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Diagramação e editoração
Núcleo de Produção Gráfica de Mídia Imprensa
Gerência de Criação e Produção de Arte
Preparação e revisão:
Magda Frediani Martins
CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ
T911
CDU: 37(81)
Ministério da Educação
Organização
2013
Volume 1 - LINGUAGENS E SENTIDOS
SUMÁRIO
Organização e Apresentação..................................................................................... 5
Rosa Helena Mendonça e Magda Frediani Martins
“Boa noite, Brasil! Olá, bem-vindo, o Salto para o Futuro está entrando no ar...”
“Aqui fala Tânia, do Rio de Janeiro.” “É Maria José, do Maranhão...”
“O tema do programa hoje é...” “Nesta série, vamos falar de...” “ Participam do
programa de hoje...”
É com palavras como essas que, em 1991/923, do diálogo com a diversidade, organizamos
o programa Salto para o Futuro entra no ar, esta publicação, com textos de autores que
diariamente, em séries inéditas e reprises que foram consultores de séries do Salto e/ou que
confirmam as possibilidades da parceria entre participaram do programa como debatedo-
TV e educação na formação de professores. res, em diferentes momentos deste percur- 5
so. A publicação TV, educação e formação de
Tendo como meta contribuir para esta for- professores: a experiência do programa Salto
mação, bem como atender ao interesse dos para o Futuro pretende comemorar esta tra-
demais espectadores, o Salto para o Futuro jetória, destacando temas fundamentais para
faz 20 anos, respeitando a autonomia das es- o debate sobre TV, educação e formação de
colas e abrindo espaços para trocas ricas e professores. Esta publicação, na sua versão
indispensáveis, refletindo sobre sua inserção digital, está organizada em quatro volumes,
no campo das políticas públicas de formação expressos no seguintes eixos:
de professores, repensando-se permanente-
mente. É com base na proposta do programa Volume 1 - LINGUAGENS E SENTIDOS
e considerando suas mudanças ao longo do Volume 2 - ‘ESPAÇOSTEMPOS’ NOS COTIDIANOS
tempo que, preservando o enfoque filosófico Volume 3: TECENDO NARRATIVAS
1 Supervisora pedagógica do programa Salto para o Futuro/TV Escola (MEC). Doutoranda no PROPED- UERJ.
Organizadora da publicação.
2 Professora, escritora e revisora de textos do programa Salto para o Futuro/TV Escola (MEC). Organizadora
e revisora da publicação.
3 Em 1991, vai ao ar, em caráter experimental, o Jornal da Educação: edição do professor. Em 1992, com o nome de Um
Salto para o Futuro, o programa ganha dimensão nacional. A partir de 1996 o Salto para o Futuro integra a grade da TV
Escola.
Volume 4: NOVOS SABERES PARA A EDUCAÇÃO Podemos entender a noção de rede de várias
maneiras. No caso específico do Salto para o
Para organizarmos esta publicação, solici- Futuro, como essa rede é tecida? Um aspecto
tamos a consultores de séries do Salto para que não pode deixar de ser observado é o papel
o Futuro, que nos acompanham ao longo desempenhado pela interatividade no progra-
dessa história, que elaborassem um artigo ma, desde a sua criação, quando a internet ain-
tendo como objetivo apresentar temas de- da não era acessível, o fax apenas despontava
senvolvidos no programa, apontando per- como novidade e a telefonia móvel sequer es-
manências e mudanças nas abordagens, que tava acessível. A participação dos professores
refletem resultados de pesquisas na área da e professoras tem sido uma marca especial do
educação. Considerando os limites de uma Salto4, pela qual ele é muitas vezes identifica-
publicação deste tipo e, na impossibilidade do. É ela que reafirma o sentido da produção
de contar com a participação de tantos pes- de conhecimento em rede. Tem relevância aí
quisadores e professores que têm nos ajuda- a polifonia, ou seja, as múltiplas vozes e “so-
do a fazer o programa, partimos mais uma taques” que dão um formato hipertextual ao
vez da ideia de que precisávamos construir Salto, o programa não pode ser analisado sem
um recorte significativo da diversidade do a participação dos professores, seja na TV, no
Salto para o Futuro. Sendo assim, elegemos site, ou ainda nos múltiplos espaços das redes 6
alguns temas significativos e recorremos a sociais. Para essa reflexão, é fundamental levar
autores que representassem diferentes insti- em consideração a acelerada oferta de recur-
tuições no país. Nesta perspectiva, vale des- sos tecnológicos e as possibilidades comunica-
tacar que quase todos os convidados aderi- cionais advindas dessas tecnologias.
ram de imediato à proposta, o que sinaliza
um possível desdobramento deste projeto. E Essa análise nos convida a repensar o lugar
o que emerge de uma obra coletiva é a pos- que ocupa, atualmente, o programa Salto
sibilidade de entrever de que forma o Salto para o Futuro nestes novos cenários da so-
para o Futuro tem possibilitado que profes- ciedade e, consequentemente, da educação.
sores de todo o país, conectados em rede, A partir dessa perspectiva, se faz necessário
participam das mais diversas propostas e considerar a forma como o Salto vem sendo
projetos no campo da educação, em todas utilizado e sobre como se dá atualmente a
as áreas de conhecimento. interatividade. Como demonstram as mais
4 É dessa forma resumida que o programa é muitas vezes nomeado pelos professores.
5 Ver Relatórios de Avaliação do Programa Salto para o Futuro nos anos 2007, 2008 e 2009.
recentes avaliações5, o perfil de participa- tações e teses) sobre o Salto para o Futuro.
ção dos professores tem se revestido de um Isso tudo nos impulsiona a mudar, a buscar
caráter mais abrangente e variado, de acor- novos caminhos nos campos da educação
do com as demandas de seu trabalho, seus e da comunicação. Novos formatos, novas
níveis de formação, sua condição socioeco- formas de interação vão sendo delineadas.
nômica e, ainda, as possibilidades tecnoló- E repensar todo este processo torna-se vital
gicas e técnicas à sua disposição. Afinal, é a para ampliar as perspectivas, sempre em
autonomia conquistada pelo professor, em parceria com os professores e com os con-
relação ao seu processo de formação e ao sultores das séries do programa.
de seus alunos, que fundamenta a busca por
formas diferenciadas e contextualizadas de
UMA TRAJETÓRIA DE DIÁLOGO
utilização do programa, no contexto mais
amplo de audiência da TV Escola, canal do Ao organizarmos esta coletânea, ainda que
Ministério de Educação. correndo o risco de sermos redundantes ao
apresentar nesta introdução um breve his-
Acreditamos que a função de um programa tórico sobre o Salto para o Futuro, tendo
educativo, veiculado pelo canal de televisão em vista que tanto autores quanto os possí-
do Ministério da Educação – a TV Escola –, é 7
veis leitores, todos, têm uma relação direta
o de contribuir, também, para que essa utili- e intrínseca com o programa, optamos por
zação se efetive, respeitando as diversidades fazê-lo. Afinal, contar uma história é uma
dos professores, dos alunos e das escolas. forma não só de compartilhar memórias,
Afinal, trata-se de uma via de mão dupla – ou mas também de estabelecer outras redes de
melhor, de muitas mãos – em relações en- significados.
tremeadas por implicações diversas, sobre
as quais é preciso refletir: as formas pensa- O ano era 1991... Na noite de 1º de agosto foi
das para a recepção têm sido “reinventadas” ao ar pela TVE Brasil a primeira edição do
pelos chamados receptores, bem como o “Jornal da Educação - Edição do Professor”,
público tem se diversificado. Além dos pro- uma experiência piloto de educação a dis-
fessores nas telessalas, há uma audiência tância, com recepção organizada em seis es-
espontânea, o que pode ser constatado pe- tados do país. Em 1992, já com abrangência
los e-mails recebidos, pela participação no nacional, o programa passou a se chamar
site, pela solicitação de cópias em DVD por Um Salto para o Futuro. Em 1995, denomi-
universidades e outras instituições, pela lei- nando-se Salto para o Futuro, foi incorpora-
tura da publicação eletrônica e, ainda, pelo do à grade da TV Escola (canal do Ministério
número de pesquisas (monografias, disser- da Educação).
O Salto desde a sua concepção inicial teve A característica que mais se destacou no
como proposta ser mais do que um progra- programa foi a de preservar a dimensão do
ma de televisão, conjugando recursos como diálogo como espaço de interações tão ricas
textos de apoio (boletim/publicação eletrô- quanto imprevisíveis. E foi justamente este
nica) e canais de comunicação direta: caixa aspecto – a interatividade – que tornou o
postal, fax, telefone e Internet, tudo isto vi- Salto um programa que, a cada dia, era feito
sando tornar possível a interatividade com com a participação dos professores.
os professores reunidos em espaços de re-
cepção organizada (telessalas) em que, com O que podemos destacar de um projeto de for-
a mediação de um orientador de aprendiza- mação de professores que se constituiu como
gem, os cursistas discutiam e participavam um processo interativo? Por um lado, como
com questões que se tornaram constitutivas essa participação interferiu na concepção dos
do debate com especialistas. programas? E, por outro lado, de que forma a
discussão que sempre teve lugar ao longo das
Por meio do Salto, propostas pedagógicas séries se refletiu na prática dos professores?
da atualidade foram discutidas, em séries
temáticas. O objetivo dos debates sempre Esse é um processo, em permanente constru-
foi trazer diferentes tendências no campo ção. As telessalas mostraram-se um espaço 8
da educação e, assim, contribuir para a re- que extrapolou a mera recepção dos progra-
flexão da prática em sala de aula, tanto nas mas. Foram múltiplas as trocas que se esta-
áreas do conhecimento que integram o cur- beleceram a cada dia e que se prolongaram
rículo quanto nas questões que expressam a em outros espaços de atuação do professor: a
diversidade da sociedade. comunidade, a própria escola, a sala de aula...
O programa teve, até 2008, uma especifici- Desde a sua criação, em 2000, a página do Sal-
dade: sendo diário e ao vivo, sua estrutura to para o Futuro tem mostrado seu potencial
foi pensada para a participação, em tempo de se tornar um grande fórum de discussão.
real, dos professores, organizados em teles- Enquanto o programa de televisão destacou-
salas, nos mais diversos pontos do país, per- se pelo registro de experiências em escolas
mitindo assim um diálogo permanente com e outras instituições, pelas entrevistas com
outros programas do MEC, com a própria renomados educadores, pela atualidade na
programação do canal – TV Escola – e com abordagem de temas considerados impres-
os mais variados projetos no campo da Edu- cindíveis no cenário da educação brasileira,
cação na contemporaneidade. em sua diversidade e riqueza, o site firmou-se
como mais um canal de criação de conheci- caracteriza a nossa sociedade, cada vez mais
mentos em redes. imersa no ciberespaço.
