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Arte afro-brasileira Mariano Carneiro da Cunha 13.1 Introducio Para uma justa apreciagéo da influéncia alricana nas artes plasticas brasileiras € indispensavel uma incursdo, por répida que seja, na his: t6ria dos povos que para c4 vieram como mfo-de-obra escrava, Sendo as civilzagbes subsaéricas Sgralas, dispde 0 afticanista de relativamen- te poucos recursos para reconstituir a histéria africana anterior a0 con- tato com a civilizagdo ocidental ou com o Isldo. Ao mesmo tempo, a hist6ria que se Saseia sobre essas fontes 86 restitui um passado cuja antiguidade varia, segundo as regiées, entre as séculos X @ XIX Recompée-se igualmente a histéria da Africa negra a partir das tra- dices orais. como tem feito J. Vansina com bastante éxito em seus rabalhos de etno-historia, mas a tradi¢&0 oral nao remonta a muitas geracdes sem mergulhar no mito. Se por um lado existem tal penuria e dificuldades, por outro dispde-se atualmenie de farta documentagao arqueolégica que comega a preancher as lacunas do passado africano, nao sem percaicos contudo. A historia da Africa negra é assim uma historia baseada em dados arqueolégicos, portanto histéria andnima e no factual, bastante precisa quanto 3 evolugdo das técnica e com portando lacunas importantes inerentes 8s proprias fontes de infor mao. Os primeiros trabalhas arqueoiégicos datam apenas do fim do século passado e as pesquisas sistematicas comecam realmente apés © fim da Gitima guerra mundial, Trata-se de uma arueologia ainda em seus comegos, cujos dados sao fragmentarios. As subdivisdes clissicas da Pré-historia ndo se aplicam de modo absoluto a Africa negra oelas razbes que se seguem. A Idade da Pedra antiga é mais velna na Africa do que em qualquer outro lugar: recobre todo 0 periods Paleotitica inferior @ uma parte do Paleotitica médio da Europa ocidental. A Idade da Pedra média estende-se do Paleolitico médio ao comego do Paleolitico superior. Enfim, a Idade da Pedra recente corresponde ao fim do Paleolitico superior, a0 Mesoliico © a0 Neolitico, Este 6 seguido imediatamente pela Idade do Ferro. O Cal- colltico © a Idade do Bronze néo exisiem provavelmente ne Africa ‘negt@, pois os metais qua os representam aparecem na Africa ao mes mo tempo que o ferro, Olduvai, Ifé, Benim, Nok, Igbo-Ikuwu e mais recentemente Zimbabwe sfio os sitios arqueolégicos mais importantes na Africa subsaérica. Apeser do solo precério para a conseivacao dos vestigios arqueolégicos, a Africa negra tom sido extremamente grati cante para aqueles que se tém dedicado a reconstituicdo de seu pas- sado. Se a umidade e os insetos destroem rapidamente certos tipos de artelatos © demais testemunhos de ciuilizag3es que so sucederam no solo africano, outros conservam-se muito bem, como ossos. pedra e, em grande medida, cerémica e metal. Assim, a Africa negra coloca-se hoje em dia em primeiro lugar no plano da paleontologia com as des: cobertas de L.S.B. Leakey e sua familia, em Olduvai, a este da Tanza- nia. Na Africa negra a Idade do Ferro parece suceder sem solucao de continuidade @ Idade de Pedra, De fato, conhecem-se indiistrias liticas negto-africenas de apenas trés séculos de idade. Assim, a origem e difus8o da siderurgia na Attica coloca problemas quase insoliveis para 3 hisi6ria do continente negro. g i nau aan 11937 Figuea sontaca, s8eulo XIU a XI, bronze. 80a, Nupe, Niagia, col, Museu Nacional, Lagos. Segunds iam Fagg este bronee sera oriainsio de M6 6 loved postermanta para 9 reimo Nupe 1938 “Guoroita de Tada", provavelmente secu, bronze, Higéna, ool Museu Bridnico, Loreres lente © verso! ‘A teoria mais aceita até agora era de que o ferro teria sido intro- duwzido do Oriente Médic através de Meroé no alto Nilo, seu principal centro de difusdo para a Arica subsaérica, entre 0 séoulo V a.C. eo IV de nossa era. Ao mesmo tempo no se podia descartar a possibilidade de contatos transaéricos entre os entreposios fenfcios da bacia do Mediterraneo e a Attica ocidental. ou os contaios que viajantes érabes © indo-malaios, conhecedores do ferro, teriam tido com a Africa oci- dental, mais ov menos no mesma periodo Por outro lado, acresitava-se oue @ difus8o da siderurgia negro africane ligava-se 4 expansao bantu que se acompanha igualmente da agricultura € da pecustia, Para alguns linguistas, as civilizagBes banw?, partindo da regio nigero-camaronense, teriam alcangado as savanas da Africa central numa primeira otapa migratoria e de 16 se teriam espalhado para 2 Africa oriental e austral. Tal movimento de populagées s6 teria sida possivel com o auxilio. de insirumentos metélicos capazes de desbravar a floresta equatorial 0 ponto de partida da migragao bantu sugerido polos linguistas coadu: nava-se bem com a existéncia na regido da civilizago de Nok que pra ticava a fundigio do ferro desde 0 século V aC. A segunda otapa migratoria coincidia com a existéncia de varios sitios da Idade do Ferra sobretudo na regio interlacustre que apresentavam uma cerdmica {com depressio na base, canelada), que parecia intimamente ligade entre si, Esta interpretagda ajustava-se bem a teoria segundo a qual a civilizagao teria tid 0 seu inicio no Oriente Médio e de |é se difundido ara 0 resto do mundo: as migragées bantu acompanhavam a expan- so da metalurgia do ferro. Contudo, os fatos subsequentes vieram infirmar essa hip6tese, Mostrou-se em soguida que os sitios da regiéo interlacustre néo tinham conexdes maiores entre si, ndo compondo Portanto um todo homagéneo nem geagrafica nem cronalogicamente. Por outro lado, no hé até agora nenhuma estapao intermediaria entre Nok @ a Africa ocidental, onde foram descobertos varios sitios quase to antigos coma Nok. Enfim, a hipétese linguistico-arqueolégica repousa om UM pressuposto pouco plausivel, o de um imenso porcur 0 que teria sido percorrido pelas migragdes bantu no curta espago de dois ou trés séculos. Assim, seria quase impossivel stribuirse atual- mente a Meroé a origem e difusao da siderurgia da Africa negra, Nes- tes Ultimos anos, novas descobertas sucedem-se na Africa oriental: embora nao tenham sido ainda sistematizadas, parecem indicar que a siderurgia africana seria anterior a0 primeiro milénio a.C., 0 que viria confirmar a hipétese de uma metalurgia autonoma na Africa negra. O que fica historicamente bem estavelecido é que, nos primeiros séculos de nossa era, a metalurgia permeia todo 0 cantinente negro € entre os séoulos V @ XV assisto-se ao surgimento de civilizagdes nogras bastan- te sofisticadas. ifé, centro cultural e religioso dos Yoruba a oeste da Nigéria, jd era povoada desde © século VI, e pouco depois produzia suas obras-primas em bronze, pelo processo da cera-perdida, ¢ em terracota, praticando também o artesanato em vidro Igbo-lkuwu, o leste da Nigéria, dominava igualmente @ metalurgia do bronze desde pelo menos 0 século IX. A partir do século XV, surge a arte do Benim, cujos bronzes levados pela expediogo punitiva briténi- ca de 1897 mostram 4 Europa uma nova face dessa Africa considera- da retrégrada e obscurantista, sem mencionarmos aqui todos 08 bron- ze3 descobertos esvagademente 20 longo do Niger, como o célebre guorreiro de Tada, © que sé denominados bronzes do ‘baixo Niger Esta é @ époce da constituigao dos primeiros grandes Estados da Airica ocidental, descritos pelos viajantes arabes; Gana, Mali, Songai. ‘Quando os portugueses chegaram ao reino do Congo no fim do século XV 36 puderam avaliar urn pasado que fora glorioso. A leste, a5 gran- des necr6palas de Sanga © Katoto, no Zaire, atestam a prosperidade © Virtuosismo dessas cwvilizagdes da Idade do Ferro bem antes do século X. Do século X! falam as ruinas de Zimbabwe, na Rodésia, cujo reina de Monomopata tirava seu poderio do comércio de ouro, martim « ‘escravos com os estabelecimentos arabes da costa do oceano Indico, Deste rapido esbago histérico pode-se conciuir que os africanos que vieram para as Américas como escravos ja se encontravam tecni- camente bastante desenvolvidos, viessemn eles da regidio sudanesa ou bantu. Se no conheceram a rode @ todos os benelicios tecnol6gicos por ola trazidos no quarto milénio a.C., na Mesopotamia, dominaram a metalurgia com bastante sofisticacao @ partir do primeiro milénio a.C. Sem @ roda do oleiro, chegaram no