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O 20 S:

Edição Especial - 2013


Volume 1
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S
Copyright © 2013 by ACERP/TV Escola

Diagramação e editoração
Núcleo de Produção Gráfica de Mídia Imprensa
Gerência de Criação e Produção de Arte

Preparação e revisão:
Magda Frediani Martins

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

T911

TV, educação e formação de professores [recurso eletrônico] : Salto para o Futuro : 20


anos / Rosa Helena Mendonça, Magda Frediani Martins (org.). - Rio de Janeiro : ACERP ;
Brasília, DF : TV Escola , 2013.
2

4 v., recurso digital


Formato:
Requisitos do sistema:
Modo de acesso: World Wide Web
Inclui bibliografia e índice
ISBN 978-85-60972-02-3 (v. 1) - 978-85-60792-03-0 (v. 2) - 978-85-60792-04-7 (v. 3) - 978-85-
60792-05-4 (v. 4) (recurso eletrônico)

1. Educação 2. Educação - Aspectos sociais 3. TV Escola (Programa de televisão) 4. Livros


eletrônicos. I. Mendonça, Rosa Helena II. Martins, Magda Frediani. III. Ministério da Edu-
cação.

13-1708. CDD: 370.981

CDU: 37(81)

15.03.13 20.03.13 043546


Presidência da República

Ministério da Educação

Secretaria de Educação Básica

TV, EDUCAÇÃO E FORMAÇÃO DE


PROFESSORES:
SALTO PARA O FUTURO
- 20 ANOS -
3

Organização

Rosa Helena Mendonça


Magda Frediani Martins
(Equipe de Educação da TV Escola)

Salto para o Futuro/TV Escola/ SEB-MEC

Rio de Janeiro/ Brasília

2013
Volume 1 - LINGUAGENS E SENTIDOS

SUMÁRIO

Organização e Apresentação..................................................................................... 5
Rosa Helena Mendonça e Magda Frediani Martins

1.1 Linguagens e sentidos.........................................................................................13


Patrícia Corsino

1.2 Cinema e educação: um diálogo possível.......................................................... 29


Laura Maria Coutinho

1.3 Televisão e educação do olhar: uma urgência permanente.............................. 36


Rosa Maria Bueno Fischer

1.4 O salto para o futuro da Arte na Educação........................................................ 46


Ana Mae Barbosa

1.5 Temas polêmicos na literatura: o mal-estar...................................................... 56


Nilma Lacerda

1.6 Português: um nome, muitas línguas................................................................. 66


Carlos Alberto Faraco
APRESENTAÇÃO

Salto para o Futuro: 20 anos no ar

Rosa Helena Mendonça1


Magda Frediani Martins2

“Boa noite, Brasil! Olá, bem-vindo, o Salto para o Futuro está entrando no ar...”
“Aqui fala Tânia, do Rio de Janeiro.” “É Maria José, do Maranhão...”
“O tema do programa hoje é...” “Nesta série, vamos falar de...” “ Participam do
programa de hoje...”

É com palavras como essas que, em 1991/923, do diálogo com a diversidade, organizamos
o programa Salto para o Futuro entra no ar, esta publicação, com textos de autores que
diariamente, em séries inéditas e reprises que foram consultores de séries do Salto e/ou que
confirmam as possibilidades da parceria entre participaram do programa como debatedo-
TV e educação na formação de professores. res, em diferentes momentos deste percur- 5
so. A publicação TV, educação e formação de
Tendo como meta contribuir para esta for- professores: a experiência do programa Salto
mação, bem como atender ao interesse dos para o Futuro pretende comemorar esta tra-
demais espectadores, o Salto para o Futuro jetória, destacando temas fundamentais para
faz 20 anos, respeitando a autonomia das es- o debate sobre TV, educação e formação de
colas e abrindo espaços para trocas ricas e professores. Esta publicação, na sua versão
indispensáveis, refletindo sobre sua inserção digital, está organizada em quatro volumes,
no campo das políticas públicas de formação expressos no seguintes eixos:
de professores, repensando-se permanente-
mente. É com base na proposta do programa Volume 1 - LINGUAGENS E SENTIDOS
e considerando suas mudanças ao longo do Volume 2 - ‘ESPAÇOSTEMPOS’ NOS COTIDIANOS
tempo que, preservando o enfoque filosófico Volume 3: TECENDO NARRATIVAS

1 Supervisora pedagógica do programa Salto para o Futuro/TV Escola (MEC). Doutoranda no PROPED- UERJ.
Organizadora da publicação.
2 Professora, escritora e revisora de textos do programa Salto para o Futuro/TV Escola (MEC). Organizadora
e revisora da publicação.
3 Em 1991, vai ao ar, em caráter experimental, o Jornal da Educação: edição do professor. Em 1992, com o nome de Um
Salto para o Futuro, o programa ganha dimensão nacional. A partir de 1996 o Salto para o Futuro integra a grade da TV
Escola.
Volume 4: NOVOS SABERES PARA A EDUCAÇÃO Podemos entender a noção de rede de várias
maneiras. No caso específico do Salto para o
Para organizarmos esta publicação, solici- Futuro, como essa rede é tecida? Um aspecto
tamos a consultores de séries do Salto para que não pode deixar de ser observado é o papel
o Futuro, que nos acompanham ao longo desempenhado pela interatividade no progra-
dessa história, que elaborassem um artigo ma, desde a sua criação, quando a internet ain-
tendo como objetivo apresentar temas de- da não era acessível, o fax apenas despontava
senvolvidos no programa, apontando per- como novidade e a telefonia móvel sequer es-
manências e mudanças nas abordagens, que tava acessível. A participação dos professores
refletem resultados de pesquisas na área da e professoras tem sido uma marca especial do
educação. Considerando os limites de uma Salto4, pela qual ele é muitas vezes identifica-
publicação deste tipo e, na impossibilidade do. É ela que reafirma o sentido da produção
de contar com a participação de tantos pes- de conhecimento em rede. Tem relevância aí
quisadores e professores que têm nos ajuda- a polifonia, ou seja, as múltiplas vozes e “so-
do a fazer o programa, partimos mais uma taques” que dão um formato hipertextual ao
vez da ideia de que precisávamos construir Salto, o programa não pode ser analisado sem
um recorte significativo da diversidade do a participação dos professores, seja na TV, no
Salto para o Futuro. Sendo assim, elegemos site, ou ainda nos múltiplos espaços das redes 6

alguns temas significativos e recorremos a sociais. Para essa reflexão, é fundamental levar
autores que representassem diferentes insti- em consideração a acelerada oferta de recur-
tuições no país. Nesta perspectiva, vale des- sos tecnológicos e as possibilidades comunica-
tacar que quase todos os convidados aderi- cionais advindas dessas tecnologias.
ram de imediato à proposta, o que sinaliza
um possível desdobramento deste projeto. E Essa análise nos convida a repensar o lugar
o que emerge de uma obra coletiva é a pos- que ocupa, atualmente, o programa Salto
sibilidade de entrever de que forma o Salto para o Futuro nestes novos cenários da so-
para o Futuro tem possibilitado que profes- ciedade e, consequentemente, da educação.
sores de todo o país, conectados em rede, A partir dessa perspectiva, se faz necessário
participam das mais diversas propostas e considerar a forma como o Salto vem sendo
projetos no campo da educação, em todas utilizado e sobre como se dá atualmente a
as áreas de conhecimento. interatividade. Como demonstram as mais

4 É dessa forma resumida que o programa é muitas vezes nomeado pelos professores.
5 Ver Relatórios de Avaliação do Programa Salto para o Futuro nos anos 2007, 2008 e 2009.
recentes avaliações5, o perfil de participa- tações e teses) sobre o Salto para o Futuro.
ção dos professores tem se revestido de um Isso tudo nos impulsiona a mudar, a buscar
caráter mais abrangente e variado, de acor- novos caminhos nos campos da educação
do com as demandas de seu trabalho, seus e da comunicação. Novos formatos, novas
níveis de formação, sua condição socioeco- formas de interação vão sendo delinea­das.
nômica e, ainda, as possibilidades tecnoló- E repensar todo este processo torna-se vital
gicas e técnicas à sua disposição. Afinal, é a para ampliar as perspectivas, sempre em
autonomia conquistada pelo professor, em parceria com os professores e com os con-
relação ao seu processo de formação e ao sultores das séries do programa.
de seus alunos, que fundamenta a busca por
formas diferenciadas e contextualizadas de
UMA TRAJETÓRIA DE DIÁLOGO
utilização do programa, no contexto mais
amplo de audiência da TV Escola, canal do Ao organizarmos esta coletânea, ainda que
Ministério de Educação. correndo o risco de sermos redundantes ao
apresentar nesta introdução um breve his-
Acreditamos que a função de um programa tórico sobre o Salto para o Futuro, tendo
educativo, veiculado pelo canal de televisão em vista que tanto autores quanto os possí-
do Ministério da Educação – a TV Escola –, é 7
veis leitores, todos, têm uma relação direta
o de contribuir, também, para que essa utili- e intrínseca com o programa, optamos por
zação se efetive, respeitando as diversidades fazê-lo. Afinal, contar uma história é uma
dos professores, dos alunos e das escolas. forma não só de compartilhar memórias,
Afinal, trata-se de uma via de mão dupla – ou mas também de estabelecer outras redes de
melhor, de muitas mãos – em relações en- significados.
tremeadas por implicações diversas, sobre
as quais é preciso refletir: as formas pensa- O ano era 1991... Na noite de 1º de agosto foi
das para a recepção têm sido “reinventadas” ao ar pela TVE Brasil a primeira edição do
pelos chamados receptores, bem como o “Jornal da Educação - Edição do Professor”,
público tem se diversificado. Além dos pro- uma experiência piloto de educação a dis-
fessores nas telessalas, há uma audiência tância, com recepção organizada em seis es-
espontânea, o que pode ser constatado pe- tados do país. Em 1992, já com abrangência
los e-mails recebidos, pela participação no nacional, o programa passou a se chamar
site, pela solicitação de cópias em DVD por Um Salto para o Futuro. Em 1995, denomi-
universidades e outras instituições, pela lei- nando-se Salto para o Futuro, foi incorpora-
tura da publicação eletrônica e, ainda, pelo do à grade da TV Escola (canal do Ministério
número de pesquisas (monografias, disser- da Educação).
O Salto desde a sua concepção inicial teve A característica que mais se destacou no
como proposta ser mais do que um progra- programa foi a de preservar a dimensão do
ma de televisão, conjugando recursos como diálogo como espaço de interações tão ricas
textos de apoio (boletim/publicação eletrô- quanto imprevisíveis. E foi justamente este
nica) e canais de comunicação direta: caixa aspecto – a interatividade – que tornou o
postal, fax, telefone e Internet, tudo isto vi- Salto um programa que, a cada dia, era feito
sando tornar possível a interatividade com com a participação dos professores.
os professores reunidos em espaços de re-
cepção organizada (telessalas) em que, com O que podemos destacar de um projeto de for-
a mediação de um orientador de aprendiza- mação de professores que se constituiu como
gem, os cursistas discutiam e participavam um processo interativo? Por um lado, como
com questões que se tornaram constitutivas essa participação interferiu na concepção dos
do debate com especialistas. programas? E, por outro lado, de que forma a
discussão que sempre teve lugar ao longo das
Por meio do Salto, propostas pedagógicas séries se refletiu na prática dos professores?
da atualidade foram discutidas, em séries
temáticas. O objetivo dos debates sempre Esse é um processo, em permanente constru-
foi trazer diferentes tendências no campo ção. As telessalas mostraram-se um espaço 8
da educação e, assim, contribuir para a re- que extrapolou a mera recepção dos progra-
flexão da prática em sala de aula, tanto nas mas. Foram múltiplas as trocas que se esta-
áreas do conhecimento que integram o cur- beleceram a cada dia e que se prolongaram
rículo quanto nas questões que expressam a em outros espaços de atuação do professor: a
diversidade da sociedade. comunidade, a própria escola, a sala de aula...

O programa teve, até 2008, uma especifici- Desde a sua criação, em 2000, a página do Sal-
dade: sendo diário e ao vivo, sua estrutura to para o Futuro tem mostrado seu potencial
foi pensada para a participação, em tempo de se tornar um grande fórum de discussão.
real, dos professores, organizados em teles- Enquanto o programa de televisão destacou-
salas, nos mais diversos pontos do país, per- se pelo registro de experiências em escolas
mitindo assim um diálogo permanente com e outras instituições, pelas entrevistas com
outros programas do MEC, com a própria renomados educadores, pela atualidade na
programação do canal – TV Escola – e com abordagem de temas considerados impres-
os mais variados projetos no campo da Edu- cindíveis no cenário da educação brasileira,
cação na contemporaneidade. em sua diversidade e riqueza, o site firmou-se
como mais um canal de criação de conheci- caracteriza a nossa sociedade, cada vez mais
mentos em redes. imersa no ciberespaço.

Ao longo desse tempo, algumas mudanças Para a produção das séries televisivas, partiu-se
significativas aconteceram, como por exem- sempre de um texto, que ficou conhecido como
plo, o tamanho das séries, a diversidade dos a “proposta pedagógica”. É com base nesta
temas, reafirmando a perspectiva de que proposta, elaborada por um(a) consultor(a),
educação é mudança! que as linhas mestras de cada série são deli-
neadas. Nesta coletânea de artigos alusivos
Em 2009, o programa, sem se distanciar da aos 20 anos do programa, queremos ressaltar
sua filosofia original, investiu em um novo o quanto é significativa esta produção textual
conceito, incorporando as possibilidades que orienta as séries televisivas, que tem uma
que as tecnologias digitais interativas apre- dupla função: além de subsidiar a produção
sentam, assumindo um novo formato que dos programas, constitui-se ainda no texto in-
compreende a exibição de séries temáticas, trodutório da publicação eletrônica referente a
não mais ao vivo, diariamente. Nesta con- cada série temática, que é destinada ao estudo
cepção, são apresentadas três revistas ele- do assunto pelos professores.
trônicas, previamente gravadas e editadas, 9
contemplando uma diversidade de experiên- Como já dissemos, a proposta é divulgar pes-
cias e enfoques conceituais. Um programa quisas e estudos voltados para a reflexão de
ao vivo constituído de três blocos de en- eixos significativos que embasam as séries
trevistas, com entrevistados diferentes em temáticas do Salto para o Futuro ao longo
cada bloco, caracterizando “outros olhares” desses 20 anos. No primeiro volume ­ – Lin-
sobre o tema em questão. E, finalmente, um guagens e sentidos –­ apresentamos os tex-
programa de debates ao vivo, com espaço tos de autores que enfocam a linguagem em
para perguntas de espectadores, cursistas ou suas múltiplas manifestações. O primeiro
não, por telefone e e-mail, com a presença texto é de Patrícia Corsino, que nos empres-
de três convidados e com um amplo espaço ta o título dessa seção inicial. A autora toma
para a interatividade, que sempre caracte- como referência o poema Os cinco senti-
rizou o programa. Ao longo de toda a série, dos, de Bartolomeu Campos de Queirós, e
um fórum na internet possibilita o envio de os estudos de Mikhail Bakhtin, Lev Vigostski
questões que podem ser desenvolvidas ao e Walter Benjamin, entre outros, para refle-
longo do programa de TV ou no próprio site. tir, por meio da linguagem, sobre o mundo
Assim, o programa se alia à tendência de em que vivemos. Destaca que os sentidos –
atender a uma convergência de mídias, que ver, ouvir, tocar, cheirar, provar – além das
sensações, produzem simbolizações. Dessa uma narrativa”. E, com muita propriedade,
forma, o desafio da escola é construir uma ressalta que a presença do cinema na escola
proposta pedagógica que proporcione uma e na educação visa, primordialmente, “des-
interação de modo mais informado, criativo pertar o aluno e as pessoas para que pos-
e crítico com as imagens e mensagens que sam andar pelo mundo de olhos bem aber-
nos rodeiam no mundo contemporâneo6. tos para a eterna maravilha da vida em suas
Com muita sensibilidade e clareza, a autora mais amplas e ínfimas dimensões”7.
relaciona, metaforicamente, os cinco senti-
dos às manifestações da linguagem corpo- O terceiro texto é de Rosa Maria Bueno Fischer,
ral, visual, musical e escrita e sugere que a que defende a proposta de incluir a TV no cur-
escola precisa “deixar a imaginação imagi- rículo escolar visando a “uma genuína educa-
nar”, abrindo espaço para as narrativas e ção de nosso olhar”. Nesse sentido, ressalta
dando importância às vozes das crianças, que o programa Salto para o Futuro, em suas
aos corpos em movimento, ao diálogo com duas décadas de existência, tem mostrado
o acervo imagético trazido pelos alunos. “que é na TV e pela TV que os diferentes públi-
cos (como os professores e os estudantes dos
No segundo texto, Laura Maria Coutinho, a diversos níveis) têm encontrado material de
partir de suas experiências com a linguagem estudo e de ampliação do repertório curricular, 10
cinematográfica na universidade pública, no sentido de atualização e de envolvimento
propõe reflexões sobre cinema e educação. dos educadores com problemas de seu tem-
A autora destaca que “dependendo de como po”. Em seu instigante texto, a autora destaca
nos relacionamos com essa linguagem, ci- que integrar a TV, o rádio, as revistas e jornais
nema pode ser sempre educação, sobretu- ao currículo escolar significa transformar a mí-
do uma educação da sensibilidade e da me- dia num sério e fundamental objeto de estudo.
mória”. Para ela, “a educação da memória, E aponta que um programa como o Salto para
de que o cinema participa, integra também o Futuro confere mais poder aos educadores e
uma forma de educação da sensibilidade”, aos estudantes, “no sentido de estudar e pen-
tendo em vista que, “por meio das histó- sar a complexidade de todas essas narrativas
rias cinematográficas aprendemos a ver, ler audiovisuais, olhando-as e discutindo-as dos
e perceber a importância dos detalhes em mais diferenciados pontos de vista, a fim de

6 A série Linguagens e sentidos foi veiculada no Salto para o Futuro/TV Escola de 6/8/2001 a 10/8/2001, tendo
como consultora Patricia Corsino.
7 A série Cinema e educação: um espaço em aberto foi veiculada de 11/5 a 15/5/2009, com a consultoria de Laura
Maria Coutinho.
8 O Debate: televisão e educação foi veiculado de 23/6 a 27/6/2003, com a consultoria de Rosa Maria Bueno
Fischer.
nos esclarecer e permitir que cresçamos como fundamentais da existência, como a morte,
cidadãos, donos de voz e posicionamento crí- a violência na escola, a sexualidade, temas
tico e, ainda, como pessoas que ampliam seus considerados, em geral, como ousados, pe-
domínios quanto a linguagens e propostas es- rigosos e inadequados no contexto escolar10.
téticas diferenciadas”8. Na perspectiva da autora, discutir tais ques-
tões é essencial para se “alcançar a constru-
No quarto texto, Ana Mae Barbosa retoma a ção de respostas existenciais necessárias aos
sua proposta pedagógica para os cinco pro- projetos pessoais e coletivos”. A pesquisa-
gramas da série Arte na escola9, lembrando dora sugere que os cursos de formação dos
que o programa Salto para o Futuro sempre professores incluam a leitura e a discussão
deu à Arte a mesma importância que é dada das obras de literatura infantil e juvenil que
às outras disciplinas do currículo. A autora tratam dos chamados temas polêmicos, ten-
comenta que, tendo como eixo a intercul- do em vista que “literatura é, em primeiro
turalidade e a interdisciplinaridade, os espe- lugar, comunicação e, respeitados os limites
cialistas convidados para a série abordaram de suas sensibilidades, crianças e jovens pre-
o campo da arte-educação, discutindo, em cisam ter acesso a essa experiência de forma
especial, as especificidades que caracteri- integral, na compreensão da complexidade
zam o ensino da arte na escola. Também da condição humana”. Nesse sentido, “os 11
se reporta aos temas que foram debatidos temas vistos como polêmicos são exatamen-
ao longo da série, como as transformações te os que mais se ocupam de nossa humani-
no ensino da arte, as propostas metodológi- dade e podem ofertar aos leitores infantis e
cas contemporâneas (Critical Studies, CBAE, juvenis vias essenciais para a discussão do
Arts Propel, Proposta Triangular), a Estética que os inquieta”.
do Cotidiano, a formação dos professores de
arte e o uso do computador e outras tecnolo- Concluindo o primeiro volume da coletânea,
gias contemporâneas no ensino da Arte. Carlos Alberto Faraco destaca que a socieda-
de brasileira, em geral, desconhece a reali-
Nilma Lacerda, autora do quinto texto, res- dade linguística do país, tendo em vista que
salta a necessidade de que as escolas pro- “há uma impressão generalizada de que o
movam a leitura de livros de literatura para Brasil é um país monolíngue”11. O autor res-
crianças e jovens que abordam as questões salta que existem centenas de outras línguas

9 A série Arte na escola foi veiculada de 10/4 a 14/4/2000, com a consultoria de Ana Mar Barbosa.
10 O Debate: Temas polêmicos na literatura foi veiculado e 25/6 a 29/6/2007, com a consultoria de Nilma Lacerda.
11 A série Português: um nome, muitas línguas foi veiculada de 26/5 a 30/5/2008 , com a consultoria de Carlos
Alberto Faraco.
faladas por cidadãos brasileiros, ainda que o capaz de mostrar aos alunos “a cara linguís-
Português seja a língua hegemônica. Além tica do país, expor as razões para tanta di-
disso, “o português que aqui se fala não é, ferença, mostrar que cada variedade é um
de modo algum, homogêneo. Há uma gran- patrimônio da nossa sociedade e da nossa
de diversidade regional e uma grande diver- cultura”. Para o autor, cabe à escola e aos
sidade social”. Segundo o pesquisador, “se a professores “combater o preconceito e a
diversidade regional em si não costuma ser violência simbólica que usa a língua como
estigmatizada, a diversidade social do Por- pretexto de exclusão social dos falantes” e,
tuguês é, no Brasil, um poderoso fator de ao mesmo tempo, garantir um ensino de
discriminação negativa.” Nesse sentido, seu Português voltado para o domínio das for-
texto desafiador aponta para a necessidade mas mais monitoradas da língua, próprias
de que o ensino da Língua Portuguesa seja do mundo urbano e da cultura letrada.

