marque incisivamente a ruptura
de sua filosofia com a epistemologia e a mecânica de Descartes. Ao
longo de suas demais obras, é constante a retomada crítica do que
denomina a “herança cartesiana”, ou o racionalismo intelectualista (o
predomínio da consciência sobre o corpo), cuja contrapartida é o
empirismo (o predomínio das coisas sobre a consciência), ambos
rejeitados por ele. Sendo assim, na Fenomenologia da percepção,
onde se lê que somente por uma visão “pré-objetiva do mundo” pode-
se distinguir o ser no mundo “de toda modalidade da res extensa,
assim como de toda cogitatio” (Idem, 2000, p. 77), o resultado da
investigação fenomenológica dá ao corpo o estatuto de veículo do ser
no mundo, o que abre uma perspectiva para a compreensão da
subjetividade para além do dualismo cartesiano. Posteriormente, n’O
visível e o invisível, a reflexão sobre o corpo se adensa de modo a
corroborar no esboço de uma ontologia: “É preciso pensar a carne,
não a partir das substâncias, corpo e espírito, mas (...) como elemento,
emblema concreto de uma maneira de ser em geral” (Merleau-Ponty,
2000, p. 62). Através destas indicações, notamos o alcance anti-
cartesiano da unificação merleau-pontiana do sujeito na experiência
corpórea. A reconciliação com Descartes parece impossível. Mas será
que a crítica ao dualismo esgota o pensamento de Descartes? Não
haveria um impensado recalcado em sua filosofia? Dito de outro modo,

143

6_Silvana_139_152.PMD 143 5/10/2007, 11:39


CADERNOS ESPINOSANOS XV - 2006

será que Merleau-Ponty condena Descartes pelas mazelas da


modernidade, reduzindo a potência de seu pensamento àquilo que a
tradição preservou dele, quer dizer, à sua “herança”?
Sabemos que em Descartes o trajeto que vai da dúvida à certeza
passa pela desconfiança em relação aos poderes do corpo e dos
sentidos. Sendo assim, somente o pensamento pode trazer luz à
experiência. Diante da confusão fornecida pelos sentidos e pela
imaginação, a razão encontra um trajeto próprio, dissipa os fantasmas,
os equívocos e a dúvida, e impõe sua verdade; noutros termos, ao
fechar os olhos do corpo, a razão encontra a verdade clara e distinta.
Quer dizer, os olhos que vêem são os olhos do entendimento, capazes
de nos dar a representação adequada dos objetos. Mas não é só isso.
A centralidade da intuição abre caminho para a noção de corpo-
máquina, objeto a ser manipulado e dominado pelo sujeito sob o
paradigma da física mecanicista. Esta parece ser então a decisão final
de Descartes a respeito do corpo e da subjetividade: o corpo-máquina
é a contrapartida de um sujeito que se define como consciência idêntica
a si mesma e coincidente consigo mesma (capaz de possuir o mundo
pela representação), e marcada definitivamente por sua diferença com
relação ao corpo e aos objetos do mundo. Duplo movimento, portanto:
coincidência do sujeito consigo mesmo e poder da representação para
dominar o mundo sensível sem ter de se misturar com ele.
Entretanto, a nota de trabalho citada acima parece indicar uma
abertura para a experiência no interior do pensamento de Descartes.
Parece indicar uma dimensão espessa na subjetividade cartesiana. Ora,
para compreendermos tal abertura é preciso rever a posição de
Merleau-Ponty frente a Descartes e lidar com os impasses que o autor
reconhece no pensamento cartesiano, especialmente de acordo com
as formulações d’O visível e o invisível. Para isso, devemos responder

