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Elikia M’Bokolo AFRICA NEGRA HISTORIA, E CIVILIZACOES Tomo I (até o século XVII) paginas 64 -99 Tradugao de ALFREDO MARGARIDO Revisdo académica da tradugio para a edicao brasileira DANIELA MOREAU VALDEMIR ZAMPARONI Assistentes: Bruno Pessoti e Ménica Santos EDUFBA | Casa das Africas | 2009 Ill. A EMERGENCIA DAS CIVILIZAGOES AFRICANAS Para I das incertezas e das polémicas, podemos estabelecer que foi durante © curso dos “séculos obscuros” que foram langadas as bases das primeiras civilizagdes africanas. Também neste terreno, algumas pistas de investigagio aparentemente fecundas depressa se revelaram decepcionantes. E em primeiro lugar o caso dos agrupamentos humanos cujo conhecimento, em épocas muito antigas, parece eminentemente dificil. Destas primeiras populacées, restam apenas alguns raros esqueletos. Ora, os critérios definindo os agrupamentos humanos remetem mais para fatos sociais e culturais do que para caracteristicas fisicas, tanto mais dificeis de precisar pois estes agrupamentos resultantes de uma distante origem comum nunca deixaram de se misturar uns aos outros. Além disso, a reparti¢go atual das populagées africanas ¢ 0 produto de uma hist6ria de longa durago da qual podemos seguir -e da qual seguiremos, quando chegar 0 momento - os andamentos durante varios séculos, histéria que de resto prossegue sob os nossos olhos. Entre esta hist6ria relativamente proxima € 0 tempos antigos das origens, muito largamente carregados de mitos, existe um grande vazio, sobre o qual bastard tomar provisoriamente conhecimento 20 invés de pretender enché-lo atodo o custo de hipéteses. Em segundo lugar, a natureza e os tipos de sociedades que a Africa conheceu em tal pasado mantém-se também no dominio das hipéteses, pois to deficientes so as informagGes quanto os métodos mais adequados para tirar partido das parcas fontes dispontveis. em apenas dois dominios, o da hist6ria das civilizagées materiais e das técnicas ¢ 0 da histéria politica que podemos avancar com passo relativamente seguro. A. As civilizagdes materiais A eclosio de civilizagdes assentadas na produgio em vez da simples apropriagao (ca¢a, colheita, apanha) foi de fato uma “revolugao”, mesmo se no revestitt o caréter de brusquidao, de brutalidade e de inesperado que 0 termo sugere. O estudo destas civilizagdes materiais foi durante muito tempo dominado pelas teses difusionistas, de acordo com as quais a Africa se teria limitado a receber do exterior e adaptar aos seus diversos territérios tanto os impulsos iniciais como os materiais desta revolugao, Est4 hoje assente que 0 proceso foi endégeno, tanto no que se refere ao aparecimento da agricultura, como no que diz respeito & transformacao dos metais. 1. Dacoleta é agricultura Sob sua forma mais apurada, o pensamento “difusionista” faz comegar a “revolugdo neolitica”, geradora da cultura dos vegetais e da criagao dos animais, no Oriente, ¢ dai derivando tanto paraa Europa como para a Africa. O primeiro atingido, o Egito, teria servido de centro de difusdo secundaria para a regio do Niger, assim como para a Etiépia e a Africa central. Os trabalhos pioneiros do soviético NLL. Vavilov e os de Roland Portéres abriram caminho a numerosas pesquisas que reconstrufram inteiramente a origem e a evolucao das plantas cultivadas na Africa, pondo em evidéncia o carter nitidamente end6geno da totalidade do processo. Este corresponde tanto a uma adaptacZo as mudangas dos meios e dos ecossistemas como criacao de utensilios materiais, culturais e intelectuais em transformacfo répida. Se a era quaternéria se caracterizou por oscilacdes climéticas de amplitude muito forte, acompanhadas por alterag6es incessantes nas paisagens e nos meios, os ecossistemas atuais do continente africano formaram-se entre -12.000 e -3000 anos, conforme os autores, ¢ deram 20 continente a configuragdo ambiental que d4 conta do desenvolvimento das priticas agricolas: um “né florestal equatorial” (Roland Portéres), travado na sua expansdo para leste pelo Vale do Rift mas transbordando para o golfo da Guiné; em volta deste “né”, uma ampla cintura semicircular de savanas; para ld desta, duas zonas dridas e desérticas, o Kalahari ao sul e o Sara ao norte; enfim, nas duas extremidades do continente, duas bandas estreitas de clima temperado de tipo “mediterrinico”. Se as zonas aridas podem aparecer como “parreiras” na circulagao das novas técnicas, 0 vale do Nilo e o Vale do Rift puderam ter sido o lugar de passagem privilegiado para algumas delas. Em contrapartida, no é de maneira alguma certo que a floresta equatorial tenha constitufdo uma auténtica barreira. Este perfil, esbocado de maneira ampla, é naturalmente acompanhado por matizes locais as vezes muito fortes. Assim, a floresta equatorial, depois de ter consideravelmente encolhido entre -16.000 ¢ 10,000, recomegou a estender-se até conhecer a sua extens4o maxima por volta de -3.000, época a partir da qual ela nao deixou de recuar, sob a presso conjugada de um clima mais seco e da agéo dos homens. No préprio interior da floresta, Jan Vansina pés em evidéncia alguns “tipos de habitats entre os mais diferenciados”: Mangues costeiros, pintanos de 4gua doce com matagais de rifia, outros pantanos, pradarias flucuantes, florestas inundadas de maneira temporaria ou permanente, florestas em solos secos, semperviventes ou semi-caducifoliadas, ‘com ou sem bosques de espécies dominantes |...) florestas em solos rochosos, florestas cobrindo um relevo tortuoso, florestas de montanha coroadas por florestas de bambus acima de 1.500 metros [...J; mosaicos de savanas/ florestas [...]; savanas intercalares espacadas como mares ou lagos na cobertura florestal; rochedos desnudados e mesas; paisagens criadas por rios poderosos como 0 Zaire em Lisala com os seus 40 km de largura, as suas ilhas, os seus diques naturais, e os seus pantanos associados. Nao esquecamos as florestas secundérias freqiientemente caracterizadas a um nfvel precoce de regeneragao pela “arvore parasol” [...] de crescimento rapido. (J. Vansina, 1991, p. 49) -65- Foi precisamente em alguns destes nichos privilegiados que se desenvolveram, a partir de -9 000, formas de coleta intensiva, que iriam levar & cultura propriamente dita: altas terras herbéceas da Africa oriental, e zonas de contato entre a floresta e a savana em particular. A partir destas premissas, foi possivel distinguir varios “nichos” (N.L. Vavilov), onde cada planta estava submetida a uma espécie de experimentacao das suas diferentes formas: ~ um centro ceste-afticano, dominado pelo arroz africano, os sorgos deri vados do sorghum arundinaceum, milhos penicilares e milhos digitérios, assim como plantas de tubérculos e oleaginosas, podendo este centro ser subdividido num setor trépical e num setor subequatorial; ~ um centro este-africano, dominio de outros sorgos resultantes da espécie sorghum verticilliflorum, de alguns milhos paingos e de milhos penicilares, do gergelim; ~ um centro abissinio, possuindo plantas especificas (cafeeiro, encete ou bananeira da Abissfnia, tef) além das espécies bravas de sorgo (sorghum aethiopicum) e de milho paingo e servindo de corredor de penetracio as plantas vindas da Asia tropical. A presenga aqui de certas espécies vegetais idénticas as do centro do Oriente Médio (trigos, centeios, algumas leguminosas) se deve talvez mais & similitude dos ambientes do que a auténticos empréstimo: ~ um centro mediterranico, ligado ao Oriente Médio (trigos, centeios...) 20 mesmo tempo que possui as suas proprias espécies vegetais (oliveira, arganier...) e cujas relagdes com a Africa subsaariana parecem de agora em diante, neste dominio, menos intensas do que aquilo que se tinha afirmado durante muito tempo. Mais importante ainda, foi possfvel identificar na base destes “centros” varios “bercos agricolas primérios” (Roland Portéres) no continente africano. Levando em conta a variedade destes recursos alimentares no meio florestal, a coleta manteve-se uma maneira privilegiada de abastecimento, as vezes até a época contemporanea, no “né florestal equatorial”. Nas zonas de savanas e de estepes cercando este né, varios “bercos primérios” viram o dia, corresponden- do grosseiramente aos centros precedentemente delimitados, A dindmica de desenvolvimento destes bercos levou os agricultores a “comer a floresta” (G. Condominas) e a acelerar o processo de savanizagio. Por conseqtiéncia, devido @ mutagdes climéticas, se as savanas foram primeiro um “meio natural” ao qual os homens se adaptaram pela pritica da agricultura, os mesmos motivos levaram-nos em seguida a transformar uma parte da floresta em savana para adaptar o “meio natural” ao seu modo de vida e as suas necessidades. Nestas savanas naturais ou suscitadas pela ago dos homens, os cereais ocuparam, a0 que parece, um lugar de primeiro plano gracas as diferentes variedades de - 66- sorgo e gragas ao arroz. A histéria da domesticagao do sorgo reserva-nos sem diivida muitas surpresas porque se os centros de origem das espécies bravas so conhecidos e muito localizados, damo-nos também conta que, ja muito cedo, houve cruzamentos: muitas variedades de sorgo cultivadas hé muito tempo na Africa oriental e austral, tais como o sorghum conspicuum e 0 sorghum roxburghii, provém de cruzamentos entre os sorgos das espécies sorghum arundinaceum (centro ceste-afticano) e sorghum verticillilorum (centro leste-afticano). No que se refere ao arroz a respeito do qual se disse durante muito tempo que vinha da Asia, os especialistas confirmam hoje as indicagSes de Estrabao que evocava no século Ia existéncia de uma rizicultura propriamente africana, que se apoiava sobre duas variedades, oryza globerrina (regides do Niger) ¢ oryza breviligulata (Africa tropical), uma e outra diferentes da oryza sativa asidtica. Isso no quer contudo dizer que nao tenha havido nenhuma troca com as outras partes do mundo. Mas, como mostra o caso das relag6es entre a Africae a Asia, estas trocas nao se fizeram em sentido tinico. A Africa deu com efeito a Asia varias variedades de sorgos, cultivados na Arabia, na india, na Birmania e na China. Da Asia, a Africa recebeu plantas tais como a bananeira, duas variedades de inhame (grande e pequeno ~ 0 taro) ¢ a cana-de-acticar, segundo todas as probabilidades. Uma vez na Africa, todas estas plantas, vindas do ambiente florestal timido da Asia oriental, nao contribuiram pouco para fazer ganhar terra 4 custa da floresta. Foi também da Asia que a Africa recebeu, sem diivida via vale do Nilo, os animais domésticos ausentes da sua fauna original: caprinos, ovinos e talvez bovinos (cujas espécies selvagens esto apesar disso provadas no Egito pré-neolitico). 