Ao longo desse tempo, algumas mudanças Para a produção das séries televisivas, partiu-se
significativas aconteceram, como por exem- sempre de um texto, que ficou conhecido como
plo, o tamanho das séries, a diversidade dos a “proposta pedagógica”. É com base nesta
temas, reafirmando a perspectiva de que proposta, elaborada por um(a) consultor(a),
educação é mudança! que as linhas mestras de cada série são deli-
neadas. Nesta coletânea de artigos alusivos
Em 2009, o programa, sem se distanciar da aos 20 anos do programa, queremos ressaltar
sua filosofia original, investiu em um novo o quanto é significativa esta produção textual
conceito, incorporando as possibilidades que orienta as séries televisivas, que tem uma
que as tecnologias digitais interativas apre- dupla função: além de subsidiar a produção
sentam, assumindo um novo formato que dos programas, constitui-se ainda no texto in-
compreende a exibição de séries temáticas, trodutório da publicação eletrônica referente a
não mais ao vivo, diariamente. Nesta con- cada série temática, que é destinada ao estudo
cepção, são apresentadas três revistas ele- do assunto pelos professores.
trônicas, previamente gravadas e editadas, 9
contemplando uma diversidade de experiên- Como já dissemos, a proposta é divulgar pes-
cias e enfoques conceituais. Um programa quisas e estudos voltados para a reflexão de
ao vivo constituído de três blocos de en- eixos significativos que embasam as séries
trevistas, com entrevistados diferentes em temáticas do Salto para o Futuro ao longo
cada bloco, caracterizando “outros olhares” desses 20 anos. No primeiro volume – Lin-
sobre o tema em questão. E, finalmente, um guagens e sentidos – apresentamos os tex-
programa de debates ao vivo, com espaço tos de autores que enfocam a linguagem em
para perguntas de espectadores, cursistas ou suas múltiplas manifestações. O primeiro
não, por telefone e e-mail, com a presença texto é de Patrícia Corsino, que nos empres-
de três convidados e com um amplo espaço ta o título dessa seção inicial. A autora toma
para a interatividade, que sempre caracte- como referência o poema Os cinco senti-
rizou o programa. Ao longo de toda a série, dos, de Bartolomeu Campos de Queirós, e
um fórum na internet possibilita o envio de os estudos de Mikhail Bakhtin, Lev Vigostski
questões que podem ser desenvolvidas ao e Walter Benjamin, entre outros, para refle-
longo do programa de TV ou no próprio site. tir, por meio da linguagem, sobre o mundo
Assim, o programa se alia à tendência de em que vivemos. Destaca que os sentidos –
atender a uma convergência de mídias, que ver, ouvir, tocar, cheirar, provar – além das
sensações, produzem simbolizações. Dessa uma narrativa”. E, com muita propriedade,
forma, o desafio da escola é construir uma ressalta que a presença do cinema na escola
proposta pedagógica que proporcione uma e na educação visa, primordialmente, “des-
interação de modo mais informado, criativo pertar o aluno e as pessoas para que pos-
e crítico com as imagens e mensagens que sam andar pelo mundo de olhos bem aber-
nos rodeiam no mundo contemporâneo6. tos para a eterna maravilha da vida em suas
Com muita sensibilidade e clareza, a autora mais amplas e ínfimas dimensões”7.
relaciona, metaforicamente, os cinco senti-
dos às manifestações da linguagem corpo- O terceiro texto é de Rosa Maria Bueno Fischer,
ral, visual, musical e escrita e sugere que a que defende a proposta de incluir a TV no cur-
escola precisa “deixar a imaginação imagi- rículo escolar visando a “uma genuína educa-
nar”, abrindo espaço para as narrativas e ção de nosso olhar”. Nesse sentido, ressalta
dando importância às vozes das crianças, que o programa Salto para o Futuro, em suas
aos corpos em movimento, ao diálogo com duas décadas de existência, tem mostrado
o acervo imagético trazido pelos alunos. “que é na TV e pela TV que os diferentes públi-
cos (como os professores e os estudantes dos
No segundo texto, Laura Maria Coutinho, a diversos níveis) têm encontrado material de
partir de suas experiências com a linguagem estudo e de ampliação do repertório curricular, 10
cinematográfica na universidade pública, no sentido de atualização e de envolvimento
propõe reflexões sobre cinema e educação. dos educadores com problemas de seu tem-
A autora destaca que “dependendo de como po”. Em seu instigante texto, a autora destaca
nos relacionamos com essa linguagem, ci- que integrar a TV, o rádio, as revistas e jornais
nema pode ser sempre educação, sobretu- ao currículo escolar significa transformar a mí-
do uma educação da sensibilidade e da me- dia num sério e fundamental objeto de estudo.
mória”. Para ela, “a educação da memória, E aponta que um programa como o Salto para
de que o cinema participa, integra também o Futuro confere mais poder aos educadores e
uma forma de educação da sensibilidade”, aos estudantes, “no sentido de estudar e pen-
tendo em vista que, “por meio das histó- sar a complexidade de todas essas narrativas
rias cinematográficas aprendemos a ver, ler audiovisuais, olhando-as e discutindo-as dos
e perceber a importância dos detalhes em mais diferenciados pontos de vista, a fim de
6 A série Linguagens e sentidos foi veiculada no Salto para o Futuro/TV Escola de 6/8/2001 a 10/8/2001, tendo
como consultora Patricia Corsino.
7 A série Cinema e educação: um espaço em aberto foi veiculada de 11/5 a 15/5/2009, com a consultoria de Laura
Maria Coutinho.
8 O Debate: televisão e educação foi veiculado de 23/6 a 27/6/2003, com a consultoria de Rosa Maria Bueno
Fischer.
nos esclarecer e permitir que cresçamos como fundamentais da existência, como a morte,
cidadãos, donos de voz e posicionamento crí- a violência na escola, a sexualidade, temas
tico e, ainda, como pessoas que ampliam seus considerados, em geral, como ousados, pe-
domínios quanto a linguagens e propostas es- rigosos e inadequados no contexto escolar10.
téticas diferenciadas”8. Na perspectiva da autora, discutir tais ques-
tões é essencial para se “alcançar a constru-
No quarto texto, Ana Mae Barbosa retoma a ção de respostas existenciais necessárias aos
sua proposta pedagógica para os cinco pro- projetos pessoais e coletivos”. A pesquisa-
gramas da série Arte na escola9, lembrando dora sugere que os cursos de formação dos
que o programa Salto para o Futuro sempre professores incluam a leitura e a discussão
deu à Arte a mesma importância que é dada das obras de literatura infantil e juvenil que
às outras disciplinas do currículo. A autora tratam dos chamados temas polêmicos, ten-
comenta que, tendo como eixo a intercul- do em vista que “literatura é, em primeiro
turalidade e a interdisciplinaridade, os espe- lugar, comunicação e, respeitados os limites
cialistas convidados para a série abordaram de suas sensibilidades, crianças e jovens pre-
o campo da arte-educação, discutindo, em cisam ter acesso a essa experiência de forma
especial, as especificidades que caracteri- integral, na compreensão da complexidade
zam o ensino da arte na escola. Também da condição humana”. Nesse sentido, “os 11
se reporta aos temas que foram debatidos temas vistos como polêmicos são exatamen-
ao longo da série, como as transformações te os que mais se ocupam de nossa humani-
no ensino da arte, as propostas metodológi- dade e podem ofertar aos leitores infantis e
cas contemporâneas (Critical Studies, CBAE, juvenis vias essenciais para a discussão do
Arts Propel, Proposta Triangular), a Estética que os inquieta”.
do Cotidiano, a formação dos professores de
arte e o uso do computador e outras tecnolo- Concluindo o primeiro volume da coletânea,
gias contemporâneas no ensino da Arte. Carlos Alberto Faraco destaca que a socieda-
de brasileira, em geral, desconhece a reali-
Nilma Lacerda, autora do quinto texto, res- dade linguística do país, tendo em vista que
salta a necessidade de que as escolas pro- “há uma impressão generalizada de que o
movam a leitura de livros de literatura para Brasil é um país monolíngue”11. O autor res-
crianças e jovens que abordam as questões salta que existem centenas de outras línguas
9 A série Arte na escola foi veiculada de 10/4 a 14/4/2000, com a consultoria de Ana Mar Barbosa.
10 O Debate: Temas polêmicos na literatura foi veiculado e 25/6 a 29/6/2007, com a consultoria de Nilma Lacerda.
11 A série Português: um nome, muitas línguas foi veiculada de 26/5 a 30/5/2008 , com a consultoria de Carlos
Alberto Faraco.
faladas por cidadãos brasileiros, ainda que o capaz de mostrar aos alunos “a cara linguís-
Português seja a língua hegemônica. Além tica do país, expor as razões para tanta di-
disso, “o português que aqui se fala não é, ferença, mostrar que cada variedade é um
de modo algum, homogêneo. Há uma gran- patrimônio da nossa sociedade e da nossa
de diversidade regional e uma grande diver- cultura”. Para o autor, cabe à escola e aos
sidade social”. Segundo o pesquisador, “se a professores “combater o preconceito e a
diversidade regional em si não costuma ser violência simbólica que usa a língua como
estigmatizada, a diversidade social do Por- pretexto de exclusão social dos falantes” e,
tuguês é, no Brasil, um poderoso fator de ao mesmo tempo, garantir um ensino de
discriminação negativa.” Nesse sentido, seu Português voltado para o domínio das for-
texto desafiador aponta para a necessidade mas mais monitoradas da língua, próprias
de que o ensino da Língua Portuguesa seja do mundo urbano e da cultura letrada.
12
Volume 1 – Linguagens e sentidos
1.1. LINGUAGEM E SENTIDOS
Patrícia Corsino13
Os cinco sentidos
Bartolomeu Campos de Queirós
13 Doutora em Educação pela PUC-Rio, professora adjunta da Faculdade de Educação da UFRJ, professora
do Programa de Pós-Graduação em Educação da UFRJ e integrante do LEDUC (Laboratório de Linguagem, leitura,
escrita e educação).
INTRODUÇÃO paço escolar. O referencial teórico que lhe
deu sustentação contou com os estudos de
O poema de Bartolomeu Campos de Queirós Mikhail Bakhtin, Lev Vigostski e Walter Ben-
convoca o leitor a refletir sobre os sentidos jamin, teóricos que abordam a linguagem
que atribuímos ao que nos cerca. Sentidos como produção humana construída coletiva
que, ao serem traduzidos em palavras, se e historicamente, que se manifesta de dife-
dão a ler ao outro, evidenciando a singula- rentes formas e participa de todas as esfe-
ridade do sujeito situado. O autor, poetica- ras da vida do homem, e que o constitui,
mente, afirma “por meio dos sentidos sus- formando seu pensamento e sua consciên-
peitamos o mundo” e reitera que não há cia. Estes autores discutem a linguagem na
sentido único e sim o plausível num dado sua dimensão expressiva e histórica, trazem
momento. O mundo suspeitado e possível os múltiplos sentidos das palavras, veem
de se traduzir em palavras é o mundo vivi- o homem como sujeito social, ativo e pro-
do sem ensaios, onde cada acontecimento dutor de sentido e possibilitam repensar o
é único, irrepetível, e o acabamento neces- nosso tempo e entender a potencialidade da
sário para sua legibilidade se dá na relação linguagem como caminhos para uma edu-
com o outro (Bakhtin, 2003). O outro é quem cação mais significativa e humana. Desta
tem o excedente de visão necessário para a forma, tivemos também como objetivo da 14
suspeição do mundo. Linguagem e sentidos série pensar a escola como espaço coletivo
se inter-relacionam na dupla acepção da pa- de produção e recepção de linguagem que,
lavra sentido evocada no poema. Os senti- devolvendo e ampliando a sua dimensão ex-
dos – ver, ouvir, tocar, cheirar, provar – além pressiva e criativa, pode escovar a história à
das sensações, demandam do sujeito sim- contrapelo (Benjamin, 1993) e assumir a sua
bolizações. Como seres de linguagem, nos- função emancipadora, na direção do que
sas ações são contextuais e históricas. Por Adorno (1995) e Kramer (1999) denominam
sua vez, a produção de sentido pelo sujeito educação contra a barbárie.
– sua resposta ao mundo, ao outro – mani-
festa-se em gestos, palavras, traços, sons: Foi com essa perspectiva que elegemos o
linguagem. Sentir e produzir sentido estão poema de Bartolomeu Campos de Queirós
intrinsecamente relacionados. Assim, simul- para introduzir a série Linguagem e Sentidos
taneamente, somos constituídos na e pela e guiar os cinco programas que a compõem.
linguagem e constituímos linguagem. A dupla significação dada pelo poeta à pa-
lavra sentido nos permitiu metaforicamente
A série Linguagem e sentidos teve como relacionar os cinco sentidos a uma mani-
proposta refletir sobre a linguagem no es- festação de linguagem e suas inter-relações
com a escola. Neste texto, fazemos uma Por meio dos sentidos recriamos o mundo e
síntese da fundamentação teórica e de três o damos à compreensão do outro. Por meio
dos cinco textos que compuseram a série. dos sentidos produzimos linguagem, indo
Na primeira parte, discutimos a concepção além da sensação imediata.
de linguagem que assumimos e, nas subse-
quentes, ressaltamos diferentes manifesta- O homem estabelece relações, produz signi-
ções de linguagem: na audição, enfatizamos ficado, simboliza, se expressa, se comunica,
a escuta na escola, as interações, a narrati- diz para si mesmo e para o outro, mostra,
va; no tato, a linguagem do corpo no mundo revela, cria, transforma. A linguagem, seja
contemporâneo e seu lugar na escola; de- verbal ou não verbal, encontra-se em todas
pois trazemos a visão – as artes plásticas e as esferas da atividade humana. Pela sua di-
a construção de um olhar crítico frente às versidade de formas e manifestações e por
produções imagéticas do mundo contempo- pertencer ao domínio individual e social,
râneo. Concluímos trazendo considerações tem um caráter multidisciplinar, sendo es-
e questões para se pensar a linguagem na tudada por várias ciências e sob diferentes
escola, especialmente para as crianças da perspectivas.