12
Volume 1 – Linguagens e sentidos
1.1. LINGUAGEM E SENTIDOS

Patrícia Corsino13

Os cinco sentidos
Bartolomeu Campos de Queirós

Por meio dos sentidos Pelo olfato damos sentido ao mundo


suspeitamos o mundo. O cheiro nos leva
a sonhar com o mais longe.
Com os olhos nós olhamos a vida (...) O nariz tem raízes pelo corpo inteiro.
Olhamos o mundo e sentimos
Sede, fome e sonho. Com a boca sentimos o sabor
Com os olhos olhamos nossos Das coisas: o doce, o amargo,
Irmãos e eles nos olham. o azedo, o suave, o forte.
Têm olhos que nos acariciam Mas o sabor acorda a nossa memória (...)
Têm olhares que nos machucam O doce nos faz imaginar o amargo
Olhar dói. (...) E não deixa morrer o gosto da nossa
Os olhos têm raízes pelo corpo inteiro. Saudade.
A boca tem raízes pelo corpo inteiro. 13
Com os ouvidos nós escutamos
O silêncio do mundo Pela pele experimentamos as sensações
E dentro do silêncio moram de calor, frio, dor
todos os sons: canto, choro, riso, lamento (...) Prazer (...)
Escutar é também um jeito de ver Quando alguém especial nos olha
Quando nós escutamos, Nós nos sentimos tocados
Imaginamos distâncias, Se pegamos na mão da pessoa
Construímos histórias, Amada, nosso coração dispara
Desvendamos nossas paisagens E nosso corpo entra em festa.
Os ouvidos têm raízes pelo corpo inteiro. Há sons que fazem arrepiar o
Nosso corpo.
Com o nariz sentimos os cheiros Há medos que nos fazem tremer.
Do mundo A pele é a raiz cobrindo o corpo inteiro.
Cheiros que passeiam pelos ares (...)
Em cada sentido moram outros sentidos.

13 Doutora em Educação pela PUC-Rio, professora adjunta da Faculdade de Educação da UFRJ, professora
do Programa de Pós-Graduação em Educação da UFRJ e integrante do LEDUC (Laboratório de Linguagem, leitura,
escrita e educação).
INTRODUÇÃO paço escolar. O referencial teórico que lhe
deu sustentação contou com os estudos de
O poema de Bartolomeu Campos de Queirós Mikhail Bakhtin, Lev Vigostski e Walter Ben-
convoca o leitor a refletir sobre os sentidos jamin, teóricos que abordam a linguagem
que atribuímos ao que nos cerca. Sentidos como produção humana construída coletiva
que, ao serem traduzidos em palavras, se e historicamente, que se manifesta de dife-
dão a ler ao outro, evidenciando a singula- rentes formas e participa de todas as esfe-
ridade do sujeito situado. O autor, poetica- ras da vida do homem, e que o constitui,
mente, afirma “por meio dos sentidos sus- formando seu pensamento e sua consciên-
peitamos o mundo” e reitera que não há cia. Estes autores discutem a linguagem na
sentido único e sim o plausível num dado sua dimensão expressiva e histórica, trazem
momento. O mundo suspeitado e possível os múltiplos sentidos das palavras, veem
de se traduzir em palavras é o mundo vivi- o homem como sujeito social, ativo e pro-
do sem ensaios, onde cada acontecimento dutor de sentido e possibilitam repensar o
é único, irrepetível, e o acabamento neces- nosso tempo e entender a potencialidade da
sário para sua legibilidade se dá na relação linguagem como caminhos para uma edu-
com o outro (Bakhtin, 2003). O outro é quem cação mais significativa e humana. Desta
tem o excedente de visão necessário para a forma, tivemos também como objetivo da 14
suspeição do mundo. Linguagem e sentidos série pensar a escola como espaço coletivo
se inter-relacionam na dupla acepção da pa- de produção e recepção de linguagem que,
lavra sentido evocada no poema. Os senti- devolvendo e ampliando a sua dimensão ex-
dos – ver, ouvir, tocar, cheirar, provar – além pressiva e criativa, pode escovar a história à
das sensações, demandam do sujeito sim- contrapelo (Benjamin, 1993) e assumir a sua
bolizações. Como seres de linguagem, nos- função emancipadora, na direção do que
sas ações são contextuais e históricas. Por Adorno (1995) e Kramer (1999) denominam
sua vez, a produção de sentido pelo sujeito educação contra a barbárie.
– sua resposta ao mundo, ao outro – mani-
festa-se em gestos, palavras, traços, sons: Foi com essa perspectiva que elegemos o
linguagem. Sentir e produzir sentido estão poema de Bartolomeu Campos de Queirós
intrinsecamente relacionados. Assim, simul- para introduzir a série Linguagem e Sentidos
taneamente, somos constituídos na e pela e guiar os cinco programas que a compõem.
linguagem e constituímos linguagem. A dupla significação dada pelo poeta à pa-
lavra sentido nos permitiu metaforicamente
A série Linguagem e sentidos teve como relacionar os cinco sentidos a uma mani-
proposta refletir sobre a linguagem no es- festação de linguagem e suas inter-relações
com a escola. Neste texto, fazemos uma Por meio dos sentidos recriamos o mundo e
síntese da fundamentação teórica e de três o damos à compreensão do outro. Por meio
dos cinco textos que compuseram a série. dos sentidos produzimos linguagem, indo
Na primeira parte, discutimos a concepção além da sensação imediata.
de linguagem que assumimos e, nas subse-
quentes, ressaltamos diferentes manifesta- O homem estabelece relações, produz signi-
ções de linguagem: na audição, enfatizamos ficado, simboliza, se expressa, se comunica,
a escuta na escola, as interações, a narrati- diz para si mesmo e para o outro, mostra,
va; no tato, a linguagem do corpo no mundo revela, cria, transforma. A linguagem, seja
contemporâneo e seu lugar na escola; de- verbal ou não verbal, encontra-se em todas
pois trazemos a visão – as artes plásticas e as esferas da atividade humana. Pela sua di-
a construção de um olhar crítico frente às versidade de formas e manifestações e por
produções imagéticas do mundo contempo- pertencer ao domínio individual e social,
râneo. Concluímos trazendo considerações tem um caráter multidisciplinar, sendo es-
e questões para se pensar a linguagem na tudada por várias ciências e sob diferentes
escola, especialmente para as crianças da perspectivas.
Educação Infantil e anos iniciais do Ensino
Fundamental. Neste texto, como já dissemos anteriormen- 15
te, tomamos como referência para abordar
questões de linguagem os estudos de Mikhail
PENSANDO A LINGUAGEM Bakhtin, Lev Vigostski e Walter Benjamin. Au-

COM MIKHAIL BAKHTIN, LEV tores que apresentam em suas obras a cen-

VIGOSTSKI E WALTER BENJAMIN tralidade da linguagem na vida do homem.


Benjamin chega a afirmar que não há aconte-
Com os olhos, olhamos a vida, imaginamos, cimento ou coisa, seja na natureza animada,
acordamos sentimentos, criamos imagens; seja na inanimada que, de certa forma, não
o olfato e o sabor despertam a memória, fa- participe da linguagem (Konder, 1994, p.19).
zem o pensamento ir longe entre cheiros e No seu ensaio Sobre a linguagem geral e a lin-
sabores da história individual e coletiva; com guagem humana (1992 [1919]), de forte influ-
os ouvidos, escutamos os sons e os silêncios ência teológica, considera a linguagem como
dos nossos interlocutores e do mundo, nos um medium da comunicação. Para o autor, o
encantamos e inventamos novos ritmos e homem comunica a sua própria essência es-
melodias; a pele, envolvendo o corpo intei- piritual na sua linguagem, denominando to-
ro, estremece, se arrepia, toca e é tocada, das as coisas, e afirma que a essência linguís-
dança, chora, ri, registra e se deixa registrar. tica do homem é, pois, o fato de ele designar
as coisas. Assim, concebe que Deus fez as da Modernidade, cita a arquitetura do vi-
coisas reconhecíveis pelo seu nome e confiou dro, que é um material tão duro e tão liso
ao homem continuar a sua obra denominan- em que nada se fixa, que não tem aura, que
do-as de acordo com o seu reconhecimento. é inimigo do mistério e da propriedade e
E é justamente desta capacidade nomeado- que não deixa rastros. Ambiente que se dis-
ra, adâmica, que para Benjamin se inicia a tingue bastante do lar burguês do veludo,
mudez da natureza que não mais fala por marcado pelos inúmeros vestígios deixados
si, mas passa a ser designada pelo homem, por seus habitantes, pela tradição impressa
suportando uma multiplicidade de vozes. Se- na solidez dos móveis e nos detalhes dos
gundo Benjamin, a linguagem não é apenas objetos. Distingue-se, também, do plástico
comunicação do comunicável, mas simulta- contemporâneo, descartável, sem consis-
neamente símbolo do incomunicável. A esta tência e densidade.
dimensão polifônica
e polissêmica da lin- Ainda em relação às
guagem o autor con-
Segundo Benjamin, questões de lingua-
trapõe a linguagem a linguagem não é gem, no seu ensaio
burguesa instrumen- apenas comunicação Problemas de Socio-
16
tal, monológica e do comunicável, mas logia na Linguagem,
fragmentada e sua escrito em 1945, Ben-
simultaneamente símbolo
crítica nos instiga a jamim questiona as
do incomunicável.
buscar caminhos de “evidências” das teo-
resistência. rias onomatopaicas
da origem da lingua-
Ao trazer a linguagem da natureza, Benja- gem e, tomando como referência os estu-
min dá um sentido semântico ao mundo dos de Marr, traz os movimentos das mãos,
físico, se aproximando de Bakhtin (1992) os gestos e movimentos do corpo, como
quando afirma que todo objeto ou corpo os primeiros meios de criação linguística.
físico pode ser percebido como signo e, Benjamin cita os estudos de Vigotski sobre
sem deixar de fazer parte da realidade ma- os chimpanzés e concorda com o psicólogo
terial, passa a refletir e a refratar, em certa russo de que haveria uma fase pré-linguísti-
medida, uma outra realidade (p. 31). Nesta ca do pensamento, uma inteligência prática
perspectiva de uma realidade sígnica, Ben- baseada no uso de instrumentos e uma fase
jamin (1993a) analisa algumas manifesta- pré-intelectual da linguagem (gestos e alívio
ções artísticas que anunciam e denunciam emocional) que, em algum ponto, se conver-
características de uma época. Como crítico giriam. Este ponto de convergência é exata-
mente o momento em que, para Vygotsky Bahktin (idem) concebe a palavra como ele-
(1991), o pensamento torna-se verbal e a lin- mento privilegiado da comunicação na vida
guagem racional, transformando o biológi- cotidiana e como material da linguagem in-
co do homem em sócio-histórico. Momento terior e da consciência. Para o autor, a pa-
este só observado na espécie humana. lavra acompanha toda criação ideológica e
está presente em todos os atos de compre-
Assim, para Benjamin, o gesto é anterior ao ensão e de interpretação. Tem sempre um
som e o elemento fonético é baseado num sentido ideológico ou vivencial, sendo uma
elemento mímico-gestual. Os primeiros presença viva da história por conter todos
sons não seriam uma onomatopeia e sim os fios ideológicos que a tecem e carregar
um complemento audível ao gesto mímico um conjunto de significados que socialmen-
visível e totalmente expressivo por si. Aos te foram dados a ela.
poucos, todos os gestos teriam sido acom-
panhados de um som que, como é mais eco- Ao longo de sua obra, Bakthin discute a lin-
nômico, se revela menos dispendioso e exige guagem verbal – oral e escrita – de manei-
menos energia, passando a predominar. O ra plural. A palavra é polifônica – comporta
autor defende, assim, uma teoria mimética muitas vozes e lugares enunciativos, é po-
da linguagem e reforça o seu lado expressi- lissêmica – seus significados e sentidos va- 17
vo. A linguagem vista não como um meio, riam conforme o contexto –, é marcada por
mas como uma manifestação, uma revela- diferentes origens, épocas, gerações, classes
ção da nossa essência mais íntima. sociais, gêneros, profissões, grupos e con-
textos sociais (heteroglossia e linguagens
Nos estudos de Bakhtin (1992) também está sociais).
presente o lado expressivo da linguagem.
Segundo sua teoria, a palavra comporta os Na perspectiva psicológica de Vygotsky
ditos e os não ditos, ela se dirige e é acompa- (1993), a linguagem se apresenta como um
nhada de gestos, expressões faciais, acentos dos instrumentos básicos inventados pelo
de valor ou apreciativos, transmitidos atra- homem, que tem duas funções fundamen-
vés da entoação expressiva. A compreensão tais: intercâmbio social e pensamento gene-
dos enunciados está diretamente relaciona- ralizante. É pela possibilidade de a lingua-
da ao contexto enunciativo, ao extraverbal e gem ordenar o real, agrupando uma mesma
aos presumidos. Para o autor, a compreen- classe de objetos, eventos e situações, sob
são de qualquer enunciação é sempre ativa, uma mesma categoria, que se constroem
orienta-se pelo contexto e já contém o ger- os conceitos e os significados das palavras.
me de uma resposta. Segundo o autor, pensamento e fala são in-
dissociáveis e suas inter-relações acontecem inter-relações entre gesto e palavra, se apro-
nos significados das palavras. O significado ximam da ideia benjaminiana de linguagem
é, ao mesmo tempo, um ato de pensamento como manifestação, movimento expressivo
e parte inalienável da palavra, pertencendo mimético. Esta dimensão expressiva da lin-
tanto ao domínio da fala quanto do pensa- guagem, que inclui o verbal e o extraverbal,
mento. Vygotski considera a fala egocêntri- nos faz perceber os gestos e expressões das
ca infantil como um estágio transitório na crianças pequenas como enunciados, por-
evolução da fala oral para a fala interior. A tanto, direcionados e situados social e his-
palavra internalizada torna-se, então, ins- toricamente, ligando-se a enunciações an-
trumento do pensamento – o “discurso inte- teriores e a enunciações posteriores. Esta
rior” que, diferentemente do exterior, não se composição de verbal e não-verbal exige que
distingue apenas da fala exterior pela falta o outro preencha os espaços abertos e dê o
de vocalização, mas também pela função – é seu acabamento. Os gestos indicativos, as
uma fala para si mesmo – e sua estrutura imitações, as brincadeiras infantis, a dança,
tem sua sintaxe pró- o ritmo e expressões
pria, é mais predica- sonoras, os dese-
A singularidade da
tiva, sintética e con- nhos, pinturas, mo-
linguagem é justamente a 18
densada. delagens são ações,
sua pluralidade. movimentos expres-
É interessante res- sivos de linguagem.
saltar que, para Movimentos que
Vygotsky (1991), inicialmente a fala acom- nos marcam desde os primeiros anos de
panha o gesto e as ações das crianças até vida e cujos sentidos são produzidos nas in-
tornar-se pensamento. Nas brincadeiras terações sociais.
infantis, o gesto muda a função do objeto,
transformando-o simbolicamente. Assim, O uso do termo linguagem no singular (e
por exemplo, um pano embalado aos braços não linguagens) no título deste texto e da sé-
torna-se um bebê. O autor concebe, ainda, rie foi exatamente por entender a pluralida-
o gesto como um signo visual que contém de intrínseca à concepção de linguagem por
a futura escrita da criança. Os gestos são a nós assumida. A singularidade da linguagem
escrita no ar e os signos escritos são gestos é justamente a sua pluralidade. As manifes-
que foram fixados (p. 121). tações são várias porque a criação humana
é inesgotável. A arte faz parte do discurso
Vygotsky (1993) e Bakhtin (1992), nos seus da vida e se entrelaça na grande corrente da
estudos sobre linguagem, ao trazerem as comunicação.
AUDIÇÃO: QUANDO ESCUTAMOS, gas. Na ânsia de transmitir conhecimentos

DESVENDAMOS NOSSAS e informações, o professor nem sempre está

PAISAGENS atento às possíveis réplicas dos alunos, às


trocas coletivas, às enunciações, às negocia-
A palavra expressa sentimentos e emoções. ções e às revisões dos sentidos produzidos.
Gera conhecimento, estrutura o pensamen-
to, transforma, dá visibilidade. Ao escutar os No discurso pedagógico é comum se falar
ditos e os não ditos, produzimos e amplia- da importância de dar voz à criança ou ao
mos os sentidos das coisas, damos a nossa aluno. Entretanto, a expressão omite um
versão, que é uma réplica e não uma repeti- fato básico: as crianças, os alunos têm voz.
ção. Não é à toa que o poema de Bartolomeu Não cabe dá-la e sim ouvi-la. Ouvir e inte-
Campos de Queirós traz a audição como um ragir com o enunciado do outro são exercí-
jeito de ver o mundo. A escuta das vozes e cios que se fazem necessários no processo
dos silêncios é o espaço discursivo que se educativo desde a creche. Mas ouvir a voz
abre ao outro, seja dentro de nós mesmos ou não é simples quando se detém a palavra e
fora. Na resposta reside o novo que refrata, quando se pensa que existe um sentido úni-
distorce e modifica a realidade, construindo co a ser produzido. Paulo Freire, ao longo de
e reconstruindo os sentidos produzidos. toda sua obra, criticou a pedagogia do silên- 19
cio, da opressão do outro. Passado meio sé-
Como afirma Bakthin (1992), não existe a culo de sua luta, ainda é necessário falar do
primeira nem a última palavra. Penetramos silenciamento na educação. Se a assimetria
num fluxo ininterrupto da corrente da co- entre adultos e crianças, entre professores
municação verbal. A prática pedagógica faz e alunos, faz parte da estrutura hierárquica
parte desta corrente. Ouvir e falar são faces da escola, a simetria ética faz parte da inte-
do processo interlocutivo. Entretanto, este ração entre sujeitos e do compromisso ético
binômio entre adultos e crianças, professo- com o outro.
res e alunos não é simétrico. A assimetria
entre os interlocutores e toda luta de forças Aprender a ouvir e a falar deveria ser o gran-
que se trava na arena discursiva faz com que de exercício da escola, tanto de professo-
nem todas as vozes sejam pronunciadas e/ res, quanto de alunos. Perguntamos, então:
ou ouvidas da mesma forma. Por sua vez, quais têm sido os espaços abertos na escola
o discurso educativo, ao buscar o consenso, para as crianças manifestarem suas opini-
tende à verdade, à centralização das forças ões, desejos, emoções? O trabalho com as
centrípetas, dando pouco espaço para os dis- diferentes manifestações de linguagem tem
sensos, refrações e fugas das forças centrífu- levado em conta a interação verbal, a troca,
a explicitação e a apropriação dos sentidos? câmbio de experiência, da capacidade de
As crianças têm oportunidade de deixar as narrar e de estabelecer elos de coletividade,
diferentes vozes invadirem os seus ouvidos? do predomínio da informação sobre a nar-
Têm ouvido os tons e silêncios das diferen- ração. Para ele, a narrativa, diferentemente
tes vozes que escutam? da informação, deixa o ouvinte livre para in-
terpretar a história como quiser. Com isso, o
O exercício de escuta e de fala também diz episódio narrado atinge uma amplitude que
respeito à ampliação das experiências de não existe na informação, que é explicativa.
vida. Bakhtin (1992b) postula que cada esfe- Pode ser revisitado e ressignificado pelo ou-
ra da atividade humana produz seus gêneros vinte, que se vê implicado com o fato narra-
discursivos próprios que vão diferenciando- do, estreitando os laços com o narrador e os
se e ampliando-se à medida que a própria outros ouvintes.
esfera se desenvolve e fica mais complexa
(p. 279). Para o autor, a riqueza e a varie- A audição também remete às apreciações,
dade dos gêneros dos discursos estão re- experimentações e produções sonoras: a lin-
lacionadas à utilização da língua, aos seus guagem musical, vivida com toda sua força
usos sociais. Para a escola ser um espaço de expressiva e sensível; a experiência com a
produção e de apropriação de diferentes gê- música, em seus diferentes gêneros e esti- 20
neros de discurso, é necessário se abrir às los; o trabalho de musicalização, percepção
diferentes práticas sociais e não se restringir de ritmo, melodia, pausas. Conhecer, per-
às práticas meramente escolares. Um ensi- ceber, sentir, se sensibilizar com a música e
no de qualidade promove interações amplas também poder produzir: cantar, dançar, in-
com a cultura, permite a circulação em es- ventar, compor e criar novas possibilidades.
feras variadas, desperta a curiosidade pelo
novo, mostra diferenças, possibilita viagens Muitas práticas escolares contribuem para
reais e imaginárias, traz histórias e geogra- reforçar o empobrecimento da linguagem.
fias nunca antes visitadas. Como as escolas Pesquisas revelam a falta de momentos na
têm ampliado a circulação das crianças nos escola reservados para as crianças falarem
espaços amplos da cultura? de si, contarem suas histórias e ouvirem as
dos outros, apreciarem textos literários, ou-
Ainda pensando a escuta, Walter Benjamin, virem músicas e poderem dançar, cantar. O
impregnado com as questões de sua época professor, que poderia ser também um nar-
e sensível às mudanças em curso, em sua rador ou um conselheiro (o que continua a
crítica à Modernidade denuncia o empobre- história do outro), tem limitado suas fun-
cimento da linguagem expressiva, do inter- ções, deixando predominar a informação.
Mas cada professor, no seu cotidiano, pode vés de um corpo feudal, amarrado à terra
romper com este empobrecimento da lin- e submisso a Deus, a Modernidade passou
guagem e de experiências, fazendo da prá- a valorizar o corpo livre para trabalhar nas
tica de sala de aula uma prática narrativa indústrias e produzir riquezas: um corpo
(Kramer, 1993). produtor de mercadorias. Mas a lógica ne-
oliberal do capitalismo tardio cria o corpo
consumidor, valorizado não enquanto ex-
O TATO: A PELE É A RAIZ pressão, mas como vitrine e exposição, com
COBRINDO O CORPO INTEIRO - A desejos e ritmos regulados pela mídia e seus
LINGUAGEM DO CORPO modismos, sexualidade e padrões preesta-
belecidos. A autora ressalta que o modo de
O corpo, que vive intensamente a pele, mos- produção capitalista vem produzindo dese-
tra e revela o que somos. Tiriba (2001), auto- quilíbrios também nas ecologias pessoais.
ra do texto da série que discute o tato, afir- Fazendo referência à Guattari (1990), afirma
ma que o jeito de ser do nosso corpo não é que ao nível do corpo, campo das sensações
apenas uma construção pessoal, mas social mentais e físicas, os estragos são tão graves
e política: é algo aprendido, construído ao quanto os que este modelo de desenvolvi-
longo de toda a vida. A história e a cultu- mento produz no campo das relações entre 21
ra significam os nossos corpos. E, ainda, o os seres humanos – ecologia social – e no
corpo traz marcas da nossa identidade pelos campo das relações destes com a natureza –
gestos, comportamentos, cuidados, vestuá- ecologia ambiental.
rio, adornos. Somos educados para perceber
estas marcas e classificar os sujeitos segun- A escola, instituição criada na Modernida-
do o que estas marcas indicam. de, se institui com/na lógica cartesiana,
separando corpo e mente, fragmentando o
A autora traça um percurso histórico de pensar e o fazer, o trabalho e o lazer. Currí-
construção da forma como o corpo é hoje culos e rotinas expressam a supremacia da
concebido, no mundo pós-moderno, onde a razão e a disciplinarização dos corpos. Mas
nossa condição animal é relegada a segun- Tiriba (idem) ressalta que quando o desafio
do plano e até mesmo negada. O projeto de é a produção de conhecimentos e valores
Modernidade provocou na civilização ociden- que orientem a edificação não mais de uma
tal cisões como ser humano e natureza, afeto e sociedade industrial, mas de uma sociedade
razão, corpo e mente, numa supervalorização sustentável, a escola vê-se frente à necessi-
da razão em detrimento de outras dimensões dade de questionar estas cisões, assim como
humanas. Tiriba (idem) afirma que, ao in- as concepções e práticas educativas que de-
las decorrem, que hipervalorizam o intelec- a construção da imagem corporal, o jogo
to e fortalecem o ego. simbólico, as dramatizações, as mímicas, os
ritmos e danças. Uma escola que invista na
Na perspectiva de subverter concepções e valorização dos espaços ao ar livre, que mes-
práticas educacionais centradas meramen- cle atividades que exigem maior ou menor
te no desenvolvimento cognitivo e cami- movimentação, com as que exigem reflexão,
nhar na contramão de uma lógica escolar que tenha uma visão holística do desenvol-
racionalista, Tiriba propõe que se abram na vimento infantil.
escola espaços objetivos e subjetivos para
o corpo e seus movimentos, no sentido de
recuperar a liberdade de movimentos que a A VISÃO - COM OS OLHOS,
vida na cidade grande e seu respectivo mo- OLHAMOS A VIDA: O DESENHO,
delo de funcionamento escolar restringiram, A PINTURA, A FOTOGRAFIA E O
impedindo as mais simples e fundamentais CINEMA
manifestações como correr, pular, saltar etc.
Com os olhos olhamos a vida e o olho do
Tiriba indica caminhos para aconchegar o artista releva o que nem sempre vemos, per-
corpo na escola, que vão desde ensinar a ter mitindo novos olhares sobre a realidade. A 22
atenção às verdades do corpo (Lowen, 1991) linguagem plástica e visual é uma forma de
– consciência dos movimentos, impulsos, li- olhar e ver o mundo. A arte é uma produção
mitações, tensões –, ao toque, à expressão social. O artista dá visibilidade ao que nos
de amor, ao afeto e à aceitação. Aponta a cerca através de sua obra ou da lente de sua
necessidade da interação com a natureza e câmera e o apreciador, contemplador, teles-
uma revisão nos planejamentos pedagógi- pectador pode ressignificar o que vê pelo
cos para a superação de uma visão de edu- que percebeu do olhar do outro. Num jogo
cação enquanto processo intramuros, entre- de espelhos, no qual o mundo se revela, é
paredes. revelado e ganha novos tons e significados.