2. A metalurgia do ferro A histéria das origens da metalurgia do ferro na Africa é um dos dominios a propésito dos quais muita tinta correu com muito pouco proveito. Por um lado, quis-se elaborar grandes sinteses — ou até auténticas “teorias” ~ antes até de se ter encontrado materiais suficientes e suscetiveis de esclarecer as circunstancias nas quais a “inveng4o” ou o apuramento progressivo da metalurgia do ferro tiveram lugar, os processos tecnolégicos elaborados entao e as eventuais modalidades de adosao e de afinacao destas técnicas 4 escala local. Por outro lado, a maior parte das pesquisas arqueolégicas, sobretudo na Africa ocidental, foram durante muito tempo levadas a cabo de maneira privilegiada em sitios associados a reinos ou impérios cuja histéria politica era mais ou menos conhecida. Ora, no comego, a metalurgia do ferro foi provavelmente obra de pequenas comunidades camponesas, muito antes da constitui¢ao dos Estados. Nada prova que as caracteristicas correlagGes estabelecidas em épocas muito mais tardias entre ferro e Estados, entre ferro e comércio a “longa distancia”, tenham existido em épocas mais antigas. Os dados atuais, embora muito provisérios, ndo permitem apenas estabelecer a endogeneidade “672 da metalurgia do ferro; ajudam também a clarificar a distribuigao geogrétfica das populagSes dominando esta tecnologia. A diversidade dos sitios da metalurgia do ferro Para a escola “difisionista”, da qual Raymond Mauny talvez tenha sido um dos seus tiltimos representantes, a metalurgia do ferro teria visto o dia entre os calibas da Anatélia por volta de -1500, antes de ser transmitida aos hititas que, conscientes do seu interesse econémico e militar, dela teriam feito © objeto de segredos militares e comerciais conservados com grande cuidado. ‘A “difuuso” do metal na Africa ter-se-ia, apesar disso, produzido com relativa rapidez, por um lado porque os hititas teriam dado como presente aos faraés objetos de ferro e, por outro lado, porque apés a invasio do Egito pelos hititas no século VIL a.C., estes teriam sido de fato obrigados a transmitir os segredos tecnolégicos aos seus novos e muito provisérios stiditos. A partir do Egito, as novas técnicas ter-se-iam difundido para o sul do continente, primeiro para Meroé, depois de Meroé para a Africa oriental ¢ central. No que se refere & Africa ocidental teriam sido os fenicios que, depois de ter fundado Cartago por volta de -800, teriam primeiramente importado, depois trabalhado localmente 0 ferro. A partir de Cartago, o ferro e sua tecnologia teriam progressivamente alcangado a Africa subsaariana, principalmente pelas “estradas dos carros”. Para dizer a verdade, trata-se apenas de hipéteses, avancadas sem provas suficientes € as quais nao faltou a oposi¢io de uma multidao de argumentos contririos. A origem da eclosao da metalurgia do ferro na Aftica deriva do fato de — diferentemente do que aconteceu em todas as demais partes — se ter aqui passadlo diretamente da Idade da Pedra a Idade do Ferro, sem a mediacéo, durante muito tempo considerada obrigat6ria, da Idade do Bronze ou de uma Idade do Cobre. Esta espécie de regra sofre naturalmente algumas excecSes, cujas ilustracdes principais se encontram na Nubia, em Akjut na Mauriténia e em Agadés no Niger. Na Nabia, © trabalho do bronze parece ter sido mais espalhado do que o do ferro até cerca do século IV a.C.. Na regio de Akjut, no sudoeste da Mauritania, os minerais do cobre e do ferro locais foram explorados conjuntamente a partir do século V a.C.. Inversamente, no Niger é a partir do comeco do II milénio a.C. que se pode datar © trabalho do cobre, e alguns apressaram-se a concluir que teriamos ai o elo que faltava na cadeia tecnol6gica, que teria permitido passar localmente, sem influéncia externa, da indiistria da pedra talhada A do ferro. Para dar alicerces 4 mesma conclusfo, alguns avangam outros argumentos, nomeadamente o fato de no serem necessarias temperaturas muito elevadas para fundir o mineral de ferro e que certas. técnicas de aquecimento da cermica puderam, por acaso ou intencionalmemte, ter servido para as primeiras experiéncias da fundicao do ferro. A medida que se multiplicam as datagées, melhor nos damos conta da fragilidade das teses “difusionistas”. Hoje, a urgéncia parece ser nao a produgio de novas teorias para as quais os materiais s4o ainda inconsistentes, masa identificagao -68- de sitios arqueolégicos suficientemente numerosos que permitam o estudo de contextos e de processos reais. Todas as regides da Africa onde escavacées sérias foram levadas a cabo dio, com efeito, datas cada vez mais antigas. Na Africa ocidental, 0 sitio conhecido h4 mais tempo é 0 de Nok no planalto de Jos na Nigéria. Mas ele deixou de aparecer como o mais velho porque certas datagSes, ainda pouco numerosas, dao cronologias muito antigas para a metalurgia do ferro (-2000 anos para Ténéré no Niger, século Vil até IX a.C. para ‘Taruga na Nigéria e para os sitios ruandeses e burundeses). Conhecidos pelos seus objetos em terracota representando cabecas de homens ou de animais, os mais antigos dos quais datados do século V a.C., Nok e os seus vizinhos do vale da Taruga forneceram também utensilios de pedra, cerdmica, escérias de fundi¢ao de ferro, utensflios e armas de ferro. A partir destes restos, suficientemente abundantes e variados, pode-se representar a vida das sociedades nas quais estes objetos foram afeicoados: uma populaco relativamente densa; uma destruiga0 mais ou menos répida da floresta, seja por desbravamento para liberar solos, cultivaveis, seja por derrube para obter lenha para queimar; a associagao de ritos de protecao e de fertilidade as atividades agricolas, j4 que, dizem alguns arquedlogos, as cabegas de terra cozida teriam sido utilizadas para este efeito. Relativamente mais recente (cerca de -250 anos), o sitio de Djenné nem por isso é menos instrutivo. A ocupago humana é af provada a partir de cerca de -250, sendo os primeiros habitantes a principio principalmente pescadores cacadores, aos quais vieram juntar-se agricultores, conhecidos por ter cultivado arroz e organizado um habitat permanente feito de terra pisada. Nao se sabe se a metalurgia do ferro se desenvolveu apenas a partir de iniciativas locais ou em cia de relagées ~ comerciais ou outras ~com sitios mais setentrionais, tais como o de Akjut na Mauritania. © minério e talvez a lenha para queimar vinham do planalto de Benedugu, situado a cerca de 60 km maisa sul. Tudo parece indicar que a ocupagao ¢ o desenvolvimento do sitio foram continuos e que entre cerca de 300 e 800 4.C., Djenné alcangou a sua extenso maxima, mais ampla do que a cidade atual. A aldeia de pescadores tinha cedido lugar a uma pequena metr6pole tirando o melhor partido da sua posigao A beira do Niger, constituindo um eixo de trocas vital, vivendo do comércio local (peixe seco, éleo de peixe) ou de longa distancia (como parece testemunhar a presenga de objetos de cobre e de ouro, datados desta época) e abrigando uma classe de negociantes ou de chefes afortunados (aos quais eram nitidamente destinadas as ricas ceramicas € 0s objetos funerdrios que foram encontrados pelos arquedlogos). Ainda mais tardios, os sitios de Daima (nordeste da Nigéria) e de Igbo- Ukwu (leste da Nigéria) confirmam todas as mudangas econémicas e sociais, associadas ao trabalho do ferro. Se os primeiros tragos da metalurgia s6 so datados em Daima do primeiro milénio, parece bem que esta metalurgia deve ser posta em relaio com as de sitios relativamente préximos situados no sul (Sao) eno centro (Koro Toro) do Chade, cuja datacao remonta mais ou menos ao século V. A metalurgia foi acompanhada aqui por um habitat permanente -69- (casas em terra pisada, mas também de madeira misturada com capim), criagdo de bovinos, culturas do sorgo e trocas 3 longa distancia. Em Igbo-Ukwu, 2 lescoberta de um wimulo datado do século IX sugere aassociago da metalurgia do ferro e de um poder politico assaz elaborado. Com efeito, este rimulo é, de scordo com todas as probabilidades, o de um principe ou do detentor de um poder politico-religioso eminente, enterrado em posigdo sentada num banco, yom trés marfins, um traje de gala eas insignias da sua funcdo € acompanhado pelo menos por cinco pessoas, cujos corpos tinham sido colocados num abrigo nortuério por cima daquele em que repousava o corpo do rei. Um tras comum caencteriza o conjunto destes sitios