Educação Infantil e anos iniciais do Ensino
Fundamental. Neste texto, como já dissemos anteriormen- 15
te, tomamos como referência para abordar
questões de linguagem os estudos de Mikhail
PENSANDO A LINGUAGEM Bakhtin, Lev Vigostski e Walter Benjamin. Au-
COM MIKHAIL BAKHTIN, LEV tores que apresentam em suas obras a cen-
A autora desafia a escola a contribuir para a Lopes (2001), autora do texto da série que
saúde física e emocional de crianças, jovens discute a linguagem plástica e visual, ob-
e adultos. Propõe uma organização do espa- serva que o desejo do homem de se comu-
ço escolar capaz de favorecer a expressão e nicar por imagens esteve presente desde a
a movimentação das crianças, o livre acesso pré-história, nas inscrições de desenhos nas
aos materiais, a potencialização da autono- cavernas. A preocupação com a produção e
mia, o desafio das possibilidades motoras, o prazer estético remonta à Idade da Pedra,
quando o homem não se contenta em sim- Para Lopes (idem), o universo das artes visu-
plesmente esculpir a lâmina da lança, com ais é um campo particular de conhecimento
finalidade utilitária, mas decora, enfeita, e o processo de fazer ou apreciar o produto
procurando realizar algo que, além de útil, artístico propicia uma experiência subjetiva
fosse belo. A autora afirma que esta dimen- de conhecimento do mundo. Ainda afirma
são estética está presente nos diferentes pe- que as produções artísticas nos permitem
ríodos da história e se expressa de diversas uma aproximação da realidade a partir de
formas, seja no universo reconhecido e va- um outro ponto de vista, que se organiza
lorizado das produções artísticas e culturais, não a partir da lógica objetiva, mas dos do-
como dentro das ações mais simples das ex- mínios do imaginário.
periências cotidianas.
Esta experiência subjetiva é o que faz uma
As crianças também, desde pequenas, arru- obra ser arte. A arte, por sua vez, como afir-
mam brinquedos e coleções com arranjos ma Bakhtin (1926), é eminentemente social:
cuidados esteticamente, enfeitam objetos, o estético, tal como o jurídico ou o cogniti-
colorem, escolhem roupas e adereços, se vo, é apenas uma variedade do social (p. 1).
arrumam para o reconhecimento do outro, O artístico é uma forma especial de inter-
apreciam músicas, dançam seguindo rit- relação entre criador e contemplador fixada 23
mos, reconhecem traços nas ilustrações, em uma obra de arte (p. 3). Para o autor, a
brincam com rimas e versos, assistem a fil- arte se torna arte na interação entre o cria-
mes e desenhos animados, emitem opiniões dor e o contemplador, fora disso é um mero
sobre formas, texturas, cores do que veem. artefato ou exercício linguístico, visual, rít-
Participam ativamente da dimensão estética mico etc.
das produções culturais do seu cotidiano.
Bakhtin sustenta a ideia de que a forma de
Entendemos que a escola é um espaço onde um enunciado artístico é a expressão direta
é possível propiciar o convívio e o diálogo en- de avaliações sociais. Julgamentos de valor
tre o acervo imagético, trazido pelos alunos determinam a seleção de palavras, traços,
de sua experiência cotidiana, e as produções formas, ângulos, tons do autor e a recepção
artísticas e culturais reconhecidas universal- desta seleção pelo ouvinte/leitor/ apreciador/
mente e pertencentes a diferentes épocas e telespectador. Para Bakhtin, cada expressão
contextos socioculturais, numa proposta de selecionada é um ato avaliativo orientado
ampliação da percepção visual do mundo e em duas direções – em direção do ouvinte/
do repertório visual e gráfico, com vistas à apreciador e em direção do personagem/
construção de um olhar crítico da realidade. tema representado. Ambos são participantes
constantes do evento criativo. Assim, embo- realidade para o entendimento da chamada
ra a forma esteja fixada num material, numa “civilização da imagem”. Nas palavras de
película, num computador, a significação da Souza, Lopes e Sander (2000), depois da fo-
forma tem relação não com o material, mas tografia a experiência humana não é mais
com o conteúdo. A seleção do conteúdo e a a mesma, pois conquistamos uma consciên-
seleção da forma constituem um único ato cia cultural e subjetiva do mundo que nos
estabelecendo a posição básica do criador; transformou de forma radical.
e neste ato uma e a mesma avaliação social
encontra expressão. O artista, pela media- Tendo como foco a relação ética e estética,
ção da forma artística, assume uma posição Lopes (2001) indaga: qual seria, então, o pa-
ativa com respeito ao conteúdo. Neste sen- pel da imagem no contexto educacional da
tido, forma e conteúdo são indissociáveis e sociedade contemporânea? É possível pen-
marcam a posição do criador. Estética e éti- sar no desenvolvimento de uma cultura vi-
ca encontram-se, assim, em estreita relação. sual, que amplie as experiências estéticas e
sensíveis, visando à transformação da ação
Lopes (2001), baseada nos estudos de Ben- criadora do homem nos diferentes contex-
jamin, alerta para as transformações ocor- tos sociais onde atua?
ridas na arte na Modernidade, na era da 24
reprodutibilidade técnica. A invenção da fo- Tendo em vista a complexidade dos modos
tografia alterou radicalmente a relação do de produção de imagem, o desafio seria, en-
homem com a arte e a produção de imagens tão, construir uma proposta pedagógica que
pela possibilidade de reprodução. A obra de proporcione uma interação de modo mais
arte deixa de ser única e sua multiplicação informado, criativo e crítico com as imagens
lhe confere uma “existência serial”. A auto- e mensagens que nos rodeiam no mundo
ra ressalta que, após a fotografia, surgiram contemporâneo. Uma educação visual que
muitos outros processos de fixação, produ- considere as técnicas, procedimentos, in-
ção e multiplicação da imagem. Os avanços formações históricas, produtores, relações
tecnológicos do mundo contemporâneo culturais, econômicas e sociais envolvidas
contribuíram para tornar mais dinâmico no processo de produção artística e cultu-
o modo de produção de imagens. Cinema, ral, que contribua para a formação de um
TV, vídeo, computação gráfica, videogames olhar mais crítico e criativo sobre o contexto
fazem parte de um novo campo de produ- imagético no qual estamos inseridos. Pers-
ção que foi definido e denominado como pectiva que coloca como ponto fundamen-
linguagem audiovisual, e este novo contex- tal a relação ética e estética e a necessária
to imagético requer um outro olhar sobre a mediação do professor na construção deste
olhar, o que, necessariamente, remete à sua mos uma música, o corpo descansa e o pen-
própria formação. samento vai longe, o mesmo acontece com
uma dança e um filme que assistimos, uma
Bartolomeu Campos de Queirós, em entre- fotografia, uma pintura e uma escultura que
vista concedida à UFRJ (2009), postula ser olhamos. A arte, nas suas diferentes mani-
mais fácil levar uma música de Mozart para festações, dá uma outra visibilidade à reali-
a escola do que discutir a estética/ética do dade, permitindo novos olhares, novas nar-
programa Big Brother. Isto porque é muito rativas. A imaginação, presente e necessária
dificil assumir o olhar crítico frente ao que tanto para o artista criar sua obra, quanto
nos pertence e habita o nosso próprio tem- para o cientista fazer suas descobertas e
po. Portanto, o professor precisaria estar em invenções, se alimenta da realidade, vivida
constante educação do olhar, ultrapassando e sentida. Portanto, aguçar a sensibilidade,
limitações, pesquisando alternativas e dife- deixar a imaginação imaginar, ouvir os ecos
rentes estratégias do que foi sentido
para que ele e as e partilhar com o
A arte, nas suas diferentes
crianças possam grupo uma expe-
manifestações, dá uma
lançar diferentes riência não deve-
olhares às ima-
outra visibilidade à realidade, ria ser adorno ou 25
gens cotidianas e permitindo novos olhares, complemento da
ampliar o seu re- novas narrativas. ação pedagógica,
pertório de forma mas a própria fi-
crítica. Conclui nalidade da es-
Lopes (2001): aceitando o desafio, transfor- cola, que, ao longo de sua história, tem di-
mando o nosso olhar para recuperar o en- fundido e sistematizado a linguagem dando
canto e o espanto de ver as possibilidades muito mais ênfase ao seu lado instrumental.
onde menos esperamos, podemos descobrir Sem dúvida, a linguagem é uma grande fer-
novos ângulos e dar outros sentidos ao coti- ramenta, exerce inúmeras funções, tem um
diano escolar. lado prático, funcional, utilitário, mas não
se limita a isto.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Frente às questões postas pelo mundo con-
A linguagem, nas suas diferentes manifesta- temporâneo, de aligeiramento das relações,
ções – corporal, visual, musical, escrita – per- do consumo exacerbado, da falta de profun-
mite a narração quando se constitui como didade, da fragmentação dos discursos, da
uma experiência do sujeito. Quando ouvi- falta de afeto, de cuidados com o corpo, de
tempo para a narração, apreciação e críti- A série Linguagem e Sentidos foi um convi-
ca do próprio tempo presente, é necessário te ao professor a pegar o fio da linguagem,
que em alguma esfera da vida das pessoas se expressiva, múltipla e polifônica para, junto
devolva à linguagem a sua dimensão expres- dos alunos, encontrar o caminho de volta do
siva e sensível, para que se possa resgatar os labirinto e não ser subtraído da sua dimen-
elos da coletividade e aproximar o homem são humana.
do próprio homem. E a escola talvez seja
hoje um dos poucos lugares onde um grupo
de pessoas se reúne diariamente, podendo REFERÊNCIAS
processar, elaborar, contar e registrar a en-
BAKHTIN, M. Marxismo e Filosofia da Lingua-
xurrada de informações que chegam pelas
gem. São Paulo: Hucitec, 1992a.
inúmeras vias (televisão, internet, relações
pessoais, livros, revistas, jornais etc.). Lu-
gar que tem um potencial maior do que se BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. São
imagina e que pode aguçar os sentidos, am- Paulo: Martins Fontes, 1992b.
e de nos reconhecer ou nos estranhar no por Carlos Alberto Faraco e Cristovão Tezza.
paços distintos, organiza os fragmentos das sobre a linguagem humana. In: Sobre Arte,
histórias vividas e/ou contadas. Ao reconhe- Técnica, Linguagem e Política. Lisboa: Antro-
BENJAMIN, W. Rua de Mão Única. In: Obras KONDER, L. Ideologia na Linguagem: a refle- 27
Escolhidas - vol. II. São Paulo: Brasiliense, xão de Benjamim. In: Revista Palavra 2, Rio
1993b. p. 9-70. de Janeiro: Departamento de Letras, PUC-
Rio, 1994, p.19.
BENJAMIN, W. Infância em Berlin. In: Obras
Escolhidas - vol. II. São Paulo: Brasiliense, LOWEN, Alexander. Amor e orgasmo. São
1993b. p. 71-142. Paulo: Summus, 1991.
FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler: SOUZA, LOPES & SANDER. A criação de nar-
em três artigos que se completam. 35ª ed. rativas na escola: uma abordagem através
São Paulo: Cortez Editora, 1997. da fotografia. In: PAIVA, A. (org.). No fim do
século: a diversidade. O jogo do livro infantil para o Futuro, Série Linguagem e Sentidos,
e juvenil. Belo Horizonte: Autêntica, 2000. Programa 5, 2001.