entanto @ uma grande pertei¢#io na arte da ceramica como atestam os mais antigos exemplares conheci- dos até hoje. Contudo, a maior contribuigge do ponto de vista tecnico © artistico da Attica negra foi a sua escultura. Naturalmento a Atrica negra sempre praticou @ pintura rupestre ¢ os desenhos incisos de excelente qualidade na pedra desde o Peleolitico Inferior até os nossos dias, em que as pinturas dos Bosquimanos chegam a incluir até auto- méveis e outros bens de consumo da tecnologia ocidental. Sendo, con- tudo, o,propésito do presente trabalho detectar as relzes africanas nas artes pldsticas brasileiras, vamos nos limitar no momento a escultura negra, pois foi esta que as influenciow definitivamente. _ninevie our 978 13.2 Evoluc&o da escultura africana © mais antigo exemplar de esculture em madeira encontrado na Atrica negra & um objeto que tem toda a aparéncia de um elemento de mascara zoomorla, encontrado perto das nascentes do rio Liavela, em Angola, que foi datado pelo carbono 14 como sendo dos meados do século Vill de nossa era. Bem conservado pela utnidade constante da gua, esse objeto apresenta grande semelhanga com os chifres escul pidos dos antflopes que encimam os adornos-de-cabeca (Ti-waral utili zados pelos Bambaré do Mali em suas cerimGnies agricolas. Em segui da datou-se igualmente, pelo mesmo proceso, fragmento de uma escultura dagom (Mali) chamada tellem, atribulda por esse povo a uma etnia que a tradigo local fazia remontar a alta antiguidade e os teria precedido na regido. Essa iltima datacdo atribuiu a escultura em questo os anos de 1470 + 150 a.D., 0 que a situaria aproximade- mente no periodo dos primeiros contatos dos europeus com a Atrica acidental. 0 estilo dos tellem parece realmente ser 0 ponto de partida da escultura dogam atual. Com exceg3o dessas duas pagas sabe-se muito pouco ainda da génese da escultura em madeira na Arica negra, mas conhece-se bem, a0 contrério. a sua distribuicao espacial. Enquanto a pintura rupestre e a petrogratia distribuem-se em geral nas regides das savanas abertas, a escultura om madeira encontra-se de preferéncia nas florestas da Africa ocidental e da bacia do Congo. Esculturas em terracota encontram-se isoladamente em quase toda a Atrica, néo formando aparentemente tradi¢ao continua. Por outro lado, existem duas tradigées na Africa ocidental, a de Nok e a de Ifé, que permi- tom avaliar @ ovolugdo da escultura durante um periodo de 2.500 anos. A mais antiga tradigao de escultura africana fora do Egito fai des- coberta, com efeito, no nordeste da Nigéria, nas minas de estanho per- to da aldeia de Nok, na provincia de Zéria: figuras de terracota foram encontradas misturadas com machados de pedra polida junto aos res: tos de uma inddstria de artofatos de ferro. Mais tecentemente, um sitio de ocupacdo dessa cultura foi encontrado em Taruga, na mesma regido, onde verificou-se intensa atividade sidertrgica em razdo da pre- senga de dez fornos. Assim a industria do ferro, acompanhada de esculturas em terracota, existiu em Nok desde o século V aC. As dimensdes das esculturas de Nok variam entre algumas pole- gadas @ as proporgdes quase naturais dos sores humanos e animais representados. Os membros e corpos da figura humana séo geralmen- te tratados coma cilindras recobertos de fieiras de contas; a cabega humana habituelmente cilindriea, estérica ou cOnica com penteados claborados © orelhas colocadas om grande variedade de posigées; boca, orelhas, narinas © pupilas geralmente vazadas; olhos represen- tando segmentos de esfera, as vezes assumindo forma triangular; as representagies humanas sao estilizadas ¢ os animais naturalistas, mas com 0 mesmo tipo de olhos..A cultura material de Nok jé aparece como um produto formalmente acabado, sem que hajam elementos historicos que permitam reconstituir a evolucdo que a precedeu, faltan- do também toda uma infra-estrutura técnica e artistica que a apdie. Para compreender melhor esse fato jé se emitiu uma hipotese das mais convincentes*: a técnica da escultura em terracota de Nok supée toda uma tradie&o de escultura em madeira que infelizmente nao tote Elmont de masa Ta gou até nés pelas razes acima assinaladas. De fato, se se 2.5%57 x85, Bembars, Mal, col Tago, Gamer da Cunha em depesito no WREIUSP. ticos, a escultura em madeira exige a técnica inversa: vai-se desb do um bloco de madeira, tirando 0 que o artista considera supérf Suplicante garantiré a abund8ncia das impedimento 8 sua obra, constituindo-se o que se poderia char Sinvolsam poe‘es dosone'a préfes’ ‘técnica subtrativa. Nesse sentido, algumas escultures am terrauy TRee ee, ane Aaeaaeat: Madera, Nok suporiam realmente um substrato de escultura em madeira 728%85, Mal, col ABUSE anterior, pois apresentam-se sempre como uma reformulagio co te de cubos, esferas, cilindros e outros elementos geométricos ea teristicas da esoultura africana em madeira, com sua inclinacdo nai Para um certo cubismo. Se, por um lado, faltam ainda evid XVI-XVIL, martin, ait. ¢. 11 € 12, teitos por arqueolégicas que provem a continuidade de Nok com outros ¢ {tea wol thcos ites Lender Negras culturais da Africa ocidental, por outro tedo, certas. caracterieties 44s convengtes de olhos e pescoca do salero —_gstilisticas de sua estatudria podem ser detectadas entre grupos 6tn pares G08 atuais da Nigéria que apontam para uma origem comum ou uma filiac&. Nesse sentido F. Willett observa com acuidade que e: tipo de cabega tubular pousado em pescoco igualmente cilindrico dip 1340 Pora de ceeico Dogom, representando ancesiras cola attude 4961 Paquens cabors, 500 a.C 8 200 40, teracote. Nok. Nigéna, col, Museu Beitnien, Landes. 1942 Pildo de pimenta e sale, século 1¥343 Nomoli possvelmente sfculo XVI esteatie, Serra Leoa, col Musau Brténico, Londres das de Esie, nos marfins afro-portugueses do século XVI esculpidos e Sherbro @ entre os chamados nomoli da Serra Leoa. As propored corporais — cabeca grande © pernas curtas —, troquentes em tod escultura_negro-atricana, aparecem também nos exemplares menores proporgées de Nok. Vérios detalhes de vestuarios e estilos de Penteados encontram-se ainda entre povos do planalto Nigeriano. Os Tiv, Dakakari e Ham, da mesma regio, praticaram até muito reee mente um tipo de terracota que, embora diferente nos detalhes esti ticos, poderiam francamente associar-se a tradic8o escultorica de Diga-se de passagem que, a esse nivel de evidéncias, © mais releva para 0 presente trabalho é que vérios tracos estilisticos, entre os qua a forma dos olhos da estatuéria de Nok, so semelhantes & das ma Caras atuals Yoruba chamadas Gueledé e que existiram na Bahia a comege do século. Por patentes que sejam essas conextes estilstie estabelacidas por Willett, no se dispe contudo até agora dos escal ~arqueolégicos intermediarios entre Nok ¢ 0 resto da Arica negra, po dendo tratar-se portento aqui também de casos de convergéncia 144 Mascara Gueledé, anterior 2 1928, madeita-apievomada, 23 x 19.5 » 31 RepiolePooular do Benim, cal. Musou Nacional Fig de Vane, NIGERIA REPOBLICA DEBENIM (" (DAOME) IRUTEIE = NOES Jean tuna desea Vex anes sto Yoruba | Nass ti NIGERIA Yorubs Igbo eH aK BENIN Igbo CAMAROES CT reat sic A outra tradic&o escultérica que apresenta continuidade como a de Nok € a de Ife, centro religioso e antiga capital politica dos Yorubé Nao mencionamos aqui os bronzes do Benim por se tratar de des- dobramento historico e estiistico de Ifé Léo Frobenius, antropéiogo e africanista alemao, escavando aci- dentalmente em Ifé, na primeira década deste século, descobriu alguns, desses notbrios bronzes que considerou — por serem vazados em estilo de um naturalisme cléssico — de fatura nao africana mas atribui vel a0s portugueses, ou mesmo a uma possivel coldnia grega situada na hipotética Atléntida! Datacdes posteriores, pelo carbono 14, 1da- : via, situaram-nos no século Xi a.0., época em que os portugueses néo conheciam ainda aquele tipo de técnica de fundigéo. Comparacdes fei- tas em seguida por especialistas mostraram que, do ponto de vista for- mal @ técnico, as cabecas de bronze de Ifé chegavam a suplantar os methores exempiares de Benvenuto Cellini 81 HADI LY ‘wl 1308 Ceheca, stew Xl ou XIV, bronze, funcido pelo proceso de core pardiga, 36 ait, ancentrade perio Gos palicios dos