oeste-africanos: a metalurgia do ferro e todas as outras inovagSes que Ihe esto associadas foram obra de populagées Iocais, indo a continuidade do povoamento a par com mutagées tecnoldgicas, econémicas e politico-espirituais de grande alcance. A Africa central - onde as investigagdes arqueolégicas est4o ainda sensivelmente menos avancadas do que em qualquer outra parte ~€ @ Africa qustral oferecem um quadro assaz diferente do da Africa ocidental. ‘As datacGes obtidas na Africa central nao parecem forcosamente menos antigas do que as da Africa ocidental e oriental. Nos Camarées, por exemplo, o sitio de Obobogo, junto de Yaundé, forneceu restos datados do século IV a.C- « haveria até datas to antigas como -1000/-900. No Gabio, ¢ aos séculos Tl eTacC, que se pode ascender neste momento, esperando a confirmagao de dlatay ainda mais longinquas (-900/-800). Ruanda, Burundi e Tanzania dio datas quase to antigas (-800/-700). No que se refere ao Zaire (hoje Repiblica Demoeritica do Congo), & também para o século TT a.C. que remetem os tracos da industria metalirgica assim como a ceramica, que revela de resto semelhancas evidentes entre o baixo vale do Zaire eovale do Ubangui. Bainda dificil tentar sinteses, mesmo a esta escala. ‘Ao invés disso, no que se refere a Africa oriental e austral, os materiais relativamente abundantes associados & metalurgia do ferro apresentam uma grande homogeneidade. Este parentesco ¢ particularmente verdadeiro no que se refere a ceramica, a ponto de alguns investigadores proporem que se oncentrassem os diferentes generos sob uma tinica etiquet’s © complexo de “Chifumbaze” (David W. Phillipson), nome do sitio arqueol6gico de Mocam- bique onde tais cerdmicas foram exumadas pela primeira vez. Além disso, a metalurgia do ferro desenvolveu-se aqui de modo paralelo a uma tao grande série de outras inovagées na relacdo com o ambiente, po dominio agricola e iuito provavelmente no dominio sociale politico, que nfo se pode evitar pen- sar que se esté realmente em presenca de uma renovacao em profundidade dos agrupamentos humanos. Num dos sitios mais antigos, ode Urewe, em Uganda, 6a partir de -500, mais ou menos, que se registra umé importante vontade de redugao das superficies arborizadas. Este desflorestament corresponde sejaa lesbustes macigos, seja a utilizacio da lenha para o tratamen’® do ferro, seja ‘os dois ao mesmo tempo, aparecendo a hipétese de uma mudanga climatica -70- como a menos provavel. O estilo de ceramicas achadas em Urewe encontra-se numa vasta zona incluindo os territérios ruandés e leste-zairense, assim como uma parte do Quénia ¢ da Tanzania atuais. Julgou-se encontrar alguns paren- tescos com ceramicas do Chade e da Africa ocidental. A reparticao e a datagao dos outros sitios da metalurgia do ferro na Africa oriental e austral indicam de maneira deveras nitida uma extensdo muito répida das novas técnicas: em menos de dois séculos, dos séculos II ao IV, foi sobre mais de 2000 km - do Quénia e da Tanzania, até Natal, Transvaal e Botswana — que se espalharam as técnicas e os géneros de vida associados 4 metalurgia do ferro. Neste vasto espaco, os utensilios de ferro substituiriam muito rapidamente os utensilios de pedra talhada. Nao se sabe a partir de que época 0 ferro comesou a ser empregado no fabrico de objetos utilitarios = enxadas, machados, pontas de flechas ou de langa, laminas de faca e diversos outros utensilios e armas —e a partir de quando os objetos de valor e de luxo foram trabalhados a partir de outros metais, principalmente o cobre e 0 ouro. O cobre, abundante nos territérios katangués e zambiano, parece ter sido de uma exploracio tardia, jd que os objetos de cobre mais antigos conhecidos na regio sdo datados do século VII. Em contrapartida, nos timulos da depressio de Upemba, encontram-se cadaveres acompanhados por numerosos objetos de ferro. Estamos perante objetos preciosos ou simbélicos destinados a salientar © grau social do defunto ou, pelo contrério, no quadro de uma crenga na vida apés a morte, da preocupacao dos vivos em “fornecer ao morto uma pandplia completa das armas e dos utensilios necessarios a sua subsisténcia” (Pierre de Maret)? No que se refere ao ouro, cujas jazidas significativas para as técnicas da época se encontravam apenas no Zimbabue, a sua exploragao foi relativamente tardia, dando as datages mais precoces o fim do primeiro milénio da era crista. Dados esparsos atestam igualmente uma modificagao substancial das Praticas agricolas e pastoris: progresso das culturas alimenticias (sorgo, feij6es, ervilhas, abéboras principalmente); substituigdo de espécies animais selvagens (bifalos, antilopes, gnus) por animais domésticos paralelamente a persisténcia, confirmada pela abundancia de armas de ferro, de importantes atividades de casa; progressio da criacao do gado, assentada inicialmente nos carneiros nas cabras, aos quais vieram acrescentar-se os bovinos, a partir dos séculos VI ou VIII, nos ambientes poupados pelas glossinas. Da histéria das técnicas a histéria do povoamento Os desenvolvimentos da hist6ria das técnicas permitem fundamentar sobre bases mais sdlidas as especulagdes eruditas relativas a historia do po- voamento. Na falta de tradig6es orais fidveis remontando a um passado muito distante, a hist6ria do povoamento tinha durante muito tempo extrafdo as suas hipoteses e os seus argumentos da lingiifstica. Sabe-se nao s6 que as linguas afticanas atuais possuem uma histéria e so um produto em perpétua mudanca =7l« histérica, mas também que é possivel concentré-las em grandes familias e subfa- milias. Gragas em particular aos trabalhos de Joseph H. Greenberg ¢ de Malcom Guthrie, existe hoje um acordo muito amplo para distinguir, na Africa antiga, quatro grandes familias. Todas estas inguas possuem uma origem e uma hist6ria endégenas, incluindo aquelas pertencendo a familia impropriamente designada “afro-asidtica”, que durante muito tempo se julgou ser de origem estrangeira (Asia ocidental), e que se considera nos dias de hoje, com quase unanimidade, ser também, excetuando-se o arabe, de origem africana (documento 10). Documento 10: Classificagao das linguas africanas atuais Familias Principais divisées Exemplos 11 Segundo J.H. Greenberg (1963) Ocidente atlantico Diula, Peul, Temne Mandé Nigero-cordofaniano | Voltaico Dogon, Mossi, Talensi Kwa Aka, loruba, Ibo, Igala, Bini Bantu ‘Adamaua oriental Mbaka, Zande Sudanés Acholi, Shiluk, Mangbetu, Jie Nilo-saariano Saariano Zanuri, Zaghawa, Teda Songai Khoisa Nama, Kung, Khomani Khoisa Sandawe Hadza Afro-asiatico Semitico Arabe, Américo Berbere Berbere, Tamachek (Tuaregue) Kushitico ‘Somali, Gala, Afur, Bedja, Sidamo Chadico Haussa, Fali 2 Segundo T. Obenga (1973) Negro-egipcio Egipcio Linguas niléticas Linguas kushiticas Linguas sudanesas Linguas bantu Zuaua Rifain Beni-snus Chel'a Berbere Zenaga Tuaregue Kel-out Ghat Gadamés Zenatia Cahuia siwa Khoisa Nama | Kung -72+ £ a respeito das linguas bantu (de muntu, plural bantu: 0 homem, os homens) que o trabalho de cruzamento das contribuigdes das diferentes disciplinas foi mais intenso e se revelou particularmente produtivo. Pode sei ser estabelecido que as afinidades entre as Iinguas bantu atuais eram de ordem genética e que todas procediam, segundo uma hist6ria extremamente complexa, de uma lingua ancestral comum cujo centro esté localizado no que hoje € 0 limite noroeste da rea bantufona, numa zona correspondendo 4 Nigeria oriental e aos CamarGes, com o vale do Benué como eixo. O que se passou a partir deste centro depende ainda muito do dominio da hipétese: se isto permite reconstruir a genealogia das linguas ¢, a partir das inguas fe do “vocabuldrio das instituigdes”, construir formalmente os sistemas de pensamento e as formas de organizagao social e politica, nada nos informa a respeito dos homens que teriam efetivamente falado estas linguas, elaborado estas instituigSes e relagdes sociais, Além disso, as fronteiras entre as linguas € 60 grupos lingifsticos bantu esto longe de corresponder sempre is fronteiras reconhecidas entre os estilos de ceramica, os modos da inumagao ¢ os outros dados da historia das técnicas e da hist6ria das praticas culturais. Com estas reservas, podemos representar assim a formasao ¢ a disperséo das Iinguas bantu. O bantu ancestral ter-se-ia formado numa época ainda controversa (por volta de -1000 conforme alguns autores, por volta de -3000 segundo outros) no seio de populagées de que é possivel reconstituir onivel de desenvolvimento técnico: indistrias Iiticas; domesticacao de algumas plantas; primeiras formas de criac4o de gado, em particular a criagao de cabras; uso da ceramica. A partir do centro inicial, a dispersio ter-se-ia feito, conforme as ddatagbes mais freqiientes da glotocronologia, por volta de -3000, utilizando pelo menos dois conjuntos de “estradas” que seguiam uma e outra a floresta equatorial émida, seja utilizando as “estradas” do norte ¢ de leste levando as terras altas da Africa oriental, seja pelas “estradas” do oeste e do sul levando para a embocadura do Congo/Zaire e que criaram a primeira clivagem entre © “bantu oriental” ¢ 0 “bantu ocidental”. Nao é todavia de excluir que, para este, alguns grupos tenham atravessado a floresta seguindo as vias da agua da bacia do Congo/Zaire. Néo se devem imaginar hordas humanas precipitando-se sobre territ6- rios vazios ov ocupados por populacSes “primitivas” que teriam sido subme- tidas: a dispersao foi visivelmente muito lenta, mobilizando efetivos humanos pouco numerosos e fenémenos de empréstimos ¢ de aculturacao