TIRIBA, L. O tato - A pele é a raiz cobrindo o VIGOTSKI, Lev. Psicologia da Arte. São Paulo:
corpo inteiro. Rio de Janeiro: Boletim do Salto Martins Fontes, 2a reimpressão, 2001.
28
1. 2. Cinema e educação: um diálogo possível
Inicio estas reflexões sobre cinema e educa- dora, para o trabalho de ensino e pesquisa
ção no espaço do Salto para o Futuro – pro- que desenvolvo com linguagem cinemato-
grama que há duas décadas participa do de- gráfica na universidade pública. Por meio
bate nacional sobre educação trazendo, por delas, foi possível reunir cineastas, profes-
meio da televisão e da internet, os temas sores, artistas, alunos, para pensar o cine-
mais relevantes da cultura contemporânea ma e a educação irmanados. Foi possível
para o âmbito da escola e dos educadores, convidar pessoas que fazem, refletem,
– lembrando Fredric Jameson, que dedicou ensinam, conversam sobre coisas sobre
seu livro As sementes do tempo a quem fosse as quais também gostamos de conversar.
29
capaz de olhar para elas e dizer qual grão Foi possível reunir, por meio de imagens,
cresceria e qual não cresceria (1997). O Salto sons, palavras, autores fundamentais para
para o Futuro foi uma dessas sementes que nossa busca do entendimento da lingua-
cresceu. Cresceu assentando-se em discus- gem do cinema, como Walter Benjamin,
sões que não se apresentaram como evoca- Milton José de Almeida, Pier Paolo Paso-
ção de conteúdos para efeitos meramente di- lini, dentre outros; sem eles não haveria
dáticos, mas que, em tensão e complexidade, a possibilidade do diálogo nem, portanto,
encontraram-se como presença no universo da discussão. Foi possível trazer, para esse
pedagógico – em cada série de programas re- universo, autores de origem, da origem
alizada –, como parte integrante da vida cul- do desejo de ver filmes, de escrever so-
tural do país. Foi assim com o cinema. bre cinema, de fazer imagens, de pensar o
cinema e a educação juntos e separados.
Quero ressaltar a importância das séries Penso que pesquiso sobre cinema para ter
sobre cinema das quais pude participar no o que conversar com esses autores e, de
âmbito do Salto para o Futuro, seja como certa forma, para me colocar sob a custó-
consultora convidada, seja como debate- dia de cada um deles.
Realizar as próprias imagens é uma das di- COMTE-SPONVILLE, André. Pequeno tratado
mensões mais enriquecedoras dessa educa- das grandes virtudes. São Paulo: Scritta, 1995.
ção e desse diálogo necessário do cinema
com a escola. Mais do que aprender por meio ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano: a es-
dos produtos audiovisuais, importa ainda en- sência das religiões. São Paulo: Martins Fon-
tender o cinema para que a educação, na prá- tes, 1992. 35
tica cotidiana de professores e alunos, passe
a construir um entendimento do mundo por MANGUEL, Alberto. O amante detalhista. São
meio da linguagem cinematográfica. Muitas Paulo: Companhia das Letras, 2005.
experiências que pudemos empreender na
universidade ou em escolas do Ensino Funda-
WERTHEIM, Margaret. Uma história do espa-
mental, seja pessoalmente ou por relatos de
ço: de Dante à internet. Rio de Janeiro: Jorge
colegas, foram exitosas ao buscarem associar
Zahar Editora, 2001.
a linguagem audiovisual com a educação.
Mais do que somente ver filmes, importa,
para a educação do homem contemporâneo, YATES, Frances A. A arte da memória. Campi-
16 O resultado dessa pesquisa está publicado no livro O Mito na Sala de Jantar. Discurso infanto-juvenil sobre
televisão. Porto Alegre: Movimento, 1993 (3ª ed.).
ceu”, porque “deu no jornal”, hoje dizemos comunicação com o outro, das próprias
que “saiu na TV”, “eu vi na TV” (ou: “saiu no relações interpessoais, dos modos de ler e
Youtube”). Para o bem ou para o mal, é ali, escrever, e assim por diante. E não é somen-
na tela da TV, que encontramos tematizadas te o tema da velocidade que ganha outros
histórias fictícias ou fatos ditos “reais”, os contornos e marca nossas vidas com a TV:
quais pautam nossas conversas e inclusive profundas alterações podem ser observadas
nossas opiniões e juízos. Obviamente, isso nas concepções que passamos a ter a respei-
não é tudo. Para quem como eu já trabalhou to de ser criança, adolescente, jovem, adul-
numa emissora educativa, do Governo Fede- to; na maneira como olhamos para o nosso
ral, é evidente que há vários problemas na corpo e para o corpo dos outros e como os
TV brasileira, a começar pela concentração e julgamos; nas práticas de consumo, cotidia-
centralização das grandes emissoras, o que nas, em que quase sempre o bem que de-
provoca uma enorme padronização de mo- sejamos ou que adquirimos existe para nós
dos de vida, de consumo e de relação com não só como objeto de uso, mas principal-
o mundo. Quando assistimos a programas mente como uma imagem que nos fascina e
alternativos, de emissoras locais ou de tevês que “faz algo” conosco. Tudo isso tem a ver
educativas e culturais, podemos constatar com novas formas de construir narrativas e
a real possibilidade de termos acesso a no- também subjetividades em nosso tempo. 39
Pelo contrário, quanto mais sabemos sobre tevês educativas são pesados ou até “cha-
o que vemos, mais podemos aproveitar as tos”, em comparação aos shows de imagens
escolhas dos roteiristas e dos diretores, dos de uma grande emissora comercial. Penso
atores e de todos os criadores dessas nar- que essa afirmação, como tantas outras so-
17 Discuto esse tema em vários artigos, especialmente no livro Televisão & Educação. Fruir e Pensar a TV. Belo
Horizonte: Autêntica, 2006 (3ª ed.).
especialmente com a presença da TV em não é um tema inocente. Há questões políti-
nossas vidas. Hoje, todos sabemos “estar no cas em jogo também. Quando, em 2009, fo-
espaço público” muitas vezes significa estar ram questionadas as eleições presidenciais
na mídia, é estar na tela da TV, estar nas re- no Irã, o primeiro lugar de repressão foi jus-
des digitais, como se assim pudéssemos per- tamente o espaço da Internet; afinal, como
tencer a uma ampla “comunidade”, que nos controlar a difusão de imagens, produzidas
acolhe tal qual uma grande “mãe cultural”. com câmeras sofisticadas ou com modestos
aparelhos de telefone celular? Como contro-
A nós, educadores, interessa não apenas
lar a publicação de protestos via Internet?
fazer essa constatação; interessa sobretu-
Recentemente (fevereiro de 2011) em Porto
do indagar: de que modo estamos nós na
Alegre, o atropelamento de dezenas de ci-
mídia? Talvez o excesso de imagens de nós
clistas, numa conhecida rua da capital gaú-
mesmos no “espaço público” da TV – fato
cha, foi gravado com auxílio de um celular, e
que agora ganha espaço formidável nos si-
“viajou” pelo mundo, denunciando o crime.
tes de relacionamento da Internet, como
Esse também é um fato político: há inva-
o Facebook, o Orkut, entre tantos outros –
são das intimidades, mas há também maior
seja mesmo um fenômeno do nosso tempo.
controle, por parte da população, quanto a
Temos aí a exibição do que é mais pessoal, 43
inúmeros problemas e fatos da nossa época,
privado e cotidiano, como se pudéssemos
pela presença de tantas e novas tecnologias
colocar sob as luzes e diante das câmeras
de comunicação e informação.
de TV e dos computadores do mundo todo a
verdade mais íntima do ser humano, e nos
Penso que políticos, educadores, psicólo-
olhar neles, insistentemente. Os tais quinze
gos – e tantos outros profissionais – se pre-
minutos de fama chegaram de verdade, mas
ocupam com a TV (e com a Internet, hoje),
é certo que têm suas regras. Uma delas é
justamente pelo fascínio das imagens, pela
a invasão da intimidade, o olho curioso das
captura que suas narrativas fazem de nós,
câmeras em direção ao que, até pouco tem-
pessoas de todas as idades e níveis sociais.
po, permanecia ou deveria permanecer re-
Em vista disso, imagino a necessidade de
servado a muito poucos, ou somente a cada
propostas muito concretas de como intervir
um de nós, entre quatro paredes. O exemplo
naquilo que nos é transmitido pela TV, para
do famoso programa Big Brother comprova
além daquelas críticas que afastam ainda
bem essa faceta da cultura em que vivemos.
mais, especialmente a escola, desse lugar
Há nesse aspecto uma discussão política im- quase mítico das belas e intocáveis imagens,
portante a ser feita, e que não podemos per- ou dos textos, rostos e figuras que, em cir-
der de vista. Intimidade na TV e na Internet culação nas mídias, explicitamente excluem
inúmeros grupos, milhares e milhões de estamos falando sobretudo em relações de
rostos, cores, diferenças brasileiras. Quan- poder e em estratégias de resistência. Por
do insistimos em estabelecer relações entre exemplo: a mídia, especialmente a TV, tem
cultura, mídia e produção de sujeitos, na re- insistido em “educar” os adolescentes, em
alidade estamos tratando de complexas lu- dizer a eles o que fazer com seus corpos,
tas de poder, em nosso tempo. com sua sexualidade, com sua vida política,
e assim por diante. Há um imperativo, para
Em outras palavras: cada vez mais, hoje, es- as meninas, de que seus corpos sejam belos,
tão em jogo na sociedade lutas simbólicas, de que seus cabelos sejam lisos, de que elas
lutas pela hegemonia de sentidos, lutas pela sempre estejam prontas a satisfazer o dese-
visibilidade de imagens, e que estão associa- jo do homem. É preciso sublinhar que não
das a determinados grupos, a determinadas é só a TV que produz esses discursos; eles
causas, a determina- circulam por dife-
das ações políticas. Vale a pena reforçar esta rentes lugares, e os
O trabalho de um meios de comunica-
ideia: quando falamos de
programa como Sal- ção os transformam
TV e da relação entre TV e
to para o Futuro ca- a seu jeito, produ-
minha justamente
educação, estamos falando 44
zindo outras enun-
nessa direção: “em- sobretudo em relações de ciações, nas novelas,
poderar-nos”, con- poder e em estratégias de nos reality shows e
ferir mais poder aos resistência. telejornais. Se esse
educadores e aos es- é um fato, e um fato
tudantes, no sentido político, também é
de estudar e pensar a complexidade de todas verdade que não somos completamente as-
essas narrativas audiovisuais, olhando-as e sujeitados ou dominados por esses meios e
discutindo-as dos mais diferenciados pontos seus produtos. Temos condições (que nos
de vista, a fim de nos esclarecer e permitir são dadas, sobretudo, por ações educacio-
que cresçamos como cidadãos, donos de voz nais) de olhar para tudo isso e pensar o que
e posicionamento crítico, e ainda como pes- nos sucede, operar sobre essas construções
soas que ampliam seus domínios quanto a narrativas, e tomarmos posições.
linguagens e propostas estéticas diferencia-
das. Considerando tudo o que foi dito até aqui,
insisto em que é preciso não só fruir mas
Vale a pena reforçar esta ideia: quando fala- pensar a TV: ir além da TV, pensar sobre o
mos de TV e da relação entre TV e educação, que ela nos movimenta a ver e sentir, e se-
guir adiante. Oferecer aos mais jovens ou- querem as emissoras não é necessariamente
tras possibilidades de encontro com bons nem “naturalmente” o que querem os dife-
materiais audiovisuais, oferecidos pela pró- rentes grupos sociais. Há aproximações, há
pria TV; mostrar que há uma beleza de cria- encontros, mas há também divergências e
ção ali também; observar como um tipo de posições bem diversas18. Por essa razão, pre-
linguagem, que é do nosso tempo, fala de cisamos criar mecanismos, na sociedade ci-
coisas tão importantes como a vida e a mor- vil, para exigir uma TV melhor, mais criativa,
te, os sonhos, os desejos mais profundos do mais respeitosa conosco, com as maiorias
humano; e como, por outro lado, muitas ve- e as minorias deste país. Exigir qualidade (e
zes isso não está presente nas narrativas da pensar sobre o que nos é mostrado) não é
mídia, concentradas no superficial, no sen- estar alinhado com o pensamento totalizan-
sacionalismo, no espetáculo das vidas, mui- te e danoso, como o das práticas de censu-
tas vezes vidas cheias de violência e pobreza. ra; é, ao contrário, lutar por um direito le-
gítimo. Pensar a TV, como faz o Salto para
“Viver é perigoso”, já nos dizia Guimarães o Futuro, é operar em direção a uma luta
Rosa. Penso que um dos perigos do nosso que não pode enfraquecer: a luta por uma
tempo é este: esquecer que a TV tem força educação que efetivamente considere a to-
e presença em nossas vidas, não discutir a talidade da população; e essa luta tem a ver 45
respeito do que ela nos mostra e cria para com a necessária resistência aos atos indivi-
nós, acreditar que a televisão está aí, sim- dualistas e narcisistas de nosso tempo, em
plesmente, sem deixar suas marcas. Não se favor de atitudes cotidianas calcadas num
trata disso, pois, em primeiro lugar, o que pensamento genuinamente democrático.