eis Se Me. Nigeria, col. Museu Bran, Londres Embora a civilizagéo de Ifé seja atualmente bem estabelecida como genuinamente africana, ainda persistem controvérsias quanto a sua otigem, pois, como Nok, Surgiu no cenario histérico africano como produto formalmente acabado. Frank Willett, que escavou sistematica- mente alguns pontos da cidade de Ifé, encontrou em Ita Yerioo artefa- tos em tetracota © bronze que o carbono 14 datou entre os séculos Vie X, perfodo que poderia perfeitamente ser ainda contemporéneo de Nok Por outro lado, Thrustan Shaw®, escavando em Igbo-lkuwu, no Estado central do leste da Nigéria (regido do Bislra), descobriu uma colerdo importante de bronzes ornamentais, fundidos e forjados, depo- sitados em um timulo do século IX 2.0, Embora o estilo © a liga metdlica sejam diterentes dos de If6, sua existéncia @ apenas duzentos @ poucos quilémetros deste sitio apoiaria a possibilidade de uma datagao mais antige para o comeco da fundig&o do branze em ié (+ século X a.D.). Assim a referencia! cronolégico mais plausivel tende a recolocar Ifé no plano da tradi¢ao oral Yoruba que a faz 0 berco de seu pavo. Frank Willett®, analisando a cultura material de Nok e confrantan- do-a com a de If6, ressalta aspects estilisticos de ambas que. ao que tudo indica, mostrariam no ter havido solue&o de continuidade do maior relevancia entre os dois sitios, embora faltem ainda as etapas TY arqueolégicas que um dia as uniram, Dentre as varias semelhancas estilisticas detectadas por F. Willett na expressao artistica dessas duas tradic6es, ressalta-se um esforgo para atingir as proporeées naturals de corpo humana, fato Gnico em todo © contexto negro-alricano, Apesar do grande naturalismo que informa a arte de Ifé, existe, a0 gue parece, aqui como em Nok, uma tendéncia estilizante exacerbada’, ndo que, as vezes, a estilizacdo em Ifé 6 ainda mais acentuada do gue em Nok. Nesse sentido, Willett escolhe uma série de esculturas Para ilustrar esse grau crescente de estilizacéo na representago do feste humano, em que os olhos comegam a se tornar salientes, os Id. Bios a se projetarem em duas protuberancias horizontais, enquanto uma variedade de formas simpliticadas so utilizadas para representar as orelhas. Finalmente, 0 que interessa mais diretamente ao presente allo € a sua constatagto de que escas trés titimas caracteristicas, auadradas a tradicgo de um naturalismo moderado, s80 as carac. tices principais da escultura vigente até os nossos dias entre os Yoruba. Esse fato & de grande importéncia porque ndo s6 tenta Mostrar a filiacdo de Ifé a Nok mas aponta para uma tradigao escultéri 2 africana durante um periodo de mais ou menos dois mil e quinhen OS 8NOS, € que Se prolongou com feicdo peculiar entre nés, em sua moress&0 afro-brasileira Nap podemos terminar este esboca histérico, todavia, sem cons. Jatarmos que permenece a interrogagéo quanto as origans da civil: 22080 de Nok Vimos, por um lado, que escultura em madeira oxpli aria €m parte o acabamento formal da cultura material de Nok Por ousra lado, 08 argumentos de Willett s8o convincentes quanto ao seu Brolongamento espaco-temporal, mas quais s8o os seus reais antece- 8? De inicio, pode-se afirmar que a arqueologia africana nao se neontra ainda aparelhada para responder convincentemente a essa GUESIB0. AIé 0 inicio do século, quando os estudos cientificos dos Povos e culturas atricanas encontravam-se ainda balbuciantes, © em fezdo des teorias difusionistes prevalecentes entdo, todos os fatos cul- ®wrais afticanos de alguma relevancia eram atribuidos ao Oriente Mé- io, 20 Egito ou, por tabela, a Grécia, Responséveis, em grando parte Ber esse estado de coisas foram os estudos de W. J. Perry © E. Smith, gue pretendiam derivar as grandes civilizagées mundiais a partir do aio. Por outro lado, no havendo nenhum quadro raterencial cronolé ara os periodos mais antigos da historiografia africana © para as gens de sua cultura, o expediente mais fécil era o de atribui-las a aiguma civilizacdo prestigiosa da antiguidade, e privilegiadamente a0 Egle. cua historia ja repousava em bases mais firmes. Assim, elemen. eulturais africanos, vigentes até os nossos dias, como a realeza Suna Por exemplo, eram atribuidos ao Egito, de onde se teriam difun Sido pela Africa ocidental e oriental: estudiosos atuais ainda hé quo sistem no engano, Ora, H. Frankfort®, muito bom egipt6logo que cenfrontando a realeza do Egito com 8 do Oriente Médi Gemonstrou glaramente tratar-se de realidade negro-africana assumida pela civilizacdo egipcia Noturalmente 0 Egito, dispondo de textos abundantes @ circuns- Senciados sobre a origem e fungo da realeza divina, ¢ as civlizagéos neg2s sendo Agrafas, uma comparacdo dos mesmos com os fatos @%e2n0s atuais iluminaria certamente aspectos miituos importantes Bessa InstituicSo milenar africana. Como este, varios outros aspectos td anteriormente bastante povoado, permitia, sem divida, um trétego importante nos dois sentidos, como se pode supor ainda hoje com o movimento migratbrio dos mercadores Haussé que transitam facilmen- te ontro 0 Senegal e a Africa ocidental, levando com suas mercadorias novas idéias, novas técnicas etc. Foram eles, aliés, um dos elementos importantes na difusdo do Islo na Africa negra. A talta, contudo, de dados arqueolégicos que venham confirmar uma eventual influéncia egipcia, impe-se uma reserva prudente a todo tipo de afirmacao apressada nesse sentido. Muito a0 contrério, as evidéneias cientificas atuais tendem a mostrar precisamente que a Africa negra ter-se-ia desenvolvido de modo bastante auténomo e anterior 4 constituigdo da civilizacao egipcia. Nesse sentido, a resposta & interrogacso que Nok levanta hoje e que Ifé suscitou igualmente nas primeiras décadas deste s6 ‘culo deve ser pacientemente esperada do préprio solo da Africa negra 13.3 Compreensao da arte africana Embora o interesse central do presente trabalho sejam as artes plasti- cas, isso nao significa que a Africa nao tenha praticado, e com muito Sucesso, outros tipos de arte, como as artes decorativas e seculares Sua musica e danga que tanto influenciaram as Américas sorao trata- das quando falarmos da arte afro-brasileira, Falaremos igualmente da literatura oral africana que deixou marca bem nitida nos contos Populares baianos, reformulada depois na obra literéria de alguns autores brasileiro, sobretudo do Nordeste™. Para uma compreenséo global, pois, da arte africana impée-se considerd-la em trés niveis: a) o formal e técnico; b) a finalidade ¢ 0 sentido; c) sua capacidade de influir sobre outras culturas. a) 0 formal @ técnico Como vimos anteriormente, a escultura em madeira faz-se pelo proce: So subtrativo, enquanto 2 terracota @ cerdmica séo modeladas pela técnica aditiva, Essa primeira técnica marcou de tal modo o artista afri ccano que, ao trabalhar a pedra, modela-a como um tronco de madeira, mesmo quando se trete de material t80 dura coma 0 quartzo. Isto nao impede, contudo, que o artista africano mantenha uma grande fidelida- de @ propria qualidade do material trabalnado (direcdo dos veios da madeira, forma da pedra etc.), muito pelo contrério, enfatiza-a esta- belecendo um contato mais direto entre ele © a obra, As ferramentas Utilizadas so sempre um conjunto de enxés que reinem as tungdes de cinzel ¢ malho. Essas perfazem o trabalho mais importante de des- baste, © 0 acabamento & todo feito por pequenas faces. A escultura em madeira, feita em tronco de madeira verde por ser mais facil de tra- balhar, compreende desde estatuetas de algumas polegadas apenas até postes esculpidos que ornamentam as varandas, e os impluvia da cenas casas 1869 MSscaras tipo Janus. modeira revestida do coura de antlope, Eko, Nigéra, fet Museu Btaniea, Londres, Dentre as esculturas em madeira sobressaem-se, de maneira par- ticular, as mascaras que apresentam irés formas principais: as que eto apostas a0 rosto, as que S80 pousadas no topo da cabeca e as més. caras-elmos; estas recebem a cabeca do portador através da abertura da base e 80 muitas vezes do tipo Janus. Todo 0 bronze 6 trabalhade pelo jé relerido processo da cera-perdida™?, que é uma técnica essen cilmente aditiva: a um ndcleo de argila vao-se aplicando os desenhos om cera. Q ferro ¢ forjado ©, em alguns casos, fundido. Certes