reciprocos entre os grupos falando as linguas bantu ¢ as outras. Aparece assim que, nas “estradas” de leste, os grupos bantufonos entraram em contato com outras populagées com as quais coexistiram durante tempo suficientemente longo para adotar varios dos seus conhecimentos técnicos e priticas econdmicas metalurgia do ferro; criagéo do gado bovino e do carneio; culturas de cereais, nomeadamente do sorgo. A ceramica do Urewe e os outros objetos que lhe esto associados constituem a expresso melhor conhecida da continuidade cultural e das mutagGes técnicas que intervieram no seio destes grupos, uma parte dos quais teria prosseguido o seu deslocamento até a regiao cuprifera atual do Shaba, sudeste do Congo. Esta tiltima regio teria constituido, com 08 paises do baixo Congo, dois centros de dispersao secundaria. O centro do sudeste congolés foi particularmente importante porque, apés uma maturaco local mais ou menos demorada, os movimentos de dispersdo secundaria pu- seram os grupos que partiram em contato com as duas grandes correntes de povos bantufonos: por um lado, com a corrente ocidental (introduzindo talvez nesta o conhecimento da metalurgia do ferro), de onde ia partir, nos anos finais, do primeiro século da nossa era, o movimento de povoamento de Angola, da Namibia e de uma parte da Africa austral; por outro lado, com o resto da cor- rente oriental que, a partir da regiao dos Grandes Lagos, ia progressivamente povoar a totalidade da Africa oriental e uma parte da Africa austral a partir do século IV aproximadamente. As causas ¢ as modalidades precisas desta dispersdo s6 podem ser objeto de suposig6es. Assim, no que se refere as causas, muitos autores deixaram-se seduzir pelos esquemas interpretativos, ambicionando cobrir a totalidade do continente e visando estabelecer uma correlagao entre esta dispersio e a seca progressiva do Sara: 5 A seca teria outras conseqiiéncias sobre a reparti¢ao da populagao africana. [...] ‘Todas as populagdes desta imensa regio (o Saara) emigraram pouco a pouco, abandonando os seus habitats excessivamente setentrionais atingidos pela seca para regiées meridionais mais irrigadas [...]. O aumento da densidade da populacao da savana, devido a esta emigracao e também A adogao da agricultura que lhe é contemporainea, deve ter incitado certas populag6es, abaladas pelos recém-chegados, a procurar novas terras para o sul, para a floresta que parece ter sido até ento 0 dominio quase exclusivo dos pigmeus ¢ sobretudo para as savanas do sul da bacia do Congo, favoraveis & agricultura. (R. Mauny, 1970, pp. 58-59) Nos dias de hoje, é-se muito mais prudente, e a tendéncia geral é a de renunciar tanto a explicagdes como a teorias gerais para as quais nao se dispoe de nenhuma prova, além da imagem de hordas precipitando-se para o sul em conseqiiéncia de uma grande catdstrofe apropriando-se, depois de vitérias faceis em virtude da sua “superioridade” técnica (dominio do ferro e pritica da agricultura), das terras que os antigos habitantes, que se tinham mantido no estégio das economias cinegéticas, nao tinham sido capazes de valorizar. Abandonou-se até a teoria do “sobrepovoamento” do centro de origem bantu, sobrepovoamento que teria sido provocado pela evolucao da agricultura. Chegou-se assim a evocar 0 acaso: “E verossimil que a expansio tenha sido levada a cabo por acidente” (Jan Vansina, 1991). A dispersao das populacdes de linguas bantu teria sido apenas um dos efeitos ou uma das formas de uma agricultura itinerante, levada a mudar de lugar e a procurar outros melhores, uma ou duas vezes por década, Mesmo assim, a hipétese s6 é valida para os -74- dO Rn A A a A RS, impulsos iniciais e deixa a porta aberta a outras motivagées para deslocagoes que decorrem durante varios séculos. A titulo de exemplo, calculou-se que para ir de Sanaga (Camarées) A costa congolesa ~ ou seja 1000 km em linha reta, talvez 2000 pelos caminhos terrestres ~ os agrupamentos humanos teriam consumido 600 anos, ou seja 33 km de dez em dez anos. Mais tarde, em outros. casos, sendo diferentes as motivagGes e as técnicas de deslocamento mais eficazes, bastaram 70 anos para percorrer os 900 km separando a confluéncia do Congo com o Alima, a sul, ¢ a confluéncia do Congo com o Itimbiri, a norte. Tudo parece mostrar que a coabitagao foi na maior parte dos casos muito longa entre os recém-chegados as populacdes antigas. Assim, na floresta congolesa, os cacadores pigmeus coexistiram com os recém-chegados, que, num primeiro perfodo, praticavam a agricultura e a pesca mas ignoravam a metalurgia do ferro. E impossivel datar as relagdes de “clientela” e de “servidao” entre povos de lingua bantu e negrilhos (pigmeus), muito bem descritas nos livros de etnografia dos séculos XIX ou XX. Formas de troca precoce puderam estabelecer-se entre produtos de caca e de coleta e produtos da agricultura, da pesca e do artesanato. Também se desconhece quando as linguas originais dos negrilhos desapareceram definitivamente, dando lugar, entre eles, As linguas bantu. Também aqui é provavel que o processo tenha sido de muito longa duraco, as populagbes de lingua bantu beneficiando-se menos de uma eventual “superioridade” numérica ou tecnolégica do que do carater permanente dos seus habitats, que se tornaram referéncias para os negrilhos. Apesar disso, a maior parte das tradigdes de origem dos povos bantu da floresta fazem dos negrilhos os melhores conhecedores da floresta, dos seus tesouros e dos seus perigos, apresentando-os como aqueles que ensinaram os segredos da natureza aos recém-chegados. De resto, se estes tiltimos proibiam o “acesso” das suas mulheres aos pigmeus, assim como qualquer tipo de relagdes sexuais, a importante mestigagem, de que vemos hoje as provas, mostra que as trocas ultrapassaram largamente 0 tinico terreno da economia. Fenémenos andlogos devem ter-se produzido muito mais a sul com as populacées chamadas khoisd, ainda que a chegada de populagées de lingua bantu tenha sido ainda mais dramética, na medida em que estas trouxeram a0 mesmo tempo a metalurgia do ferro e a pratica da agricultura. Mas os khois4 conseguiram preservar o seu género de vida nas zonas onde, por razoes climéticas, a agricultura era impossivel ou muito pouco rentdvel. Nos lugares onde se misturaram com os recém-chegados, as influéncias nao se fizeram num Ginico sentido, como mostra. presenga de muitas caracteristicas fonéticas khoisa em muitas lfnguas bantu da Africa austral. E notavel que ao longo destes séculos de perturbagées tio profundas, a iniciativa, tal como o beneficio da mudanga, tenha cabido a grupos de cacadores/coletores ¢ de agricultores/criadores de gado, cuja organizacao sociopolitica, ainda muito mal conhecida, tinha adquirido formas outras que no as do Estado. Mesmo se apertadamente localizado no espaso, o Estado nao era contudo uma realidade ausente das primeiras civilizagdes africanas. 75. B. As primeiras formagées estatais Se a pertenca do Egito a0 mundo negro-africano continua a suscitar controvérsias, Kush e Axum sdo os primeiros Estados africanos a respeito dos. quais estamos assaz bem informados, tanto no que se refere a sua histéria factual como no que diz respeito a organizagio do Estado e & evolugao das estruturas politicas. O conhecimento hoje mais pormenorizado dos Estados que a Africa conheceu depois deles permite ler de outras maneiras a historia destes primeiros Estados, nos quais se viu durante muito tempo o prolongamento de sistemas politicos mediterranicos e orientais, e que nos aparecem agora como a primeira expressao indiscutivel do génio politico africano. Documento 11: Meroé e Axum no seu quadro geografico Sitios principais da metalurgia do ferro Centros urbanos e comerciais =) Cataratas Meroé FUNJE Regides — Eixos comerciais N.B. Alguns sitios sao indicados com os seus nomes atuais. -76- 1. A Nubia e Kush Os nomes de Nubia e de Kush possuiam, para os africanos do norte, um contetido muito vago: a Niibia designava os territérios situados a sul do Egito e irrigados pelo Nilo, e Kush uma fraco mais restrita, correspondendo a grosso modo ao vale médio do Nilo. Se bem que a sua identidade africana tenha deixado de ser posta em causa, nem por isso Kush deixa de por problemas aos arquedlogos ¢ aos historiadores, quer se trate das suas origens, de suas relagées com outras partes do mundo conhecido no seu tempo, ou das peripécias do seu desenvolvimento. Uma longa tradicao egiptolégica quis apenas ver nele uma manifestagao, entre outras, do génio do Egito farabnico: “Este pafs, diz por exemplo Georges Posener, foi colonizado pelo Egito faraénico: sofreu durante longos séculos 0 ascendente da civilizacao egipcia, os costumes, a lingua, as crencas, as instituigdes; tudo no curso da historia da Nabia carrega a marca do seu vizinho do norte” (“Para uma localizacao do pafs de Kush no Médio Império”, Kush, 6, 1953, p. 58). O estabelecimento da parte que cabe As influéncias e empréstimos estrangeiros e do fundo autéctone esbarra com © obsticulo das fontes. As descobertas arqueolégicas fornecem argumentos a todas as teses que se chocam. No que se refere as inscricdes merofticas, que se conhecem desde 1819 gracas ao arquiteto Fr.