18 Fiz referência a essa questão no artigo “A TV como prática narrativa de nosso tempo”, publicada pelo
SESC de São Paulo na revista “E” , a propósito dos 60 anos da TV brasileira. Alguns argumentos aqui apresentados
coincidem com o artigo, que está disponível em: http://www.sescsp.org.br/sesc/revistas/revistas_link.cfm?Edição_
Id=389&Artigo_ID=5988&IDCategoria=6900&reftype=2 (acesso em 7 de março de 2011).
1.4. O salto para o futuro da arte na educação
O programa Salto para o Futuro desempe- tural. Portanto, não quis submeter o dese-
nhou um papel importantíssimo na pós-mo- nho dos programas aos PCN.
dernização da Educação no Brasil.
Na minha avaliação, a função dos progra-
Uma das coisas que me entusiasmou desde mas era estender o campo de referências da
o início do programa Salto para o Futuro Arte para além dos muros das escolas e mu-
foi a importância dada à Arte em igualdade seus. Centrei na ideia de Arte como Cultura e
com as outras disciplinas . como campo estendido para outras áreas. O
programa que me deu as bases gerais para os
46
Quando me convidaram20 para organizar outros quatro foi aquele em que abordamos
cinco programas sobre o Ensino das Artes a Interculturalidade e a Interdisciplinaridade,
Visuais, já haviam sido feitos vários progra- para o qual convidei especialistas ideologica-
mas sobre o tema, em torno principalmente mente, metodologicamente e vivencialmente
dos Parâmetros Curriculares. Nunca fui en- democráticos: Ivone Richter, falando sobre a
tusiasta de currículos nacionais, invenção Interculturalidade em geral; Fernando Azeve-
da Inglaterra de Margaret Thatcher. A an- do, sobre a Multiculturalidade funcional, isto
siedade por homogeneização da educação é, a inclusão dos deficientes físicos e diferen-
só se justifica como recurso para preparar tes mentais na escola comum, e Ana Amália
estudantes para testes que vão garantir uma Barbosa sobre Interdisciplinaridade. Dois anos
boa classificação do país no ranking inter- depois, Ana Amália, que é minha filha, iria de-
nacional. Para mim, este não é o objetivo da pender vitalmente dos princípios de inclusão
educação num país democrático e multicul- que Fernando defendeu, pois teve um AVC de
19 Mestre em Arte Educação - Southern Connecticut State College (1974); doutora em Humanistic Education
- Boston University (1978). Professora Titular aposentada da ECA-USP, atuando atualmente na Pós-graduação, linha
de pesquisa em Arte/Educação e no NACE-NUPAE, Núcleo de Cultura e Extensão em Promoção da Arte na Educação.
20 O convite foi feito por Rosa Helena Mendonça, supervisora pedagógica do Salto para o Futuro (TV Escola),
e pela então gerente da educação da TVE, Marcia Stein (Feldman).
tronco cerebral que a deixou tetraplégica, sem duas áreas configuram o campo da arte-edu-
falar e sem comer, mas com a cognição e a me- cação. Que princípios e objetivos orientam a
mória intactas. O Hospital Sarah, de Brasília, ‘arte-educação’ na contemporaneidade?
a 're+incluiu' na vida e a devolveu aos estudos
universitários, dando-lhe acesso ao computa- 2 – Espera-se que a escola prepare os(as)
dor. Em 2010, Ana Amália e Fernando Azevedo alunos(as) para conviver em sociedade e uti-
escreveram para a Licenciatura a Distância da lizar, de maneira minimamente autônoma,
UFG, a convite de Leda Guimarães, um texto conhecimentos de disciplinas, tais como
sobre arte e inclusão. A parceria dos dois co- Matemática, Geografia, Ciências e Língua
meçou no Salto para o Futuro. Portuguesa. Pensando no ensino de arte,
quais são estes conhecimentos e de que ma-
O módulo sobre Interculturalidade e Inter- neira eles servem ao(à) aluno(a)?
disciplinaridade foi apresentado à equipe do
programa como um protótipo e como eixo 3 – O ensino de arte na escola oferece alguns
central. desafios. Dentre eles, dois chamam a aten-
ção e merecem ser comentados. São eles: a)
Houve uma tal identificação de nossas ideias a escola ‘ensina’ alguém a se tornar artista?
sobre Educação e Arte que a equipe me deu b) de que maneira os processos de aprender 47
'carta branca' para escolher os outros temas e e ensinar arte ‘combinam’ com as limitações
convidados. Foram feitas apenas algumas su- que o currículo escolar estabelece (discipli-
gestões para modificação do meu texto, que nas, horário, regras de comportamento)?
seria enviado para as/os catorze participantes
a serem entrevistadas/os nos programas. As 4 – Em relação às outras disciplinas do cur-
modificações tinham a ver, principalmente, rículo escolar, que especificidades caracteri-
com algumas ênfases críticas às quais me dou zam o ensino de arte na escola? Há alguma
ao luxo, de vez em quando, para expressar mi- exigência ou necessidade especial para de-
nhas indignações sociais. Mas elas tinham ra- senvolver este ensino?
zão quanto à necessidade de maior acolhimen-
to do público e incorporei as sugestões. Para determinar os temas a serem discutidos,
aproveitei dois cursos para professores de
As perguntas que elas queriam ver respondi- Arte que ministrei, um em Minas Gerais (PUC-
das eram estas: PREPES) e outro em São Paulo (NACE-NUPAE-
USP) e inquiri os professores. As perguntas
1 – Arte e educação são duas grandes áreas foram formuladas nas seguintes direções:
de conhecimento. Articulações entre essas Como as mudanças no ensino/aprendizagem
da Arte estão sendo percebidas pelos profes- a necessidade de aprenderem como usar o
sores, como agentes dessas mudanças? Que computador no ensino da Arte.
mudanças são essas? Quais aspectos dessas
mudanças são mais problemáticos, pouco As respostas dos professores e as perguntas
entendíveis e mais difíceis de implementar? propostas pela equipe do Salto para o Fu-
Quais as necessidades dos professores? turo determinaram minhas prioridades e os
temas que foram discutidos.
As respostas coincidentes nos dois grupos
foram: Temas e ementas dos programas da série
3- Uma das necessidades apontadas foi a Dra. Irene Tourinho (GO) – Professora do
melhoria da formação de professores, o res- Departamento de Artes Visuais da Universi-
peito ao contexto em que eles se formam, e dade de Goiás; Coordenadora do mestrado
a importância de relacionar teoria e prática. em Cultura Visual.
4- Por último, apontaram unanimemente Dra. Lucimar Bello Frange (ES) – Artista Plás-
tica; Professora aposentada da Universida- Federal do Rio Grande do Sul, onde coor-
de de Uberlândia; Autora do livro Por que se dena a Linha de Pesquisa em Artes da Pós-
esconde a violeta? (1995) Graduação em Educação. Autora de vários
livros, entre eles: O Vídeo e a Metodologia
Dra. Miriam Celeste Martins (SP) – Profes- Triangular (1991); Desenho e construção de co-
sora aposentada da Universidade do Esta- nhecimento na criança (1996); A educação do
do de São Paulo (UNESP); Atualmente, pro- olhar (1999).
fessora da Pós-Graduação na Universidade
Mackenzie. Dra. Ana Mae Barbosa (SP) – Professora Ti-
tular aposentada da ECA-USP, atuando atual-
PGM 2 - CAMINHOS METODOLÓ- mente na Pós-graduação, linha de pesquisa
GICOS: LEITURAS DA IMAGEM
em Arte/Educação e no NACE-NUPAE, Nú-
cleo de Cultura e Extensão em Promoção da
As propostas metodológicas contemporâ-
Arte na Educação; autora de Tópicos Utópi-
neas: Critical Studies, CBAE, Arts Propel,
cos (1998); Arte-Educação: leitura no subsolo
Proposta Triangular. A leitura da obra e do
(1999); A imagem no ensino da Arte (1997);
campo de sentido da Arte. Etapas de com-
Abordagem Triangular no Ensino das Artes e
preensão da obra de arte ou como crianças 49
Culturas Visuais (2010) (Org. com Fernanda
e adultos leem a obra de arte e desenvolvem
P. Cunha).
sua capacidade de entendimento. A influên-
cia do cinema, da televisão e a Estética do
Cotidiano: o rompimento de barreiras entre PGM 3 - INTERCULTURALIDADE E
o erudito e o popular, a não hierarquização INTERDISCIPLINARIDADE
entre culturas.
Conceitos e experiências bem sucedidas co-
Dra. Maria Christina de Souza Rizzi (SP) – lar e os especiais fazeres de mulheres donas
cas - USP. Trabalhou na Pinacoteca do Estado escola e seu entorno, e associando o artista
de São Paulo, no Museu da Casa Brasileira, que vive na comunidade com o artista inter-
Dra. Analice Dutra Pillar (RGS) – Professora ceitual para as Artes. A multiculturalidade
PGM 5 - O COMPUTADOR
PGM 4 - FORMAÇÃO DE E OUTRAS TECNOLOGIAS
PROFESSORES DE ARTE CONTEMPORÂNEAS NO ENSINO
DA ARTE
Situação atual dos Cursos de Licenciatura;
formação continuada; como deve ser a for- O acesso e a manipulação da imagem. A
mação teórica e prática, como ensinar a en- Arte por computador, integrações percep-
sinar a aprender; publicações; colaboração tivas. Diferentes possibilidades de leituras,
de museus e de outras instituições; onde desconstruções e criação. CDRom, Internet,
encontrar os cursos adequados; o professor sites, comunicação e informação. O exercí-
generalista (1a a 4a séries) e o especialista cio crítico necessário para tomar decisões
(6a a 9a séries). sobre o que escolher e priorizar. A convivên-
cia com outros meios eletrônicos e com os
Participantes: tradicionais: do lápis ao mouse.
Rejane Coutinho (PE/SP) - Professora da Uni-
versidade do Estado de São Paulo (UNESP). Participantes:
Escreveu com Ana Mae Barbosa e Heloisa Dra. Lúcia Pimentel (MG) – Professora da
Universidade Federal de Minas Gerais (Esco- tinha verba suficiente e os equipamentos
la de Belas Artes). Publicou na Inglaterra o não eram atualizados, nem substituídos. Vi-
livro sobre Arte Educação e Computador, em víamos numa fase em que o governo que-
colaboração com os professores Pete Wor- ria que a educação no Brasil superasse os
rall e Tom Davies: Electric Studio (2000); no índices do Haiti, como na canção de Caeta-
Brasil publicou, com Antônio Claret Santos, no Veloso, mas não queria gastar dinheiro.
o livro e CDRom Estudando as cores: Intro- Hoje, as universidades federais equipadas,
dução ao estudo da Teoria da Cor. Software com número bom de professores, oferecem
Didático (1996) e Limites em Expansão (1999); cursos noturnos para os trabalhadores, ten-
Coordenadora da Coleção Arte & Ensino da do-se ainda uma verba, inimaginável naque-
Editora C/ARTE. le tempo, para a tão necessária educação a
distância.