regides fazam uso importante da extruséo manual para obtencdo de tics de de finalidades diversas. © minério de ferro bruto é ritualizado entre alguns grupos e certas divindades tém a sua paraferndlia tfeite desse material, 0 que pode valer também para outros metals 1350 Canjunio de enxds para contecezo & acabamenta das mdscdras, ferro ® madeir, onxé c. 45 ¢ facas do 17 6 24, Pots, Fepiiiea Popular do Benim, col MAG/USP. 1251 Fases de fabroagdo de uma méscara Gueledé. madera, da esquerda para a diets: 25 x 23,295 26,286 4 26 obs. Ropobics Popular do. Benim, col 1352 Basins do fer a6 astatvetas. ‘Cod MAEIUSP, 9 part dos quais Baro cam a torma Bara tundigso do 13530, 5 Etopes de cere perce a) forma basiea da lhe de cara racobro 6 & ‘madelada om volts da forma de arg, S80 esculpidos 0s detaies @| aplicamse decoragdes em cera 8) 0 modelo 6 coberto de argla 8 quando S200 aquecido de cabece pare bala ‘cera derreta tormanda assim @ molde, © bronze deratida & entomado Gente mold & quebrado revelanda a peca de 6) a finalidade ¢ 0 sentido Os africanos ritualizam n&o s6 os metais mas varios outros objetos. A vida do africano é pontilhada de rituais, e esta 6 uma das razdes que levou varios antropélogos e criticos de arte & afirmacao do ser a arte africana essencialmente religiosa. Estudos atuais mostram, contudo, que a realidade 6 bem mais matizada do que possa aparentar Se a arte africana tem uma conotagao religiosa, € igualmente informada de aspectos politicos, econémicos ou domésticos, Sao precisamente tais rétulos que dificultam uma compreenso maior da arte africana ou de qualquer outra arte chamada ‘ex6tica’. Existem aliés exemplos de obje- tos de arte atricana sem fungéo religiosa alguma E claro que a arte africana tem uma conotagdo religiose profunda, mas este ndo & um critéria suficiente para defini-la, sobretudo se tal critério for acompanhado de toda uma conceituaco da estética ocidental. Esta, de fato, s6 obscureceré 0 sentido de uma realidade que nao foi concebida em seus termos. A arte alricana é basicamente funcional, mas qual outra ndo 0 6 em certa medida? "A arte pelo amor a arte” & um conceito recente ©, mes- mo nessa perspective, © produto artistica adquirs uma tungao social quando mais no fosse a de decarar ou conferir status a seu possui- dor. Mesmo ao nivel da fungao, nem todos os abjetos de arte africana tém uma finalidade claramente definida, Nessa linha de argumentagio colocam-se os bronzes fon, do Daomé, representando cenas da vida Cotidiana sem nenhuma finalidade didética ou religiosa, e alguns similares baulé "entre outros. Tais objetos estabelecem simplesmente Prestigio ou status para os seus detentores, pois o material usado é considerado precioso. Quando a arte africana apresenta finalidade essencialmente religiosa, este assume toda uma gama de signiticados @ praticas diversas, Algumas esculturas africanas so vistas apenas por pequeno grupo de iniciados, como os bronzes da Sociedade Secreta Ogboni dos Yoruba. Certas estatuetas de santuérios ou certas mascaras néo séo expostas 208 figis, enquanto outras nao S80 vistas polos proprios sacerdotes como ocorre com a escultura do orixa Iko de Ifé. Outras esculturas so guardadas ou escondidas no intervalo dos festivais, quando entdo aparecem. Acontece também que certas esculturas, quando em uso, 86 podem ser vistas por certos membros da sociedade. Hé cartas mas- caras usadas no topo da cabega que ndo devem ser fitadas pelos espectadores ou fiéis mas somente pelos espiritos! Enfim, os exemplos poderiam ainda multiplicar-se e talvez néo esgotés- semos 0 assunto. Portanto, pode-se concluir que nem a religiosidade nem a funcionalidade s&o critérios bastante abrangentes para definir 2 arte africana, Talvez @ definicdo nativa seja realmente a mais pertinente. Assim 6 necessério saber-se 0 que 0 consumidor eo critica ou 0 critico-consu- midor pensam da mesma, pois raramente na Africa o artista 6 ao mes- mo tempo seu. proprio esteta como costuma ocorrer no Ocidente. Pesquisas nesse sentido foram feitas recentemente, algumas com bas- tante sucosso"*. A primeira tentativa de estabelecer uma estética afri- cana foi feita por H. Himmelheber"® entre os Gufo e os Atutu, da Costa do Marfim. Para grande surpresa e decepgio suas, 0 artista marfiniano no sentia nenhuma “alegria criadora” mas trabalhava para ganhar dinheiral Dessas pesquisas pode-se concluir, apesar do desnorteamen- ai tbs, Vouss Nowe aa hag lo de H. Himmelheber, que a arte africana é uma arte conceitual, Bat oee en wee Septona ns interessada em comunicar idéias e relacbes. € claro que os africanos ndo a formulam assim desse modo intelectualizado, mas na pratica 6 1985 P*0cissHo eel, bronm, 23 x 62.4 Fon, Abomd, Fepuoica Popular oo Benim Iss0 que ocorre, A intengao, consciente ou no. do artista afficano a0 wale 987 fepresentar uma mulher amamentando uma crianga, por exemplo, & 2 antes a de mostrar o principio da maternidade em agdo do que retratar 3 um individu particular qualquer. Essa atitude pode estender-se a a todas as representagées coletivas atinentes aos grupos aos quais per. 2 tencam os artistas. Nesse nivel, cada objeto de arte africana é um [co- ne, isto é, algo que representa, que est no lugar de outra realidade. O artista africano nao sé permanece fiel 4 estrutura organica da matéria @ ser trabalhada, como acima nos referimos, como identifica-se com ela de tal sorte que jé no sobra espago entre um e outra. A obra de arte tona-se um discurso cujo idioma exprime o mais diretamente Possivel as representacdes coletivas presentes no universo mental do aftista. abolindo qualquer necessidade de mediagéo. € precisamente se imediatismo (directness) que Paul Bohannan considera detinir toda obra de arte chamada primitiva’®. As duas realidades tornam-se unificadas no produto final, residindo al, a nosso ver, a impossibilidade Ge 0 artista africeno ser 20 mesmo tempo seu critico: entre artista e obra ndo se cria o espaco, a distancia necessaria a reflexdo estética © didlogo, como aludimos acima, dé-se entre a obra eo mercado con. sumidor, que de certo modo vai estabelecendo, fixando as normas do estilo, cooperando também no proceso criador. Como todas as classi- ficagées de estilos africanos tém uma finalidade sobretudo académica Por falta de comunicagao direta, utilizaremos aqui aquela feita por W. Faga"’, que trabalhou durante mais de dez anos na Africa. Para esse autor a arte africana melhor conhecida do Ocidente e melhor represen. tada nos museus é @ do sdculo XIX, Ele divide-a em trés 4reas princi- pais: 0 Sudo, @ costa da Guiné @ 0 Congo, A arte do Sudéo é mais abstrata e apresenta quietude, interiorizagao e intensidade. 0 Congo tem uma arte mais exagerada, decorada, extrovertida. A costa da Guiné fica estilistic&e geograficamente entre as duas primeiras. Deter-nos-e. mos um pouco mais sobre @ arte sudanesa através do grupo Yoruba Por ter sido ela, ao que tudo leva a crer, que mais influenciou as artes, plasticas brasileiras. Nao queremos afirmar com isso que as outras Na etnias ndo as tenham influenciado também, mas por tratar-se de reali- dade menos nitida no estado atual da pesquisa no Brasil, cingir-nos-e- mos 20 estilo Yorubé. Os povos antigamente chamados bantu trou xeram imensa contribuigéo cultural que s6 agora comega a ser posta em realce. A questao do estilo nas artes africanas 6 bastante delicada, comportando varias controvérsias. Afirmou-se durante muito tempo ser a arte africana anénima por tratar-se de arte tribal. Ora, estudos atuais mostram a improcedéncia de tais afirmagdes. Hoje pode-se mesmo identificar as esculturas segundo seus autores, como 0 mestre de Buli entre 0s Baluba, do Congo; lemi Bisri, entre os Yorubé, @ muitos outros, Contudo, trata-se antes de estilos ligados 2 certos ateliés do que aos individuos, pois © mesmo estilo ligeramente modificado trans- mite-s0 de pai para filho, Mostrou-se também que a nooo de tribo ‘como ‘um universo fechado’ no que conceme arte no é inteiramente verdadeira porque os estilos fluem facilmente de um ponto para outro em toda a Africa negra. Tais evidéncias no impedem, todavia, que cada grupo tenha, em linhas gerais, um estilo préprio, capaz de identi: ficé-lo por opasicao aos outros e de definir seu universo estético. R. F Thompson, trabalhando