-G. Gau e de que possuimos hoje uma bela série remontando aos primeiros textos do século Il a.C., a sua decifragdo continua a ser muito incompleta: Os signos [do alfabeto] so em niimero de vinte e trés: trata-se de um alfabeto possuindo todavia alguns bilfteros, mais precisamente quatro signos vocalicos (@, €,i, 0), quinze signos consonanticos ¢ quatro signos silabicos (ne, se, te, 10); & necessério acrescentar-the um “separador” (dois pontos sobrepostos, as vezes trés), que é de maneira geral inserido entre varias palavras. No caso particular das inscrig6es funerérias, tornava-se possivel identificar partes do texto onde se invocam as divindades Isis e Osiris, onde se nomeiam o defunto e os seus parentes, onde se pronunciam férmulas de “bengdo”. Se recolhemos assim os nomes das pessoas, dos lugares, das divindades, dos titulos, o valor semantico das inscriges escapa-nos a partir do momento em {que passamos a textos mais longos, textos designados “histéricos”. Podemos apenas reconhecer, gracas ao “separador”, as diferentes palavras e desconfiar da presenca de uma segmentagao do texto ou de grupos de palavras, segmentos de texto que foram designados “stiches”, designacao ndo convencional, ‘que ndo permite definir a natureza da estrutura gramatical assim posta em evidencia. 0. Leclant; “Le déffrichement de I’écriture méroitique: état actuel dela question”, in Le peuplement de I’Egypte ancienne et le déchiffrement de écriture ‘méroitique, Paris, Unesco, 1978, p. 112) A emergéncia laboriosa de um Estado soberano A comparagao entre dados arqueoldgicos, os textos gregos e aquilo que conhecemos da hist6ria do Egito permite contudo esclarecer ja os longos “7h'= percursos que levaram & emergéncia do Estado kushitico. Os arqueélogos puseram em evidéncia os restos materiais ~ timulos, cerémicas, objetos em cobre — pertencendo a uma cultura dita do “grupo A” (0 grupo cronol6gico mais antigo) de que os mais antigos exemplares, datados do IV milénio, sio contempordneos da primeira dinastia dos farads. Estes objetos exprimem criages locais, ao mesmo tempo que manifestam uma influéncia do Egito pré-dindstico ¢ faradnico. Tudo sugere a existéncia de correntes comerciais arrastando marfim e peles para norte, utensilios de cobre e diversos produtos artesanais para sul. Mas desde a primeira dinastia, um corte politico materializado por uma linha de fortes cortou o Egito dos paises situados a sul da primeira catarata. As relages comerciais continuaram, apesar disso, visto o Egito ter uma necessidade imperiosa de produtos raros e preciosos vindos do sul: recursos minerais, em particular 0 ouro do vale do Nilo e, para este, de Wawat; incenso, marfim, éleos, ébano, peles de leopardo, penas de avestruz, Estas riquezas justificavam veleidades expansionistas de que sao testemunhas as expedicGes militares ditigidas por Khasekhem, um rei da II dinastia, e Snefru, o fundador da IV dinastia, conhecido por ter trazido do “pais dos ndbios” 7 mil prisioneiros e 200 mil cabecas de gado. O trabalho arqueolégico identificou também uma cultura do “grupo C” (a existéncia do “grupo B” esté ainda sujeita a muitas controvérsias), datando de cerca de -2240 até o século XVI a.C. e cuja area de extensio ia, a0 que parece, do sul do Egito até a segunda catarata. Percebida por uns como 0 desenvolvimento da cultura do “grupo A”, é ela interpretada por outros como © resultado de uma renovacio de populacées em conseqiiéncia de imigragées provenientes, segundo as escolas, de leste ou de oeste do vale do Nilo. Se as, relacdes comerciais com o Egito continuaram, parece que a pressao da Nubia se tornou cada vez mais forte para o seu vizinho do norte: os textos egipcios evocam muito freqiientemente os paises ntibios sob a alcunha de “Kush abjeto”; os fortes construidos pelos egipcios receberam nomes significativos tais como “repelir as tribos”, “repelir os inus”, “repelir os mezaiu”, “dominar 0s desertos”. Nao é impossivel que faraés “usurpadores” ou “legitimos” tenham vindo da Niibia; Mentuhotep III, fundador da XI dinastia, era provavelmente negro; Amenembhant, fundador da XII dinastia (-1991/-1786), parece ter vindo também da Nubia. Foi nos finais do III ou nos principios do I milénio que o nome de Kush se tornou relativamente comum nos textos do Egito para designar verossimilmente uma entidade politica que tinha todas as razGes de recear. Os faraés desta dinastia, sobretudo Seséstris le Seséstris, IM, multiplicaram as campanhas para o sul, levando a fronteira para Semna, nao longe da 2* catarata, onde Seséstris III mandou levantar uma esttla destinada a impedir a passagem das gentes do sul, exceto “aqueles nuibios que viessem para comerciar em Iken [cidade situada a norte de Semna] ou para qualquer outra atividade legitima que pudesse ser tratada com eles”. £ 78 = com a invasao dos hicsos e a ocupacao do Egito por estes guerreiros vindos da Asia (-1785/-1580) que se obtém as provas mais precisas da existéncia de um reino de Kush do qual Elefantina seria a fronteira ao norte. A sua capital era provavelmente Kerma, a montante da 3* catarata, onde, no sitio de Dufufa oeste, a arqueologia revelou o que parece realmente ser a residéncia de uma dinastia principesca local: numa sepultura, foram encontrados os restos de um principe que tinha sido enterrado deitado para o lado direito cercado pelos objetos usuais e rituais e acompanhado por 200 a 300 pessoas - exclusivamente mulheres e criangas ~ que, essas, tinham sido enterradas, vivas. A forga do rei parece assegurada pelo fato de, nos principios do século XVIa.C., um mensageiro do rei dos hicsos, Apofis, ter solicitado ao “principe de Kush” ajuda militar contra o rei egipcio. restabelecimento da autoridade dos farads levada a cabo pela XVII dinastia e mais particularmente por Tutmés I (-1530/-1520), teve como efeito a submisséo de Kush ao Egito. Colocado sob a autoridade de um “Governador dos paises do sul” ~ também chamado “filho do rei” ou “filho kushitico do rei” — Kush foi dividido em dois subconjuntos: Wawat, do alto Egito a2" catarata, e Kush, entre as 2* ea 4° cataratas. Os egipcios organizaram af uma exploracao sistematica de produtos de caga e de coleta e, mais ainda, dos recursos minerais (ouro, hematita, ‘turquesa, ametista...) tudo isto recuperado sob a forma de imposto. Paralelamente 0s funciondrios nomeados pelo fara6, 0s egipcios tiveram a habilidade de instaurar uma “administrago indireta”, associando os chefes locais ao exercicio ¢ aos dividendos do poder, e uma severa “politica de reféns” obrigando estes chefes a enviar os seus filhos & corte dos faraés para ai ser educados. Houve, desta forma, uma “egiptizagio” da Nuibia cuja dimensao, profundidade e duragao esto ainda em discussio. Semelhante politica tinha contudo como efeito implicar cada vez mais, 05 paises kushiticos nos negocios egipcios, devido ao fato de que as rivalidades da corte e 0s conflitos pelo poder solicitavam cada vez mais os funcionérios egipcios da Nibia e os principes locais. Estes conseguiram até tomar o poder no Egito em condig6es obscuras para fundar a XXV dinastia, “etiope” ou “sudanesa”, mais precisamente kushitica (de cerca -750 a -663), cujos primeiros reis sfio desconhecidos e os seus sucessores conhecidos apenas de nome: Alara e Kashta. A partir de uma leitura incorreta dos signos hieroglificos representando 0 nome do primeiro rei, a respeito do qual existem informagées relativamente precisas, acreditou- se durante muito tempo que esta dinastia “etfope” saira de egipcios que teriam fugido de Tebas para se refugiar no sul. De fato, 9 famoso “Piankhy” dos egiptélogos deve ser lido “Peye”, antropénimo tipicamente meroitico: simultaneamente rei conquistador e administrador, foi ele que tentou integrar ritualmente as duas partes do novo Estado (Kush e Egito) e de fundamentar na religido a legitimidade da nova dinastia mandando gravar esta proclamagao: “Amon de Napata fez-me soberano da totalidade do povo.[...] Amon de -79:- Tebas nomeou-me soberano do Egito [...] Os deuses fazem um rei, 0 povo faz um rei, mas foi Amon que me fez”. A unificaco efetiva do reino sob a autoridade exclusiva dos kushiticos foi contudo obra de Shabaka, irmao de Peye, proclamado rei por volta de -710 e considerado como o fundador da dinastia por ter eliminado pela forca todas as veleidades de contestacao e langado uma grande politica exterior destinada a conter a forca dos assirios. O “fator oriental” ia de resto pesar sobre o destino da dinastia, pois a invasdo dos assirios e a tomada de Tebas pelas tropas de Assurbanipal em -663 puseram fim & XV dinastia. O refluxo obrigatério dos kushiticos para a sua base meridional constitui uma cesura muito duradoura em toda a histéria do vale do Nilo: enquanto 0 Egito, contido a sul por um Estado poderoso, se tornava cada vez mais mediterranico, Kush, apesar das referéncias insistentes aos simbolos politicos e rituais do Egito faraénico, voltava a encontrar a plenitude do seu genio africano. Esta evolucao seria ainda acelerada pela expedicao organizada em -591 por Psamético II do Egito que acabou com a conquista proviséria de Napata. Nos finais do século VI, os persas ameacaram por sua vez Napata, sem que se saiba se uma parte da Nubia foi realmente submetida aos persas, como proclamavam inscrig6es numa estétua a gléria de Dario. O que é certo é que, a partir desta época, o exército persa contou nas suas fileiras com contingentes niibios, o que ia servir de suporte hist6rico ao mito muito duradouro da “forga negra” (ten.