Adriana Portella (RJ). Arte/Educadora com
especialização em Educação com Aplicação Em 2000, a equipe do Salto para o Futuro tra-
da Informática pela UFRJ. Coordenadora de balhava com muita garra e imaginação para
projetos em Kidlink - Portuguese. Consulto- superar a falta de dinheiro. Sugeri vários lu-
ra da Multirio no Projeto Geração Internet. gares de ensino de Arte para serem filmados,
Coordenadora do site Estudio@Web e parti- como o Instituto Capibaribe, no Recife, cria- 51
cipante do Grupo Educar na Internet. do nos anos 1950 por Paulo Freire, Elza Freire
e Raquel Crasto, que tem sempre uma equipe
Dra. Tania Calegaro (SP). Desde 1993 vem excelente de Arte/Educadores. Em 2000, ensi-
pesquisando o uso das novas tecnologias navam lá Fátima Serrano e Patrícia Barreto.
para o ensino/aprendizagem da Arte. Pro- Recomendei também o Colégio Pedro II, no
fessora universitária e do Ensino Médio em Rio de Janeiro, especialmente as aulas de Elo-
instituições públicas e privadas de São Pau- ísa Saboia, e o Curso de Aperfeiçoamento de
lo. Assessora do Núcleo de Comunicação e Professores de Arte do Núcleo de Cultura e
Educação (NCE) da ECA/USP. Extensão em Promoção da Arte na Educação
da Escola de Comunicações e Artes da Uni-
Estes programas do Salto para o Futuro, versidade de São Paulo. Esse Núcleo hoje não
com o título “Arte na Escola”, foram ao ar funciona mais, porém seus cursos foram alvo
em abril de 2000. Até 2006, cópias em DVD de pesquisa para a tese de doutorado de Fa-
foram muito usadas pelos professores que bio Rodrigues, na Espanha. Hoje Fábio dirige
as reproduziam para seus colegas. a Faculdade de Artes Violeta Arraes da Uni-
versidade do Cariri. Aliás, é bom lembrar que
Mas, na época, o Salto para o Futuro não a maioria dos especialistas que participaram
dos programas ocupa hoje a liderança do en- organizei sob a orientação da supervisora
sino da Arte nas universidades brasileiras. pedagógica e da então gerente de Educação
da TVE, são necessários outros programas,
Por falta de verba, nada disso pôde ser fil- pois a situação do ensino das Artes Visuais
mado, mas a equipe do Salto para o Futuro mudou. Em todo os cursos de Pedagogia, há
supriu as lacunas com imagens do arquivo, pelo menos uma disciplina sobre Arte, as li-
algumas excepcionalmente bem escolhidas, cenciaturas em Artes Visuais estão se mul-
como o foram as cenas do filme de Kurosa- tiplicando no modo presencial e atingindo
wa lendo, comemorativamente, Van Gogh. números incríveis de professores no modo
EAD, as pesquisas para mestrados e douto-
O vídeo de Cao Hamburger sobre a exposição rados se multiplicaram.
“O labirinto da Moda”, de Gláucia Amaral,
também não pôde ser exibido como objeto Há um vivo debate em todo o mundo sobre
de análise, por não ter havido tempo hábil ensino das Artes Visuais, das Culturas Visu-
para a concessão de direitos de exibição. ais, da Cultura Material, da Comunicação
Visual e do Design Thinking, da História da
A reação dos professores nos telepostos foi Arte, Antropologia, Feminismo, Estudos da
muito participativa. Eles nos bombardearam Mulher, Queer Theory, Política Cultural, Es- 52
de perguntas e saí da experiência querendo tudos Pós-Coloniais, Performance Studies,
escrever um livro respondendo às pergun- Cinema, Estudos de Mídias, Arqueologia,
tas. Mas o tempo passou e, ao reler os textos Arquitetura, Urbanismo, Design etc. Hoje,
que pedi a cada professor participante das tudo isto tem a ver com Arte/Educação.
cinco mesas, percebi que, de um modo ou
de outro, haviam respondido à enxurrada de No Brasil, a relação das Artes Visuais e da
perguntas que levamos para casa. Cultura Visual ou Culturas Visuais, como
prefiro chamar, estava indo muito bem
Pedi permissão à equipe do programa e com desde o fim do século XX, com pesquisas e
o material escrito pelos participantes do Sal- práticas engajadas desenvolvendo nos alu-
to do Futuro, 15 textos ao todo, publiquei o nos a capacidade crítica para a imagem de
livro Inquietações e mudanças no Ensino da qualquer categoria. Pesquisadoras, como
Arte, pela Editora Cortez, lançado em 2002 Mariazinha Fusari, Analice Dutra Pilar, Ma-
na Bienal de São Paulo. O livro está na séti- ria Helena Rossi, Alice Martins, Nilza de
ma edição. Oliveira, Leda Guimarães, Dulcília Buitoni,
Kathia Castilho, Jociele Lampert, Maria Lu-
Agora, dez anos depois dos programas que cia Bueno vinham desenvolvendo valiosos
trabalhos e publicando sobre o campo ex- mas em muitas outras, têm muita verba, que
pandido da arte para a publicidade, moda, é distribuída para cooptação de membros
cinema, design, TV, cultura visual do povo poderosos em seus lugares de trabalho. Fe-
etc. como reação ao sistema hierárquico lizmente, este fenômeno é localizável e ain-
dos valores da arte hegemônica manipula- da não assolou o país. Espero que se modifi-
da por museus, comunidade de críticos de quem gradativamente, sem perder a rapidez
elite, mercado etc. Textos sobre Cultura Vi- de publicação, mas que se pluralizem. Até a
sual foram traduzidos em livros como Arte/ antiga política de cátedra das universidades
Educação: leituras no subsolo e Arte/Educação se modernizou! Entretanto, criaram a políti-
Contemporânea, por mim organizados. ca de departamentos, que também virou ins-
trumento de poder. Na USP, na gestão Gol-
Na década de 2000, denberg (1986-89),
multiplicaram-se foram criados os
os grupos de estu- A reação dos professores Núcleos de Pesqui-
dos sobre ensino nos telepostos foi muito sa e de Cultura e Ex-
da Arte e Cultura tensão, para ajudar
participativa. Eles nos
nas universidades, os professores pro-
bombardearam de perguntas 53
para o bem e para dutivos a fugirem
o mal. A maioria
e saí da experiência da ditadura dos de-
destes grupos pra- querendo escrever um livro partamentos, que
tica a democracia e respondendo às perguntas. foram um sucesso
a inclusão, mas há de democratização
outros que estão até 1992. Posterior-
sendo usados para mente, atitudes
consolidar o poder deste ou daquele dire- conservadoras de alguns gestores cercearam
tor ou chefe, que se intitulam sacerdotes do a liberdade que os núcleos davam aos profes-
tema que dizem estudar, praticam uma polí- sores, chegando mesmo a inibir essa autono-
tica eurocêntrica, só citam uns aos outros e mia. A luta de dominação tem muitas faces,
seus alunos a eles. Nos livros e revistas que todas monstruosas.
publicam, os textos são sempre das mesmas
pessoas, o que aniquila minha curiosidade. É O Salto para o Futuro colaborou grandemen-
uma situação quase medieval, semelhante à te para a democratização do conhecimento
política de cátedras do passado, com a dife- em nossa sociedade, arriscando-se a con-
rença de que os tais grupos de estudos ma- vidar pessoas de diferentes posições teóri-
nipulam o poder não só na sua universidade, cas e/ou políticas para debaterem temas e
ideias. O debate, a discussão, o diálogo são DUFRENE, Phoebe. Voices of color. NJ: Hu-
as melhores armas de combate contra a dis- manities Press, 1997.
criminação, a ignorância e a imposição de
políticas educacionais e culturais. FERRAZ, M. Heloisa e FUSARI, M. F. Metodolo-
gia do Ensino da Arte. São Paulo: Cortez,1993.
BIANCHO, Antonio. CDRom Geometria (e nism. NY, Teachers College Press, 1997.
55
1.5. Temas polêmicos na literatura:
o mal-estar
Nilma Lacerda21
que melhor podem ofertar aos leitores infan- turo, em 2007, propiciou um contato enri-
tis e juvenis vias essenciais para responder aos quecedor com profissionais do livro e com
ressonância dessa poética na literatura de al- do tema, que enfrentava, em vários espaços,
uma visão restritiva quanto à sua proprie- 56
guns países da América Latina.
dade.
II. O MAL-ESTAR, EM SUA POÉTICA mundo justo, em que bem e mal ficam se-
parados e, no caráter humano, são partes ir-
Os contos e as fábulas que estão na base de reconciliáveis e excludentes. Quem é mau, é
uma literatura voltada para a criança são mau; quem é bom, é bom. A divisão confere
construções de caráter e alcance popular, aos contos um caráter nitidamente pedagó-
fruto de muitas vozes anônimas, que foram gico, voltado ao exemplo e à correção dos
deixando seu olhar sobre o mundo em nar- costumes.
rativas que assegurassem a vitória do bem e
a derrota do mal. Em um universo no qual Essa perspectiva vai se alterando, à medida
os pobres careciam de toda espécie de bens que acontecem as mudanças na sociedade,
e cujo acesso aos benefícios da civilização em decorrência das conquistas sociais e
era muito remoto, era preciso que as narra- científicas. O surgimento da psicologia, no
tivas afirmassem o valor de quem era bom final do século XIX, e logo em seguida o ad-
e heroico, trabalhador e sincero, e que os vento da psicanálise vêm mostrar que o ser
ouvintes e leitores encontrassem na inteli- humano é uma mistura de bem e mal, par-
tes boas e não tão boas. No século XX, estu- ra que deve acompanhar o homem nos abis-
dos de várias naturezas procuram conhecer mos em que mergulha, nos pactos em que
melhor o ser humano e conceitos absolutos se envolve na desordem do próprio ser.
de outras épocas mostram-se relativizados.
O ser humano surge como um enigma cons- O mal-estar na cultura, apontado por Sigmund
tante, mistura de partes que nem sempre Freud no ensaio de 1930 (FREUD, 1981), tem-se
podem ser conhecidas em profundidade; confirmado a partir de então, e de forma cada
essas descobertas e estudos terão conside- vez mais incômoda; as casas do homem são to-
rável influência na produção de narrativas. madas de assalto, na constatação do pensador
francês Félix Guattari, que propõe, em As Três
A literatura para crianças e jovens vê seu ca- Ecologias (1989), a modificação e reinvenção
ráter pedagógico se modificar para investir dos paradigmas da civilização, deslocando-os
naquilo que caracteriza a produção literária da determinação científica para a instalação
para adultos: as perguntas sobre nossa pró- no seio da ética e da estética.
pria humanidade.