A autora desafia a escola a contribuir para a Lopes (2001), autora do texto da série que
saúde física e emocional de crianças, jovens discute a linguagem plástica e visual, ob-
e adultos. Propõe uma organização do espa- serva que o desejo do homem de se comu-
ço escolar capaz de favorecer a expressão e nicar por imagens esteve presente desde a
a movimentação das crianças, o livre acesso pré-história, nas inscrições de desenhos nas
aos materiais, a potencialização da autono- cavernas. A preocupação com a produção e
mia, o desafio das possibilidades motoras, o prazer estético remonta à Idade da Pedra,
quando o homem não se contenta em sim- Para Lopes (idem), o universo das artes visu-
plesmente esculpir a lâmina da lança, com ais é um campo particular de conhecimento
finalidade utilitária, mas decora, enfeita, e o processo de fazer ou apreciar o produto
procurando realizar algo que, além de útil, artístico propicia uma experiência subjetiva
fosse belo. A autora afirma que esta dimen- de conhecimento do mundo. Ainda afirma
são estética está presente nos diferentes pe- que as produções artísticas nos permitem
ríodos da história e se expressa de diversas uma aproximação da realidade a partir de
formas, seja no universo reconhecido e va- um outro ponto de vista, que se organiza
lorizado das produções artísticas e culturais, não a partir da lógica objetiva, mas dos do-
como dentro das ações mais simples das ex- mínios do imaginário.
periências cotidianas.
Esta experiência subjetiva é o que faz uma
As crianças também, desde pequenas, arru- obra ser arte. A arte, por sua vez, como afir-
mam brinquedos e coleções com arranjos ma Bakhtin (1926), é eminentemente social:
cuidados esteticamente, enfeitam objetos, o estético, tal como o jurídico ou o cogniti-
colorem, escolhem roupas e adereços, se vo, é apenas uma variedade do social (p. 1).
arrumam para o reconhecimento do outro, O artístico é uma forma especial de inter-
apreciam músicas, dançam seguindo rit- relação entre criador e contemplador fixada 23
mos, reconhecem traços nas ilustrações, em uma obra de arte (p. 3). Para o autor, a
brincam com rimas e versos, assistem a fil- arte se torna arte na interação entre o cria-
mes e desenhos animados, emitem opiniões dor e o contemplador, fora disso é um mero
sobre formas, texturas, cores do que veem. artefato ou exercício linguístico, visual, rít-
Participam ativamente da dimensão estética mico etc.
das produções culturais do seu cotidiano.
Bakhtin sustenta a ideia de que a forma de
Entendemos que a escola é um espaço onde um enunciado artístico é a expressão direta
é possível propiciar o convívio e o diálogo en- de avaliações sociais. Julgamentos de valor
tre o acervo imagético, trazido pelos alunos determinam a seleção de palavras, traços,
de sua experiência cotidiana, e as produções formas, ângulos, tons do autor e a recepção
artísticas e culturais reconhecidas universal- desta seleção pelo ouvinte/leitor/ apreciador/
mente e pertencentes a diferentes épocas e telespectador. Para Bakhtin, cada expressão
contextos socioculturais, numa proposta de selecionada é um ato avaliativo orientado
ampliação da percepção visual do mundo e em duas direções – em direção do ouvinte/
do repertório visual e gráfico, com vistas à apreciador e em direção do personagem/
construção de um olhar crítico da realidade. tema representado. Ambos são participantes
constantes do evento criativo. Assim, embo- realidade para o entendimento da chamada
ra a forma esteja fixada num material, numa “civilização da imagem”. Nas palavras de
película, num computador, a significação da Souza, Lopes e Sander (2000), depois da fo-
forma tem relação não com o material, mas tografia a experiência humana não é mais
com o conteúdo. A seleção do conteúdo e a a mesma, pois conquistamos uma consciên-
seleção da forma constituem um único ato cia cultural e subjetiva do mundo que nos
estabelecendo a posição básica do criador; transformou de forma radical.
e neste ato uma e a mesma avaliação social
encontra expressão. O artista, pela media- Tendo como foco a relação ética e estética,
ção da forma artística, assume uma posição Lopes (2001) indaga: qual seria, então, o pa-
ativa com respeito ao conteúdo. Neste sen- pel da imagem no contexto educacional da
tido, forma e conteúdo são indissociáveis e sociedade contemporânea? É possível pen-
marcam a posição do criador. Estética e éti- sar no desenvolvimento de uma cultura vi-
ca encontram-se, assim, em estreita relação. sual, que amplie as experiências estéticas e
sensíveis, visando à transformação da ação
Lopes (2001), baseada nos estudos de Ben- criadora do homem nos diferentes contex-
jamin, alerta para as transformações ocor- tos sociais onde atua?
ridas na arte na Modernidade, na era da 24
reprodutibilidade técnica. A invenção da fo- Tendo em vista a complexidade dos modos
tografia alterou radicalmente a relação do de produção de imagem, o desafio seria, en-
homem com a arte e a produção de imagens tão, construir uma proposta pedagógica que
pela possibilidade de reprodução. A obra de proporcione uma interação de modo mais
arte deixa de ser única e sua multiplicação informado, criativo e crítico com as imagens
lhe confere uma “existência serial”. A auto- e mensagens que nos rodeiam no mundo
ra ressalta que, após a fotografia, surgiram contemporâneo. Uma educação visual que
muitos outros processos de fixação, produ- considere as técnicas, procedimentos, in-
ção e multiplicação da imagem. Os avanços formações históricas, produtores, relações
tecnológicos do mundo contemporâneo culturais, econômicas e sociais envolvidas
contribuíram para tornar mais dinâmico no processo de produção artística e cultu-
o modo de produção de imagens. Cinema, ral, que contribua para a formação de um
TV, vídeo, computação gráfica, videogames olhar mais crítico e criativo sobre o contexto
fazem parte de um novo campo de produ- imagético no qual estamos inseridos. Pers-
ção que foi definido e denominado como pectiva que coloca como ponto fundamen-
linguagem audiovisual, e este novo contex- tal a relação ética e estética e a necessária
to imagético requer um outro olhar sobre a mediação do professor na construção deste
olhar, o que, necessariamente, remete à sua mos uma música, o corpo descansa e o pen-
própria formação. samento vai longe, o mesmo acontece com
uma dança e um filme que assistimos, uma
Bartolomeu Campos de Queirós, em entre- fotografia, uma pintura e uma escultura que
vista concedida à UFRJ (2009), postula ser olhamos. A arte, nas suas diferentes mani-
mais fácil levar uma música de Mozart para festações, dá uma outra visibilidade à reali-
a escola do que discutir a estética/ética do dade, permitindo novos olhares, novas nar-
programa Big Brother. Isto porque é muito rativas. A imaginação, presente e necessária
dificil assumir o olhar crítico frente ao que tanto para o artista criar sua obra, quanto
nos pertence e habita o nosso próprio tem- para o cientista fazer suas descobertas e
po. Portanto, o professor precisaria estar em invenções, se alimenta da realidade, vivida
constante educação do olhar, ultrapassando e sentida. Portanto, aguçar a sensibilidade,
limitações, pesquisando alternativas e dife- deixar a imaginação imaginar, ouvir os ecos
rentes estratégias do que foi sentido
para que ele e as e partilhar com o
A arte, nas suas diferentes
crianças possam grupo uma expe-
manifestações, dá uma
lançar diferentes riência não deve-
olhares às ima-
outra visibilidade à realidade, ria ser adorno ou 25
gens cotidianas e permitindo novos olhares, complemento da
ampliar o seu re- novas narrativas. ação pedagógica,
pertório de forma mas a própria fi-
crítica. Conclui nalidade da es-
Lopes (2001): aceitando o desafio, transfor- cola, que, ao longo de sua história, tem di-
mando o nosso olhar para recuperar o en- fundido e sistematizado a linguagem dando
canto e o espanto de ver as possibilidades muito mais ênfase ao seu lado instrumental.
onde menos esperamos, podemos descobrir Sem dúvida, a linguagem é uma grande fer-
novos ângulos e dar outros sentidos ao coti- ramenta, exerce inúmeras funções, tem um
diano escolar. lado prático, funcional, utilitário, mas não
se limita a isto.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Frente às questões postas pelo mundo con-
A linguagem, nas suas diferentes manifesta- temporâneo, de aligeiramento das relações,
ções – corporal, visual, musical, escrita – per- do consumo exacerbado, da falta de profun-
mite a narração quando se constitui como didade, da fragmentação dos discursos, da
uma experiência do sujeito. Quando ouvi- falta de afeto, de cuidados com o corpo, de
tempo para a narração, apreciação e críti- A série Linguagem e Sentidos foi um convi-
ca do próprio tempo presente, é necessário te ao professor a pegar o fio da linguagem,
que em alguma esfera da vida das pessoas se expressiva, múltipla e polifônica para, junto
devolva à linguagem a sua dimensão expres- dos alunos, encontrar o caminho de volta do
siva e sensível, para que se possa resgatar os labirinto e não ser subtraído da sua dimen-
elos da coletividade e aproximar o homem são humana.
do próprio homem. E a escola talvez seja
hoje um dos poucos lugares onde um grupo
de pessoas se reúne diariamente, podendo REFERÊNCIAS
processar, elaborar, contar e registrar a en-
BAKHTIN, M. Marxismo e Filosofia da Lingua-
xurrada de informações que chegam pelas
gem. São Paulo: Hucitec, 1992a.
inúmeras vias (televisão, internet, relações
pessoais, livros, revistas, jornais etc.). Lu-
gar que tem um potencial maior do que se BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. São

imagina e que pode aguçar os sentidos, am- Paulo: Martins Fontes, 1992b.

pliando a escuta e o olhar.


BAKHTIN, Voloshinov. Discurso na vida e

A narrativa é a possibilidade que temos de discurso na arte (sobre poética sociológica), 26


intercambiar experiências, de nos conhecer 1926. A tradução para o português foi feita

e de nos reconhecer ou nos estranhar no por Carlos Alberto Faraco e Cristovão Tezza.

outro. Ela nos faz perceber a nossa huma-


nidade sócio-histórica, concilia tempos e es- BENJAMIN, W. Sobre a linguagem em geral e

paços distintos, organiza os fragmentos das sobre a linguagem humana. In: Sobre Arte,

histórias vividas e/ou contadas. Ao reconhe- Técnica, Linguagem e Política. Lisboa: Antro-

cer a diferença no “outro”, recuperamos a pos, 1992. p.177-196.

dignidade de nos reconhecermos nos nossos


limites, nas nossas faltas, na nossa incom- BENJAMIN, W. Questões de Sociologia da
pletude permanente, enfim, em tudo isso Linguagem. In: Sobre Arte, Técnica, Lingua-
que é essencial e verdadeiramente humano gem e Política. Lisboa: Antropos, Relógio
e, ao mesmo tempo, inefável (Pereira & Sou- D’Água Editores, 1992.
za, 1998, p. 39).
BENJAMIN, W. A obra de arte na era da re-
São muitas as práticas que podem ser ado- produtividade técnica In: Sobre Arte, Técnica,
tadas rumo a um trabalho com a linguagem Linguagem e Política. Lisboa: Antropos, Reló-
capaz de 'escovar a história à contrapelo'. gio D’Água Editores, 1992.
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In: Obras Escolhidas - vol. I. São Paulo: Brasi- Ed. Papirus, 1990.
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28
1. 2. Cinema e educação: um diálogo possível

Laura Maria Coutinho14

Inicio estas reflexões sobre cinema e educa- dora, para o trabalho de ensino e pesquisa
ção no espaço do Salto para o Futuro – pro- que desenvolvo com linguagem cinemato-
grama que há duas décadas participa do de- gráfica na universidade pública. Por meio
bate nacional sobre educação trazendo, por delas, foi possível reunir cineastas, profes-
meio da televisão e da internet, os temas sores, artistas, alunos, para pensar o cine-
mais relevantes da cultura contemporânea ma e a educação irmanados. Foi possível
para o âmbito da escola e dos educadores, convidar pessoas que fazem, refletem,
– lembrando Fredric Jameson, que dedicou ensinam, conversam sobre coisas sobre
seu livro As sementes do tempo a quem fosse as quais também gostamos de conversar.
29
capaz de olhar para elas e dizer qual grão Foi possível reunir, por meio de imagens,
cresceria e qual não cresceria (1997). O Salto sons, palavras, autores fundamentais para
para o Futuro foi uma dessas sementes que nossa busca do entendimento da lingua-
cresceu. Cresceu assentando-se em discus- gem do cinema, como Walter Benjamin,
sões que não se apresentaram como evoca- Milton José de Almeida, Pier Paolo Paso-
ção de conteúdos para efeitos meramente di- lini, dentre outros; sem eles não haveria
dáticos, mas que, em tensão e complexidade, a possibilidade do diálogo nem, portanto,
encontraram-se como presença no universo da discussão. Foi possível trazer, para esse
pedagógico – em cada série de programas re- universo, autores de origem, da origem
alizada –, como parte integrante da vida cul- do desejo de ver filmes, de escrever so-
tural do país. Foi assim com o cinema. bre cinema, de fazer imagens, de pensar o
cinema e a educação juntos e separados.
Quero ressaltar a importância das séries Penso que pesquiso sobre cinema para ter
sobre cinema das quais pude participar no o que conversar com esses autores e, de
âmbito do Salto para o Futuro, seja como certa forma, para me colocar sob a custó-
consultora convidada, seja como debate- dia de cada um deles.