-coronel Mangin, 1910). Para garantir a seguranca da sua capital, os kushiticos comecaram nos princfpios do século VI a.C. a transferi-la para Meroé, a jusante da 6* catarata, & distancia respeitavel — levando em conta os meios de comunicagao da época - de cerca de 1100 km de Elefantina: A partir de Elefantina, subindo, moram jé etiopes; moram numa metade da itha, habitando os egipcios na outra. Esta ilha é seguida por um grande lago, ‘em volta do qual circulam etfopes ndmades; depois de o ter atravessado, vocés alcangardo 0 curso do Nilo, que se langa neste lago. Vocés abandonarao ‘© vosso barco e caminhardo ao longo do rio durante quarenta dias; porque nestas partes do Nilo emergem rochas agudas, e hd muitos recifes & flor da gua, através dos quais a navegagao ¢ impossivel. Depois de ter atravessado durante quarenta dias esta regio, tomardo lugar em outra embarcagio e navegardo durante doze dias no termo dos quais vocés chegardoa uma grande Cidade chamada Meroé. Esta cidade é, diz-se, a metrépole dos outros etiopes. (Herédoto, Histérias, I, 29) De fato, esta distancia desencorajou e comprometeu todas as veleidades de conquista e nenhuma invasdo do norte conseguiu tornar-se senhora da nova capital. Mas consideragdes outras, além das estratégicas, entraram na decisdo de colocar a capital muito mais para sul. Do ponto de vista do lugar e dos recursos econémicos, Meroé estava muito acima de Napata. As possibilidades de extensdo da capital eram muito mais numerosas. Além disso Meroé situava- -80- se logo a norte da zona atingida pelas chuvas sazonais ¢ se beneficiava de um abastecimento em viveres mais certo do que o registrado em Napata. A sua posi¢ao tornava-a uma encruzilhada obrigatéria das trocas regionais ¢ internacionais. Enfim, florestas relativamente numerosas garantiam um abastecimento de lenha suficiente para o trabalho do ferro. A mudanga de capital ndo foi contudo brutal e a necrépole de Nuri em Napata continuou a receber as sepulturas reais até o fim do século III a.C.. Todavia, levando em conta © interesse econémico preexistente de Kush, os senhores sucessivos do Egito no renunciaram a acariciar o sonho de af exercer a sua hegemonia. De fato, as trocas culturais so provadas até o século I a.C., a julgar por exemplo pelo recurso a lingua das inscrig6es reais que era a das elites politicas. Além disso, efeito de uma estratégia deliberada ou das incertezas nas regides fronteirigas, 98 exércitos e os stiditos de Kush continuavam a flagelar as provincias e distritos meridionais do Egito. Entre as expedic6es e tentativas de conquista de Meroé podem reter-se os projetos de Cambises e a expedicao de Petrénius. Imediatamente apés ter conquistado o Egito (-525), o rei da Pérsia Cambises ambicionou apoderar-se de Meroé para onde enviou espides para conhecerem a situacao do pais. A resposta do rei de Meroé aos espides carregados de presentes mostra que ndo se deixava enganar acerca das inteng6es dos seus vizinhos do norte: ‘Ocetiope, que se tinha dado conta de que eles [os icti6fagos] tinham chegado como espides, mandou-lhes dar esta resposta: Nao, o rei dos persas ndo vos enviou carregados de presentes porque atribui uma grande importncia em se tomar meu convidado; vés, no dizeis a verdade (porque viestes para espionar ‘nos meus Estados); e ele nio é homem justo. Se fosse justo, nunca teria com feito desejado um pais outro que o seu € ndo reduziria 4 servidio homens dos quais nao recebeu nenhuma injtiria. Mas, agora, entregai-Ihe este arco, € quando Iho entregardes dizei: O rei dos etopes da ao rei dos persas este conselho: quando os persas retesarem to facilmente como eu fago, arcos to grandes como este, podem ento avancar com forcas superiores contra os “etiopes longevos”, mas, até este momento, que saiba agradecer aos deuses or no meter no espirito dos filhos dos etiopes a idéia de acrescentar ao seu préprio pais a posse de outro territorio. (Herédoto, Histoires, 11121) No que se refere a expedi¢do punitiva do prefeito romano Petrénius contra “os etiopes” da “rainha Candécia” (-23), é ela descrita por Estrabio como um ato de vinganga contra “etfopes”, provavelmente némades, que tinham atacado a Tebaida e levado como troféus estétuas do imperador Augusto. ‘Tendo-se tornado o senhor de Napata, este “mandou arrasar a cidade de altoa baixo e reduziu todos os habitantes & escravatura. Isto feito, voltou pelo mesmo caminho com todas as suas presas tendo considerado que mais adiante o pafs devia ser impraticdvel para o exército”. A crénica politica de Kush continua a ser mal conhecida no que se refere aos longos séculos que vo da XXV* -81- dinastia a0 desmoronamento do reino sob os golpes destrutores de Axum ou sob o efeito de uma decomposigao interna. Esta-se em contrapartida um pouco melhor informado a respeito dos particularismos e das evolugées nao ocasionais das estruturas politicas e econémicas do reino. Meroé, um reino africano Que Meroé fosse um reino africano vé-se muito bem em primeiro lugar devido A sua organizagao, Além das inscrig6es meroiticas, sempre dificeis de interpretar mesmo quando utilizam signos hieroglificos, foi sem diivida Estrabao que nos deixou as indicag6es mais preciosas a este respeito. Vemos assim pois, bem definidas a partir da época mais antiga, duas caracteristicas que voltaremos a encontrar depois em muitos reinos africanos, no que se refere A maneira de designar o soberano assim como a natureza da realeza e as maneiras de assegurar o controle do poder real. Era por elei¢ao que se designava o rei, o que surpreendia todos os observadores estrangeiros tal como Herédoto, o primeiro a ter dado conta desta particularidade: Os etfopes so, a0 que parece, os homens mais altos e mais belos do mundo. Certos costumes diferenciam-nos dos outros homens, em particular a escotha dos reis, porque eles designam sempre como rei o maior e o mais forte em proporcao com a sua estatura, Estas indicagdes sao confirmadas por varias inscrig6es em hierdglifos egipcios em honra de alguns reis de Meroé, nomeadamente Peye (-751/-716) € Nastasen (-335/-310). Antes de ser eleito, o rei vivia com os seus “irmaos reais”. Eram os chefes militares e os altos dignitarios politicos - em nimero de vinte e quatro se acreditarmos numa estela do rei Aspelta (-593/-568) ~ que procediam a elei¢ao, dando-se preferéncia aos “irmaos” do rei defunto antes que o poder passasse 4 geraco seguinte. A partir do século VI a.C. a elei¢ao tinha lugar em Meroé, depois o rei, apés uma longa procisso em dire¢o a0 norte, fazia-se consagrar definitivamente no palacio e no templo real de Napata. Parece também, lendo a insistéricia com a qual Aspelta proclamou ter recebido os seus direitos hereditarios de sucessao pelas mulheres, que a filiacdo matrilinear tinha ascendéncia sobre a filia¢o patrilinear. De maneira geral, as rainhas eas princesas ocupavam um lugar central no sistema monarquico. Os autores gregos ¢, na sua esteira, o Novo Testamento, descrevem-nas sob o nome de “Candacias”, deformacao da palavra meréitica ktke ou kdke (rainha mae). O papel destas mulheres reais foi a principio indireto: educaco dos principes, as vezes até uma idade relativamente avangada; participagdo ativa na escolha do rei ena ceriménia do coroamento; conselheiras avisadas, e ouvidas pelo marido ou pelo filho; adocao pela rainha mae viva da primeira esposa de seu filho, 0 rei em exercicio. O seu papel na gestao dos negécios de Estado tornava-se em seguida mais direto com a instituigao de uma espécie de regéncia em proveito -82- da rainha mae. Semelhante sistema podia levar a uma tomada do poder purae simples pelas mulheres, o que aconteceu efetivamente entre o século Il a.C. € © século primeiro da nossa era com rainhas tais como Shanakdakhete (-170/ -160), Amanichakété (segunda metade do primeiro século a.C.) e Amanitéré (ou Amantarit, esposa do rei Natakamani -20/+15). Amanichakété é a famosa “Candécia” descrita por Estrabao e que opés uma viva resisténcia a expedi¢ao punitiva do general romano Petrénius em -23: “Entre os fugitivos acham-se 8 generais da rainha Candédcia, esta mulher de alma viril, a quem uma ferida tecebida em combate tinha feito perder um olho e que nos nossos dias exercia © poder supremo na Eti6pia”, No que se refere a Amanitéré, ela é a “Candécia” evocada pelos Atos dos Apéstolos no Novo Testamento. Documento 12: Um exemplo de regicidio sagrado ‘Mas 0 mais desconcertante de tudo é 0 que se passa com a morte dos reis. Com efeito, em Meroé, os sacerdotes que se ocupam do culto e das honras divinas, visto Pertencerem ao grau mais importante e mais poderoso, enviam, quando tal hes Parece oportuno, um mensageiro ao rel para Ihe ordenar que morra. Tal 6, com efeito, dizem eles, o ordculo pronunciado pelos deuses e a ordem dos imortais no deve, sob nenhum pretexto, ser desprezada por uma criatura mortal. E acompanham ‘esta mensagem com outros argumentos, capazes de ser acolhidos sem reservas Por uma natureza educada conforme os costumes antigos e dificeis de eliminar, e despojada de argumentos a opor a ordens cuja necessidade se n3o impée. Assim pois, nos tempos antigos, 0s reis obedeciam aos sacerdotes, no porque tinham sido vencidos pelas armas nem pela violéncia, mas porque precisamente o seu medo supersticioso prevalecia sobre a sua faculdade de raciocinar. Contudo, | sob 0 reino de Ptolomeu Il, o rei dos etiopes Ergaméne, que tinha recebido uma educacao grega e estudado filosofia, ousou, sendo o primeiro, desprezar esta maneira de fazer. Tendo, com efeito, tamado uma resolugéo digna da realeza Penetrou com soldados na parte proibida onde se encontrava 0 templo de ouro dos etiopes, trucidou todos os sacerdotes e, apés ter abolido este uso, governou conforme a sua prépria vontade. Fonte: Diodoro de Sicilia, Bibliotheque historique, livro Il, VI, tradlucSo de Bibiane Bommel, Pars, Les Belles Lettres, 1989. Meroé foi também o primeiro reino assentando nos princ{pios da realeza sagrada: identificagdo entre a integridade fisica do