entre os Yoruba, solicitou @ opinigo critica de cerca de duzentas pessoas 3 respeito de um certo niimero de escul- turas. Obteve o referido autor uma série de conceitos que detinem per- foitamente a obra de arte, fato de grande relevéncia para os estudos africanos, pois até bem recentemente afirmara-se no haver nas lin- guas do continente negro vocabulério capaz de aprender a realidade estética. Dezenove conceitos foram emitidos, os mais freqiientes sendo Jjora, a semelhanga moderada ao modelo, equilibrio entre os exiremos do retrato ¢ da abstragéo. /farahon, visibilidade: 0 plano inicial do tra balho devia segui-lo at& os menores detalhes finais. Didon, luminosida- de: brilho suave da superficie, de modo a se ter um todo conveniente de luz @ sombra. Gigun, uma postura correta e arranjo simétrico das partes da escultura sem excluir um minimo de assimetria nos detalhes menores. Odo, representagao do individuo em pleno vigor da vida (ver © que foi dito sobre a arte egipcia) que Thompson traduz por efebismo, Tutu, compostura, serenidade (coolness), qualidade igualmente requerida do comportamento humano™. Destas tis asiatueras, & primeira & do fescultar lem Bish @ ae duae outras 330 bres de seu Filho. Noterse 2 cortinudade a8 dilerangas de esto, 41386 Estatuets Ogbon, bronse, 23,4 alt, liobu, Yorubs, Nigéia, col Pere Verger em repiita no MBEIUSP, 1357 Estatueta Ogboni, bone, 17.2 al Nobu, Yoruba, Nigéri, ea. Tiago Carne de Cuntia em depésito no MABIUSP. 1388 Esttueta Ogbon), brome, 17.3 ait. llobu, Yorubé, Nigéria, col. Mateus Carneiro d3 Cunha am depose no MIABIUSP. ©} sua capacidade de influir sobre outras culturas Segundo Frank Willett @ primeira peca de arte africana a cheger Europa foi uma escultura trazida por navio mercante portugues om 1804. De outra parte, dada a antiguidade do comércio transaérico, Nada impede que outtos artigos de arte africana tenham atingido a Europa muito antes. Foram sobretude as colectes trazidas das colé- has, no fim do.século pasado. e que se constituiram depois nos acer: vos de arte ‘primitiva’ dos museus da inglaterra, Franca e Bélgica que despertaram a atengtlo do Ocidente para esse tipo de arte. A arts européia se esclerosande num academismo repetitive viu-se, de repente, diante de um universe formal, por assim dizer, caleidoscopica, em que as formas habituais eram quebradas, reduzidas ou ampliadas em processe criador continuo € sempre renovado. Foi esse aspecto protéico da arte africana e ‘exdtica’ em geral que permitiu a certos artistas europeus renovarem inteiramente a arte ocidental e dar-lhe uma orientaedo que marca’? seu proceso criador até hoje Assim esse impacto atingiu em maior ou menor grau escultores € pintores que se encentravam em Paris no inicio do século, dentre os quais des. tacam-se Braque, Viaminck, Derain, Picasso, Matisse, Vollard © Maillol Entre nés a influéncia africana fez-se sentir desde 0 cameo de nossa colonizacao, sedimentou-se hd varios séculos @ é parte intogrante de nosso proceso culturél € hist6rico. Resta-nos agora examiner em que medida esses dados africanos prolongaram-se no Brasil, reformularam- Se @ integraram-se no que se chamou depois de arte afto-brasileira g se oRar UY vu 13.4 Esbogo histérico: 0 elemento negro nas artes plasticas Se levarmos em conta © dominio da escultura em madeira da metalurgia que jé possutam os alricanos que vieram para o Brasil, de um lado, © de outro a documentagao — fragmentéria ainda — atirman- do a presenca de pardos © pretos nas obras de talha e douracso das. grejas barrocas desde @ segunda metade do século XVI, conclui-se que a infiltraco do elemento escravo nas artes plasticas brasileiras coincide com a prépria eclos8o das mesmas no Brasil Em outras palavras, 0 negro contribuiu de modo definitive na des. culagao das artes pléstioas brasileiras de sua tutela metropolitane, quando essas assumem as caracteristicas proprias que as definem nos séculos XVII e XVIII. Na feic&o peculiar que apresenta o Barroco bra- sileiro desse periodo, em sua tropicalidade, como diria Gilberto Freyre, J se encontra 0 elemento africano. Este sera uma constente que acompa hard de modo claro ou velado 4 curva evolutiva das artes plasticas no Brasil, pols @ um componente essencial de sua dindmica interna ee Nao se pode. portanto, negligenciar ou descartar 0 negro, quando Se pretenda fazer historia da arte, tanto quanto qualquer outro tipo de andlise de fatos histéricos, antropolégicos. sociais ou econdmicos do Brasil, Embora tal afirmativa expresse apenas o dbvio, ndo se tem insistide bastante ou explorado com a devida profundidade toda diversificagao @ extenso do elemento africano na cultura material bra- sileira, Quando nos referimos a presenga negra ou ao efomento negro, entenda-se que se trata freaentemente das habilidades ou do génio Rogro ou mestigo a servico de projetos @ cénones de uma visio de ™mundo branca nas artes plésticas. Ocorre, todavia, as vezes, que a pro- ducdo artistica mestica ou negra apresente claramente caracteristicas africanas, como, por exemplo, anjos ou santos barracos de “tacos Regréides ou madonas negras como aquela restaurada por F. Barreto a pintura do teto da Igreja de Nossa Senhora do Rosério dos Protos, em Recife, datando da segunda metade do século XVIII, Mais fre. Quentemente, entretanto, os temas ou a imagem africana escondem: se, distarcam-se nas dobras des mantos ou sab 0 peso do aura da estatuéria ou da tala bartoca, como os ot? em sous. nichos. Exemplos sugestivos igual mente sao @ iconogratia dos santos Cosme 6 amido. € sabido que esses nunca foram irmaos, mas, segundo a hagiologia catdlica, dois médicos norie-africanos ou médio-orientais que a igrejs, para substituir 0 culto pagao dos |beyi (Gémeos). "tornou gémeos'. N3o & do nosso conhecimento que jamais esses santos tenham sido representados em um 36 pedestal, na peninsula loérica: ‘no havia razdes para tal, No Brasil, no entanto, Cosme ¢ Damio sic geraimente representados juntos, e quando se trata de imagens de peque- nas dimens6es, aparecem em (nico pedestal. Ora, tal iconogratia 6 es: cialmente africana como 0 mostra exemplares do Daomé (atual Reptibica Popular do Benim) ¢ da Nigéria: 0 Museu de Arqueolagia @ Etnotogia Ga Universidade de So Paulo possui um desses exemplares Da mesma forma, embora com outra énfase, so certos detalhes ou simbolos da imaginéria catélica que aparacem doslocados e dentro de nova linguagem plastica, como crescente da Virgom da Con. i980, configurando-se em cornos @ compondo o emblema de Xango ~ deus do raio nagd — que surge na estatuéria afro-brasileira de Ala goas**. Jesus, menino branco, com faixa vormelha pintada na barriga, cores heréldicas de Xang6, distarcadas sob signo catdlico®, ou sexos apotropaicos, intencionalmente enjatizendo a fecundidade na esta- tuaria africana @ pudicamente recobertos de saias esculpidas ou tapa- -rabos dos exemplares mais antigos da escultura atro-brasileira do Nor- te @ Nordoste. H4, portanto, toda uma arqueologia, uma decodificacdo © anélise formais @ serem feitas para acompanhar a evolugdo plastica € 0 itinerério histérico desses elementos. Impée-se pois salientar ossa realidade, ndo sé nas artes plésticas eruditas @ rituais @ que acabamos do aludir, mas também pdr em rele- vo 0 alricano do cotidiano, dos objetos familiares manipulados, por vezes, ausomaticamente, distraidamente, ou reunidos nas vitrines dos nuseus. € 0 objeto das feiras, da arto popular, das expresses folclor: cas, so 0s ex-votos das capelas sertanejas, como bem viu Luis Saia?® © quantos outros. Nestes, 0 cone ou a forma africana exprime-se, no aro, mais claramente. Ao mesmo tempo, quanta desinformagdo no gue toca 85 suas origens, quanta resisténcia, por vozes inconsciente, em atribuir-thes uma procedéncia negra, quando facilmente cole-se. 1980 Por do gémeos bei. madeirs, 14 x 3, Repibiies Popular do Berio eo MAEIUSP. 