14 Professora Adjunta da Faculdade de Educação – UnB.


Cinema – ainda que parte de um momento traduzidos em imagens e sons. Constitui,
da humanidade em que emerge uma busca dessa forma, uma narrativa que, em esté-
quase obstinada pelo concreto, pelo mate- tica, magia e política, integra um espaço
rial, pelo real –, participa de outro movi- privilegiado de educação da memória con-
mento igualmente forte e expressivo que é temporânea.
a criação de múltiplas maneiras de materia-
lizar o invisível (Carrièrre, 1995). Participa Em muitas situações escolares, a aparição
desse momento e dessa busca sendo arte, do filme, ou seja, os momentos de cinema
artifício, artificial, diversão, entretenimen- são, muitas vezes, tempos nos quais, na rela-
to. Traduz, para essa linguagem feita de ção do que deve ser apreendido e lembrado,
imagens, sons, olhares, falas, movimentos a memória descansa. Mas não é assim que
e ruídos amalga- acontece, pois ver
mados, coisas e si- um filme é tam-
tuações que talvez
Todo filme, como linguagem, bém aprender sua
ainda hoje sejam, constitui-se de uma linguagem e sua
na escola, secun- temporalidade e de um local forma de pensar o
dárias, agregadas, onde se desenrola a expressão mundo, mas, prin-
postiças. Mas, ain- cipalmente aden- 30
de uma vida, seja ela qual for
da assim, podem trar o universo
e em que momento estiver,
ser também edu- poderoso de cons-
tornada signos traduzidos em tituição da memó-
cação. Dependen-
do de como nos imagens e sons. ria artificial. Um
relacionamos com filme realiza uma
essa linguagem, montagem que
cinema pode ser sempre educação, sobre- tece relações espaço-temporais, compondo
tudo uma educação da sensibilidade e da uma hierarquia do que precisa ser lembra-
memória. Ver um filme é aprender sobre o do, para além das prescrições. Realiza essa
cinema e sua linguagem que se concretiza função ao situar coisas diante de outras, te-
ao associar as dimensões de espaço e tem- cendo relações. O cinema tem a capacida-
po e promover seu deslocamento em 24 ou de, talvez como nenhuma outra linguagem,
36 quadros por segundo. Todo filme, como de colocar uma coisa diante da outra, uma
linguagem, constitui-se de uma tempora- pessoa diante da outra, uma cena, uma his-
lidade e de um local onde se desenrola a tória, uma narrativa diante da outra. Tem,
expressão de uma vida, seja ela qual for e assim, a capacidade de transformar espaços
em que momento estiver, tornada signos em locais, locais de memória.
Se desejarmos nos lembrar de muitas coi- lógico imediato, imanente. Principalmente
sas e de muitos conteúdos, necessitamos aqueles mais fugazes. O cinema, a meu ver,
nos prover de um grande número de lugares realiza esse tipo de educação. Por meio das
passíveis de serem identificados e reconhe- histórias cinematográficas, aprendemos a
cidos. Para isso, é essencial que esses luga- ver, ler e perceber a importância dos deta-
res formem uma série e que sejam lembra- lhes em uma narrativa. Poderíamos relatar
dos de uma forma determinada, de modo aqui inúmeros exemplos, em filmes, onde
que se possa partir de qualquer lócus da sé- todo o sentido da narrativa está contido em
rie e compor com ele nossa memória, sobre- um detalhe que poderia ter passado desper-
tudo a memória artificial, aquela que cons- cebido se a câmera, mesmo aparentando
truímos com o intuito de podermos recorrer acaso, não os tivesse ressaltado, fazendo
rapidamente a ela, para fazê-la emergir com com que coisas aparentemente ínfimas to-
lembranças, conforme assinala Frances Ya- massem o espaço inteiro da tela.
tes em seu livro A arte da memória (2007).
Alberto Manguel, em seu romance O amante
Lembramos de cenas que somente pudemos detalhista, realiza, com uma escrita excep-
visualizar por meio de imagens cinematográ- cional, um verdadeiro elogio do detalhe e do
ficas criadas pelo artifício da techné. O ato de sentido da visão: 31
lembrar nos faz também esquecer. Muitas ce-
nas que nos acompanharão para sempre em O amante captura num átimo aquilo que
nossa existência humana serão povoadas de é recortado pelo artista num pedaço de
personagens que, mesmo oriundos de uma papel sensível, e nessa armadilha, nesse
realidade acontecida, ganharam vida pela fic- recinto cercado, nos limites impostos pela
ção, ou seja, pelas imagens dos filmes, séries obra de arte, o objeto do amor [e de todos
de televisão, novelas, telejornais. os demais sentimentos] lança as sementes
de sua própria narrativa e de seu próprio
A educação da memória, de que o cinema significado (2005 p. 59-60).
participa, integra também uma forma de
educação da sensibilidade. Vivemos em um A linguagem cinematográfica, ao mesmo
mundo povoado de informações e apelos tempo em que incorporou o recorte em
onde, cada vez mais, parece ser importan- sua sintaxe, realiza uma educação de cer-
te e fundamental para a sobrevivência saber to modo de ver, acreditando, penso, como
dar um sentido para os detalhes, sobretu- Manguel, que quando permanecermos ape-
do os detalhes que nos chamam a atenção nas nela “a totalidade não deixa espaço para
sem que possamos perceber algum sentido o desejo” (2005, p. 49) e, assim, também não
para a imaginação. Qualquer linguagem fica O olhar e o pensamento cinematográficos
incompreensível sem que dela participe a permitem uma visão peculiar, única e múl-
imaginação do leitor, do espectador. tipla das coisas, somente possível por meio
do modo de ver objetivo das lentes objeti-
Talvez a importância da presença do cine- vas. O olhar do cinema é tecnológico, não
ma na escola e na educação, mais do que vemos o mundo naturalmente assim. Para
dissertar sobre coisas e situações, seja a que isso fosse possível, foi necessário uma
de despertar o aluno e as pessoas para que longa educação e aprendizado:
possam andar pelo mundo de olhos bem
abertos para a eterna maravilha da vida em Essa arte e essa educação assentam-se
suas mais amplas e ínfimas dimensões. num dos instrumentos mais importan-
tes de fabricação de imagens: a perspec-
Imaginação é uma memória sem fronteiras, tiva, um processo geométrico e mate-
limites, freios, sem a qual o cinema e os fil- mático de ilusão visual desenvolvido na
mes não seriam mais do que meras imagens Renascença e que persiste na tecnologia
em sequência, ou seja, é com imaginação que das atuais câmeras fotográficas e televi-
vamos completando os intervalos de signifi- sivas (ALMEIDA, 2003, p. 11).
cação que compõem a linguagem cinemato- 32
gráfica. É com a imaginação – que se alimen- É preciso pensar que, aliado à construção da
ta da memória –, que vamos preenchendo os linguagem cinematográfica, foi simultanea-
sentidos que o filme suprime. Tudo se passa mente realizado um longo processo de edu-
como se o que o filme escondesse os espec- cação do olhar e dos modos de ver imagens
tadores devessem revelar, imaginar. Por isso, enquadradas, cindidas, justapostas e em mo-
o cinema inteligente é uma linguagem que vimento. Mas, desde Giotto, e outros grandes
mostra, não precisa explicar, portanto, ne- mestres da arte da representação ao estilo
cessita ter alguma certeza da inteligência do mais naturalista, viemos aprendendo uma no­
espectador. Talvez por isso a linguagem cine- va forma de ver o mundo que, muitas vezes,
matográfica se aproxime de um tipo de edu- foi considerada como a forma verdadeira de
cação que transcende os conteúdos e confia representação desse mesmo mundo. Podemos
que as possibilidades de aprendizado são atri- ver Giotto como um dos grandes mestres ini-
butos de quem aprende, a partir de diferen- ciadores da tecnologia de representação visual
tes meios e linguagens, e sua capacidade de – incorporada hoje pela fotografia, o cinema, a
atingir seus objetivos é ainda maior se essa televisão –, tão lindamente expressa na Capela
linguagem falar ao coração dessa pessoa, aos Arena, feita por solicitação de Scrovegni em Pa-
seus sentimentos mais profundos. dova e, por exemplo, na Igreja dedicada a São
Francisco em Assis, Itália (WERTHEIM, 2001). se tornam, para o bem e para o mal, mode-
los exemplares de comportamento. Quando
Mas além das imagens, o cinema também isso acontece, podemos ver que temos dian-
é feito de palavras. Todo filme foi, antes de te de nós verdadeiros educadores para a vida,
transformar-se em imagens e sons em movi- que nos são apresentados pelo cinema e pelos
mento, um argumento, um roteiro e, muitas filmes. Embora possamos dizer que estamos
vezes, uma história extraída da literatura. diante de novos mitos, todos eles têm sua ori-
Portanto, o cinema acontece na confluên- gem em algum momento da experiência hu-
cia de muitos sistemas, faz ecoar sempre mana do passado. Para Mircea Eliade,
ecos dessa necessidade do diálogo entre
sistemas de linguagem, sistemas de arte, (...) o mito proclama a aparição de uma
sistemas sociais, sistemas políticos, siste- nova situação cósmica ou de um aconte-
mas de vida, que cimento primordial.
expressam, cada Portanto, é sempre
um ao seu modo A sedução questiona nossas a narração de uma
e com suas pecu- certezas e pode transformar criação: conta-se
liaridades, a expe- nossa percepção do como qualquer coi-
riência humana sa foi efetua­da, co- 33
mundo criando maneiras
neste planeta cada meçou a ser. É por
de nos fascinar, encantar,
vez mais percebido isso que o mito é so-
como tal, em sua
deslumbrar, atrair. lidário da ontologia:
trama globalizada só fala das realida-
de conhecimentos des, do que acon-
e informações. O cinema é parte integrante teceu realmente, do que se manifestou
de tudo isso. Participa, em estesia e políti- plenamente. É evidente que se trata de
ca, desse universo que busca tocar, conta- realidades sagradas, pois o sagrado é o
tar e conectar pessoas e situações, podendo real por excelência. Tudo o que perten-
tornar-se assim instrumento importante de ce à esfera do profano não participa do
uma educação do homem contemporâneo. Ser, visto que o profano não foi fundado
ontologicamente pelo mito, não tem um
O cinema participa das narrativas que vão se modelo exemplar (1992, p.85).
constituindo também na intrincada mitologia
do mundo moderno de que nos fala Campbel O que expressa Eliade nos aproxima do para-
(1990). Os atores de cinema constituem-se em doxo proposto por Buñel em sua autobiogra-
mitos ou em figuras mitologizadas quando fia, quando sugere que toda expressão artísti-
ca, sobretudo o cinema, só deixa de ser plágio de sedução, ou seja, do seu desejo de des-
quando baseada na tradição (BUÑEL, 1982). pertar nas pessoas simpatia, desejo, amor,
interesse, magnetismo, fascínio. A ideia de
Muitos estudiosos da arte de narrar história sedução está relacionada a certa ambiguida-
são unânimes ao afirmarem que não há mui- de, com coisas que oscilam entre polarida-
tos enredos possíveis ao homem. Segundo o des nem sempre bem definidas de bem e
Mahabarata, seriam apenas quarenta, e ou- de mal, de certo e de errado, de claro e de
tros, ainda, que são apenas dois: o homem escuro, de silêncio e de som.
que sai de sua casa e o que volta para ela.
Muitas, talvez infinitas, seriam as tramas, as Toda sedução atua no universo das nossas
múltiplas formas por meio das quais pode- dúvidas mais profundas, aquelas que muitas
mos contar o mesmo enredo, a mesma histó- vezes não sabemos que são nossas. A sedução
ria, levando os acontecimentos para contex- questiona nossas certezas e pode transformar
tos, situações e temporalidades diferentes. nossa percepção do mundo criando maneiras
Assim, os inúmeros filmes que são lançados de nos fascinar, encantar, deslumbrar, atrair. A
todos os anos vão ajudando a compor as nar- linguagem audiovisual do cinema e a da tele-
rativas da humanidade, trazendo sempre no- visão são linguagens sedutoras, sugerem mui-
vos e velhos temas do desafio e da arte de to mais do que afirmam e, por meio de sons e 34
viver de pessoas, culturas, civilizações. silêncios, claros e escuros, cores cambiantes,
criam um universo de magia e encantamen-
Com o cinema, e com as narrativas audio- to, até mesmo quando querem ser objetivas,
visuais que lhe deram sequência, podemos afirmativas, certas, como em alguns filmes
aprender também a arte da sedução. Sedu- didáticos e em certos programas de televisão,
ção participa sempre das histórias e da arte como os telejornais. Aprender a linguagem da
de contá-las. É um conceito complexo e, tal- sedução é também uma forma de aprender a
vez por isso, pode ser encarado com certo linguagem do cinema e dos audiovisuais para,
desprezo que temos quando alguma coisa se assim quisermos, nos livrarmos de sua di-
nos toca e nos incomoda, mas não sabemos mensão mais perversa, qual seja a da manipu-
bem como lidar com ela. A sedução tran- lação que, para além das virtudes, pode tan-
sita no universo de algumas virtudes, tais genciar os vícios, tomados aqui sem nenhum
como a polidez, a prudência, a coragem, julgamento moralista ou sectário.
a pureza, que só podem ser ensinadas, se-
gundo Comte-Sponville, pelo exemplo. Daí a Mesmo quando não nos damos conta, vive-
importância da compreensão da linguagem mos imersos em um mundo de imagens. Se
cinematográfica e suas inúmeras formas as salas de cinema estão cada vez mais redu-
zidas aos shoppings centers, ainda que a ten- REFERÊNCIAS
dência desses seja a de aumentar, a televisão
popularizou o cinema e muitos filmes deixa- ALMEIDA, Milton José de. Cinema: arte da
ram as grandes telas para apresentar-se nas memória. Campinas-SP: Autores Associados,
telas menores dos inúmeros aparelhos de 1999.
televisão que estão por toda parte. Por isso
mesmo, todas as pessoas que vivem nas ci- BUÑEL, Luís. Meu último suspiro. Rio de Ja-
dades têm sua própria experiência com a lin- neiro: Nova Fronteira, 1982.
guagem audiovisual para relatar. Em algum
momento da nossa vida, a linguagem audio- CAMPBELL, Joseph e MOYERS, Bill. O poder
visual nos toca, nos sensibiliza, nos educa. do mito. São Paulo: Palas Athena, 1990.

Realizar as próprias imagens é uma das di- COMTE-SPONVILLE, André. Pequeno tratado
mensões mais enriquecedoras dessa educa- das grandes virtudes. São Paulo: Scritta, 1995.
ção e desse diálogo necessário do cinema
com a escola. Mais do que aprender por meio ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano: a es-
dos produtos audiovisuais, importa ainda en- sência das religiões. São Paulo: Martins Fon-
tender o cinema para que a educação, na prá- tes, 1992. 35
tica cotidiana de professores e alunos, passe
a construir um entendimento do mundo por MANGUEL, Alberto. O amante detalhista. São
meio da linguagem cinematográfica. Muitas Paulo: Companhia das Letras, 2005.
experiências que pudemos empreender na
universidade ou em escolas do Ensino Funda-
WERTHEIM, Margaret. Uma história do espa-
mental, seja pessoalmente ou por relatos de
ço: de Dante à internet. Rio de Janeiro: Jorge
colegas, foram exitosas ao buscarem associar
Zahar Editora, 2001.
a linguagem audiovisual com a educação.
Mais do que somente ver filmes, importa,
para a educação do homem contemporâneo, YATES, Frances A. A arte da memória. Campi-

experimentar a linguagem cinematográfica nas-SP: Editora da Unicamp, 2007.

para expressar e construir os próprios senti-


dos e entendimento do mundo.
1.3. Televisão e educação do olhar:
uma urgência permanente

Rosa Maria Bueno Fischer15

A complexa rede de produção, veiculação, educação de nosso olhar. Se quisermos sa-


consumo e apropriação de imagens, textos ber mais sobre nosso tempo, sobre a cultu-
e sons, através da experiência cotidiana com ra em que vivemos, sobre os modos de vida
os diferentes meios de comunicação, é res- que produzimos e que nos produzem, é pre-
ponsável hoje por um imenso volume de tro- ciso lembrar que os meios de comunicação
cas simbólicas e materiais entre sociedades, existem não apenas para informar, divertir,
nações, grupos sociais, indivíduos. Podemos ocupar nosso tempo; não apenas para sim-
dizer que em nosso tempo a mídia – e de plesmente vender produtos. A TV traz, jun-
modo particular a televisão – tornou-se um to com tudo isso, formas de comunicação,
36
espaço privilegiado na construção social dos modos de contar histórias, de usar a lin-
sujeitos. Os espaços convencionais de atri- guagem, de descrever como são ou devem
buição e formação de identidades, como a ser crianças, jovens, adultos, pobres e ricos,
escola e a família, sofreram mudanças sig- mulheres e homens, negros, brancos, gru-
nificativas nas últimas décadas, na medida pos de todas as etnias e condições sociais.
em que se pode perceber, sem dúvidas, que a
formação dos sujeitos também ocorre com a O programa Salto para o Futuro, em suas
decisiva participação da televisão, do rádio, duas décadas de existência, tem mostrado
das revistas, dos jornais, da Internet – onde exatamente isto: que todas as relevantes
também aprendemos, todos os dias, modos questões educacionais (sejam elas especi-
de ser e estar neste mundo. ficamente do currículo escolar tradicional,
sejam elas referentes aos chamados temas
Ora, incluir a TV no currículo escolar torna- transversais da educação) precisam ser dis-
se uma exigência política e social da maior cutidas nos espaços da comunicação social.
importância, no sentido de uma genuína Mais do que isso: o Salto tem mostrado que

15 Professora do Curso de Pedagogia e do Programa de Pós-Graduação em Educação, da Universidade Federal


do Rio Grande do Sul – UFRGS; Pesquisadora do CNPq; Autora, dentre outros textos, do livro Televisão & Educação
– Fruir e Pensar a TV, da Autêntica Editora.
é na TV e pela TV que os diferentes públicos diretamente relacionado ao desejo de que
(como os professores e os estudantes dos di- mais e mais educadores se dediquem a essa
versos níveis, por exemplo) têm encontrado tarefa tão importante em nossos dias: a de
material de estudo e de ampliação do reper- que se faça um aprendizado cotidiano de
tório curricular, no sentido de atualização e apreensão de diferentes linguagens e modos
de envolvimento dos educadores com pro- de comunicar, com o objetivo de reelaborar
blemas de seu tempo. e incorporar criticamente na escola todas
as tantas informações e imagens a que te-
Integrar a TV, o rádio, as revistas e jornais mos acesso. Realizando um trabalho como
ao currículo escolar significa transformar a esse, vamos compreendendo que as “verda-
mídia num sério e fundamental objeto de des” deste mundo são sempre construídas e
estudo. Significa trazer seus produtos para que as lutas pelo poder tornam-se, cada vez
a sala de aula com o mais, lutas simbó-
objetivo de fazer lei- licas. Dominar sím-
turas cotidianas do Integrar a TV, o rádio, bolos e signos das
social, como é veicu- as revistas e jornais ao diferentes mídias é
lado na mídia. Signi- tarefa urgente, para
currículo escolar significa
fica estabelecer com a qual estamos to- 37
transformar a mídia num
os alunos relações dos convidados. Es-
entre as narrativas
sério e fundamental objeto pecialmente no âm-
da mídia sobre nós de estudo. bito da educação.
mesmos, nosso país,
o mundo, e aquilo
que nós pensamos, sentimos e entendemos
UM POUCO DE HISTÓRIA
sobre aqueles mesmos temas, aqueles per-
COM A TV
sonagens, aquelas vidas. Significa também
aprender formas de expressão, de lingua- Desde minhas primeiras pesquisas sobre te-
gem, como é o caso da linguagem publici- levisão e educação, nos anos 1980 (portanto,
tária, da linguagem ficcional de telenovelas, nos últimos trinta anos, metade do tempo
da linguagem informativa dos telejornais, e de “vida” da TV brasileira), observo que esse
assim por diante. meio de comunicação tornou-se parte fun-
damental do cotidiano deste país. Meus es-
Todo o trabalho que venho desenvolven- tudos com crianças e jovens, de diferentes
do, pelo menos nos últimos quinze anos, camadas sociais, mostram o quanto esses
na Universidade (e também fora dela) está grupos encontram nas narrativas da TV uma
fonte que lhes parece por vezes imprescindí- balho”, “como decorar minha casa”, “como
vel – de informação e de lazer –, propiciando reagir diante da dor física ou do sofrimento
que se sintam efetivamente parte da vida so- psíquico”, e assim por diante. Especialistas
cial brasileira. de todos os tipos são convidados a partici-
par de programas na TV, para aconselhar as
Minha primeira pesquisa sobre infância e pessoas, acompanhar suas vidas, “conver-
TV foi realizada justamente na então TVE sar” com elas. Esse tipo de proposta atraves-
do Rio de Janeiro, no início dos anos 1980. sa também os próprios programas de ficção,
Com um grupo de técnicos da Fundação como as telenovelas, que se tornaram por-
Roquette-Pinto, que atuavam na área peda- ta-vozes de “lições de cidadania”, de “bom
gógica da TVE, fomos até escolas públicas comportamento” ou de “dicas de como vi-
estaduais do Rio de Janeiro, escutar crianças ver melhor”..
e adolescentes sobre sua experiência com a
TV16. Uma das grandes descobertas iniciais Muito recentemente (2010), visitei uma pe-
foi que aquelas crianças estavam muito bem quena cidade mineira (Lavras Novas); cru-
informadas sobre programações de todos os zando ora com um burro, ora com uma va-
canais de TV (assim como hoje grande parte quinha, que tranquilamente andavam pela
desse público também conhece diferentes rua principal da cidade, encontrei grupos de 38
sites da Internet, sem deixar, certamente, de jovens reunidos junto a uma enorme cruz
saber sobre televisão). Mas o que me pare- diante da igrejinha local. Eles esquentavam
ceu essencial, já naquele tempo, era o fato o corpo ao sol, num dia frio, enquanto con-
de que a TV tinha uma presença não só de versavam animadamente. E me disseram: “A
acesso ao lazer, especialmente para popula- gente tá aqui esperando a hora da novela”.
ções mais pobres; havia naquelas crianças Já haviam se divertido com o pique-esconde
a expectativa de que a TV lhes oferecesse e outras brincadeiras infantis (que seguem
informação, apoio, acolhida. E o que acom- presentes na adolescência deles), trocavam
panhamos, hoje, não só nos canais a cabo, ideias sem parar, e depois voltariam para
mas também na chamada TV aberta, é a casa, onde a TV e suas histórias também os
proliferação de programas que justamente esperavam.
procuram responder a questões prosaicas,
como aquelas relativas a: “como educar Ora, não há dúvidas sobre a forte presença
meu filho”, “como me alimentar melhor”, da TV em nossas vidas brasileiras. Se anos
“como me comportar no ambiente de tra- atrás ouvíamos que algo “realmente aconte-

16 O resultado dessa pesquisa está publicado no livro O Mito na Sala de Jantar. Discurso infanto-juvenil sobre
televisão. Porto Alegre: Movimento, 1993 (3ª ed.).
ceu”, porque “deu no jornal”, hoje dizemos comunicação com o outro, das próprias
que “saiu na TV”, “eu vi na TV” (ou: “saiu no relações interpessoais, dos modos de ler e
Youtube”). Para o bem ou para o mal, é ali, escrever, e assim por diante. E não é somen-
na tela da TV, que encontramos tematizadas te o tema da velocidade que ganha outros
histórias fictícias ou fatos ditos “reais”, os contornos e marca nossas vidas com a TV:
quais pautam nossas conversas e inclusive profundas alterações podem ser observadas
nossas opiniões e juízos. Obviamente, isso nas concepções que passamos a ter a respei-
não é tudo. Para quem como eu já trabalhou to de ser criança, adolescente, jovem, adul-
numa emissora educativa, do Governo Fede- to; na maneira como olhamos para o nosso
ral, é evidente que há vários problemas na corpo e para o corpo dos outros e como os
TV brasileira, a começar pela concentração e julgamos; nas práticas de consumo, cotidia-
centralização das grandes emissoras, o que nas, em que quase sempre o bem que de-
provoca uma enorme padronização de mo- sejamos ou que adquirimos existe para nós
dos de vida, de consumo e de relação com não só como objeto de uso, mas principal-
o mundo. Quando assistimos a programas mente como uma imagem que nos fascina e
alternativos, de emissoras locais ou de tevês que “faz algo” conosco. Tudo isso tem a ver
educativas e culturais, podemos constatar com novas formas de construir narrativas e
a real possibilidade de termos acesso a no- também subjetividades em nosso tempo. 39

vas linguagens, a abertura de espaços a vo-


zes diversas, além de outros usos do tempo, As pesquisas que tenho feito nos últimos
em telejornais, documentários, reportagens anos, na Universidade Federal do Rio Gran-
e também programas de ficção; ao mesmo de do Sul (UFRGS), estão focadas na força
tempo, constatamos a força das grandes das imagens audiovisuais, da Internet, da
emissoras e seus modos de narrar a vida TV e particularmente do cinema. Meus es-
brasileira (e de outros pontos do planeta), tudos preocupam-se em falar com e dos
no sentido de também padronizar a própria jovens que ingressam nos Cursos de Peda-
maneira de fazer televisão. gogia, e que serão futuros professores. Per-
gunto: em que medida eles efetivamente
Gosto de insistir na afirmação de que esse têm suas experiências com a TV e o cinema?
espaço, das mídias, e particularmente da TV, Que narrativas interessam a eles? Como es-
não é algo “fora” de nós, da família, da escola colhem o que veem? E que relação fazem
e de outros espaços institucionais. Trata-se, entre as imagens da TV e do cinema e seu
na TV, de narrativas que nos mostram como futuro trabalho como professores? Minha
passamos a compreender de outro modo a hipótese é que as imagens e histórias do ci-
velocidade do tempo, das informações, da nema (e da TV) podem ampliar o repertório
desses estudantes, na medida em que elas TV EDUCATIVA E CULTURAL
são fruídas, experimentadas esteticamente, VERSUS TV COMERCIAL: A
e também na medida em que são pensa- DIVISÃO AINDA PERSISTE?
das. Pensar sobre TV e cinema não significa
perder o prazer de ver e ouvir as histórias. Costuma-se escutar que os programas das