rei e a integridade do reino, assimila¢do da beleza fisica e das qualidades morais do rei a prosperidade e 4 gléria do reino; realizagao de ceriménias rituais reatualizando a coroaco do rei e-destinadas a rejuvenescer o rei e 0 seu reino; organizacio de uma execugao ritual, mais freqiientemente sob a forma de suicidio, caso estas prescricoes nao fossem respeitadas ou se o reino acumulasse catdstrofes ou todas as espécies de pragas (documento 12). Este sistema dava aos sacerdotes um poder enorme que “Ergaménés”, um rei com nome helenizado, contemporaneo de Ptolomeu II Filadelfo (rei de -285 a -246) e conhecido dos gregos como um amigo dos filésofos, mas cuja identidade se conserva obscura (Arkakamani, Amekhamani ou Arcemani?), procurou desmantelar. As tradig6es ¢ os costumes religiosos mais antigamente criados fornecem o suporte deste tipo -83- de governo. Mas os reis e a aristocracia de Meroé estavam atentos a todos os recursos religiosos suplementares que Ihes podiam chegar do estrangeiro. Foi assim que acrescentaram sucessivamente a sua propria religido as crengas que eles consideravam como sendo as mais eficazes professadas por seus vizinhos: primeiro as do Egito faradnico, depois a dos deuses gregos e finalmente, talvez introduzida pela pequena e ativa comunidade judia instalada em Elefantina a partir do século V a.C,, 0 cristianismo, na época de “Candécia” Amanitéré (documento 13). Documento 13: Os principios do cristianismo em Meroé E0 anjo do Senhor falou a Filipe, dizendo: Levanta-te e vai para a banda do sul, ao ‘caminho que desce de Jerusalém para Gaza, que esta deserta. E levantou-se, e foi; eis que um homem etiope, eunuco, mordomo-mor de Candacia, rainha dos etiopes, © qual era superintendente de todos os seus tesouros, e tinham ido a Jerusalém Para adoracao, regressava, e assentado no seu carro, lia o profeta Isaias. E disse 0 espirito a Filipe: Chega-te e ajunta-te a esse carro. E, correndo Filipe, ouviu que lia © profeta Isaias, e disse: Entendes tu o que Iés? E ele disse: Como poderei entender, se alguém me no ensinar? E rogou a Filipe que subisse e com ele se assentasse. E © lugar da escritura que lia era este: foi levado como a ovelha para o matadouro, €, como estd mudo 0 cordeiro diante do que o tosquia, assim no abriu a sua boca. Na sua humilhagao, foi tirado-o seu julgamento; e quem contara a sua geracao? Porque a sua vida é tirada da terra. E, respondendo o eunuco a Filipe, disse: rogo-te, de quem diz isto o profeta? De si mesmo, ou de algum outro? Entao Filipe, abrindo a boca, e comecando nesta escritura, Ihe anunciou Jesus. E indo eles caminhando, chegaram 2o pé de alguma agua, e disse o eunuco: Eis aqui 4gua; que impede que eu seja batizado? E disse Filipe: é licito, se crés de todo o coracao. E, respondendo ele, disse: creio que Jesus Cristo é 0 Filho de Deus, E mandou parar o carro, e desceram ambos & agua, tanto Filipe como o eunuco, e o batizou. E quando sairam da agua o Espirito do senhor arrebatou a Filipe, endo viu mais o eunuco, jubiloso, continuou 0 seu caminho. E Filipe se achou em Azote e, indo pasando, anunciava o Evangelho em todas as cidades, até que chegou a Cesérea. Fontes: Actos dos Apéstolos, Vill 26-39, traducao de Jodo Ferreira de Almeida, Lisboa - Depésito das Escrituras Sagradas, 1968, A tentativa de “Ergaménés” integrava, apesar de tudo, um projeto mais amplo remontando pelo menos ao reino de Aspelta (-593/-568) e visando cons- truir uma maquina administrativa que fosse o sustentéculo da continuidade do Estado. Uma estela deste rei enumera com efeito titulos militares e civis (chefe do tesouro, ministro da justiga, chefe dos celeiros, chefe dos arquivos, primeiro escriba de Kush ajudado por numerosos adjuntos) evocando a exis- téncia de um aparelho administrativo relativamente elaborado. No plano local, foi também necessério organizar estruturas respondendo aos particularismos da geografia fisica e humana do reino: uma grande extensio, que variou com © tempo; extensio extrema ao longo do vale do Nilo, da 1* catarata ao sul de Senar; a integrago constante de povos nubai do Kordofa, na margem esquerda do Nilo, povos nomades situados nas instalagdes orientais do reino, fugitivos do Egito cujo primeiro testemunho nos foi deixado por Herddoto: -84- A partir desta cidade [Meroé], voces alcangarao por barco o pais dos transfugas [automoles], em tanto outro tempo como aquele que tiverdes gasto para vir de Elefantina a metrépole dos etiopes [Meroé]. Estes trinsfugas tém como nome Asmach, nome que, traduzido em lingua grega, significa “aqueles que se instalam 4 mao esquerda do rei”. Eram vinte e quatro miriades de egipcios da classe dos guerreiros, que desertaram para os etiopes pela razao que se segue. Sob o reino de Psamético (Psamético I, -594/-558), tinham sido instalados postos militares na cidade de Elefantina em face dos etfopes, outro em Dafnae Pelusiana em face dos érabes e dos assirios, outro em Meroé em face da Libia. [..]. Os egfpcios em questo tinham estado de guarnigao durante trés anos € ninguém os substitufa no seu posto; discutiram entre eles e de comum acordo, abandonaram todos o servico de Psamético pela Etiépia. Informado, Psamético langou-se em sua perseguico: quando os alcangou dirigiu-thes um milhar de stiplicas, exercendo pressfo para que no abandonassem os deuses da sua patria, os seus filhos e as suas mulheres; mas uum deles, mostrando a sua virilidade, respondeu que em qualquer parte onde dispusessem daquilo, teriam filhos e mulheres. Quando chegaram & Etipia, confiaram-se ao rei dos etfopes. E este recompensou-os da seguinte maneir alguns etfopes tinham entrado em conflito com ele: convidou os transfugas a expulsé-los e a ocupar o seu pais. E logo que os transfugas se encontraram instalados na Eti6pia, os etfopes, adotando os costumes egipcios, tornaram-se mais civilizados. (Herédoto, Histoires, I, 30) A lentidao das comunicagées contribuiu para assegurar uma larga autonomia as diferentes partes do reino. As fontes gregas ¢ latinas evocam assim a existéncia, na “ilha de Meroé” de “reis” e de “tiranos” submetidos as “Candécias”: estes tftulos parecem indicar que os chefes das antigas unidades politicas integradas em Meroé foram mantidos para fins da administragao local e que constitufam um elo essencial na cobranca dos impostos. No norte do reino, regio estrategicamente importante em virtude da sua posi¢o em relacdo 20 Egito, a diregao dos negécios cabia a um funcionario especial (Pqr, Pakar) que era certamente um filho do rei reinante e um dos herdeiros possiveis do trono. A posicgo do reino e os seus recursos proprios fizeram de Meroé um intermediario nos negécios internacionais da Antiguidade. Apesar da seca e da raridade das terras cultivadas, a agricultura ocupava a maior parte da populacao, fornecendo ao mesmo tempo viveres (trigo, centeio e sobretudo sorgo completados pelas uvas assim como pelas lentilhas, abéboras, meldes € pepinos) e 0 algodao, matéria prima de um dos artesanatos mais ativos. A adogao da irrigagao foi precoce, atestada desde os fins do século XV a.C. e utilizava em primeiro lugar o kole, maquina acionada pelo homem e cuja importancia se vé pelo ntimero de top6nimos formados a partir desta palavra, € depois a sagia, acionada principalmente pelo bifalo. No coracio do reino, a “ilha de Meroé” era preferencialmente especializada na criagao de gado. A agricultura era organizada com base nas comunidades aldeas, o que ndo exclui -85- © trabalho dos escravos nas terras do rei, dos dignitarios politico-militares e dos templos. A arqueologia forneceu provas de um grande desenvolvimento do artesanato: pedreiros e profiss6es ligadas construcio, cuja obra se vé no numero de sitios urbanos exumados até agora; trabalho do ferro que levou a qualificar Meroé de “Birmingham da Africa antiga” (A.H. Sayce, 1911); joalheria que deu jéias em ouro notdveis, reservadas 4s rainhas e as princesas; cermica feita 4 mao pelas mulheres ou no torno pelos homens, trabalhando as primeiras para as necessidades domésticas, os segundos para o mercado e as classes abastadas da sociedade. As mercadorias criadas pelos artesdos, acrescentavam-se os produtos da caga e da coleta conhecidos desde os tempos mais recuados (marfim, peles de leopardo, plumas de avestruz, ébano, pedras preciosas), para assegurar vigorosas correntes de troca. Um dos produtos mais procurados era 0 ouro, extrafdo principalmente de territérios situados entre o Nilo e o mar Vermelho do qual Meroé produziu cerca de 1600 toneladas durante a Antigiiidade. O comércio punha o reino de Meroé em relacdes continuas com 0 Egito, seu parceiro principal, e com o mar Vermelho e os paises situados para além dele, mas também com o Kordofi, o Darfur e, pelo vale do Nilo, com os paises da Africa profunda. E possivel que o camelo, cuja presenca no primeiro séculoa.C. é provada por uma pega de bronze proveniente do timulo do rei Arikankharer (-25/-15), tenha contribufdo muito cedo para o desenvolvimento destas trocas. Fonte de riqueza para o reino, 0 comércio exterior trouxe-Ihe também uma das causas estruturais da sua fragilidade. Era-Ihe, com efeito, constantemente necessdrio controlar os povos némades que ameacavam a seguranca das estradas comerciais: nobas, a ocidente, blemmyes (bedja?), a leste. Para mais, a riqueza material do reino assentava em grande parte na procura exterior. Do primeiro ao século III da nossa era, 0 reino no cessou de declinar, conseqiiéncia simultanea da evolugao do mundo mediterraneo e da audicia dos povos némades. A eliminago definitiva de Meroé perante a hegemonia ascendente de Axum vem precisamente da incapacidade do primeiro em conter os povos némades dos quais o segundo conseguiu tornar-se senhor. 