Mal-estar, modificação e reinvenção dos pa-
Para Denis Rosenfield, filósofo que formu- radigmas da civilização estão presentes no
la o conceito de vontade maligna, é impe- projeto que Monteiro Lobato começa a tra- 58
rioso considerar o mal como uma escolha çar em 1921, com a publicação de A menina
que produz um tipo de ação na história, e do narizinho arrebitado, abrindo na literatu-
construir um conceito que “[...] interrogue o ra brasileira uma vertente que se empenha
modo mesmo do ser humano”, para ele “[...] em permitir à criança e ao jovem o acesso
um esboço inacabado, talvez para sempre à participação na configuração do mundo,
incompleto” (ROSENFIELD, 1988, p.150). por meio de uma produção literária ao al-
cance de sua sensibilidade e que não despre-
A questão do mal, que já ocupara pensado- za sua inteligência.
res como Georges Bataille, tem na literatura
um dos espaços mais convidativos à discus- Investido de um caráter utópico e otimista, o
são, pois, sendo comunicação, é nela que autor não deixa de reconhecer que apresen-
se deve estabelecer um canal fundamental tar o mundo sem mal às crianças, ou apre-
com o leitor, através do qual se pode acom- sentá-lo na perspectiva maniqueísta, é falseá-
panhar o jogo da transgressão da lei. “A lite- lo. Algumas obras na ficção para crianças de
ratura é o essencial ou não é nada”, defende Lobato prestam-se, de forma singular, a essa
Bataille (1989, p.9), na medida em que, sem análise, em que também se encontra presen-
compromisso de ordem a criar, é a literatu- te um pensamento crítico da realidade uni-
versal, expresso em artigos para a imprensa e Maria Machado, nas imagens de Rui de Oli-
em sua correspondência particular. veira, no desconforto existencial dos perso-
nagens de Lygia Bojunga.
A chave do tamanho (1942) abre na literatura
brasileira uma linhagem em que o mal-estar
III. BONECOS DE PAU, GIRINOS
é a tônica narrativa, visando à desestabiliza-
E SAPOS: MAL-ESTAR NA
ção do leitor e ao questionamento da reali-
dade, o que implica novos contornos histó-
AMÉRICA LATINA
ricos e sociais.
A chamada de Silviano Santiago para o Brasil
contemporâneo pode ser estendida à Amé-
Décadas mais tarde, ao apontar a direção
rica Latina, esta
de novas vozes em
parte do continen-
circulação no Bra-
A chave do tamanho (1942) te que não teve a
sil para um públi-
co feito de novos
abre na literatura brasileira possibilidade de
tomar as rédeas da
leitores e uma pla- uma linhagem em que o mal-
própria ocupação e
teia jovem, Silvia- estar é a tônica narrativa,
colonização de seu
no Santiago (1997) visando à desestabilização território, como
59
expressa a convic-
do leitor e ao questionamento aconteceu com a
ção de que os va-
da realidade, o que implica América do Norte.
lores da educação
são determinantes
novos contornos históricos Dominados pelas
Com Los sapos de la memória (Os sapos da A novela do colombiano Francisco Montaña
memória), a argentina Graciela Bialet en- Ibañez revolve o leitor, que acompanha per-
frenta o mal-estar imprescindível à recons- plexo e nauseado o trajeto de fome de cin-
trução factual para que a história não seja co crianças, abandonadas à própria sorte e
um amontoado de versões fraudulentas, e fadadas a um desfecho trágico, em face da 62
a identidade não passe de fantasia de car- omissão dos adultos que as cercam. Uma úl-
naval. Nessa empresa, muitos adultos, a tima refeição, feita de uma calda de girinos,
pretexto de proteger crianças e jovens de é a causa da morte de todos os irmãos, na
uma realidade cruel, podem acabar borran- sublimada versão de David, único sobrevi-
do a memória, encobrindo ou minimizando vente de um massacre em que o assassino
a violência social ou de Estado. Los aguje- e também suicida é o irmão mais velho, que
ros negros (Os buracos negros), de Yolanda devia obedecer à ordem do pai e manter os
Reyes, relata a violência na Colômbia, com irmãos juntos até que ele voltasse. Mas o
o mérito de não simplificar a questão: “ – pai não voltou, e a fome os leva a se alimen-
[...] Tem trabalhos que não agradam a certas tar de larvas. David, o Imortal, empreende
pessoas. – Que pessoas? Quem era essa gen- o longo trajeto de volta a si mesmo ampa-
te má, avó? – Não sei – disse –. Não é nada rado pelos laços de afeto de uma menina,
fácil. Não é como nas histórias” (REYES, filha de presos políticos, recolhida à mesma
2006, p.39). instituição que ele. Se Ibañez sacode o lei-
tor às raias da injustiça e da irresponsabili-
A arte não cede à tentação de apontar cul- dade adulta para com as crianças, cumpre
pados. A via do maniqueísmo, presente no igualmente com o projeto ético de apontar
a expectativa do vindouro, irrefreável na li- livre de impurezas. O mal atrai, toca as pes-
teratura cujos receptores privilegiados são soas com seu abraço viscoso, como represen-
crianças ou jovens, conforme aponto nas tou Lygia Bojunga em O Abraço, e seu contato
Cartas do São Francisco: conversas com Rilke pode propiciar a experiência ética, advinda da
à beira do rio (LACERDA, 2003, p.23). inquietação e da comunicação do abismo.
KRONFLY, Fernando Cruz. ¿Desgracia o ale- ______. O cosmopolitismo do pobre; crítica li-
gría de la especie? In: Memorias. 27° Congre- terária e crítica cultural. Belo Horizonte: Edi-
22 de septiembre de 2000.
A sociedade brasileira, em geral, desconhece em nosso território de línguas dos países vi-
a realidade linguística do País. Há uma im- zinhos: o espanhol, o guarani, o francês, o
pressão generalizada de que o Brasil é um inglês, os crioulos da República da Guiana e
país monolíngue. O Português é, obviamen- da Guiana Francesa, entre outras. Acrescen-
te, a língua hegemônica. No entanto, isso te-se ainda, a todo este conjunto, a língua
não faz do Brasil um país monolíngue. Cen- das comunidades surdas brasileiras (LIBRAS
tenas de outras línguas são aqui faladas cor- - Língua Brasileira de Sinais), já reconhecida
riqueiramente por cidadãos brasileiros. Nes- pela Lei n. 10.436/2002.
se sentido, a sociedade não tem informação
66
e consciência do complexo quadro de lín- Por outro lado, o Português que aqui se fala
guas que a caracteriza e, em consequência, não é, de modo algum, homogêneo. Há uma
não dá valor à grande diversidade linguística grande diversidade regional e uma grande di-
do nosso país. versidade social. A primeira é relativamente
percebida e reconhecida pela sociedade. É, po-
Calcula-se que aqui são faladas perto de 180 rém, uma percepção bastante limitada. E essa
diferentes línguas indígenas, dezenas de lín- limitação decorre, principalmente, de um silen-
guas trazidas para cá pelas comunidades ciamento da diversidade regional nos meios de
oriundas da imigração europeia, asiática e comunicação social. Ou seja, muito raramente
americana, além de remanescentes das lín- a efetiva diversidade regional do Português do
guas africanas trazidas ao tempo da escravi- Brasil é audível no rádio e na televisão.
dão. Não se pode esquecer também que nas
zonas de fronteiras há populações que se Essa pasteurização da pronúncia foi imposta
deslocam de um lado a outro, o que favorece às transmissões radiofônicas por uma deli-
o contato linguístico constante e a presença berada política do Estado Novo (1937-1945).
23 Professor Titular (aposentado) da Universidade Federal do Paraná. Mestre em Linguística pela Universidade
Estadual de Campinas e doutor em Linguística pela University of Salford. Pós-doutorado em Linguística na University
of California - EUA.
Como sabemos, havia entre os intelectuais núncia carioca: o ‘r’ fricativo uvular e a si-
aliados àquele regime político uma preocu- bilante palatalizada (que, de forma impres-
pação com a unidade do país. Acreditava-se sionista, é percebida como um “chiado”) na
que a heterogeneidade regional somada ao posição de fechamento silábico.
Brasil das comunidades oriundas da imigra-
Posteriormente, este padrão radiofônico
ção constituía uma ameaça à integridade do
passou para as transmissões da televisão.
país, à unidade e à identidade nacional.
Desse modo, a diversidade regional do país
não tem, já há setenta anos, espaço nos nos-
Esses intelectuais perseguiram, então, uma
sos meios de comunicação social. Só muito
série de políticas com vistas a homogenei-
recentemente e com iniciativas ainda mui-
zar a sociedade brasileira. Desenvolveram,
to tímidas é que se começou a quebrar essa
entre outras ações, uma política de silencia-
pasteurização histórica.
mento das línguas faladas pelas comunida-
des oriundas da imigração (tratadas como Resulta daí que boa parte das representações
línguas “estrangeiras” e não como línguas sociais da diversidade regional do Português
da sociedade brasileira e parte, portanto, de do Brasil é constituída de estereótipos. Para
seu patrimônio cultural), promoveram um os sulistas, por exemplo, há uma só pronún-
currículo escolar unificado para o ensino 67
cia nordestina. Há, nesse sentido, um profun-
de Língua Portuguesa e estimularam uma do desconhecimento da grande variedade de
uniformização da pronúncia radiofônica, al- pronúncias da Região Nordeste. E o contrário
cançada em especial pelas transmissões da é também verdadeiro: as muitas distinções de
Rádio Nacional do Rio de Janeiro. pronúncia do sul do país são igualmente perce-
bidas de modo estereotipado pelos habitantes
Essa Rádio, criada em 1936, foi estatizada em de outras regiões.
1940, tornando-se a voz oficial do Governo
Embora percebida basicamente por meio
Federal. Foi a primeira estação a alcançar
de estereótipos, a diversidade regional não
praticamente todo o território nacional.
é, em geral, estigmatizada no Brasil, salvo
Desse modo, foi possível impor um padrão
nas situações em que à diferença regional
de pronúncia a toda a rede radiofônica, pa-
se agregam outros fatores estigmatizadores.
drão este desprovido das marcas das dife-
Assim, por exemplo, as marcas linguísticas
rentes pronúncias regionais. Curiosamente,
regionais de populações migrantes pobres
embora com as transmissões centralizadas
costumam ser alvo de estigma, como o fo-
no Rio de Janeiro, o padrão pasteurizado di-
ram as pronúncias dos migrantes nordesti-
fundido pela Rádio Nacional eliminou duas
nos na cidade de São Paulo. Nesse caso, não
das características mais marcantes da pro-
é propriamente a pronúncia que sustenta a culto a um Português dito popular. Essa di-
estigmatização e o preconceito, mas a pro- cotomia se espalhou pelos discursos sociais
núncia aliada à pobreza. de tal modo que ela é hoje repetida, com
ares de certeza, tanto na mídia quanto na
Se a diversidade regional em si não costu- escola.
ma ser estigmatizada, a diversidade social
do Português é, no Brasil, um poderoso fa- Essa descrição dicotômica, no entanto, fal-
tor de discriminação negativa. E a sociedade seia demais a nossa realidade linguística que
brasileira, infelizmente, não foi ainda capaz não é assim tão simples. O caminhar dos es-
de desenvolver uma adequada compreensão tudos foi mostrando que precisávamos de
desse seu grave problema. outro modelo e de outras categorias para
uma melhor descrição da nossa 'cara' socio-
Há uma linha que divide socialmente a po- linguística.
pulação brasileira com base no modo de
falar o Português. Essa cara é sufi-
Trata-se de uma Há uma linha que divide cientemente com-
situação de extre- socialmente a população plexa para ser re-
ma complexidade duzida a cortes 68
brasileira com base no modo
e que afeta profun- dicotômicos como
de falar o Português.
damente as nossas Português culto/
relações sociais Português popular,
perpassadas que ou Português for-
são de gestos de exclusão e de violência sim- mal/ Português informal. Há muitas varieda-
bólica fundados nas diferenças sociolinguís- des cultas e muitas variedades populares. É
ticas. Esse corte sociolinguístico tem suas preciso, então, tentar apreender essa grada-
raízes na constituição, já no período colo- ção num contínuo, evitando classificações
nial, de uma sociedade fortemente dividida dicotômicas.
econômica, social e culturalmente, cujos
efeitos continuam ainda muito presentes na Também não servem identificações ainda
conhecida e rígida estratificação da socieda- mais simplistas como Português coloquial =
de brasileira. língua falada; Português culto = língua escri-
ta. E não servem porque existem variedades
Os estudos iniciais da nossa realidade so- cultas faladas e variedades coloquiais escritas.
ciolinguística adotaram uma descrição di- Bastaria lembrar dois exemplos paradigmáti-
cotômica que opunha um Português dito cos: para a língua culta falada, as entrevistas
do programa Roda Viva, da TV Cultura de São no, altamente letrado e que atinge seu maior
Paulo; para a língua escrita coloquial, a escri- grau de monitoramento na escrita formal.
ta que se pratica nas redes sociais na internet.