144

6_Silvana_139_152.PMD 144 5/10/2007, 11:39


SILVANA DE SOUZA RAMOS

as seguintes questões: afinal, qual a diferença, no contexto cartesiano,


entre um corpo humano e um corpo animal? Essa questão se liga a
uma outra: por que os homens que vejo atrás da janela não são
marionetes movidas por molas, ou seja, não são autômatos desprovidos
de alma?
Comecemos pela primeira questão. O corpo animal, afirma
Merleau-Ponty acerca de Descartes, é um puro em si. Quer dizer, ele
participa apenas do mundo dos objetos, ou seja, da extensão. Enquanto
tal, o mecanicismo dá conta de decifrar os operadores de seu corpo.
Desprovido de linguagem e de pensamento, o corpo animal é fechado,
quer dizer, seus comportamentos são regidos pelo paradigma da
máquina: reduzido ao corpo, ele é uma figura do autômato, é como
um artefato, e assim se dispõe ao nosso conhecimento. Carente de
pensamento, o animal não pode reverter seu olhar em direção a uma
visão de si. Seu fechamento é sua incapacidade de ver-se.
De fato, no universo cartesiano, o mecanicismo deve ser
interpretado como critério capaz de explicar com clareza e distinção
os fenômenos do mundo natural. Segundo Koyré, Descartes não
pergunta pelo modo de ação que a natureza segue, mas pelo que ela
deve seguir, já que o filósofo parte de leis determinadas segundo as
quais o substrato da realidade pode ser explicado pelo espaço e pelo
movimento. Quando Descartes investiga a constituição dos corpos,
animais ou humanos, não há diferença essencial entre as máquinas,
obra dos artesãos, e os corpos vivos. Isto significa que o filósofo
submete os conhecimentos fisiológicos ao esquema mecanicista, já
que a fisiologia é uma parte da física.
De acordo com a fisiologia cartesiana, a máquina corporal é
explicada pela mudança de figura no interior da matéria extensa. Por
esta razão, a noção de espíritos animais é privilegiada dentro da

145

6_Silvana_139_152.PMD 145 5/10/2007, 11:39


CADERNOS ESPINOSANOS XV - 2006

fisiologia mecanicista. Os espíritos animais eram elementos do vitalismo


anterior a Descartes. Introduzidos no mecanicismo cartesiano, eles
são esvaziados de seus atributos tradicionais, que os tornavam seres
misteriosos em meio a uma natureza indeterminada, e assumem, com
exceção do pensamento, todas as funções anteriormente imputadas às
partes da alma. É por isso que os espíritos animais atuam de forma
decisiva na explicação do movimento corporal. A física cartesiana não
admite o vazio. Esta regra, quando aplicada à fisiologia, faz com que
os possíveis espaços sejam por assim dizer ocupados pelos espíritos
animais, espécie de matéria sutil dotada de grande agilidade. Assim,
as funções do corpo podem ser compreendidas sem que se necessite
apelar para a alma. O corpo é um autômato que se movimenta por
conta própria, como um relógio ou um moinho (Descartes in Marques,
1993, p. 200):
que se movimenta pelo contrapeso de suas molas,
de modo que não é necessário, neste caso, conceber nesta
máquina uma alma vegetativa ou sensitiva, nem outro
princípio de movimento e de vida, senão seu sangue e
seus espíritos agitados pelo calor do fogo que queima
continuamente em seu coração e que não é de natureza
diversa dos outros fogos que estão nos corpos inanimados.

Entretanto, um corpo humano não pode ser apenas isso. Um


animal, sim. A unidade da máquina corpórea animal reside nela própria,
daí que o modelo do autômato baste para explicá-la. Mas a unidade
do corpo humano se dá por sua integração à alma. Que isto quer
dizer?
Chegamos, assim, à segunda questão. O corpo humano não é
também uma máquina, espécie de marionete movida por molas? Não