Pelo contrário, quanto mais sabemos sobre tevês educativas são pesados ou até “cha-

o que vemos, mais podemos aproveitar as tos”, em comparação aos shows de imagens

escolhas dos roteiristas e dos diretores, dos de uma grande emissora comercial. Penso

atores e de todos os criadores dessas nar- que essa afirmação, como tantas outras so-

rativas. bre a comunicação chamada “de massa”,


precisa ser reavaliada. Certamente, no auge
Vejo como fundamentais a abertura e a da TV comercial do Brasil, nos anos 1970-80,
ampliação dos repertórios dos professores, ficava bastante difícil comparar um progra-
para que não se fixem sempre nos mesmos ma feito com todos os recursos tecnológi-
esquemas narrativos da TV e do cinema. cos e financeiros, com um trabalho quase
Penso que existem artesanal, realizado
modos de contar numa emissora pú-
Pensar sobre TV e cinema
histó­rias, nos meios blica. Vivi na carne 40
não significa perder o essa experiência,
de comunicação,
os quais se afastam
prazer de ver e ouvir as nos anos 1980, na
dos esquemas sim- histórias. TVE do Rio de Janei-
plistas desses filmes ro. Porém, também
e programas de TV, acompanhei estudos
feitos nos moldes das “narrativas fáceis”, de recepção, como o da pesquisa acima re-
aquelas histórias que não nos questionam, ferida, que me mostravam o quanto os pro-
que não nos fazem pensar, que apenas nos gramas educativos eram também recebidos
“embalam” – como é o caso de tantas co- com entusiasmo por diferentes públicos.
médias românticas ou tantos “filmes de Basta lembrar o conhecido Canta Conto
ação”, em geral bastante aplaudidos pelos (realizado pela TVE do Rio, em 1986), apre-
públicos de todas as idades e condições so- sentado pela criadora Bia Bedran, em que se
ciais. Podem até ser bem feitos, e não há contavam histórias da literatura infantil e se
mal algum que sejam apreciados. Mas in- fazia música ao vivo para crianças. A qua-
sisto na necessidade de ir além, de ver ou- lidade daqueles programas era inquestioná-
tras coisas, outras opções de linguagem, vel, e não tinha comparação com os progra-
algo que nos desafia, que nos desacomoda. mas de auditório então de grande sucesso
nas redes comerciais, como os programas cional). A palavra não cortada dos entrevis-
de Xuxa, Angélica, Mara Maravilha e tantas tados (própria das TVs educativas) foi aos
outras apresentadoras. poucos sendo considerada um valor a ser
preservado, no âmbito das outras redes de
Já ali, naquele momento, víamos que havia TV. Obviamente, há diferença entre entrevis-
uma óbvia diferença de utilização de recur- tados: a palavra não cortada de uma poeta
sos técnicos, mas que atingia profundamen- como Adélia Prado, ou de um compositor
te as crianças (e não só elas – no caso do como Chico Buarque, ou ainda de um jovem
Canta Conto). Talvez a simplicidade da lin- ou uma professora (seja ela de uma cidade
guagem, a fineza do tratamento conferido como São Paulo, seja ela do interior mais
ao público infantil, a qualidade das histórias recôndito do Brasil), muitas vezes chega
narradas – tudo isso estivesse tocando as mais fortemente ao público do que um belo
crianças, mesmo que elas, na mesma época, show, todo fragmen-
encontrassem ale- tado, apresentado
gria e diversão nos Penso o quanto é como um enlouque-
famosos programas importante multiplicar cido clipe.
de auditório comer-
as formas de estudar a
ciais. Estou falando Essas diferenças de 41
TV, de usufruir dela, sem
aqui da necessidade linguagem é que
de relativizar a crí- maniqueísmos e sem toscas precisam ser pensa-
tica que separa em polarizações. das quando se fala
dois polos opostos a em TV e educação.
TV educativa e a TV Penso o quanto é
comercial. Da mesma forma, falo da impor- importante multiplicar as formas de estudar
tância fundamental de ampliar repertórios; a TV, de usufruir dela, sem maniqueísmos e
insisto em que a criança (e os adultos tam- sem toscas polarizações. Pode-se, por exem-
bém) seja apresentada a diferentes modos plo, fazer pesquisas com adolescentes e
de contar histórias pela TV. crianças, sobre um programa de TV que eles
apreciam, a partir de vários pontos de vista
Lembro, para exemplificar, que programas diferentes, sempre com as devidas adapta-
de entrevistas, tão mais fáceis de gravar e ções, conforme a faixa etária e a condição
editar, e que eram a base das TVs educati- social dos alunos: a) expor os argumentos
vas, passaram também a ter forte presença principais da história contada; b) selecionar
nas programações de TV a cabo, no decorrer os personagens mais marcantes e relacioná-
da história da televisão brasileira (e interna- los a questões da vida pessoal ou às memó-
rias de cada um; c) comparar as vivências vidas. Mas acrescento a relevância de tam-
dos personagens e as suas próprias histórias, bém investigar, com professores, crianças e
mostrando as diferenças e aproximações; d) jovens, a especificidade da linguagem audio-
fazer uma relação dos melhores momentos visual, os recursos usados pelos criadores, o
da narrativa, destacando recursos de lingua- tempo dos diálogos, as escolhas de cenário
gem (diálogos, cenários, figurino, cortes, e de temáticas, a performance dos atores e
ângulos da câmera, sonorização) que valo- atrizes, a trilha sonora, e assim por diante.
rizaram (ou não) aquela narrativa; e) exerci- Se esses elementos também forem pensa-
tar a imaginação, propondo outras soluções dos, certamente conseguiremos a formação
para os impasses vividos pelos personagens de públicos mais críticos, de crianças com
e justificando as escolhas feitas; f) procurar uma abertura a novos repertórios, e a edu-
na Internet notícias sobre aquele programa cação dos próprios docentes para tipos de
e discutir sobre a importância daquelas in- linguagem que não se reduzem à narrativa
formações, sobre o sentido delas na comu- de uma história ou ao chamado”conteúdo”
nicação com o espectador. de um filme ou de um programa de TV.

Essa pequena mostra de questões que po-


dem ser o ponto de partida de um estudo da
VIDAS PÚBLICAS E PRIVADAS 42
TV com estudantes de Educação Básica já re- NA TV: UM DESAFIO AOS
vela o quanto há de possibilidades de traba- EDUCADORES E AO
lho com a TV na sala de aula. Com isso quero PENSAMENTO DEMOCRÁTICO
reafirmar a relevância de nos abrirmos para
o uso das imagens nas práticas pedagógicas In the future everybody will be world-famous
cotidianas, para além daquilo que ficou co- for 15 minutes. A frase do artista pop norte-
nhecido como “aplicação” da TV, como se americano Andy Warhol, nos anos 1960, pre-
ela servisse apenas para ilustrar conteúdos nunciava a possibilidade de um dia simples
ou para nos passar lições moralizantes. Cer- mortais terem seus breves minutos de fama:
tamente há usos da linguagem do vídeo e num telejornal, num programa de auditó-
da TV, também da Internet, para esclarecer rio, num debate, num comercial, num talk
melhor os alunos sobre um certo conteú- show17. Os quinze minutos de Warhol, a
do; também é correto afirmar que podemos meu ver, nos falam da enorme transforma-
usar a TV para pensar valores e modos mais ção que experimentamos no que se refere à
democráticos e humanos de viver as nossas relação entre os espaços público e privado,

17 Discuto esse tema em vários artigos, especialmente no livro Televisão & Educação. Fruir e Pensar a TV. Belo
Horizonte: Autêntica, 2006 (3ª ed.).
especialmente com a presença da TV em não é um tema inocente. Há questões políti-
nossas vidas. Hoje, todos sabemos “estar no cas em jogo também. Quando, em 2009, fo-
espaço público” muitas vezes significa estar ram questionadas as eleições presidenciais
na mídia, é estar na tela da TV, estar nas re- no Irã, o primeiro lugar de repressão foi jus-
des digitais, como se assim pudéssemos per- tamente o espaço da Internet; afinal, como
tencer a uma ampla “comunidade”, que nos controlar a difusão de imagens, produzidas
acolhe tal qual uma grande “mãe cultural”. com câmeras sofisticadas ou com modestos
aparelhos de telefone celular? Como contro-
A nós, educadores, interessa não apenas
lar a publicação de protestos via Internet?
fazer essa constatação; interessa sobretu-
Recentemente (fevereiro de 2011) em Porto
do indagar: de que modo estamos nós na
Alegre, o atropelamento de dezenas de ci-
mídia? Talvez o excesso de imagens de nós
clistas, numa conhecida rua da capital gaú-
mesmos no “espaço público” da TV – fato
cha, foi gravado com auxílio de um celular, e
que agora ganha espaço formidável nos si-
“viajou” pelo mundo, denunciando o crime.
tes de relacionamento da Internet, como
Esse também é um fato político: há inva-
o Facebook, o Orkut, entre tantos outros –
são das intimidades, mas há também maior
seja mesmo um fenômeno do nosso tempo.
controle, por parte da população, quanto a
Temos aí a exibição do que é mais pessoal, 43
inúmeros problemas e fatos da nossa época,
privado e cotidiano, como se pudéssemos
pela presença de tantas e novas tecnologias
colocar sob as luzes e diante das câmeras
de comunicação e informação.
de TV e dos computadores do mundo todo a
verdade mais íntima do ser humano, e nos
Penso que políticos, educadores, psicólo-
olhar neles, insistentemente. Os tais quinze
gos – e tantos outros profissionais – se pre-
minutos de fama chegaram de verdade, mas
ocupam com a TV (e com a Internet, hoje),
é certo que têm suas regras. Uma delas é
justamente pelo fascínio das imagens, pela
a invasão da intimidade, o olho curioso das
captura que suas narrativas fazem de nós,
câmeras em direção ao que, até pouco tem-
pessoas de todas as idades e níveis sociais.
po, permanecia ou deveria permanecer re-
Em vista disso, imagino a necessidade de
servado a muito poucos, ou somente a cada
propostas muito concretas de como intervir
um de nós, entre quatro paredes. O exemplo
naquilo que nos é transmitido pela TV, para
do famoso programa Big Brother comprova
além daquelas críticas que afastam ainda
bem essa faceta da cultura em que vivemos.
mais, especialmente a escola, desse lugar
Há nesse aspecto uma discussão política im- quase mítico das belas e intocáveis imagens,
portante a ser feita, e que não podemos per- ou dos textos, rostos e figuras que, em cir-
der de vista. Intimidade na TV e na Internet culação nas mídias, explicitamente excluem
inúmeros grupos, milhares e milhões de estamos falando sobretudo em relações de
rostos, cores, diferenças brasileiras. Quan- poder e em estratégias de resistência. Por
do insistimos em estabelecer relações entre exemplo: a mídia, especialmente a TV, tem
cultura, mídia e produção de sujeitos, na re- insistido em “educar” os adolescentes, em
alidade estamos tratando de complexas lu- dizer a eles o que fazer com seus corpos,
tas de poder, em nosso tempo. com sua sexualidade, com sua vida política,
e assim por diante. Há um imperativo, para
Em outras palavras: cada vez mais, hoje, es- as meninas, de que seus corpos sejam belos,
tão em jogo na sociedade lutas simbólicas, de que seus cabelos sejam lisos, de que elas
lutas pela hegemonia de sentidos, lutas pela sempre estejam prontas a satisfazer o dese-
visibilidade de imagens, e que estão associa- jo do homem. É preciso sublinhar que não
das a determinados grupos, a determinadas é só a TV que produz esses discursos; eles
causas, a determina- circulam por dife-
das ações políticas. Vale a pena reforçar esta rentes lugares, e os
O trabalho de um meios de comunica-
ideia: quando falamos de
programa como Sal- ção os transformam
TV e da relação entre TV e
to para o Futuro ca- a seu jeito, produ-
minha justamente
educação, estamos falando 44
zindo outras enun-
nessa direção: “em- sobretudo em relações de ciações, nas novelas,
poderar-nos”, con- poder e em estratégias de nos reality shows e
ferir mais poder aos resistência. telejornais. Se esse
educadores e aos es- é um fato, e um fato
tudantes, no sentido político, também é
de estudar e pensar a complexidade de todas verdade que não somos completamente as-
essas narrativas audiovisuais, olhando-as e sujeitados ou dominados por esses meios e
discutindo-as dos mais diferenciados pontos seus produtos. Temos condições (que nos
de vista, a fim de nos esclarecer e permitir são dadas, sobretudo, por ações educacio-
que cresçamos como cidadãos, donos de voz nais) de olhar para tudo isso e pensar o que
e posicionamento crítico, e ainda como pes- nos sucede, operar sobre essas construções
soas que ampliam seus domínios quanto a narrativas, e tomarmos posições.
linguagens e propostas estéticas diferencia-
das. Considerando tudo o que foi dito até aqui,
insisto em que é preciso não só fruir mas
Vale a pena reforçar esta ideia: quando fala- pensar a TV: ir além da TV, pensar sobre o
mos de TV e da relação entre TV e educação, que ela nos movimenta a ver e sentir, e se-
guir adiante. Oferecer aos mais jovens ou- querem as emissoras não é necessariamente
tras possibilidades de encontro com bons nem “naturalmente” o que querem os dife-
materiais audiovisuais, oferecidos pela pró- rentes grupos sociais. Há aproximações, há
pria TV; mostrar que há uma beleza de cria- encontros, mas há também divergências e
ção ali também; observar como um tipo de posições bem diversas18. Por essa razão, pre-
linguagem, que é do nosso tempo, fala de cisamos criar mecanismos, na sociedade ci-
coisas tão importantes como a vida e a mor- vil, para exigir uma TV melhor, mais criativa,
te, os sonhos, os desejos mais profundos do mais respeitosa conosco, com as maiorias
humano; e como, por outro lado, muitas ve- e as minorias deste país. Exigir qualidade (e
zes isso não está presente nas narrativas da pensar sobre o que nos é mostrado) não é
mídia, concentradas no superficial, no sen- estar alinhado com o pensamento totalizan-
sacionalismo, no espetáculo das vidas, mui- te e danoso, como o das práticas de censu-
tas vezes vidas cheias de violência e pobreza. ra; é, ao contrário, lutar por um direito le-
gítimo. Pensar a TV, como faz o Salto para
“Viver é perigoso”, já nos dizia Guimarães o Futuro, é operar em direção a uma luta
Rosa. Penso que um dos perigos do nosso que não pode enfraquecer: a luta por uma
tempo é este: esquecer que a TV tem força educação que efetivamente considere a to-
e presença em nossas vidas, não discutir a talidade da população; e essa luta tem a ver 45
respeito do que ela nos mostra e cria para com a necessária resistência aos atos indivi-
nós, acreditar que a televisão está aí, sim- dualistas e narcisistas de nosso tempo, em
plesmente, sem deixar suas marcas. Não se favor de atitudes cotidianas calcadas num
trata disso, pois, em primeiro lugar, o que pensamento genuinamente democrático.

18 Fiz referência a essa questão no artigo “A TV como prática narrativa de nosso tempo”, publicada pelo
SESC de São Paulo na revista “E” , a propósito dos 60 anos da TV brasileira. Alguns argumentos aqui apresentados
coincidem com o artigo, que está disponível em: http://www.sescsp.org.br/sesc/revistas/revistas_link.cfm?Edição_
Id=389&Artigo_ID=5988&IDCategoria=6900&reftype=2 (acesso em 7 de março de 2011).
1.4. O salto para o futuro da arte na educação

Ana Mae Barbosa19

O programa Salto para o Futuro desempe- tural. Portanto, não quis submeter o dese-
nhou um papel importantíssimo na pós-mo- nho dos programas aos PCN.
dernização da Educação no Brasil.
Na minha avaliação, a função dos progra-
Uma das coisas que me entusiasmou desde mas era estender o campo de referências da
o início do programa Salto para o Futuro Arte para além dos muros das escolas e mu-
foi a importância dada à Arte em igualdade seus. Centrei na ideia de Arte como Cultura e
com as outras disciplinas . como campo estendido para outras áreas. O
programa que me deu as bases gerais para os
46
Quando me convidaram20 para organizar outros quatro foi aquele em que abordamos
cinco programas sobre o Ensino das Artes a Interculturalidade e a Interdisciplinaridade,
Visuais, já haviam sido feitos vários progra- para o qual convidei especialistas ideologica-
mas sobre o tema, em torno principalmente mente, metodologicamente e vivencialmente
dos Parâmetros Curriculares. Nunca fui en- democráticos: Ivone Richter, falando sobre a
tusiasta de currículos nacionais, invenção Interculturalidade em geral; Fernando Azeve-
da Inglaterra de Margaret Thatcher. A an- do, sobre a Multiculturalidade funcional, isto
siedade por homogeneização da educação é, a inclusão dos deficientes físicos e diferen-
só se justifica como recurso para preparar tes mentais na escola comum, e Ana Amália
estudantes para testes que vão garantir uma Barbosa sobre Interdisciplinaridade. Dois anos
boa classificação do país no ranking inter- depois, Ana Amália, que é minha filha, iria de-
nacional. Para mim, este não é o objetivo da pender vitalmente dos princípios de inclusão
educação num país democrático e multicul- que Fernando defendeu, pois teve um AVC de

19 Mestre em Arte Educação - Southern Connecticut State College (1974); doutora em Humanistic Education
- Boston University (1978). Professora Titular aposentada da ECA-USP, atuando atualmente na Pós-graduação, linha
de pesquisa em Arte/Educação e no NACE-NUPAE, Núcleo de Cultura e Extensão em Promoção da Arte na Educação.
20 O convite foi feito por Rosa Helena Mendonça, supervisora pedagógica do Salto para o Futuro (TV Escola),
e pela então gerente da educação da TVE, Marcia Stein (Feldman).
tronco cerebral que a deixou tetraplégica, sem duas áreas configuram o campo da arte-edu-
falar e sem comer, mas com a cognição e a me- cação. Que princípios e objetivos orientam a
mória intactas. O Hospital Sarah, de Brasília, ‘arte-educação’ na contemporaneidade?
a 're+incluiu' na vida e a devolveu aos estudos
universitários, dando-lhe acesso ao computa- 2 – Espera-se que a escola prepare os(as)
dor. Em 2010, Ana Amália e Fernando Azevedo alunos(as) para conviver em sociedade e uti-
escreveram para a Licenciatura a Distância da lizar, de maneira minimamente autônoma,
UFG, a convite de Leda Guimarães, um texto conhecimentos de disciplinas, tais como
sobre arte e inclusão. A parceria dos dois co- Matemática, Geografia, Ciências e Língua
meçou no Salto para o Futuro. Portuguesa. Pensando no ensino de arte,
quais são estes conhecimentos e de que ma-
O módulo sobre Interculturalidade e Inter- neira eles servem ao(à) aluno(a)?
disciplinaridade foi apresentado à equipe do
programa como um protótipo e como eixo 3 – O ensino de arte na escola oferece alguns
central. desafios. Dentre eles, dois chamam a aten-
ção e merecem ser comentados. São eles: a)
Houve uma tal identificação de nossas ideias a escola ‘ensina’ alguém a se tornar artista?
sobre Educação e Arte que a equipe me deu b) de que maneira os processos de aprender 47
'carta branca' para escolher os outros temas e e ensinar arte ‘combinam’ com as limitações
convidados. Foram feitas apenas algumas su- que o currículo escolar estabelece (discipli-
gestões para modificação do meu texto, que nas, horário, regras de comportamento)?
seria enviado para as/os catorze participantes
a serem entrevistadas/os nos programas. As 4 – Em relação às outras disciplinas do cur-
modificações tinham a ver, principalmente, rículo escolar, que especificidades caracteri-
com algumas ênfases críticas às quais me dou zam o ensino de arte na escola? Há alguma
ao luxo, de vez em quando, para expressar mi- exigência ou necessidade especial para de-
nhas indignações sociais. Mas elas tinham ra- senvolver este ensino?
zão quanto à necessidade de maior acolhimen-
to do público e incorporei as sugestões. Para determinar os temas a serem discutidos,
aproveitei dois cursos para professores de
As perguntas que elas queriam ver respondi- Arte que ministrei, um em Minas Gerais (PUC-
das eram estas: PREPES) e outro em São Paulo (NACE-NUPAE-
USP) e inquiri os professores. As perguntas
1 – Arte e educação são duas grandes áreas foram formuladas nas seguintes direções:
de conhecimento. Articulações entre essas Como as mudanças no ensino/aprendizagem
da Arte estão sendo percebidas pelos profes- a necessidade de aprenderem como usar o
sores, como agentes dessas mudanças? Que computador no ensino da Arte.
mudanças são essas? Quais aspectos dessas
mudanças são mais problemáticos, pouco As respostas dos professores e as perguntas
entendíveis e mais difíceis de implementar? propostas pela equipe do Salto para o Fu-
Quais as necessidades dos professores? turo determinaram minhas prioridades e os
temas que foram discutidos.
As respostas coincidentes nos dois grupos
foram: Temas e ementas dos programas da série

1- A mudança mais evidente era conceitu- PGM 1 - TRANSFORMAÇÕES NO


ar a Arte/Educação como Expressão e Cul- ENSINO DA ARTE
tura. Estes foram o
Arte-Educação, Arte/
princípio e o obje- Como as mudanças no Educação, Arte Edu-
tivo identificados
ensino/aprendizagem da cação, Educação Ar­
como orientadores
Arte estão sendo percebidas tística, Educação atra-
da arte/educação na
contemporaneidade,
pelos professores, como vés da Arte, Ensino da
48
Arte ou Ensino/Apren-
nos anos 2000. agentes dessas mudanças?
dizagem da Arte, Arte,
Que mudanças são essas?
Artes Plásticas, Artes
2- Outra dificuldade
Visuais, etc.: concei-
para eles era a lei-
tos associados às dife-
tura de imagens, base do conhecimento da
rentes terminologias e sua trajetória histórica.
Arte como Cultura e como exercício crítico a
O modernismo e a contemporaneidade ou pós-
ser levado a efeito também nas imagens do
modernismo. Arte como expressão, subjetivi-
cotidiano. Para eles, era este o conhecimen-
dade e como cultura.
to básico a ser desenvolvido pela Arte como
disciplina no Currículo.
Participantes:

3- Uma das necessidades apontadas foi a Dra. Irene Tourinho (GO) – Professora do
melhoria da formação de professores, o res- Departamento de Artes Visuais da Universi-
peito ao contexto em que eles se formam, e dade de Goiás; Coordenadora do mestrado
a importância de relacionar teo­ria e prática. em Cultura Visual.