1360 Nosca Senhora do Resto / Xana ‘madeira, co. Insituta Histénco de Alagoas, Macess'Peca sprocndice pela police em 1310, -Ihes uma etiqueta européia, cabocla ou indigenal A africana, entretan- to, como por uma espécie de conaturslidade de destino, perrnanece na sombra Nao precisamos ir até & Europa em busca do imagindrio surrealis- ta para redescobrir uma Africa exética, como fez Oswald de Andrade, Quando 0 exttico € 0 nosso cotidiano. Dentro dos limites pois de uma documentacgo ainda no sistematizada, embora farta, e auxilados pela cultura material africana ainda existento, tentaremos detectar e enlati- Zar temas © icones africanos em sua evolugo formal ¢ varias refor- mulagbes locais, Esve elemento negro. portanto, dependendo das regides, pode incluir desde utenstlios domésticos até jéias e outros aderecos de uso pessoal, como ocorre em Salvador @ no Recéncavo baiano, pera men- cionarmos apenas uma regio onde @ presenca negra é inequivoca & englobante. Todavia, essa presenca pode sor tacilmente porcebida embora ainda no estudada, no centro do Brasil, com tambores, instru. mentos musicais @ outros objetos que acompanham o ritual © a danca dos Candombes, de origem bantu; na parafornélia Gege (Fon) utilzada no culto da Casa da Mina, no Maranhao, ou seus similares nos Tem- bores do Rio Grande; finalmente os emblemas das divindades aftica- nas que se espalham por todo 0 pais com a penetracdo umbandista, criando novas formas, estilos locais € novo idioma pléstico ainda n&o decodificado. Nesse sentido so quase nulas certes publicagies de elencos rituals afro-brasileiros, sem @ menor preocupacao de fornecer sua provéyel evolugao formal, nem ao menos seu contoudo simbélico. Assim continuamos na ignoréncia nfo s6 das circunstancias em gue surgem, como de quaisquer outros dados que possibilitem uma eventual reconstituigao histérica, Por outro lado, alirmar-se. por exemplo, que a iconogratia de Exu, nos moldes em que a conhecemos atualmente, data da expanso da umbanda depois da altima guerra nao ajuda muito, quando se quer dar um minimo de gerspoctiva his torica 20 fato, Tais exempios poderiam multiplicar-se. Portanto, quem se dispuser a fazer histéria da arte efro-brasileira, encontra-se fatal- mente diante de enorme documentacdo extremamonte dificil de ser menipulada, por caréncia quase total de situé-la no tempo 0, multas vezes, espacialmente. Esse trabalha entre nés coloca-se ainda no plano do desafio. Para contornar tais dificuldsdes e tentar extrair 0 mAximo de informagées de material 180 divorsificado, impée-se, em primeiro ‘ugar, tentar conhecer 0 protétipo african que deu origem a0 objeto brasileiro, depois constatar quais os seus elementos que aqui foram reformulados para, finalmente, perceber-se o leque evolutive formal em suas varias etapas, dontro de um minimo de reterencial cronol6gico Em outras palavras, 56 uma anélise iconografica ¢ formal em nivel hi torico-cultural é capaz de nos dar conta da riqueza desse material Diante do que acabamos de expor pode-se concluir que urge fazerem-sa inventérios sisteméticos do que resta ainda da cultura material africana ou j4 afro-brasileira, em vérios pontos do pais e dos ceniros tradicionais de culto coma nos menos ortodoxos, pata que se possa fixar a meméria historica desses dados culturais basicos entre n6s, © para que possamos igualmente avaliar 2 evolugdo formal & esiilistica dos mesmos. Um levantamento de tal envergadura possibili- taria pesquisas em vérios niveis @, ao mesmo tempo, conferiria dimen- so histérica indispensével a justa apreciagdo do elemento negro na constituigdo de nossa cultura material. Dispondo-se de tais elemantos, Ago sO farlamos justica ao negro como fator determinante da nossa formagio étnica e cultural, como esclareceriames fatos importantes de nossa hist6ria, Seria igualmonte instrumental importante na erradi- cacio de certos habites rangosos de ex-colonizadores, de sistematica- mente atribuir tudo 0 que se considera bom ou apreciével 8 metrSpole, sobretudo em se tratando de bens culturais cuja origem se des. conhega ou se conheca mal. Assim, objetos hoje zelosamente guarda- dos © bem etiquetados om alguns muscus, exibindo origem europeia mostrariam sua verdadeira procedéncia: dos excelentes artistas e arte: 80s das sendalas, que sempre quisemios escamotear. A falta de informa 0 historica exata, aftmaodes gratuitas perduram, que marginalizam 0 ne- 70 até naquiio a que tom dircita inconteste, tal seja, o produla de sua arte Nina Rodrigues, no que pesem os oreconceitos que informam sua obra © que ndo mais resistem a critice atual, continua sendo, quanto & informagéo @ ao método, a fonte mais segura para os trabaihs pos. teriores sobre 0 negro no Brasil, J4 no comego deste século, fornecia este autor dado concreto extremamente relevante para a avaliagso da participacso decisiva do negro, ndo somente nas artes plésticas como nas artes industriais brasileiras. Se osse elemento no se destacava mais, era consequéncia da prépria politica econdmica do colonizador ue sé empregava ou permitia desenvolver-se a mao-de-obra que con vinha ao sistema, Dat surgirem “lutas empenhadas entre a produgdo escrava e a produgdo livre da colénia, entre os seus interesses e os da metrépole, de onde por muitas vezes se originaram intervengées do governo bem maléiicas @ nocivas aos progressos da nossa cultura’? Dat surgirem igualmente decretos reais como o de 20 de outubro de 1621, que ilustra bem esse atitude: “Nenhum negro, mulato ou indio Pode trabelhar como aurives”. Fica implicito que esse estada de coisas 8 existia havia algum tempo, pelo menos. Apesar de tais restricdes. Negros @ pardos teimeram em mostrar sua capacidade criadora Pereira da Costa lamemtando 0 atraso (giilo nosso) das artes em Per- nembuco, atribuilhe a causa precisamente ao elemento negro que delas se havia apodorado, dando-nos 4 sua revelia informagdo relevane te para a raconstituipSo histérica da questo. Citando Koster, esse autor diz que em 1810 os negros crioulos eram geralmente os Obreiros de todas as artes: “eles no conseguiram chegar ainda as ele- vadas classes dos burgueses, agricultores @ negociantes, Aiguns tém conseguido ajuntar grande soma de dinheiro © comprado escravos, aos quais ensinam o5 seus oficios, assim como @ outros, com o fim de tar maior proveito. Esses escravos trabalham para os seus senhores @ pro- porcionam-Ihes grandes rendimentos*®, porqua a mao-de-obra é goral- mente cara @ os trabalnos que dependem de ume certa habilidade e gosI0 S80 pagos mais iiberalmente que os outros. © mestre pintor de 'greja © de imagens mais atamado am Pernambuco 6 um preto de muito boas maneiras, com ares de homem de importancia e muito orgultogo dos seus dotes’® Alén disso, segundo o mesmo autor, as artes industriais tais como as de carpinteiro, marceneiro, ourives, ferreiro, sapateiro, alfaia te, etc., eran geralmente exercidas por pretos © pardos. Acrescenta Nina Rodrigues, com razo, que essa situa’ em Pernambuco “se Pode astender a tado o Brasil, onde os faios se repetiam exatamente nos mesmos moides"* Assim, © elemento negro tem acompenhado como parte ativa evolver das artes no Brasil e fecundado os momentos mais ricos de Sua histéria: suas figuras mareantes nas séculos XVII e XVIII 0 provam cabalmente. f nesse perfode que a arquitetura ¢ a escultura desenvol vern-se acentuadamente @ & ent8o que gardos e negros mostram o melhor de sua capacidade criadora Antdnio Francisco Lisboa (1738. ~18141, © Aleijadinho, mulato tamoso por sua obra arauitetGnica escultérica nas igrejas das cidades mineiras e de quem, aliés, falare- mos mais detidamente no decorrer deste trabalho; Valentim da Fanso ca (1750-1813). que trabalhou no Rio de Janeiro na segunda metade do século XVItI, ou Francisco das Chagas, — Chagas, 0 Cabra —, escul- tor natavel do século XVII, para citar apenas trés nomes dos mais conhecidos Esse rapido sumério histérico indica a atividade do negro desde o século XVII ao XIX mas, desse momento para cd, sua presenca nas artes plasticas rarefaz-se, mantendo-se, contudo, para alguns artistas no século XIX, como Miguel Arcanjo Benicio da Assuncéo Dutra {1810-75}, de hu Por outro lado, © que afirmara Koster em 1810 de que “os negros crioulos eram geralmente os obreiras de todss as artes”, continua valido igualmente para 0 final do século. Endo sé nas artes, mas obreiros de varias outras profissdes, como se pode ver do recenseamento da populacéo, no ue concerne as ocupagdes dos escavos para o ano de 18723 Todavia, os artistas negros s8o menos notados nas artes plasticas eruditas no decorrer daquele século e isto por varias razdes, destacan- do-se dentro estes os fatores