146

6_Silvana_139_152.PMD 146 5/10/2007, 11:39


SILVANA DE SOUZA RAMOS

funciona como um autômato ou um animal na medida em que seus


movimentos não dependem dos comandos anímicos, e seguem somente
as leis da extensão? Sim, todavia, um corpo humano vivente só existe
na medida em que está unido a uma alma. E é nisto que reside a sua
abertura, segundo Merleau-Ponty. É isto que o faz um para si, uma
visão de si. Visão de si, quer dizer, consciência que é ao mesmo tempo
abertura? Estranho paradoxo. O voltar-se para si é experiência de
abertura para o mundo. O que isto significa? Certamente, essa visão
de si não pode ser reflexividade acabada, coincidência consigo,
fechamento sobre si. Então, essa visão de si não pode ser o cogito,
não é nele portanto que encontraremos o impensado de Descartes.
Retomemos o problema: o corpo é, pela união com a alma, visão de si
que se abre para o mundo. Toda a questão se resume pois em explicar
que relação há entre a alma e o corpo. Estamos diante de um velho
problema: o que acontece quando Descartes é obrigado a superar o
dualismo?
A questão célebre sobre a possibilidade da unidade e da
interação entre o corpo e a alma foi colocada a Descartes pela princesa
Elisabeth, numa carta de 16 de maio de 1643. A cisão do homem em
duas substâncias realmente distintas, a extensão e o pensamento,
parecia inviabilizar a interação entre o corpo e o espírito.
Conseqüentemente, Descartes encontrava dificuldades para explicar
a experiência imediata que nos dá a certeza de nossa unidade (o que é
um homem vivo?), o que implicava dificuldades para explicar
fenômenos ulteriores como os que se referem às paixões. Descartes é
constrangido pela pergunta: o que afinal é um corpo unido a uma
alma? Sabia que não bastava restringir a certeza da união à experiência
imediata da mistura de movimentos anímicos e corporais pois explicá-
la exigia superar o dualismo e adentrar o terreno confuso da

147

6_Silvana_139_152.PMD 147 5/10/2007, 11:39


CADERNOS ESPINOSANOS XV - 2006

imaginação, da percepção e das paixões. O fato é que Descartes


investigou o problema e as formulações presentes no tratado sobre As
paixões da alma dão o testemunho de seu esforço para responder às
inquietações da princesa. Nele, o filósofo define a paixão como uma
realidade psicofísica. Sendo assim, o conceito de paixão pode nos
ajudar a encontrar um caminho para explicar os impasses do dualismo.
Descartes não despreza, lamenta ou ri das paixões humanas;
ao contrário, quer compreendê-las. Vale dizer, o filósofo anseia
encontrar as “primeiras causas” das paixões e mostrar como o espírito
pode ter um “império absoluto” sobre elas. O estudo das paixões da
alma deve seguir um método rigoroso: Descartes as estuda como um
“físico”. Nos Princípios da filosofia o filósofo anuncia que a física é a
ciência da natureza inteira por determinar os verdadeiros princípios
das coisas materiais. Ela comporta três aspectos: “o exame geral da
maneira pela qual o universo é composto, o estudo particular da terra
e de todos os corpos, e, enfim, a conhecimento da natureza das plantas,
dos animais e dos homens” (Jaquet, 2004, p. 31). A física pode obter
um conhecimento das paixões na medida em que elas são paixões na
alma mas não provém dela: elas têm uma causa física que é o corpo.
Deixando de lado a discussão sobre as paixões, como a admiração,
por exemplo, que nascem na própria alma, podemos dizer que, no
sentido estrito do termo, a paixão tem por causa, em Descartes, uma
ação do corpo. “No sentido mais preciso e mais determinado, as paixões
da alma são causadas pelo movimento dos espíritos animais (...) que
se deslocam muito rapidamente e prosseguem mecanicamente sua
agitação em circuito fechado” (Idem, p. 35). Esta formulação aparece
mais claramente no artigo 27 d’As paixões da alma, quando Descartes
afirma que “podemos defini-las por percepções, ou sentimentos, ou
emoções da alma, que referimos particularmente a ela, e que são

148

6_Silvana_139_152.PMD 148 5/10/2007, 11:39


SILVANA DE SOUZA RAMOS

causadas, mantidas e fortalecidas por algum movimento dos espíritos”