4- Por último, apontaram unanimemente Dra. Lucimar Bello Frange (ES) – Artista Plás-
tica; Professora aposentada da Universida- Federal do Rio Grande do Sul, onde coor-
de de Uberlândia; Autora do livro Por que se dena a Linha de Pesquisa em Artes da Pós-
esconde a violeta? (1995) Graduação em Educação. Autora de vários
livros, entre eles: O Vídeo e a Metodologia
Dra. Miriam Celeste Martins (SP) – Profes- Triangular (1991); Desenho e construção de co-
sora aposentada da Universidade do Esta- nhecimento na criança (1996); A educação do
do de São Paulo (UNESP); Atualmente, pro- olhar (1999).
fessora da Pós-Graduação na Universidade
Mackenzie. Dra. Ana Mae Barbosa (SP) – Professora Ti-
tular aposentada da ECA-USP, atuando atual-
PGM 2 - CAMINHOS METODOLÓ- mente na Pós-graduação, linha de pesquisa
GICOS: LEITURAS DA IMAGEM
em Arte/Educação e no NACE-NUPAE, Nú-
cleo de Cultura e Extensão em Promoção da
As propostas metodológicas contemporâ-
Arte na Educação; autora de Tópicos Utópi-
neas: Critical Studies, CBAE, Arts Propel,
cos (1998); Arte-Educação: leitura no subsolo
Proposta Triangular. A leitura da obra e do
(1999); A imagem no ensino da Arte (1997);
campo de sentido da Arte. Etapas de com-
Abordagem Triangular no Ensino das Artes e
preensão da obra de arte ou como crianças 49
Culturas Visuais (2010) (Org. com Fernanda
e adultos leem a obra de arte e desenvolvem
P. Cunha).
sua capacidade de entendimento. A influên-
cia do cinema, da televisão e a Estética do
Cotidiano: o rompimento de barreiras entre PGM 3 - INTERCULTURALIDADE E
o erudito e o popular, a não hierarquização INTERDISCIPLINARIDADE
entre culturas.
Conceitos e experiências bem sucedidas co-

Participantes: locando lado a lado o código erudito, o popu-

Dra. Maria Christina de Souza Rizzi (SP) – lar e os especiais fazeres de mulheres donas

Professora do Departamento de Artes Plásti- de casa, estabelecendo-se uma ponte entre a

cas - USP. Trabalhou na Pinacoteca do Estado escola e seu entorno, e associando o artista

de São Paulo, no Museu da Casa Brasileira, que vive na comunidade com o artista inter-

no Museu de Arte Contemporânea da USP e nacional. Experiências interdisciplinares de

no MAE/USP. ensinar Inglês e Arte, ao mesmo tempo, e de


tomar as outras disciplinas como base con-

Dra. Analice Dutra Pillar (RGS) – Professora ceitual para as Artes. A multiculturalidade

da Faculdade de Educação da Universidade como inclusão.


Participantes: Margarido Sales o livro Artes Visuais: da ex-
Dra. Ivone Richter (RGS) – Professora apo- posição à sala de aula (2005). Organizadora
sentada da Universidade Federal de Santa com Ana Mae Barbosa do livro Arte/Educa-
Maria, foi presidente da Federação de Arte ção como mediação cultural e social (2009).
Educadores do Brasil. Autora do livro Inter-
culturalidade e estética do cotidiano no ensino Ana Del Tabor (PA) – Professora da Univer-
das artes visuais (2003). sidade Federal do Pará e da Universidade da
Amazônia. Tem mestrado e coordena a Li-
Ana Amália Barbosa (SP) – artista plástica, cenciatura em Artes Visuais da UNAMA. Foi
autora do livro O ensino de Artes e de Inglês: presidente da FAEB.
uma experiência interdisciplinar (2007), atual-
mente doutoranda da USP. Dra. Regina Machado (SP) - Professora apo-
sentada da Universidade de São Paulo, con-
Fernando Azevedo (PE) – Professor e Coor- tadora de estórias; autora do livro A formiga
denador de Arte da Secretaria de Estado da Aurélia e outros jeitos de ver o mundo (1998)
Educação de Pernambuco, mestrando, co- e Acordais. Fundamentos teórico-poéticos da
autor com Fábio José Rodrigues da Costa de Arte de contar história (2004).
Ensino da Arte: entrelaces (1999). 50

PGM 5 - O COMPUTADOR
PGM 4 - FORMAÇÃO DE E OUTRAS TECNOLOGIAS
PROFESSORES DE ARTE CONTEMPORÂNEAS NO ENSINO
DA ARTE
Situação atual dos Cursos de Licenciatura;
formação continuada; como deve ser a for- O acesso e a manipulação da imagem. A
mação teórica e prática, como ensinar a en- Arte por computador, integrações percep-
sinar a aprender; publicações; colaboração tivas. Diferentes possibilidades de leituras,
de museus e de outras instituições; onde desconstruções e criação. CDRom, Internet,
encontrar os cursos adequados; o professor sites, comunicação e informação. O exercí-
generalista (1a a 4a séries) e o especialista cio crítico necessário para tomar decisões
(6a a 9a séries). sobre o que escolher e priorizar. A convivên-
cia com outros meios eletrônicos e com os
Participantes: tradicionais: do lápis ao mouse.
Rejane Coutinho (PE/SP) - Professora da Uni-
versidade do Estado de São Paulo (UNESP). Participantes:
Escreveu com Ana Mae Barbosa e Heloisa Dra. Lúcia Pimentel (MG) – Professora da
Universidade Federal de Minas Gerais (Esco- tinha verba suficiente e os equipamentos
la de Belas Artes). Publicou na Inglaterra o não eram atualizados, nem substituídos. Vi-
livro sobre Arte Educação e Computador, em víamos numa fase em que o governo que-
colaboração com os professores Pete Wor- ria que a educação no Brasil superasse os
rall e Tom Davies: Electric Studio (2000); no índices do Haiti, como na canção de Caeta-
Brasil publicou, com Antônio Claret Santos, no Veloso, mas não queria gastar dinheiro.
o livro e CDRom Estudando as cores: Intro- Hoje, as universidades federais equipadas,
dução ao estudo da Teoria da Cor. Software com número bom de professores, oferecem
Didático (1996) e Limites em Expansão (1999); cursos noturnos para os trabalhadores, ten-
Coordenadora da Coleção Arte & Ensino da do-se ainda uma verba, inimaginável naque-
Editora C/ARTE. le tempo, para a tão necessária educação a
distância.
Adriana Portella (RJ). Arte/Educadora com
especialização em Educação com Aplicação Em 2000, a equipe do Salto para o Futuro tra-
da Informática pela UFRJ. Coordenadora de balhava com muita garra e imaginação para
projetos em Kidlink - Portuguese. Consulto- superar a falta de dinheiro. Sugeri vários lu-
ra da Multirio no Projeto Geração Internet. gares de ensino de Arte para serem filmados,
Coordenadora do site Estudio@Web e parti- como o Instituto Capibaribe, no Recife, cria- 51
cipante do Grupo Educar na Internet. do nos anos 1950 por Paulo Freire, Elza Freire
e Raquel Crasto, que tem sempre uma equipe
Dra. Tania Calegaro (SP). Desde 1993 vem excelente de Arte/Educadores. Em 2000, ensi-
pesquisando o uso das novas tecnologias navam lá Fátima Serrano e Patrícia Barreto.
para o ensino/aprendizagem da Arte. Pro- Recomendei também o Colégio Pedro II, no
fessora universitária e do Ensino Médio em Rio de Janeiro, especialmente as aulas de Elo-
instituições públicas e privadas de São Pau- ísa Saboia, e o Curso de Aperfeiçoamento de
lo. Assessora do Núcleo de Comunicação e Professores de Arte do Núcleo de Cultura e
Educação (NCE) da ECA/USP. Extensão em Promoção da Arte na Educação
da Escola de Comunicações e Artes da Uni-
Estes programas do Salto para o Futuro, versidade de São Paulo. Esse Núcleo hoje não
com o título “Arte na Escola”, foram ao ar funciona mais, porém seus cursos foram alvo
em abril de 2000. Até 2006, cópias em DVD de pesquisa para a tese de doutorado de Fa-
foram muito usadas pelos professores que bio Rodrigues, na Espanha. Hoje Fábio dirige
as reproduziam para seus colegas. a Faculdade de Artes Violeta Arraes da Uni-
versidade do Cariri. Aliás, é bom lembrar que
Mas, na época, o Salto para o Futuro não a maioria dos especialistas que participaram
dos programas ocupa hoje a liderança do en- organizei sob a orientação da supervisora
sino da Arte nas universidades brasileiras. pedagógica e da então gerente de Educação
da TVE, são necessários outros programas,
Por falta de verba, nada disso pôde ser fil- pois a situação do ensino das Artes Visuais
mado, mas a equipe do Salto para o Futuro mudou. Em todo os cursos de Pedagogia, há
supriu as lacunas com imagens do arquivo, pelo menos uma disciplina sobre Arte, as li-
algumas excepcionalmente bem escolhidas, cenciaturas em Artes Visuais estão se mul-
como o foram as cenas do filme de Kurosa- tiplicando no modo presencial e atingindo
wa lendo, comemorativamente, Van Gogh. números incríveis de professores no modo
EAD, as pesquisas para mestrados e douto-
O vídeo de Cao Hamburger sobre a exposição rados se multiplicaram.
“O labirinto da Moda”, de Gláucia Amaral,
também não pôde ser exibido como objeto Há um vivo debate em todo o mundo sobre
de análise, por não ter havido tempo hábil ensino das Artes Visuais, das Culturas Visu-
para a concessão de direitos de exibição. ais, da Cultura Material, da Comunicação
Visual e do Design Thinking, da História da
A reação dos professores nos telepostos foi Arte, Antropologia, Feminismo, Estudos da
muito participativa. Eles nos bombardearam Mulher, Queer Theory, Política Cultural, Es- 52
de perguntas e saí da experiência querendo tudos Pós-Coloniais, Performance Studies,
escrever um livro respondendo às pergun- Cinema, Estudos de Mídias, Arqueologia,
tas. Mas o tempo passou e, ao reler os textos Arquitetura, Urbanismo, Design etc. Hoje,
que pedi a cada professor participante das tudo isto tem a ver com Arte/Educação.
cinco mesas, percebi que, de um modo ou
de outro, haviam respondido à enxurrada de No Brasil, a relação das Artes Visuais e da
perguntas que levamos para casa. Cultura Visual ou Culturas Visuais, como
prefiro chamar, estava indo muito bem
Pedi permissão à equipe do programa e com desde o fim do século XX, com pesquisas e
o material escrito pelos participantes do Sal- práticas engajadas desenvolvendo nos alu-
to do Futuro, 15 textos ao todo, publiquei o nos a capacidade crítica para a imagem de
livro Inquietações e mudanças no Ensino da qualquer categoria. Pesquisadoras, como
Arte, pela Editora Cortez, lançado em 2002 Mariazinha Fusari, Analice Dutra Pilar, Ma-
na Bienal de São Paulo. O livro está na séti- ria Helena Rossi, Alice Martins, Nilza de
ma edição. Oliveira, Leda Guimarães, Dulcília Buitoni,
Kathia Castilho, Jociele Lampert, Maria Lu-
Agora, dez anos depois dos programas que cia Bueno vinham desenvolvendo valiosos
trabalhos e publicando sobre o campo ex- mas em muitas outras, têm muita verba, que
pandido da arte para a publicidade, moda, é distribuída para cooptação de membros
cinema, design, TV, cultura visual do povo poderosos em seus lugares de trabalho. Fe-
etc. como reação ao sistema hierárquico lizmente, este fenômeno é localizável e ain-
dos valores da arte hegemônica manipula- da não assolou o país. Espero que se modifi-
da por museus, comunidade de críticos de quem gradativamente, sem perder a rapidez
elite, mercado etc. Textos sobre Cultura Vi- de publicação, mas que se pluralizem. Até a
sual foram traduzidos em livros como Arte/ antiga política de cátedra das universidades
Educação: leituras no subsolo e Arte/Educação se modernizou! Entretanto, criaram a políti-
Contemporânea, por mim organizados. ca de departamentos, que também virou ins-
trumento de poder. Na USP, na gestão Gol-
Na década de 2000, denberg (1986-89),
multiplicaram-se foram criados os
os grupos de estu- A reação dos professores Núcleos de Pesqui-
dos sobre ensino nos telepostos foi muito sa e de Cultura e Ex-
da Arte e Cultura tensão, para ajudar
participativa. Eles nos
nas universidades, os professores pro-
bombardearam de perguntas 53
para o bem e para dutivos a fugirem
o mal. A maioria
e saí da experiência da ditadura dos de-
destes grupos pra- querendo escrever um livro partamentos, que
tica a democracia e respondendo às perguntas. foram um sucesso
a inclusão, mas há de democratização
outros que estão até 1992. Posterior-
sendo usados para mente, atitudes
consolidar o poder deste ou daquele dire- conservadoras de alguns gestores cercearam
tor ou chefe, que se intitulam sacerdotes do a liberdade que os núcleos davam aos profes-
tema que dizem estudar, praticam uma polí- sores, chegando mesmo a inibir essa autono-
tica eurocêntrica, só citam uns aos outros e mia. A luta de dominação tem muitas faces,
seus alunos a eles. Nos livros e revistas que todas monstruosas.
publicam, os textos são sempre das mesmas
pessoas, o que aniquila minha curiosidade. É O Salto para o Futuro colaborou grandemen-
uma situação quase medieval, semelhante à te para a democratização do conhecimento
política de cátedras do passado, com a dife- em nossa sociedade, arriscando-se a con-
rença de que os tais grupos de estudos ma- vidar pessoas de diferentes posições teóri-
nipulam o poder não só na sua universidade, cas e/ou políticas para debaterem temas e
ideias. O debate, a discussão, o diálogo são DUFRENE, Phoebe. Voices of color. NJ: Hu-
as melhores armas de combate contra a dis- manities Press, 1997.
criminação, a ignorância e a imposição de
políticas educacionais e culturais. FERRAZ, M. Heloisa e FUSARI, M. F. Metodolo-
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UFMG, 1996. Livro e disquete.

55
1.5. Temas polêmicos na literatura:
o mal-estar

Nilma Lacerda21

Na poética do mal-estar, identificada na pro- com foco na problematização do mal e na


dução contemporânea para crianças e jovens, figuração do mal-estar.
os chamados temas polêmicos, marcados pela
complexidade, tratados sem maniqueísmos O convite para consultoria à série Temas

ou reduções simplistas, são exatamente os Polêmicos em Literatura, do Salto para o Fu-

que melhor podem ofertar aos leitores infan- turo, em 2007, propiciou um contato enri-

tis e juvenis vias essenciais para responder aos quecedor com profissionais do livro e com

enigmas da existência. Pretende-se abordar a professoras de todo o país para discussão

ressonância dessa poética na literatura de al- do tema, que enfrentava, em vários espaços,
uma visão restritiva quanto à sua proprie- 56
guns países da América Latina.
dade.

Questões fundamentais da existência atin-


I. AO INICIAR A TRAVESSIA
gem crianças e jovens com intensidade se-
Em 1999, a travessia do Rio São Francisco, melhante à que atinge os adultos, mas os
realizada pela autora como parte de um pro- temas que expressam a angústia frente a
jeto cultural, ensejou reflexões sobre a ne- essas questões são considerados polêmicos,
cessária relação entre ética e estética na lite- e obras que tratem do mal, da morte, da
ratura que crianças e jovens também podem violência na escola, da sexualidade, do ho-
ler. As Cartas do São Francisco: conversas com moerotismo são, em geral, tidas como ousa-
Rilke à beira do rio (2000) dão prosseguimen- das, perigosas, inadequadas pelos docentes,
to à pesquisa iniciada algum tempo antes, e costumam passar longe da sala de aula.

21 Doutora em Letras, com pós-doutorado em História Cultural. Professora da Faculdade de Educação e do


curso de Especialização em literatura infantil e juvenil da Universidade Federal Fluminense (UFF). Autora de Manual
de Tapeçaria; Cartas do São Francisco: conversas com Rilke à beira do rio; Estrela-de-rabo e outras histórias doidas; Pena
de Ganso; Sortes de Villamor, dentre outras obras. Consultora da série Temas polêmicos na literatura, do programa
Salto para o Futuro, em 2007. O item III do presente trabalho foi apresentado no 32° Congresso Internacional do
IBBY, realizado em Santiago de Compostela, de 8 a 12/09/2010, sob o título “Bonecos de pau, girinos e sapos: a poética
do mal-estar na ficção para jovens na América Latina”.
Sabe-se, contudo, que nelas reside a possibi- gência uma arma legítima para quem não
lidade de reconhecer e discutir os enigmas dispunha de poder ou de riquezas.
da existência humana e a problemática das
Nessas narrativas, aquele que é pequeno e
relações sociais e, ainda, alcançar a constru-
menosprezado é quem vai salvar o grande
ção de respostas existenciais necessárias aos
e poderoso. Na célebre fábula de La Fontai-
projetos pessoais e coletivos.
ne, o ratinho pode roer as malhas da rede
que o leão, com toda sua fúria, não conse-
Literatura é, em primeiro lugar, comunica-
gue romper. No conto de Perrault, o rapaz
ção, e, respeitados os limites de suas sen-
que parece prejudicado na partilha dos bens
sibilidades, crianças e jovens precisam ter
do pai acaba se casando com a filha do rei,
acesso a essa experiência de forma integral,
por artes de um gato que lhe coubera por
na compreensão da complexidade da condi-
herança. Bondade, solidariedade, humildade
ção humana. Como experiência humana e
são valores premiados; maldade, arrogân-
estética que propicia o reconhecimento do
cia, egoísmo são castigados, como naquela
que nos faz humanos, os temas vistos como
história em que a irmã boa recebe da fada
polêmicos são exatamente os que mais se
o dom de expelir flores e joias ao falar, en-
ocupam de nossa humanidade e podem
quanto, ao abrir a boca, a irmã má vai cuspir 57
ofertar aos leitores infantis e juvenis vias es-
cobras e lagartos.
senciais para a discussão do que os inquieta.

Por meio das narrativas, é moldado um

II. O MAL-ESTAR, EM SUA POÉTICA mundo justo, em que bem e mal ficam se-
parados e, no caráter humano, são partes ir-
Os contos e as fábulas que estão na base de reconciliáveis e excludentes. Quem é mau, é
uma literatura voltada para a criança são mau; quem é bom, é bom. A divisão confere
construções de caráter e alcance popular, aos contos um caráter nitidamente pedagó-
fruto de muitas vozes anônimas, que foram gico, voltado ao exemplo e à correção dos
deixando seu olhar sobre o mundo em nar- costumes.
rativas que assegurassem a vitória do bem e
a derrota do mal. Em um universo no qual Essa perspectiva vai se alterando, à medida
os pobres careciam de toda espécie de bens que acontecem as mudanças na sociedade,
e cujo acesso aos benefícios da civilização em decorrência das conquistas sociais e
era muito remoto, era preciso que as narra- científicas. O surgimento da psicologia, no
tivas afirmassem o valor de quem era bom final do século XIX, e logo em seguida o ad-
e heroico, trabalhador e sincero, e que os vento da psicanálise vêm mostrar que o ser
ouvintes e leitores encontrassem na inteli- humano é uma mistura de bem e mal, par-
tes boas e não tão boas. No século XX, estu- ra que deve acompanhar o homem nos abis-
dos de várias naturezas procuram conhecer mos em que mergulha, nos pactos em que
melhor o ser humano e conceitos absolutos se envolve na desordem do próprio ser.
de outras épocas mostram-se relativizados.
O ser humano surge como um enigma cons- O mal-estar na cultura, apontado por Sigmund
tante, mistura de partes que nem sempre Freud no ensaio de 1930 (FREUD, 1981), tem-se
podem ser conhecidas em profundidade; confirmado a partir de então, e de forma cada
essas descobertas e estudos terão conside- vez mais incômoda; as casas do homem são to-
rável influência na produção de narrativas. madas de assalto, na constatação do pensador
francês Félix Guattari, que propõe, em As Três
A literatura para crianças e jovens vê seu ca- Ecologias (1989), a modificação e reinvenção
ráter pedagógico se modificar para investir dos paradigmas da civilização, deslocando-os
naquilo que caracteriza a produção literária da determinação científica para a instalação
para adultos: as perguntas sobre nossa pró- no seio da ética e da estética.
pria humanidade.
Mal-estar, modificação e reinvenção dos pa-
Para Denis Rosenfield, filósofo que formu- radigmas da civilização estão presentes no
la o conceito de vontade maligna, é impe- projeto que Monteiro Lobato começa a tra- 58
rioso considerar o mal como uma escolha çar em 1921, com a publicação de A menina
que produz um tipo de ação na história, e do narizinho arrebitado, abrindo na literatu-
construir um conceito que “[...] interrogue o ra brasileira uma vertente que se empenha
modo mesmo do ser humano”, para ele “[...] em permitir à criança e ao jovem o acesso
um esboço inacabado, talvez para sempre à participação na configuração do mundo,
incompleto” (ROSENFIELD, 1988, p.150). por meio de uma produção literária ao al-
cance de sua sensibilidade e que não despre-
A questão do mal, que já ocupara pensado- za sua inteligência.
res como Georges Bataille, tem na literatura
um dos espaços mais convidativos à discus- Investido de um caráter utópico e otimista, o
são, pois, sendo comunicação, é nela que autor não deixa de reconhecer que apresen-
se deve estabelecer um canal fundamental tar o mundo sem mal às crianças, ou apre-
com o leitor, através do qual se pode acom- sentá-lo na perspectiva maniqueísta, é falseá-
panhar o jogo da transgressão da lei. “A lite- lo. Algumas obras na ficção para crianças de
ratura é o essencial ou não é nada”, defende Lobato prestam-se, de forma singular, a essa
Bataille (1989, p.9), na medida em que, sem análise, em que também se encontra presen-
compromisso de ordem a criar, é a literatu- te um pensamento crítico da realidade uni-
versal, expresso em artigos para a imprensa e Maria Machado, nas imagens de Rui de Oli-
em sua correspondência particular. veira, no desconforto existencial dos perso-
nagens de Lygia Bojunga.
A chave do tamanho (1942) abre na literatura
brasileira uma linhagem em que o mal-estar
III. BONECOS DE PAU, GIRINOS
é a tônica narrativa, visando à desestabiliza-
E SAPOS: MAL-ESTAR NA
ção do leitor e ao questionamento da reali-
dade, o que implica novos contornos histó-
AMÉRICA LATINA
ricos e sociais.
A chamada de Silviano Santiago pa­­­ra o Brasil
contemporâneo pode ser estendida à Amé-
Décadas mais tarde, ao apontar a direção
rica Latina, esta
de novas vozes em
parte do continen-
circulação no Bra-
A chave do tamanho (1942) te que não teve a
sil para um públi-
co feito de novos
abre na literatura brasileira possibilidade de
tomar as rédeas da
leitores e uma pla- uma linhagem em que o mal-
própria ocupação e
teia jovem, Silvia- estar é a tônica narrativa,
colonização de seu
no Santiago (1997) visando à desestabilização território, como
59
expressa a convic-
do leitor e ao questionamento aconteceu com a
ção de que os va-
da realidade, o que implica América do Norte.
lores da educação
são determinantes
novos contornos históricos Dominados pelas

e sociais. potências euro-


na constituição
peias do século XV,
de uma nação, e
fomos condenados
o acesso à leitura
aos vícios e des-
literária está entre esses valores. Considera
mandos de uma ocupação predatória, pela
visionários aqueles que se definem como es-
qual ainda pagamos o preço.
critores num país como o nosso (SANTIAGO,
2004, p.72), cuja realidade de desigualdade O parágrafo inicial de uma novela, premia-
social e mentiras políticas demanda consci- da em concurso literário sem especificação
ência aguda para transformação. de público leitor, dá o tom que buscamos
acompanhar, neste ensaio22:
Para tanto, vale o mal-estar presente nos rei-
nos de Ruth Rocha, nos cotidianos de Ana Sobre a capa dura do álbum há uma paisa-