econémicos. De fato, a mesma situagso compatitiva da méo-de-obra escrava e livre, apontada por Nina Rodri gues, ressurge depois da Aboligéo com a vind dos emigrantes euro ous. Estes, j4 bem mais qualificados do que os negros na perspectiva econdmica de entéo, por serem o produto de meic europeu industriali- zado, apresentam-se como elemento competitive superior a0 que o negro devera enfrentar ao longo de todo o periado colonial. Ao mesmo tempo. @ velho expediente do colonizador em s6 empregar mao-de- Obra adequada a seu sistema econdmico continua, apesar da Inde- Pendéncia e da Abolico, porque o proprio sistema econémico nio ore quase nenhuma elteragao. Se o elemento negro perrnanece mais aparente nas artes industriais do Norte e Nordeste, @ ovidentemente Porque se trata de zonas menos industrislizadas endo englobadas sis tematicamente no sisiema imigratério, onde portento a mao-de-obra européia penetrou menas: no Sul do pais raramente vé-se 0 negro nes- Se tipo de atividade. Esta marginalizacdo sistemética do negro dentro do sistema ecanémico e social brasileiros, recorrente tal circulo vicio- 80, no deixa de ter suas vantagens também, pois tem funcionado como forca motriz e regeneradora de sue criatividade e fermento para sua Identidade. £ 0 desafio constante que o negro tem tido, para se alirmar como elemento integrante e criader da cultura e civilizagdo bra- sileiras Qual a cidade do centro-sul do pais que apresente uma ‘ladoira da Conceicao da Praia’, entra outras, onde as oficinas de ferreiros Regros © mesticos sucedam-se do comeco ao tim, onde as formas ancestrais 680 recriadas ao ritmo das paneadas do malho na bigora que sé0, 80 masmo tempo, o gesto inconsciente, talvez, de um grupo atirmando a sua autenticidade, crianda nas formas um espaco que Ihes ey ssc ag tem sido sempre negaceado, mas sempre reconquistado com a paciéncia © pertinécia do artesto. caracieristicas do ethos negro? Por outro lado, a demanda da produgao artistica negra era canali zada, via de regra, para as igrejas ©, com frequéncia, para as igrejas das irmandades @ confrarias de pretos e pardos. Ora, o século XIX assiste a introducSo do neoclassico acompanhando © declinio do Barroco, fatores esses causadores da rebaixa do negro nas artes plast- cas. Em seu final, 2 Abolio&o retira muito do sentido que as irmanda des e confrarias tinham para os negros, que sobre serem agremiagées Feligiosas, funcionavam igualmente corn clubes © centros onde aqueles podiam, em certa medida, conservar suas diferencas culturais @ manter sua identidade étnica, Acrescente-se a isso que naquele eriodo 0 artista ja comece a definir-se de modo diferente: 6 no se trata do artesdo% capaz ndo somente de dourar um painel de talha sacra, como de esculpir uma imagem, pintar um teto de igroja ou cin. zelar um tocheiro de prata, acumuiando frequentemente as habilidaces de arquiteto © mestre-de-obras. Iniciam-se jé as especializactes e, com elas, 0 artisia redefine-so © passa a ser, sobretudo nos grandes eontros, come bem viv Ciarival Vailadares, “aquele capaz de educacdo dispendiosa, necassariamente no estrangeiro ¢ de acordo cam 0 gosto dominante da sociedade consumidiora’®*, Pré-requisitos esses que ‘obviamente exciuiam nao s6 0 elemento negro, como todo aquele que se encontrasse em idénticas condipées s6cio-econémicas. A presenca negra, contudo, iré emergir nas artes pldsticas novamente, de modo mais aparente e marcante, a partir dos anos 40, mas dentto de con digdes socizis aiferentes, como veremos depois. Vale insistir, no ontan- to, que nunce houve solugéo de continuidade na produgao artistica negra do anonimato das forias das oficinas de marceneiros, carapinas’ € de ceramistas do Norte, Nordeste @ Centro do Brasil. De onde as for- ‘mas ancestrais, embora frequentemente distorcidas, ndo escondem eontudo a matriz geradora e diversilicam-se no que se chamou depois 6 afro-brasilciro, 13.5 Arte afto-brasileira: definigao Arte atro-brasileira @ uma expressdo convencionada artistica que, ou desempenha fungao no culto dos orixds, ou trata de tema ligado ao culto. Esta maneira de definir o campo, ligando-o a raligides vivas que apelam para uma ascendéncia africana, traz agarentes anomalias, liga Jas precisamente a vitalidade e, portanto, & apropriacéo de simbolos novos por essas religides. Dentro desse critério so, com justica, incl dos no campo afro-brasileiro iconogratias do ‘cabocla’ ou da umbanda que nada tém de africano, nem no estilo nem na técnica, $40, porém. autenticamente afro-brasileiros por iratarem de temas ordenados, fe segundo um esquema de pensamento de origem africana. No caso de umbanda s6 0s temas sao africanos, enquanto no do caboclo, nem tema nem iconografia: trata-se porém de simbola de brasilidade, visto por olhos africanos @ inserido em cosmologie nagé-yorubs Por outro lado, e8s¢ critério ligado ao religioso — de componentes tanto miticos como historicos — deika na sombra outras continuidades «@ influéncias, por exemplo, na ourivesaria e nas artes decoretivas, que sero consideradas & medida do progresso de nossa anélise, como ficou assinalado acima. Convém frisar desde jé que 0 cue se afirmou da arte africana & igualmente valido para a arte afto-brasileira, isto 6, trata-so de uma arte conceitual, icdnica: para a sua juste opreciacao, impde-se conhecer-Ihe 0 universo simbélico subjacente, as roprasen. tages coletivas orientadoras de seu processo criador. Esta arte nos é fornecida de maneira mais direta na parafemalia das divindades afo- -brasileiras, no culto dos orixés, logo, em uma arte cansiderada ‘po: pular’. Antes de prosseguirmos em nossa anélise precisamos, primeira monte, clarficar esse concsito, Uma vez que as nacdes estétices trad cionais so de pouca valia para a apreensio das chamadas artes ‘pr mitivas’, como apontamos na primeira parte deste trabalho, natural menie as nogdes de popular por oposi¢ao a erudito, de artista versus artosdo, de puro ou espirio ov de casualidade estética serdo con: aUentemente eliminadas de nossas consideragées. Partiromos pois do principio de que uma arte s6 faz sentido na medida em que exprima padres culturais, ofereca uma viséo de mundo e as idéias que a acompanham®, Esse sentido, entretanto, deve ser vazado em formas, que sejam 9 expresso mais adequada possivel do dominio técnica da matéria trabalhada, visando tal finalidade. Ha aqui matiz importante a ser estabelecido porém: esse dominio técnico nao implica necessaria~ mente numa violacdo sistemdtica do material usado. Muito pelo contrario. N&o raro 0 produto final mostra extremado respeito pela for- ma priméria da matéria, de modo que a presenca do artista é notada na reorganizagao formal @ nos detalnes de decoracao e acebamento™. Dominio técrico © identificag3o com a matéria tabalheda n8o se excluem, portanto, mas so elementos indispensaveis na criago do cone € inserapéveis na transmissao do conceito Assim, no serdo sempre as solugdes formais opresentadas peia fatura da obra que a definirdo como obra do arte, mas os varios ele mentos que a tornam essencialmente icone. Tais formas s80 conse- Wientemente inevitavels e verdadeiras em relagdo a matéria™”. Poder sea objetar que se trata entéo de uma arte limitada. Sem duvide, enquanto obedega a protétipos formais fixos, mas néo no que concer ne a rica gama de novos tipos deles decorrentes, revestidos de lingua gem especttica, igada a cada artista ou oficina, ou a contexto sécio -histérica 13.6 As primeiras colecdes conhecidas: sua cronologia relativa Os primeiros exemplares de arte afro-brasileira conhecidos foram 0 coletados @ analisados por Nina Rodrigues e publicados em 1904, na revista Kosmos**, mas que teriam sido recolhidos por esse autor a partir de 1890. Parte do acervo de Nina Rodrigues encontra-se na coleeao Arthur Ramos, na Universidade Federal do Cearé. Em 1949 Arthur Ramos analisa alguns exemplares coletados por ele nos can domblés da Bahie, em 1927°%, que se acham atualmente também na Universidade Federal do Cearé. Vinte anos depois, Clarival do Prado Valladares estuda as pecas mais antigas encontradas em Alagoas, apreendidas pela policia em 1910 e integrantes dos cultos locais nas Ultimas décadas do século XIX. Do come¢o desse século ou do tinal do século passado perecem ser igualmente as pecas