(Descartes, 2005, p. 47).
Neste contexto, que poder a alma pode ter sobre as paixões?
Ora, a alma, porque dotada de livre arbítrio e de vontade infinita,
possui um poder absoluto e direto sobre suas ações, e um poder indireto
sobre suas paixões. Sendo assim, pela vontade e pelo hábito, ela pode
adquirir um poder de governar o corpo para dissipar ou controlar os
movimentos passionais que nascem no corpo pela agitação dos
espíritos. Noutros termos, o império sobre as paixões é um império
da alma sobre o corpo: por intermédio de seu posicionamento na
glândula pineal, a alma pode reverter os processos passionais. Sabemos
que o objetivo da medicina cartesiana é o de combater a doença de
modo a prolongar a vida. A realização deste empreendimento se
reduziria ao estudo mecânico do corpo se a união não implicasse o
poder das paixões para molestá-lo. A medicina cartesiana terá então
de irmanar-se à moral já que o bem estar do corpo não depende apenas
dele. Sendo assim, a insuficiência da explicação mecanicista exige
considerar o homem do ponto de vista da encarnação, o que leva
Descartes a misturar o homem às coisas, o que pode ser explicitado se
nos ativermos a uma passagem do artigo 52 d’As paixões da alma
(Descartes, 2005, p. 68):
(...) os objetos que movem os sentidos não excitam
em nós paixões diversas na medida de todas as diversidades
que existem neles, mas somente na medida das diversas
maneiras como eles podem prejudicar ou beneficiar, ou
em geral nos ser importantes.

Apenas sua união com uma alma confere ao corpo humano


uma verdadeira unidade, capaz de perpetuar-se no tempo, mesmo

149

6_Silvana_139_152.PMD 149 5/10/2007, 11:39


CADERNOS ESPINOSANOS XV - 2006

quando ele não conserva mais qualquer parte da matéria que o


constituía inicialmente. Paralelamente, julgar que é um bem a
conservação do corpo, ou o que contribui para ela, só tem sentido
para a alma. Portanto, é unicamente através de sua união com uma
alma que o corpo adquire uma integridade que é importante conservar,
e que aquilo que o ameaça constitui um mal. Neste sentido, para
associar um determinado movimento dos espíritos animais a uma
determinada paixão, é preciso partir da união entre a alma e o corpo,
do interesse que temos em conservá-lo como um todo e
conseqüentemente do fato de que o que é um bem para ele deve ser
também um bem para nós. Portanto, apenas a experiência, sensível e
anímica simultaneamente, impossível de se reconstruir a priori, está
apta a superar a dualidade entre alma e corpo e a concretizar, para
nós, a união, a integridade e a felicidade de ambos.
Voltemos então ao problema da visão de si colocado por
Merleau-Ponty. Vimos que o centro da crítica de Merleau-Ponty a
Descartes é a insuficiência da explicação dualista: o cogito não dá
conta de meu ser no mundo, já que ele é reflexão acabada (que garante
a objetividade do mundo através da representação) e isolamento do
sujeito no cogito. A união com o corpo complexifica a investigação:
insere o homem no mundo e o sujeita à promiscuidade com os objetos
exteriores. Daí a necessidade de se colocar, a partir do próprio
Descartes, a possibilidade de se compreender o sujeito através da
encarnação. Desse modo, contrariando diversas interpretações do
pensamento cartesiano, o pensamento é visão de si, mas não somente
no modo do cogito ou da intuição; ele é também reflexividade
inacabada apenas compreensível pela interação com o corpo, já que a
encarnação do sujeito subverte o dualismo e faz da visão de si uma
abertura para o mundo e para a experiência.

150

6_Silvana_139_152.PMD 150 5/10/2007, 11:39


SILVANA DE SOUZA RAMOS

Bibliografia

Alquié, F. La Découverte Méthaphysique de l’Homme chez Descartes.


Paris: Presses Universitaires de France, 1950.

Brunschvicg, L. Descartes. Paris: Rieder, 1937.

Chaui, M. Experiência de pensamento. São Paulo: Martins Fontes,


2002.

Descartes, R. Obra escolhida. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1994.

__________. As paixões da alma. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

Gaukroger, S. Descartes. Uma biografia intelectual. Rio de janeiro:


EdUERJ: Contraponto, 1999.

Guéroult, M. Descartes selon l’Ordre des Raisons (2 vol.). Paris:


Aubier, 1953.