22 Obs.: As traduções foram feitas pela autora para este trabalho.


gem pintada. Uma montanha com o cume rio norte-americano, de base anglo-saxã (LA-
coberto de neve, a nascente ao pé da monta- CERDA, 2010, s/p.).
nha, a campina com pastos verdes por onde
corre a água da fonte. Os ramos das árvores Na literatura contemporânea que crianças e
são finos e frios. Ainda não é inverno, e já se jovens também podem ler na América Lati-
pressente a neve (BADRÁN, 2007, p. 7). na, o mal-estar apresenta-se ao lado de três
outras linhas de força: a poética da identi-
Pressente-se a neve, e ainda não é inverno. dade, voltada à exploração do eu e às raízes
Mas ele está lá, avizinham-se desconforto e culturais ou nacionais; a poética da gratui-
privação. A natureza se recolhe, o corpo re- dade, em que a palavra é signo opaco a re-
clama do sentimento de desazón, esse mal- verberar na polissemia; a poética do signo
estar físico indefinido e sem causa aparente, verbal, com a perspectiva das ficções metali-
e precisa inventar estratégias para sobrevi- terárias e metatextuais – uma tônica na pro-
ver, enquanto anseia pelas estações tempe- dução da pós-modernidade. Temos tomado,
radas, pelo verão. em tal produção, o mal-estar como uma das
poéticas mais instigantes e que melhor pos-
Na América Latina, há muito foram abando- sibilitam as relações entre experiência esté-
nadas as estações do bem-estar. As mazelas tica e ética. 60
e os processos de independência deixaram
sequelas que se fazem sentir até o presente, El dia de la mudanza (O dia da mudança) do
marcado pela corrupção, escolaridade defi- colombiano Pedro Badrán, cujo fragmen-
ciente, acesso desigual a serviços públicos to inicial lemos acima, pode ser lido como
de saúde, problemas estruturais na admi- retrato da Colômbia em suas falências, pro-
nistração pública, tendência ao Estado pa- jeto iluminista abortado nas lutas pela in-
ternalista e demagógico, existência de for- dependência do país. Deslizar da condição
tes grupos oligárquicos no poder, gritantes social confortável para o limbo da sobrevi-
mentiras políticas e desigualdades sociais. vência envergonhada é estar abandonado
A tudo isso se dá, mais ou menos, o verniz ao próprio coração do inverno, como mos-
da democracia. Uma sensação constante de tra a narrativa. O autor possibilita o mergu-
mau pressentimento quanto à precarieda- lho radical naquilo que Freud anunciou em
de do exercício dos direitos humanos e da princípios do século XX, quando o progresso
efetiva democracia alimenta expressões es- tecnológico prognosticava a felicidade to-
téticas de alto vigor nessa parte da América tal para a humanidade. O grão do mal-estar
nomeada latina para atender aos interesses ameaçava fazer apodrecer o cesto de maçãs.
da nação francesa, contrapondo-se ao impé- Grão?
Freud nos alerta que “[….] o homem não é Na condição de primeiro autor brasileiro a
uma criatura terna e necessitada de amor conceber um projeto de literatura destinada
[….] (e que) o próximo […] representa para ele às crianças, Monteiro Lobato evidencia ab-
[…] um motivo de tentação […] para ocasio- soluta clarividência quanto ao que represen-
nar sofrimentos, para martirizá-lo e matá-lo ta a literatura, em termos de comunicação
(FREUD, 1981, p. 3.046). entre autor e leitor, conforme o pensamento
de Georges Bataille (1989, p.10). Na já men-
Questões fundamentais da existência como o cionada A chave do tamanho, os personagens
mal, a morte, violência na escola, sexualida- do Sítio do Picapau Amarelo sofrem de for-
de, homoerotismo, guerra, suicídio, corrup- ma direta as consequências do conflito no
ção costumam apresentar-se como temas Velho Mundo, e Dona Benta, a terna avó de-
considerados fensora do humanis-
polêmicos para mo, expressa a um só
Questões fundamentais da
a literatura. E tempo a consciência
as várias instân- existência como o mal, a da humanidade e a
cias de controle morte, violência na escola, depressão, que tam-
da leitura cos- sexualidade, homoerotismo, bém o autor confessa
tumam conside- 61
guerra, suicídio, corrupção nos escritos pessoais.
rar as obras que Sem maniqueísmos,
costumam apresentar-se
os apresentem arriscando-se a ex-
como temas considerados
como perigosas plorar o humano na
e inadequadas
polêmicos para a literatura. sua complexidade,
para crianças e Lobato problematiza
jovens. Mas se o mal-estar. As crian-
“De todas as palavras do tapete essa era a ças que leem Lobato e que a ele escrevem (é
de que eu mais gostava: alfanje” (BADRÁN, um autor de alta interação com seus leito-
2007, p.28). res) podem, então, formar-se na consciência
de que “A humanidade forma um corpo só”
Censurar esse alfanje, cortar o sabre do
(LOBATO, s/d, p.10).
texto (o texto como alfombra) é impedir
ao leitor a residência nos lugares do hu- As ditaduras e guerras que varreram o sécu-
mano, tocando o abismo que a cada um lo XX fomentaram na Europa a consciência
toca. As estações temperadas, o conforto crítica e memorialística. Na América Latina,
do verão não costumam ser gratos à lite- franquear a memória é tarefa custosa. Como
ratura. acreditar que crimes como esses foram co-
metidos impunemente e por cidadãos de entretenimento e nos discursos didáticos, li-
um país em relação a seus compatriotas? vra-se de conflitos, ao atribuir aos fatos e às
pessoas posições esquemáticas. O mal-estar,
[…] sequestros, centros clandestinos de ao contrário, surge da consciência da gama
detenção, o extermínio como arma po- de variações de caráter e responsabilidade
lítica, a impunidade com que os repres- inerentes a cada indivíduo, frente às varia-
sores se moviam, atitudes da Igreja, de das circunstâncias. O leitor experimenta as-
alguns funcionários, a forma como se sim, na experiência estética, a vivência éti-
articulava a repressão em toda América ca. “– Disseram a você que sou imortal? [...]
Latina, documentos, lista de detidos de- “Me salvei porque vomitei os girinos – […]
saparecidos, crianças, grávidas e adoles- “Não coma girinos, se você não quer morrer
centes torturados (BIALET, 2008, p.105-7). [...]” (IBAÑEZ, 2008, p.197).

Com Los sapos de la memória (Os sapos da A novela do colombiano Francisco Montaña
memória), a argentina Graciela Bialet en- Ibañez revolve o leitor, que acompanha per-
frenta o mal-estar imprescindível à recons- plexo e nauseado o trajeto de fome de cin-
trução factual para que a história não seja co crianças, abandonadas à própria sorte e
um amontoado de versões fraudulentas, e fadadas a um desfecho trágico, em face da 62
a identidade não passe de fantasia de car- omissão dos adultos que as cercam. Uma úl-
naval. Nessa empresa, muitos adultos, a tima refeição, feita de uma calda de girinos,
pretexto de proteger crianças e jovens de é a causa da morte de todos os irmãos, na
uma realidade cruel, podem acabar borran- sublimada versão de David, único sobrevi-
do a memória, encobrindo ou minimizando vente de um massacre em que o assassino
a violência social ou de Estado. Los aguje- e também suicida é o irmão mais velho, que
ros negros (Os buracos negros), de Yolanda devia obedecer à ordem do pai e manter os
Reyes, relata a violência na Colômbia, com irmãos juntos até que ele voltasse. Mas o
o mérito de não simplificar a questão: “ – pai não voltou, e a fome os leva a se alimen-
[...] Tem trabalhos que não agradam a certas tar de larvas. David, o Imortal, empreende
pessoas. – Que pessoas? Quem era essa gen- o longo trajeto de volta a si mesmo ampa-
te má, avó? – Não sei – disse –. Não é nada rado pelos laços de afeto de uma menina,
fácil. Não é como nas histórias” (REYES, filha de presos políticos, recolhida à mesma
2006, p.39). instituição que ele. Se Ibañez sacode o lei-
tor às raias da injustiça e da irresponsabili-
A arte não cede à tentação de apontar cul- dade adulta para com as crianças, cumpre
pados. A via do maniqueísmo, presente no igualmente com o projeto ético de apontar
a expectativa do vindouro, irrefreável na li- livre de impurezas. O mal atrai, toca as pes-
teratura cujos receptores privilegiados são soas com seu abraço viscoso, como represen-
crianças ou jovens, conforme aponto nas tou Lygia Bojunga em O Abraço, e seu contato
Cartas do São Francisco: conversas com Rilke pode propiciar a experiência ética, advinda da
à beira do rio (LACERDA, 2003, p.23). inquietação e da comunicação do abismo.

“Não sei por que pressinto que algum dia uma


Em tal expectativa, deve-se igualmente abri-
coisa ruim vai acontecer comigo. [...] não existe
gar a liberdade da experiência radical que o
nada mais definitivo e real do que a mudança”
brasileiro Luiz Raul Machado permite a seu
(BADRÁN, 2007, p.69), diz Camila, no subúrbio
protagonista em Cartão-postal. Na recusa à
bogotano, que recende aos odores de gordura
instrumentalização da literatura para mo-
da fábrica vizinha.
delagem de um
Nos fios de um so-
comportamento
de vitrine, o autor
O mal atrai, toca as pessoas nho, ela pode reen-

acolhe o desespero com seu abraço viscoso, contrar a velha casa,

como representou Lygia a condição social de


e o silêncio como
respeito e abastan-
manifestações le- Bojunga em O Abraço, e seu
ça, mas o cenário 63
gítimas também contato pode propiciar a
e os personagens
da infância, reco-
experiência ética, advinda estão inteiramen-
nhece a opção do
da inquietação e da te corrompidos e a
menino de tornar-
se boneco de pau, comunicação do abismo. casa, tomada pela
derrota e ausência
no reverso do tra-
de saída, é ocupada
jeto exemplar de
por manequins. A única peça a resistir à inexo-
Pinóquio. Da mesma forma que Kronfly,
rável decadência, devido à mudança de estado
Machado considera que as crianças não de-
social, é o velho tapete, sobre o qual, outrora,
vem ser usadas como “[...] matéria futura,
o imaginário se tecia, em histórias de coragem
na qual se julga possível garantir a expulsão
e libertação. Mas é sobre ele que se sentam os
de toda incerteza [...]” (KRONFLY, 2000, p.55).
manequins, signo da vida mecânica, imagens

A poética do mal-estar recebe com dignida- sem subjetividade.

de as áreas delicadas da mente humana, na


clareza de que não lida com heroísmos ou
IV. ATUALIDADE E PROSPECÇÕES
esquemas, mas com opções que se abrem
como leque em que nenhum dos extremos é Badrán abre sua novela com o pressenti-
mento da neve, que não caiu ainda, mas que para lidar com as inquietações da literatu-
se pode adivinhar. Ao final, Camila pode adivi- ra e propõem a presença, em sala de aula,
nhar algo ruim que vai acontecer com ela, pois de temas que abordem as representações
é para essa direção que aponta a mudança. do mal-estar contemporâneo” (idem, p.46),
além de sugerir debates fomentados pelas
Três anos separam a exibição da série Temas
instituições públicas sobre a abordagem
Polêmicos na Literatura, no programa Salto
de temas polêmicos na literatura infantil e
para o Futuro, das reflexões de agora, e não
juvenil, com especial cuidado na formação
se pode falar em mudança de perspectiva
dos professores quanto a esse aspecto. Essas
crítica em relação à produção que estuda-
atitudes dariam respaldo às editoras, contri-
mos. No recente Congresso do International
buindo para “[...] a legitimação do papel so-
Board on Books for Young People (IBBY), rea-
cial que desejam cumprir, sem prejuízo finan-
lizado em Santiago de Compostela (2010), es-
ceiro e riscos empresariais” (idem, p.49-50).
pecialistas de todo o mundo não trouxeram
senão um ou dois trabalhos sobre o tema, Se em alguns cursos de especialização em li-
sendo um deles parte do presente estudo. teratura infantil e juvenil podemos constatar
essa preocupação, na maior parte dos cursos
Em curso para professoras regentes de Sala de
de Letras e de Formação de Professores o as- 64
Leitura do município do Rio de Janeiro, foi pro-
sunto sequer entra em pauta, mantendo-se
posta a questão da leitura de Marginal à esquer-
visões anacrônicas e preconceituosas. Quan-
da (2009), de Angela Lago, para alunos do pri-
to à leitura nas famílias, falsos conceitos de
meiro segmento do curso fundamental. A obra
cuidado em relação à criança impedem uma
traz a discussão da violência nos grandes cen-
atitude lúcida e corajosa no trato com a lite-
tros e, apesar de a maioria das professoras es-
ratura que as crianças e jovens também leem.
tar lotada em escolas de carência material e de
alto nível de insegurança, poucas dentre elas Há muito que fazer ainda para considerar a
se aventuraram a dizer que leriam o texto para inclusão do mal-estar nas leituras de sala de
seus alunos, pois preferem levar a eles obras aula, mais ainda para que a crítica se ocupe
que valorizem a fantasia, de forma a afastá-los desse tema e as editoras o tomem como op-
de um cotidiano duro e violento. ção. A travessia, no entanto, está em curso.

Com a instigante pergunta “Que leituras


daremos às crianças deste século?” (CAJUEI-
REFERÊNCIAS
RO, 2007), as editoras Izabel Aleixo e Danie-
le Cajueiro recomendam a “[...] necessidade BADRÁN, Pedro. El día de la mudanza. Bogo-
de preparação de professoras e professores tá: Babel, 2007.
BATAILLE, Georges. A literatura e o mal. Trad. ______. Deus não tem nada com isso. Diário
Suely Bastos. Porto Alegre: L&PM, 1989. de navegação da palavra escrita na América
Latina, v. I. Inúmeras versões digitalizadas,
BIALET, Graciela. Los sapos de la memoria. inédito enquanto impresso. 2010.
Córdoba: CB Ediciones, 2008.

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CAJUEIRO, Daniele, ALEIXO, Isabel. Que lei- RHJ, 1994.
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na literatura. Brasília: Ministério de Educa- RHJ, 2009.
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Paulo: Círculo do livro, s/d.
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In: ___. Obras completas. 4. ed. Trad. directa
MACHADO, Luiz Raul. Cartão-postal. Il. Anna
del alemán por Luis Lopez-Ballesteros y de
Göbel. Belo Horizonte: Formato, 1996.
Torres. Madrid: Biblioteca Nueva, 1981. v. III,
p. 3.017- 67. 65
ROSENFIELD, Denis. Do mal; para introduzir
em filosofia o conceito de mal. Trad. Marco A.
GUATARI, Félix. As três ecologias. 6. ed. Trad.
Zingano. Porto Alegre: L&PM, 1988 (Filosofia
Maria Cristina F. Bittencourt. Campinas: Pa-
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gría de la especie? In: Memorias. 27° Congre- terária e crítica cultural. Belo Horizonte: Edi-

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22 de septiembre de 2000.

LACERDA, Nilma Gonçalves. Cartas do São


Francisco: conversas com Rilke à beira do rio.
3. ed. São Paulo: Global, 2003.
1.6. Português: um nome, muitas línguas

Carlos Alberto Faraco23

A sociedade brasileira, em geral, desconhece em nosso território de línguas dos países vi-
a realidade linguística do País. Há uma im- zinhos: o espanhol, o guarani, o francês, o
pressão generalizada de que o Brasil é um inglês, os crioulos da República da Guiana e
país monolíngue. O Português é, obviamen- da Guiana Francesa, entre outras. Acrescen-
te, a língua hegemônica. No entanto, isso te-se ainda, a todo este conjunto, a língua
não faz do Brasil um país monolíngue. Cen- das comunidades surdas brasileiras (LIBRAS
tenas de outras línguas são aqui faladas cor- - Língua Brasileira de Sinais), já reconhecida
riqueiramente por cidadãos brasileiros. Nes- pela Lei n. 10.436/2002.
se sentido, a sociedade não tem informação
66
e consciência do complexo quadro de lín- Por outro lado, o Português que aqui se fala
guas que a caracteriza e, em consequência, não é, de modo algum, homogêneo. Há uma
não dá valor à grande diversidade linguística grande diversidade regional e uma grande di-
do nosso país. versidade social. A primeira é relativamente
percebida e reconhecida pela sociedade. É, po-
Calcula-se que aqui são faladas perto de 180 rém, uma percepção bastante limitada. E essa
diferentes línguas indígenas, dezenas de lín- limitação decorre, principalmente, de um silen-
guas trazidas para cá pelas comunidades ciamento da diversidade regional nos meios de
oriundas da imigração europeia, asiática e comunicação social. Ou seja, muito raramente
americana, além de remanescentes das lín- a efetiva diversidade regional do Português do
guas africanas trazidas ao tempo da escravi- Brasil é audível no rádio e na televisão.
dão. Não se pode esquecer também que nas
zonas de fronteiras há populações que se Essa pasteurização da pronúncia foi imposta
deslocam de um lado a outro, o que favorece às transmissões radiofônicas por uma deli-
o contato linguístico constante e a presença berada política do Estado Novo (1937-1945).