reunidas no Museu Nacional, do Rio de Janeiro. Do inicia da década de 1930, 20 que tudo indica, so as trés pagas — dois oxés Xangé e um exu de ferro — da antiga coleg’io Mario de Andrade, hoje no Museu do Institu- to de Estudos Brasileiros da USP. Desse mesmo periodo 6 também um conjunto de sete pecas de ferro — simbolas de vérios orixas — adquiridas pelo Museu de Arqueaiogia e Etnologia da USP em 1978, da antiga cole¢3o Edmundo Correia Lopes, de Séo Paulo. O Instituto Geografico @ Histérico da Bahia tem pequeno e expressivo acervo, apreendido pela policia, do candomiblé de Pulquéria (Gantois), parte do qual est atualmente no Museu Estacio de Lima, do Instituto Médico Legal Nina Rodrigues, de Salvador. Acervo extremaments importante 0 do Museu da Discoteca de Sao Paulo que abriga séries de ‘terramentas’ dos orixés — emblemas — coletados em 1937-38 em Recife, Maranh3o e Salvador. Enfim, dadas como do século XVIII séo es conhecidas pulseiras ‘copo’, em ouro ou prata, € outros aderacos crioulos do Museu Costa Pinto, de Salvador. Alguns desses exemplares encontram-se também no Museu Imperial de Petrépolis € no Museu de Arte da Bahia, Embora esse material seja apresentado como europeu, veremos em seguida que se trata de modelos atricanos repensados crioulamente, mas cuja forma, funcdo e grande parte da técnica utilizeda revelam sua origem real Essa 6 a documentagao mais acessivel, reunindo pecas africanas @ airo-brasileiras © que oferece maior possibilidade de anélise, par apresentar cronologia aproximativa. Farto material, entretanto, existe ainda nos recessos dos centros de culto, de abordagem dificil porém, & nas colegdes particulares. 1361 Crioula om grande gla. A mte do terrae do Gantoss, Pulgués Maria da Cancoigio. (in duering, Manus, Costumes shrcanas no 13.7 Bidimensionalidade dos objetos €o0 problema do ‘sincretismo’ Predominam em nosso material as esculturas em duas dimen- sées, sendo mais raras as de relevo completo. N&o cremos, no entan- to, como argumentam alguns autores”, que seja em razao de pro bigdes ligadas 4 condic&o servil que o africano, no Brasil, tenha limita: do sua capacidade criadora no que tange 4 escultura tridimensional. Isto deve-se, 20 que parece, a fatores de outra ordem, sobretudo de ordem sécio-econémica: a clientela dos cultos do Nordeste ¢ Norte 1&0 parecia comportar, em principio, um corpo de artesdos que the fornecessem esculturas de alto nivel e fossem na mesma medida recompensados, como na Africa. Tais cultos ali ligam-se, via de regra, as chefias e a realeza, 0 que significa clientes que remuneram bem. Aqui nunca se tratou de uma religiéio de Estado, mas sim de religiao sem apoio institucional © que parece ter ocorrido quanto & pobreza relativa de esculturas om relevo completo nos cultos afro-brasileiros, releva, portanto, de fatores s6cio-econémicos. Por outro lado, a énfase posta na herdldica dos cultos a predominancia de esculturas em duas dimensdes — leques, coroas, ferramentas etc., que funcionam tacilmente como emblemas — parecem ligar-se &s necessidades de identidade étnicas © acessério passa a ter fungéo precipua para marcar a diferenca cul- tural dos grupos. © oxé de Xangé ou o ibiri de Nand nao funcionam mais apenas como estandarte das procissées dos fiéis, no primeiro caso, e, no segundo, como mera vassoura ritual. Complicam-se em um leque de significados varios: étnicos, ‘estéticos’, religiosos e ‘sincréti- cos", entre outros, provocando igualmente varios tipos de indagacdes. H& uma carga simbdlica nova, decorrente talver das necessidades de identificagdo étnica, que atinge até os mais banais objctos de uso (ves tuario, comida). © pano-da-costa passa a ter fungao liturgica, como a estola ou outro paramento catdlico, Essa linguagem religiosa que informa os objetos rituais no & ‘mais africana, mas jé afto-brasileira, dai falar-se facilmente de sincre- tismo. Este 6, na realidade, apenas aparente, porque o essencial da mensagem religiosa continua afticano, isto 6, a cosmologia ordenadora do real capaz ao mesmo tempo de incorporar novos elementos e per- manecer africana, R. Bastide'?, P. Verger# e outros acentuaram a con- tinuidade, a ortodoxia dos cultos mais preservados como os can- domblés de origem Nagé, negligenciando sua capacidade inovadora, ‘ou mesmo angola, como fica implicito no trabalho de Ordep T. Serra “*: 0 que nao impede, contudo, que elementos brasileiros se tenham emertado em elementos africanos dando-lhes conotacdes diferentes das originais, sem tirar-Ihes nada da fungio basica, como parece ocorrer com toda @ probabilidade nos candomblés de caboclo. O culto 97 ‘waniswsouy ae 43362 Yornonjé-Sereis, 96 alt, co. Gooardfco © Histérica spar Fon, cobra, col, Margaret 8. Willan & Pla 5eg8, cobre, 45 at. 37 abies Popular do Benim, ca 1365 Altar funorério port Repiblics Populer Maxous Carmairo da Cunha de Oxossi, aliés, & um exemplo interessante nesse sentido como mostra, até certo ponto, Clarival do Prado Valladares**. No tocante a iconografia, os abebés-ostensérios de Obatalé, as Yemanjé-sereias, Vir- gens dessa ou daquela apelagdo, ou os Exus-demdnios 0 so igual mente. As fungdes reais dessas divindades, todavia, continuam africa- nas, bastando para constaté-lo @ mais superficial das anélises. Final mente, € sobretudo, as relagdes que ordenam essas divindades em uma cosmologia orgénica so africanas, restando para o propésito da investigagao a anélise do contedido semantico que assume a arte att cane no Brasil, tornando-a afro-brasileira. Na realidade. para esse pro- BOsito toda a idéia de sincretismo, como ainda insistem alguns. é irele- ante porque o que & sinoretizado ¢ a aparéncia externa da imaginaria ca téliea, © anedético portanto, havendo vez por outra mera aparéncia de iden tidada funcional entre a divindade atticana ¢ 0 santo catdlico. Portanto, pax 4.0 aprofundarnento do estudo dessa dinémica cultural, impde-se uma o Codificagéo da parafernélia desses culios e de sua iconogratia Reconsiderando-se, pois, a bidimensionalidade preponderant nesses objetos rituais, vale frisar que ola existe também na Africa — os simbolos dos orixs [ferramentas) s8o os mesmos aqui e Id, Dentre os Objetos de duas dimensdes hé exemplos muito originais onde se véem figuras planas, cinzeladas, fazendo parte integrante do bojo de vasos de bronze, cujos torsos elevam-se em trés dimensdes para otnamentar @ parte superior do recipiente**. Outros exemplos significativos so: um cagador Gege (Fon) portando coroa trabalhada em repoussé que ilustra 0 livro de William Fagg", idéntica as adé afro-brasileiras, @ um altar funerério portatil Fon (Assen), encimado por figura em duas dimen- sdes, de propriedade do Museu do Arqueologia © Etnologia da USP. 13.8 Anilise de alguns dos exemplos mais antigos: continuidade estilistica e sentido cultural 4266 Ont de XangS brasileko, madeira, 45 alt © 11 base, co. Instauta Gaogrdfico © Hicté-co da Bahia, Salvador 1967 Oxé de Xangb trasero, madera 40.6 alt. 11.3 base, col Insttuto Geogr 8 Hitorico da Bah, Salvador 1268 Ox de Xangd brasileiro, madeira 36 alt, 11 base, cl. Instituto Geogratcn © Histsico da Bahia, Savador 1369 Oss de Xango, madara 6 vontas de vioro ¢ louca, 65x 18.5 x 9. col Museu Nacional, Flo de Janeiro. © aprofundamento da evolucdo farmal @ iconogrdtica exige, naturalmente, elenco razoavel de pecas da mesmo tipo. Como tal ndo ocorre com frequéncia na documentagao mencionada acima, ater-nos ~emos as pecas ou grupos de pecas que possam oferecer os elemen- tos indispenséveis anélise que nos propusemos. Oxés de Xango Inicisremos pois @ nossa investigago com um grupo de oxés Xango, de fatura brasileira. Compde-se este de trés exemplares baia. nos, da calecdo do Instituto Geagrafico e Histérico da Bahia, em Salva- dor, @ um do Museu Nacional, do Rio de Janeiro. Trata-s¢ de pacas em relevo completo e que se mantém o mais préximo possivel das Convengées plasticas nagé-yorubs, sobretudo se vistas de perfil. S40 todas vazadas om estilo tendente ao naturalismo. Sua altura varia entre 49 © 53cm, @ s8o patinadas de cinza claro e marrom. Sao feitas a par tir de seefo cilindrica, inteiriga, de madeira nao muito consistente, que ofereca menor resisténcia aos golpes das ferramentas — enxS, goiva

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