Jaquet, C. L’unité du corps e de l’esprit. Affects, actions et passions


chez Spinoza. Paris: PUF, 2004.

Marques, J. Descartes e sua concepção de homem. São Paulo: Edições


Loyola, 1993.

Merleau-Ponty, M. Fenomenologia da percepção. São Paulo: Martins


Fontes, 1999.

_______________. O visível e o invisível. São Paulo: Perspectiva,


2000.

151

6_Silvana_139_152.PMD 151 5/10/2007, 11:39


CADERNOS ESPINOSANOS XV - 2006

152

6_Silvana_139_152.PMD 152 5/10/2007, 11:39


NOTÍCIAS
OTÍCIAS

EVENTOS

XII Encontro Nacional de Filosofia da ANPOF


Realizado em Salvador, de 23 a 26 de outubro de 2006.

Tercer Coloquio Internacional Spinoza


Realizado no Complejo Vaquerías, Valle Hermoso, Córdoba,
Argentina, nos dias 2,3 e 4 de Novembro de 2006. Organizado pelo
Centro de Investigaciones de la Facultad de Filosofía y Humanidades de
la Universidad Nacional de Córdoba.

Chantal Jacquet
A professora da Universidade de Paris I (Panthéon-Sorbonne)
apresentou, a convite do Grupo de Estudos Espinosanos e do GT
Pensamento do Século XVII, uma conferência: Bacon e o problema do
conhecimento, no dia 21 de novembro de 2006; e um ciclo de seminários:
As relações entre corpo e mente em Espinosa e suas implicações atuais,
entre 14 e 22 de novembro de 2006.

153

7_noticias_153_158.PMD 153 5/10/2007, 11:39


154

7_noticias_153_158.PMD 154 5/10/2007, 11:39


INSTRUÇÕES
NSTRUÇÕES P
PARA
ARA OS
OS
A UTORES
UTORES

• Os textos devem ser inéditos e ter de preferência até 40 laudas


(30 linhas de 70 toques).
• O arquivo, que deve ser enviado por e-mail ou por correio, deve
conter o nome do autor, a instituição a que está vinculado, o
endereço eletrônico ou o telefone.
• Os artigos devem vir acompanhados de um resumo e um abstract
de 80 a 150 palavras cada um, cinco palavras-chave e keywords.
• As notas de rodapé devem ser digitadas no final do artigo,
utilizando-se o recurso automático de criação de notas de rodapé
dos programas de edição.
• As citações devem ser feitas no correr do texto de acordo com as
normas técnicas daABNT; podendo-se incluir, a critério do autor,
as referências estabelecidas de textos clássicos, por exemplo, para
a Ética de Espinosa (EI, P2), ou para os Novos ensaios de Leibniz
(II, xxi, §25).
• As referências bibliográficas devem ser listadas no final do texto,
em ordem alfabética e obedecendo a data de publicação.

155

7_noticias_153_158.PMD 155 5/10/2007, 11:39


156

7_noticias_153_158.PMD 156 5/10/2007, 11:39


C ONTENTS
ONTENTS

1. THE FINAL METAPHYSICS OF LEIBNIZ AND THE QUESTION OF THE


IDEALISM
Michel Fichant 09

2. UNIVERSALITY AND SYMBOLIZATION IN LEIBNIZ


Franklin Leopoldo e Silva 41

3. DIVINE GOODNESS AND CONTINGENCY ON LEIBNIZ


Luís César Oliva 59

4. LEIBNIZ: EXPRESSION AND UNIVERSAL CHARACTERISTIC


Tessa Moura Lacerda 87

5. SPINOZA’S PHILOSOPHY BEYOND THE BODY-MACHINE: THE PARALLELISM


IN QUESTION
Ericka Marie Itokazu 111

6. DESCARTES AND THE “DENSE REFLECTION”: A MERLEAU-PONTYAN READING


OF CARTESIAN DUALISM.
Silvana de Souza Ramos 139

7. NEWS 153

157

7_noticias_153_158.PMD 157 5/10/2007, 11:39


158

7_noticias_153_158.PMD 158 5/10/2007, 11:39

Você também pode gostar