23 Professor Titular (aposentado) da Universidade Federal do Paraná. Mestre em Linguística pela Universidade
Estadual de Campinas e doutor em Linguística pela University of Salford. Pós-doutorado em Linguística na University
of California - EUA.
Como sabemos, havia entre os intelectuais núncia carioca: o ‘r’ fricativo uvular e a si-
aliados àquele regime político uma preocu- bilante palatalizada (que, de forma impres-
pação com a unidade do país. Acreditava-se sionista, é percebida como um “chiado”) na
que a heterogeneidade regional somada ao posição de fechamento silábico.
Brasil das comunidades oriundas da imigra-
Posteriormente, este padrão radiofônico
ção constituía uma ameaça à integridade do
passou para as transmissões da televisão.
país, à unidade e à identidade nacional.
Desse modo, a diversidade regional do país
não tem, já há setenta anos, espaço nos nos-
Esses intelectuais perseguiram, então, uma
sos meios de comunicação social. Só muito
série de políticas com vistas a homogenei-
recentemente e com iniciativas ainda mui-
zar a sociedade brasileira. Desenvolveram,
to tímidas é que se começou a quebrar essa
entre outras ações, uma política de silencia-
pasteurização histórica.
mento das línguas faladas pelas comunida-
des oriundas da imigração (tratadas como Resulta daí que boa parte das representações
línguas “estrangeiras” e não como línguas sociais da diversidade regional do Português
da sociedade brasileira e parte, portanto, de do Brasil é constituída de estereótipos. Para
seu patrimônio cultural), promoveram um os sulistas, por exemplo, há uma só pronún-
currículo escolar unificado para o ensino 67
cia nordestina. Há, nesse sentido, um profun-
de Língua Portuguesa e estimularam uma do desconhecimento da grande variedade de
uniformização da pronúncia radiofônica, al- pronúncias da Região Nordeste. E o contrário
cançada em especial pelas transmissões da é também verdadeiro: as muitas distinções de
Rádio Nacional do Rio de Janeiro. pronúncia do sul do país são igualmente perce-
bidas de modo estereotipado pelos habitantes
Essa Rádio, criada em 1936, foi estatizada em de outras regiões.
1940, tornando-se a voz oficial do Governo
Embora percebida basicamente por meio
Federal. Foi a primeira estação a alcançar
de estereótipos, a diversidade regional não
praticamente todo o território nacional.
é, em geral, estigmatizada no Brasil, salvo
Desse modo, foi possível impor um padrão
nas situações em que à diferença regional
de pronúncia a toda a rede radiofônica, pa-
se agregam outros fatores estigmatizadores.
drão este desprovido das marcas das dife-
Assim, por exemplo, as marcas linguísticas
rentes pronúncias regionais. Curiosamente,
regionais de populações migrantes pobres
embora com as transmissões centralizadas
costumam ser alvo de estigma, como o fo-
no Rio de Janeiro, o padrão pasteurizado di-
ram as pronúncias dos migrantes nordesti-
fundido pela Rádio Nacional eliminou duas
nos na cidade de São Paulo. Nesse caso, não
das características mais marcantes da pro-
é propriamente a pronúncia que sustenta a culto a um Português dito popular. Essa di-
estigmatização e o preconceito, mas a pro- cotomia se espalhou pelos discursos sociais
núncia aliada à pobreza. de tal modo que ela é hoje repetida, com
ares de certeza, tanto na mídia quanto na
Se a diversidade regional em si não costu- escola.
ma ser estigmatizada, a diversidade social
do Português é, no Brasil, um poderoso fa- Essa descrição dicotômica, no entanto, fal-
tor de discriminação negativa. E a sociedade seia demais a nossa realidade linguística que
brasileira, infelizmente, não foi ainda capaz não é assim tão simples. O caminhar dos es-
de desenvolver uma adequada compreensão tudos foi mostrando que precisávamos de
desse seu grave problema. outro modelo e de outras categorias para
uma melhor descrição da nossa 'cara' socio-
Há uma linha que divide socialmente a po- linguística.
pulação brasileira com base no modo de
falar o Português. Essa cara é sufi-
Trata-se de uma Há uma linha que divide cientemente com-
situação de extre- socialmente a população plexa para ser re-
ma complexidade duzida a cortes 68
brasileira com base no modo
e que afeta profun- dicotômicos como
de falar o Português.
damente as nossas Português culto/
relações sociais Português popular,
perpassadas que ou Português for-
são de gestos de exclusão e de violência sim- mal/ Português informal. Há muitas varieda-
bólica fundados nas diferenças sociolinguís- des cultas e muitas variedades populares. É
ticas. Esse corte sociolinguístico tem suas preciso, então, tentar apreender essa grada-
raízes na constituição, já no período colo- ção num contínuo, evitando classificações
nial, de uma sociedade fortemente dividida dicotômicas.
econômica, social e culturalmente, cujos
efeitos continuam ainda muito presentes na Também não servem identificações ainda
conhecida e rígida estratificação da socieda- mais simplistas como Português coloquial =
de brasileira. língua falada; Português culto = língua escri-
ta. E não servem porque existem variedades
Os estudos iniciais da nossa realidade so- cultas faladas e variedades coloquiais escritas.
ciolinguística adotaram uma descrição di- Bastaria lembrar dois exemplos paradigmáti-
cotômica que opunha um Português dito cos: para a língua culta falada, as entrevistas
do programa Roda Viva, da TV Cultura de São no, altamente letrado e que atinge seu maior
Paulo; para a língua escrita coloquial, a escri- grau de monitoramento na escrita formal.
ta que se pratica nas redes sociais na internet.
No meio desses dois pontos, encontramos
Nenhuma das dicotomias e simplificações as variedades constitutivas do chamado
mencionadas chega perto da real complexi- Português popular, que são originalmente
dade sociolinguística da Língua Portuguesa variedades rurais próprias de estratos popu-
no Brasil. A melhor solução descritiva até lacionais pobres e que alcançaram o contex-
agora formulada é a do contínuo de varie- to urbano nos últimos 50 anos como resul-
dades que combina três grandes eixos: o tado do êxodo rural que, num curto espaço
rural-urbano, o eixo da cultura oral- cultura de tempo, transformou o Brasil de um país
letrada e o eixo dos graus de formalidade ou, majoritariamente rural num dos países mais
como preferem os sociolinguistas, o eixo do urbanizados do mundo.
maior ou menor monitoramento da fala e
da escrita de acordo com o tipo de evento Essas variedades do Português popular pas-
em que os inter-actantes estão. saram a conviver maciçamente com as va-
riedades tradicionais urbanas e isso vem
Esse contínuo vai, então, das variedades que alterando seu perfil, porque tais variedades 69
chamamos hoje de Português afro-brasileiro vêm adquirindo características do Portu-
até as variedades urbanas formais escritas. guês brasileiro urbano e perdendo as carac-
terísticas mais típicas das falas rurais, num
O Português afro-brasileiro é constituído processo que, claro, não se dá abruptamen-
por um conjunto de variedades rurais, exclu- te, mas progressivamente.
sivamente faladas e típicas de comunidades
oriundas de quilombos. Recentemente foi No contexto das cidades do Brasil de hoje,
publicado um livro de descrição deste Por- encontramos, então, um leque de varieda-
tuguês afro-brasileiro na forma como ele se des marcadas por diferentes graus de ur-
manifesta no interior do estado da Bahia. banização: há ainda estratos populacionais
Trata-se do livro O português afro-brasileiro, que falam basicamente o Português rural
organizado pelos professores Dante Lucche- (em especial os falantes mais idosos), há es-
si, Alan Baxter e Ilza Ribeiro. tratos que falam um Português rural já ra-
zoavelmente urbanizado (em geral, os mais
O outro ponto do contínuo – as variedades jovens) e há, claro, os estratos tradicional-
urbanas formais escritas – é típico de um mente urbanos.
estrato populacional tradicionalmente urba-
Quando estudamos a realidade sociolinguís- Adotando o modelo dos três continua (pro-
tica brasileira, não podemos ignorar dois fa- posto pela Prof.a Stella Maris Bortoni, da
tos sociológicos fundamentais: de um lado o Universidade de Brasília), podemos carac-
processo de urbanização da população e, de terizar estas variedades como aquelas que
outro, o alcance dos meios de comunicação se distribuem no entrecruzamento do polo
social. urbano (do eixo rural-urbano) com o polo da
cultura letrada (do eixo cultura oral-cultura
O Brasil passou (e, em certo sentido, conti- letrada). No eixo da monitoração estilística,
nua passando) por um processo intenso de essas variedades conhecem, como todas as
urbanização de sua população. O Brasil in- demais, diferentes estilos, desde os menos
verteu, em menos de 50 anos, a distribuição até os mais monitorados.
da população entre o campo e cidade, tor-
nando-se um dos países mais urbanizados do A maior força de atração dessas variedades
mundo, com aproximadamente 80% de sua e a observação de seus efeitos levaram o
população vivendo hoje no espaço urbano. linguista Dino Preti, um dos principais es-
tudiosos da variação linguística do Brasil, a
Por outro lado, houve uma enorme expan- designá-las pela expressão linguagem urba-
são dos meios de comunicação social. O na comum. 70
rádio está em praticamente todos os lares
brasileiros e a televisão, com produção e Essas variedades são dominantes nos nossos
transmissão fortemente centralizadas em meios de comunicação social. Seus diferen-
São Paulo e no Rio de Janeiro, chega a mais tes estilos (i.e., suas diferentes manifesta-
de 90% dos lares. ções no continuum da monitoração estilísti-
ca) estão muito bem representados no rádio
Isso tudo tem um forte impacto sobre as ca- e na televisão, desde os estilos menos moni-
racterísticas linguísticas do país. Podemos torados (nas novelas, programas humorísti-
dizer que as variedades que exercem, hoje, a cos e sitcoms, por exemplo) até os mais mo-
maior força de atração sobre as demais são nitorados (em noticiários e programas de
as faladas pelas populações tradicionalmente entrevistas como o emblemático programa
urbanas, situadas na escala de renda de mé- Roda Viva da TV Cultura de São Paulo).
dia para alta e que, por isso, têm garantido
para si, historicamente, bons níveis de esco- Essa dominância dá a estas variedades ampla
laridade (pelo menos a educação média com- audibilidade e ressonância. Nenhum outro
pleta) e o acesso aos bens da cultura escrita. conjunto de variedades do país tem a mesma
audibilidade e ressonância. Não é de estranhar,
portanto, que sejam justamente elas a ter uma ginário: a norma culta brasileira falada se
força de atração permanente e irresistível. identifica, na maioria das vezes, com a lin-
guagem urbana comum, e não propriamen-
Trazem para mais perto de si as variedades te com as prescrições da tradição gramatical
rurais e rururbanas faladas pelas populações mais conservadora.
que, por força do intenso êxodo rural das úl-
timas décadas, se tornaram urbanas só mais No contexto de toda a variedade sociolin-
recentemente. Há, portanto, no Brasil uma guística brasileira há, como mencionamos
enorme movimentação das variedades do anteriormente, variedades sociais estigmati-
Português, movimentação que responde à zadas. Como tais estigmas têm efeitos dano-
força de atração das variedades urbanas. sos nas nossas relações sociais, é fundamen-
tal apresentar e debater criticamente essa
Ao mesmo tempo, é a linguagem urbana co- realidade.
mum que caracteriza boa parte das manifes-
tações orais mais monitoradas dos falantes A língua (qualquer língua) é intrinsecamente
que poderiam ser classificados de “cultos”. variável. Justamente por isso, a língua acaba
Em outros termos, a chamada norma cul- servindo como elemento de discriminação
ta brasileira falada pouco se distingue dos social. Discriminação positiva (includente) e 71
estilos mais monitorados dessa linguagem discriminação negativa (excludente).
urbana comum, segundo fica demonstrado
pela análise dos dados coletados pelo proje- Quando o outro fala como eu, eu o reconhe-
to NURC (Norma Linguística Urbana Culta). ço como um de nós, como pertencente ao
mesmo grupo a que eu pertenço. Eu o iden-
Essa constatação empírica causou surpresa tifico comigo/ eu me identifico com ele.
em alguns estudiosos dos dados do projeto
NURC, entre eles o Prof. Dino Preti. Imagi- No entanto, se o outro fala uma varieda-
navam esses estudiosos que os falantes cul- de diferente da minha e essa variedade está
tos, nas situações de fala mais monitoradas, associada a outros fatores negativos de dis-
tinham uma variedade bem distinta da lin- criminação (fatores econômicos e culturais,
guagem urbana comum, ou seja, eles acredi- por exemplo), eu o discrimino negativamente
tavam que, na norma culta falada, os falan- (“Este cara não é da minha tribo”) e isso afeta
tes seguiam estritamente, por exemplo, os as minhas relações com este falante, que pas-
preceitos da tradição gramatical normativa. sam a ser acompanhadas desde uma rejeição
tácita até gestos de violência simbólica.
A realidade, porém, desconcertou o ima-
Obviamente não são gestos individuais ape- modo piores – o que, como bem sabemos,
nas. O indivíduo é apenas porta-voz de valo- está na origem do preconceito.
res de seu grupo social e materializa estes
valores nas situações individuais. O pior preconceito dos muitos existentes
hoje é, certamente, o preconceito linguísti-
Assim, por exemplo, o professor que afirma co, porque ele é ainda socialmente imper-
que as crianças da escola pública da periferia ceptível. Nisso ele difere, por exemplo, do
urbana não conseguem se alfabetizar porque preconceito racial. Mesmo que ainda bas-
elas falam errado, está explicitando um juí- tante ativo socialmente (em especial de for-
zo que é fundamentalmente social – os que ma tácita), a existência do preconceito ra-
falam diferente de nós não apenas falam di- cial é reconhecida e ele é discutido e existe
ferente, mas falam “errado”. E quem fala “er- até legislação contra ele.
rado”, segundo esta forte e arraigada crença
social, é ignorante, Com o preconceito
limitado, incapaz. linguístico, acon-
O pior preconceito dos
tece o contrário.
muitos existentes hoje é,
Não é preciso nos A discriminação
alongarmos nas
certamente, o preconceito negativa que toma 72
consideraçõesdos linguístico, porque ele é ainda a forma de falar
efeitos desse juízo socialmente imperceptível. como critério não
social de discri- é reconhecida, não
minação linguísti- é discutida e não
ca negativa sobre a história escolar dessas existe instrumento legal para coibi-la. E mais
crianças. ainda: a violência simbólica que se pratica
com base na língua no sistema escolar, nas
A diferença é socialmente transformada relações de trabalho, na mídia é considerada
em marca de inferioridade. E os psicólogos natural, é aprovada, é estimulada e reforçada
nos lembram que essa transformação pro- institucionalmente.
vém da necessidade que temos de manter
estáveis os parâmetros da nossa identidade É, então, por aqui que podemos e devemos
e isso envolve adesão às razões e aos valo- começar a debater criticamente o uso social
res que tornam estes parâmetros desejáveis. que se faz da variação linguística. É por aqui
Daí, segundo ainda os psicólogos, nasce a que devemos elaborar e fundamentar um
convicção de que é melhor ser como nós. discurso crítico capaz de tornar socialmente
Os que são diferentes de nós são de algum perceptível o uso discriminador negativo da
variação linguística e de combatê-lo. variação histórica (a língua como um fenô-
meno em contínua mudança); em seguida,
De antemão, já sabemos que é uma das ba- a variação correlacionada com o espaço ge-
talhas mais árduas das tantas que nos desa- ográfico (a distribuição sincrônica dos diale-
fiam. A língua é talvez o fenômeno que mais tos, as fronteiras dialetais pouco nítidas, os
mexe com nossas representações, com nos- contatos interdialetais e interlinguísticos e
sos valores, com nossos sentimentos, com seus respectivos efeitos e assim por diante).
nossas certezas.
Mais recentemente, na década de 1960, tor-
O senso comum tem convicções profundas nou-se objeto de análise a variação correla-
sobre o funcionamento social da língua. Tra- cionada com características da organização
ta-se, por isso, de convicções profundamen- social ( o estudo do que alguns preferiram
te resistentes a quaisquer questionamentos. chamar de socioletos, feito pela sociolin-
Nem mesmo os argumentos de base científi- guística).
ca conseguem instaurar a dúvida nas certe-
zas do senso comum sobre a língua. Num balanço desses dois séculos de histó-
ria da moderna ciência da linguagem ver-
Ora, o fazer científico é uma importante
bal, podemos dizer que não é mais possível 73
conquista histórica da humanidade. Ele nos
discorrer cientificamente sobre as línguas
libertou da palavra de autoridade e do dog-
sem reconhecer como intrínsecas a elas a
matismo. No fazer científico, não importa
variação e a mudança. Ou seja, não temos
quem diz, mas o que é dito. Não importa o
como escapar dos fenômenos da variação e
enunciador, mas o enunciado.
da mudança. Sabemos que ambas são cons-
E nenhum enunciado vale dogmaticamen- titutivas da realidade das línguas e a relativa
te – nenhum é um dito pétreo, imutável e sistematicidade de ambas é bastante óbvia.
inquestionável. Os enunciados só param em
pé enquanto se sustentam numa argumen- Sabemos também que, do ponto de vista pu-

tação teórico-empírica consistente. No fazer ramente linguístico-gramatical, não há ne-

científico, não basta afirmar; é preciso sus- nhum critério que dê sustento a juízos hie-

tentar; é preciso argumentar. rarquizadores das variedades de uma língua.


Não há nenhum critério linguístico-gramati-
Desde que a moderna ciência da linguagem
cal que possa basear juízos negativos sobre
verbal se constituiu nos fins do século XVIII,
a variação e a mudança.
a variação linguística tem sido objeto pri-
vilegiado de estudo e análise. Primeiro, a Ou seja, sabemos que a variação não é um
mal, mas apenas é. Não há língua que não Essas representações do senso comum cam-
seja variável, fundamentalmente, porque peiam nas relações sociais em geral (no juízo
não existe sociedade humana homogênea. que se faz das pessoas nas relações de traba-
lho, por exemplo), no sistema escolar (que
Por outro lado, sabemos que a mudança é
até agora não conseguiu desenvolver uma
inexorável e não destrói, não corrompe a lín-
pedagogia da língua que acomode o trato da
gua, nem a torna melhor. Nesse processo,
variação e da mudança) e campeia também
ocorrem apenas rearranjos contínuos (al-
na mídia que se locupleta, há mais de cem
guns mais rápidos, outros mais lentos) na
anos, com a condenação dos chamados “er-
organização das línguas sem jamais destruir
ros” de Português e com o desmerecimento
seu caráter sistêmico e seu potencial semi-
dos falantes em razão das características de
ótico.
sua linguagem.

Apesar de tudo isso ser claro para nós, ape-


Em resumo, no caso específico da variação
sar de esses saberes estarem consistente-
e da mudança linguísticas, os resultados da
mente sustentados teórica e empiricamen-
ciência não conseguiram ainda se espraiar
te, nada disso faz sentido no senso comum,
pelo senso comum.
ou seja, nas crenças socialmente correntes 74
sobre a língua e sobre as línguas. Bem ao
É curioso observar que outros resultados
contrário: quando exposto a esses saberes, o
do fazer científico se espraiaram pelo senso
senso comum costuma reagir enraivecida e
comum. Hoje, por exemplo, as pessoas em
sanguineamente.
geral têm como fato que a Terra gira em tor-
no do Sol e não o contrário. Ninguém mais,
Diante da variação, o senso comum costu-
felizmente, é condenado à fogueira ou exco-
ma folclorizar a variação geográfica (desde
mungado por aceitar isso.
que não haja, como dissemos anteriormen-
te, nenhum outro motivo estigmatizador).
As pessoas em geral aceitam tranquilamen-
No entanto, demoniza a variação social.
te que vacinar-se é indispensável. O senso
comum absorveu a vacinação como parte
Diante da mudança linguística, o senso co-
dos cuidados essenciais com a saúde de si e
mum costuma condená-la por entender que
das crianças. Não há mais revoltas da vaci-
a língua está sendo corrompida, está sendo
na como ocorreu no Rio de Janeiro há cem
destruída. Chega-se a dizer que, se continu-
anos. Ao contrário, hoje celebramos, por
armos assim, logo estaremos apenas gru-
exemplo, os eventos de vacinação em massa
nhindo...
das crianças contra a poliomielite.
No entanto, há certo número de pessoas linguagem e seus praticantes.
que se dá mal com a ideia da evolução das
espécies, base das ciências biológicas. Há, Ou seja, ao mesmo tempo em que aceitam
em certos contextos, uma espécie de guerra e promovem os resultados da ciência em ge-
contra o pensamento evolucionista. ral, rejeitam e condenam os resultados da
ciência da linguagem verbal que, no entan-
O mesmo se dá com a compreensão cien- to, são obtidos exatamente pelos mesmos
tífica da variação e da mudança linguísti- meios que os resultados de qualquer outra
ca. Com uma diferença, porém: no caso da ciência.
língua, os resultados do fazer científico são
muito mais extensa e fortemente rejeitados. Há, portanto, qualquer coisa na língua que
É uma rejeição a distingue de ou-
quase universal. tros fenômenos so-
Compreender a ciais ou naturais;
E a mídia é um heterogeneidade e qualquer coisa que
termômetro in- complexidade linguística é mexe fundo com
teressante dessa compreender a história da as pessoas e moti-
questão. Os veí- va reações de irra- 75
nossa sociedade, ou seja,
culos da grande cionalismo diante
imprensa (jornais,
como ela se compôs e como dos resultados do
revistas, televi- ela vem se transformando ao fazer científico.
sões) costumam longo dos séculos.
aceitar e divulgar Há, portanto, um
positivamente os enorme desafio à
resultados da ciência. No caso da evolução nossa frente quanto à divulgação do modo
das espécies, esses veículos se posicionam científico de pensar a linguagem verbal.
claramente ao lado dos evolucionistas. Par- Além disso, há ainda outro enorme desafio:
ticipam, portanto, da polêmica assumindo e tornar conhecida a nossa cara linguística à
defendendo os resultados das ciências bio- nossa própria sociedade, despertando-a, ao
lógicas. mesmo tempo, para uma valorização do pa-
trimônio linguístico nacional em sua tota-
Esses mesmos veículos, porém, recusam lidade e para uma atitude crítica frente aos
terminantemente os resultados da ciência preconceitos linguísticos ainda tão arraiga-
da linguagem verbal. Mais ainda: menos- dos e operantes entre nós.
prezam, difamam e demonizam a ciência da
Esse caminho passa pela capacidade de ob- é indispensável e é sinal de maturidade lin-
servarmos e compreendermos a heteroge- guística do falante. Cada um de nós tem de
neidade e complexidade linguística do nos- transitar com familiaridade e fluência pelo
so país. Compreender a heterogeneidade e vasto mundo da variação linguística, desde
complexidade linguística é compreender a as conversas de casa até as manifestações
história da nossa sociedade, ou seja, como orais e escritas no espaço social amplo.
ela se compôs e como ela vem se transfor-
mando ao longo dos séculos. Para isso, é preciso um ensino de Português
capaz de mostrar aos alunos a cara linguís-
Passa, portanto, pela razão. Mas passa tam- tica do país, expor as razões para tanta di-
bém e principalmente pelo coração. Ou seja, ferença, mostrar que cada variedade é um
pela nossa capacidade de valorizar e curtir a patrimônio da nossa sociedade e da nossa
enorme variedade linguística do nosso país cultura, conquistar o coração dos alunos
com o coração aberto, com os ouvidos aber- para a beleza intrínseca da variação, com-
tos, com a mente aberta. É preciso vencer a bater o preconceito e a violência simbólica
alienação e os preconceitos linguísticos. que usa a língua como pretexto de exclusão
social dos falantes e, claro, um ensino de
Isso tudo não significa ignorar a importân- Português capaz de garantir a cada aluno o 76
cia de se promover e se ensinar as variedades domínio das formas mais monitoradas da
standard. E aqui é preciso atenção redobra- língua, próprias do mundo urbano e da cul-
da porque a incompreensão desse assunto é tura letrada.
espantosa na nossa sociedade.
Mas a escola só vai avançar quando a socie-
É um fato simplíssimo, mas de difícil assimi- dade avançar. Nesse processo é preciso con-
lação pela escola, pela mídia e pela popula- quistar também a mídia para um esforço
ção em geral. Quando dizemos que é funda- contínuo e constante de divulgação, seja do
mental compreender e curtir a diversidade modo científico de pensar a linguagem ver-
linguística do país, o dizemos porque cada bal, seja da realidade linguística do Brasil.
variedade expressa uma face da nossa histó- A série Português: um nome, muitas línguas,
ria, da nossa cultura, da experiência de vida que organizamos para o programa Salto
da nossa população. para o Futuro/TV Escola, procurou dar uma
contribuição para este processo de divulga-
Não significa dizer que tudo vale em qual- ção. Em cinco programas, buscamos rever a
quer circunstância. A adequação da lin- história da expansão da Língua Portuguesa
guagem ao contexto de fala ou de escrita no mundo, apresentar sua história no Brasil,
descrever as características sociolinguísticas LUCCHESI, Dante; BAXTER, Alan & RIBEIRO,
da sociedade brasileira e, por fim, discutir Ilza (orgs.) O português afro-brasileiro. Salva-
caminhos para o ensino de Português. Acre- dor: EDUFBA, 2009.
ditamos que a série foi, sem dúvida, muito
importante, mas acreditamos também que PRETTI, Dino. A propósito do conceito de
há muito ainda a ser feito no enfrentamento discurso urbano oral culto: a língua e as
das questões que nos desafiam e que procu- transformações sociais. In:______ (org.) O
ramos aqui resumir. discurso oral culto. São Paulo: Humanitas
Publicações – FFLCH / USP, 1997. p. 17-27.

REFERÊNCIAS

BORTONI, Stella Maris. Um modelo para a


análise sociolinguística do português brasi-
leiro. In:__________. Nós cheguemu na es-
cola, e agora? – Sociolinguística e educação.
São Paulo: Parábola Editorial, 2005. p. 39-52.

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