No meio desses dois pontos, encontramos
Nenhuma das dicotomias e simplificações as variedades constitutivas do chamado
mencionadas chega perto da real complexi- Português popular, que são originalmente
dade sociolinguística da Língua Portuguesa variedades rurais próprias de estratos popu-
no Brasil. A melhor solução descritiva até lacionais pobres e que alcançaram o contex-
agora formulada é a do contínuo de varie- to urbano nos últimos 50 anos como resul-
dades que combina três grandes eixos: o tado do êxodo rural que, num curto espaço
rural-urbano, o eixo da cultura oral- cultura de tempo, transformou o Brasil de um país
letrada e o eixo dos graus de formalidade ou, majoritariamente rural num dos países mais
como preferem os sociolinguistas, o eixo do urbanizados do mundo.
maior ou menor monitoramento da fala e
da escrita de acordo com o tipo de evento Essas variedades do Português popular pas-
em que os inter-actantes estão. saram a conviver maciçamente com as va-
riedades tradicionais urbanas e isso vem
Esse contínuo vai, então, das variedades que alterando seu perfil, porque tais variedades 69
chamamos hoje de Português afro-brasileiro vêm adquirindo características do Portu-
até as variedades urbanas formais escritas. guês brasileiro urbano e perdendo as carac-
terísticas mais típicas das falas rurais, num
O Português afro-brasileiro é constituído processo que, claro, não se dá abruptamen-
por um conjunto de variedades rurais, exclu- te, mas progressivamente.
sivamente faladas e típicas de comunidades
oriundas de quilombos. Recentemente foi No contexto das cidades do Brasil de hoje,
publicado um livro de descrição deste Por- encontramos, então, um leque de varieda-
tuguês afro-brasileiro na forma como ele se des marcadas por diferentes graus de ur-
manifesta no interior do estado da Bahia. banização: há ainda estratos populacionais
Trata-se do livro O português afro-brasileiro, que falam basicamente o Português rural
organizado pelos professores Dante Lucche- (em especial os falantes mais idosos), há es-
si, Alan Baxter e Ilza Ribeiro. tratos que falam um Português rural já ra-
zoavelmente urbanizado (em geral, os mais
O outro ponto do contínuo – as variedades jovens) e há, claro, os estratos tradicional-
urbanas formais escritas – é típico de um mente urbanos.
estrato populacional tradicionalmente urba-
Quando estudamos a realidade sociolinguís- Adotando o modelo dos três continua (pro-
tica brasileira, não podemos ignorar dois fa- posto pela Prof.a Stella Maris Bortoni, da
tos sociológicos fundamentais: de um lado o Universidade de Brasília), podemos carac-
processo de urbanização da população e, de terizar estas variedades como aquelas que
outro, o alcance dos meios de comunicação se distribuem no entrecruzamento do polo
social. urbano (do eixo rural-urbano) com o polo da
cultura letrada (do eixo cultura oral-cultura
O Brasil passou (e, em certo sentido, conti- letrada). No eixo da monitoração estilística,
nua passando) por um processo intenso de essas variedades conhecem, como todas as
urbanização de sua população. O Brasil in- demais, diferentes estilos, desde os menos
verteu, em menos de 50 anos, a distribuição até os mais monitorados.
da população entre o campo e cidade, tor-
nando-se um dos países mais urbanizados do A maior força de atração dessas variedades
mundo, com aproximadamente 80% de sua e a observação de seus efeitos levaram o
população vivendo hoje no espaço urbano. linguista Dino Preti, um dos principais es-
tudiosos da variação linguística do Brasil, a
Por outro lado, houve uma enorme expan- designá-las pela expressão linguagem urba-
são dos meios de comunicação social. O na comum. 70
rádio está em praticamente todos os lares
brasileiros e a televisão, com produção e Essas variedades são dominantes nos nossos
transmissão fortemente centralizadas em meios de comunicação social. Seus diferen-
São Paulo e no Rio de Janeiro, chega a mais tes estilos (i.e., suas diferentes manifesta-
de 90% dos lares. ções no continuum da monitoração estilísti-
ca) estão muito bem representados no rádio
Isso tudo tem um forte impacto sobre as ca- e na televisão, desde os estilos menos moni-
racterísticas linguísticas do país. Podemos torados (nas novelas, programas humorísti-
dizer que as variedades que exercem, hoje, a cos e sitcoms, por exemplo) até os mais mo-
maior força de atração sobre as demais são nitorados (em noticiários e programas de
as faladas pelas populações tradicionalmente entrevistas como o emblemático programa
urbanas, situadas na escala de renda de mé- Roda Viva da TV Cultura de São Paulo).
dia para alta e que, por isso, têm garantido
para si, historicamente, bons níveis de esco- Essa dominância dá a estas variedades ampla
laridade (pelo menos a educação média com- audibilidade e ressonância. Nenhum outro
pleta) e o acesso aos bens da cultura escrita. conjunto de variedades do país tem a mesma
audibilidade e ressonância. Não é de estranhar,
portanto, que sejam justamente elas a ter uma ginário: a norma culta brasileira falada se
força de atração permanente e irresistível. identifica, na maioria das vezes, com a lin-
guagem urbana comum, e não propriamen-
Trazem para mais perto de si as variedades te com as prescrições da tradição gramatical
rurais e rururbanas faladas pelas populações mais conservadora.
que, por força do intenso êxodo rural das úl-
timas décadas, se tornaram urbanas só mais No contexto de toda a variedade sociolin-
recentemente. Há, portanto, no Brasil uma guística brasileira há, como mencionamos
enorme movimentação das variedades do anteriormente, variedades sociais estigmati-
Português, movimentação que responde à zadas. Como tais estigmas têm efeitos dano-
força de atração das variedades urbanas. sos nas nossas relações sociais, é fundamen-
tal apresentar e debater criticamente essa
Ao mesmo tempo, é a linguagem urbana co- realidade.
mum que caracteriza boa parte das manifes-
tações orais mais monitoradas dos falantes A língua (qualquer língua) é intrinsecamente
que poderiam ser classificados de “cultos”. variável. Justamente por isso, a língua acaba
Em outros termos, a chamada norma cul- servindo como elemento de discriminação
ta brasileira falada pouco se distingue dos social. Discriminação positiva (includente) e 71
estilos mais monitorados dessa linguagem discriminação negativa (excludente).
urbana comum, segundo fica demonstrado
pela análise dos dados coletados pelo proje- Quando o outro fala como eu, eu o reconhe-
to NURC (Norma Linguística Urbana Culta). ço como um de nós, como pertencente ao
mesmo grupo a que eu pertenço. Eu o iden-
Essa constatação empírica causou surpresa tifico comigo/ eu me identifico com ele.
em alguns estudiosos dos dados do projeto
NURC, entre eles o Prof. Dino Preti. Imagi- No entanto, se o outro fala uma varieda-
navam esses estudiosos que os falantes cul- de diferente da minha e essa variedade está
tos, nas situações de fala mais monitoradas, associada a outros fatores negativos de dis-
tinham uma variedade bem distinta da lin- criminação (fatores econômicos e culturais,
guagem urbana comum, ou seja, eles acredi- por exemplo), eu o discrimino negativamente
tavam que, na norma culta falada, os falan- (“Este cara não é da minha tribo”) e isso afeta
tes seguiam estritamente, por exemplo, os as minhas relações com este falante, que pas-
preceitos da tradição gramatical normativa. sam a ser acompanhadas desde uma rejeição
tácita até gestos de violência simbólica.
A realidade, porém, desconcertou o ima-
Obviamente não são gestos individuais ape- modo piores – o que, como bem sabemos,
nas. O indivíduo é apenas porta-voz de valo- está na origem do preconceito.
res de seu grupo social e materializa estes
valores nas situações individuais. O pior preconceito dos muitos existentes
hoje é, certamente, o preconceito linguísti-
Assim, por exemplo, o professor que afirma co, porque ele é ainda socialmente imper-
que as crianças da escola pública da periferia ceptível. Nisso ele difere, por exemplo, do
urbana não conseguem se alfabetizar porque preconceito racial. Mesmo que ainda bas-
elas falam errado, está explicitando um juí- tante ativo socialmente (em especial de for-
zo que é fundamentalmente social – os que ma tácita), a existência do preconceito ra-
falam diferente de nós não apenas falam di- cial é reconhecida e ele é discutido e existe
ferente, mas falam “errado”. E quem fala “er- até legislação contra ele.
rado”, segundo esta forte e arraigada crença
social, é ignorante, Com o preconceito
limitado, incapaz. linguístico, acon-
O pior preconceito dos
tece o contrário.
muitos existentes hoje é,
Não é preciso nos A discriminação
alongarmos nas
certamente, o preconceito negativa que toma 72
consideraçõesdos linguístico, porque ele é ainda a forma de falar
efeitos desse juízo socialmente imperceptível. como critério não
social de discri- é reconhecida, não
minação linguísti- é discutida e não
ca negativa sobre a história escolar dessas existe instrumento legal para coibi-la. E mais
crianças. ainda: a violência simbólica que se pratica
com base na língua no sistema escolar, nas
A diferença é socialmente transformada relações de trabalho, na mídia é considerada
em marca de inferioridade. E os psicólogos natural, é aprovada, é estimulada e reforçada
nos lembram que essa transformação pro- institucionalmente.
vém da necessidade que temos de manter
estáveis os parâmetros da nossa identidade É, então, por aqui que podemos e devemos
e isso envolve adesão às razões e aos valo- começar a debater criticamente o uso social
res que tornam estes parâmetros desejáveis. que se faz da variação linguística. É por aqui
Daí, segundo ainda os psicólogos, nasce a que devemos elaborar e fundamentar um
convicção de que é melhor ser como nós. discurso crítico capaz de tornar socialmente
Os que são diferentes de nós são de algum perceptível o uso discriminador negativo da
variação linguística e de combatê-lo. variação histórica (a língua como um fenô-
meno em contínua mudança); em seguida,
De antemão, já sabemos que é uma das ba- a variação correlacionada com o espaço ge-
talhas mais árduas das tantas que nos desa- ográfico (a distribuição sincrônica dos diale-
fiam. A língua é talvez o fenômeno que mais tos, as fronteiras dialetais pouco nítidas, os
mexe com nossas representações, com nos- contatos interdialetais e interlinguísticos e
sos valores, com nossos sentimentos, com seus respectivos efeitos e assim por diante).
nossas certezas.
Mais recentemente, na década de 1960, tor-
O senso comum tem convicções profundas nou-se objeto de análise a variação correla-
sobre o funcionamento social da língua. Tra- cionada com características da organização
ta-se, por isso, de convicções profundamen- social ( o estudo do que alguns preferiram
te resistentes a quaisquer questionamentos. chamar de socioletos, feito pela sociolin-
Nem mesmo os argumentos de base científi- guística).
ca conseguem instaurar a dúvida nas certe-
zas do senso comum sobre a língua. Num balanço desses dois séculos de histó-
ria da moderna ciência da linguagem ver-
Ora, o fazer científico é uma importante
bal, podemos dizer que não é mais possível 73
conquista histórica da humanidade. Ele nos
discorrer cientificamente sobre as línguas
libertou da palavra de autoridade e do dog-
sem reconhecer como intrínsecas a elas a
matismo. No fazer científico, não importa
variação e a mudança. Ou seja, não temos
quem diz, mas o que é dito. Não importa o
como escapar dos fenômenos da variação e
enunciador, mas o enunciado.
da mudança. Sabemos que ambas são cons-
E nenhum enunciado vale dogmaticamen- titutivas da realidade das línguas e a relativa
te – nenhum é um dito pétreo, imutável e sistematicidade de ambas é bastante óbvia.
inquestionável. Os enunciados só param em
pé enquanto se sustentam numa argumen- Sabemos também que, do ponto de vista pu-
científico, não basta afirmar; é preciso sus- nhum critério que dê sustento a juízos hie-
REFERÊNCIAS
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