2. Axum © nome de Axum — nome do reino e de sua capital - aparece nas fontes escritas nos principios da era crista: primeiro na Geografia de Claudio Ptolomeu (século II), depois nas Kephalaia do persa Mani (fim do século Ill), enfim no Périplo do mar Eritreu, cuja data 6 muito discutida (entre os séculos I e Il). A emergéncia de Axum deve estar provavelmente relacionada as evolucdes do negécio internacional através do mar Vermelho. E significative que as fontes escritas antigas, muito atentas as atividades comerciais, assinalem a existéncia € odinamismo do porto de Adulis (situado a 50 km do porto atual de Massua) muito antes da aparigéo nos textos do nome de Axum. Plinio, o Velho, (23/79) -86- descreve-o como “o maior porto dos trogloditas e também dos etfopes”. Do século III ao VI, no momento da sua maior prosperidade, Axum controlava com o estreito de Bab el-Mandeb uma das trés encruzilhadas comerciais mais importantes do mundo antigo (com os estreitos de Mélaca e de Gibraltar) ¢ impunha-se como intermediério obrigatério nas trocas entre os paises do Mediterraneo por um lado e, pelo outro, os pafses da Asia oriental e da Azania. Uma excegao historiografica? Axum é, sem a mfnima ditvida, o primeiro Estado africano a respeito do qual possuimos fontes muito variadas e complementares, mesmo se a sua interpretacio ndo deixa de suscitar interminaveis interrogacées e discuss6es. E, além disso, notavel que as mais ricas destas fontes sejam de origem interna. Trata-se, em primeiro lugar, de pequenos objetos de interesse arqueolégico e sobretudo destas ruinas impressionantes — edificios reais, religiosos e outros, sempre de dimensées imponentes, timulos e “casas” funerdrias, estelas das quais a mais alta, ultrapassando 33 metros, inclui nove andares, bases macicas de tronos hoje desaparecidos - sobre as quais ha varios séculos se tinha cha- mado a atengao. Jé em 1524, o padre Francisco Alvares descreveu com minticia “amuito grande cidade de Aquaxumo... virias pedras levantadas e outras pelo chao, muito grandes e muito belas, e decoradas com belos desenhos”. Varios viajantes do século XVIII deram por sua vez conta de “agulhas piramidais” € de “obeliscos” que os arqueélogos inventariariam em niimero ainda mais elevado. Estes diversos monumentos cobrem, na costa eritréia e ao norte da Etiépia atual, uma superficie de 300 km de comprimento e 160 km de largo, correspondendo, no geral, a parte central do reino, £ também a parte que retine um certo niimero de recursos propicios 4 concentracéo dos homens e 4 construcio de edificios duradouros: 4gua em primeiro lugar (may) presente m numerosos topénimos de Axum (May-Abagat, May-Hedja, May-Laylaha, May-Malahso, May-Qoho...), a pedra e a madeira em seguida. As inscrig6es gravadas na pedra constituem outra fonte particularmente fecunda. As mais antigas, utilizando uma escrita sul-ardbica, remontam ao periodo “pré-axumita” (séculos V-I a.C.). As mais numerosas incluem inscrig6es a gloria de alguns reis e atribuidas a Ezana (século IV), Kelab e um dos seus filhos (século V1), e textos de natureza jurfdica ou religiosa. Alguns destes textos eram em escrita e lingua gregas, a maior parte em lingua gueze - lingua oficial e usual no reino, mais ou menos a partir do século IV -, utilizando as vezes uma escrita sul-ardbica, mais freqiientemente a escrita etfope cujos caracteres aparecem a partir do século If, para se fixar definitivamente dois séculos mais tarde. Foi também no século IV que comecou a tradugao da Biblia ede outros textos religiosos cristaos do grego para o gueze. Acham-se também inscricdes num outro tipo de fontes: as moedas. Cunhadas a partir do reino -87- de Endybis (segunda metade do século Ill) utilizando 0 modelo das moedas bizantinas, estas moedas em ouro, prata e na maior parte dos casos bronze fornecem a lista mais longa dos nomes de reis axumitas. E sao igualmente muito instrutivas para a histéria cultural do reino. As legendas af foram escritas primeiro em grego, depois em escrita etfope. Os simbolos utilizados foram primeiro os de uma religido local (disco sobre crescente, simbolo lunar associado ao deus Astar) depois a cruz crista. Enfim, os textos particularmente numerosos provém simultaneamente do “interior” e do “exterior”. “Fontes externas”, a longa série de textos gregos de Herédoto (século V a.C.) a Cosmas Indicopleustes (século VId.C.) nem por isso menos fecunda para o trabalho do historiador. Com efeito, nao nos revela apenas a I6gica, as maneiras de fazer e os resultados de uma visdo externa da historia axumita. Incluem também a transcrigdo pura e simples de numerosas tradig6es locais e de inscrigées, algumas das quais desapareceram. E assim que a célebre inscrigao de Adulis relatando as expedicGes de um rei de Axum, datada do século II ou do século Ill e conhecida sob o nome de Monumentum Adulitanum, foi recopiada no século VI por Cosmas Indicopleustes e reproduzida na sua Topografia Crista. De importancia crucial, sobretudo pela possibilidade que abrem a datacZo de certas acontecimentos, estes textos revelam-se de interpretagao dificil, a partir do momento em que se pretende extrair deles os elementos de uma geografia humana do reino de Axum. Os etndnimos so na maior parte das vezes vagos e sugestivos, em particular aqueles que remetem para as prdticas alimentares dos povos desta regido e que encontramos na maior parte dos autores gregos, Herédoto, Agatarquide, Diodoro de Sicilia, Estrabo ou Artemidore: agridéfagos, quelendfagos, elefantéfagos, hiléfagos, icti6fagos, cresfagos, moscéfagos, riz6fagos, espermatéfagos. Outros, tais como 05 trogloditas mencionados por Herédoto ou os asacae, cacadores de elefantes, de Plinio, o Velho, sao dificeis de localizar. A longa lista triunfal, que d4 0 Monumentum Adulitanum, dos povos ‘combatidos e vencidos por Axum, nao é menos dificil de explorar na medida em que, evidentemente, estes etnénimos nao correspondem a nenhum povo hoje conhecido. Parece mesmo que até o século VI estes textos fazem a distingao entre “axumitas” e “etiopes”, designando os primeiros os principes e siiditos do reino de Axum, ao passo que a Etiépia se referia a um territério mais vasto, transbordando deste reino para norte e para sul e integrando populacdes nao controladas ou mal controladas por Axum. Os textos escritos etfopes (no sentido atual desta palavra) s40 demasiado tardios para ser inteiramente fidveis. Assim, o Tarik Negaste (A histéria dos reis) e o Kebra Negaste (A gléria dos reis) redigidos no século XIV aparecem - entre outras caracteristicas - como tentativas de legitimacdo histérica dos reis axumitas depois etfopes por via do estabelecimento de filiagdes, hoje consideradas como ficticias, entre eles por um lado, e, pelo outro, a rainha de Sabé e o rei Salomao. Estas incertezas -88- continuam a ser contudo menores e Axum é um dos primeiros Estados afticanos conhecidos. A crénica triunfante da constru¢ao do Estado Se o periodo indo do século V ao I a.C. chamado as vezes “pré-axumita” est ainda velado pela obscuridade, entra-se num terreno cada vez melhor conhecido a partir do comeco da era cristd. Mais ou menos entre o século Ie © século VI, a mobilizagio de formas diversas de constru¢ao do Estado andou de par com a elaborac4o de uma politica exterior muito ativa num espaco geopolitico muito amplo englobando, de um lado outro do mar Vermelho, a Africa e a Asia, e que é possivel representar como um arranjo complexo de circulos concéntricos dos quais © primeiro, o dos vizinhos imediatos, inclufa inimigos potenciais que era preferivel submeter. O segundo, inclufa as poténcias do momento -o Egito, o império persa, o império romano, Bizancio, a Cristandade -, um reservatério de aliados. Os processos internos e as estruturas do Estado so, em virtude da auséncia ou do siléncio das fontes, os aspectos menos conhecidos desta evoluco de muito longa duracdo. Ninguém encontrou, fora da lenda, narrativa relativa a algum heréi fandador, instaurando uma continuidade entre o perfodo “pré-estatal” e um periodo “estatal”. De acordo com a lenda, a serpente “Arwe”, objeto de um culto pré-axumita, teria sido também “Arwe Négus”, o primeiro rei reinante, pai da rainha de Saba. A existéncia de uma linhagem de reis controlando diretamente um territ6rio de limites geogrdficos relativamente estveis e apoiando-se numa legitimidade reconhecida autoriza, sem dtivida, a falar-se de reino, mesmo se 0 seu modo de funcionamento continua a ser largamente hipotético. A linhagem real dava ao Estado nao s6 o rei, mas também os dignitrios principais: membros do “conselho real” ou de uma estrutura restrita equivalente, participando na defini¢&o da politica do reino, na tomada de decis6es e na designacio, se tal fosse necessario, de um regente. Alguns propem também que se aplique a este “reino” 0 conceito de “império”, como sugerem as fontes gregas. Estas reservam ao soberano de Axum o titulo de basileus (rei) e distribuem aos hierarcas que dependem dele titulos tais como “arcontes”, “etnarcas” e “tiranos”. Mas o termo axumita aplicado a uns € a outros era “négus”, dado tanto a certos dignitérios, tais como os chefes do exército, como aos dirigentes das unidades politicas mais restritas ~ reinos submetidos a Axum, assim como “tribos” e povos diversos, “cidades-Estado” tal como Adulis, principados ¢/ou populagées sem chefe as quais 0 soberano de Axum decidia impor um. Assim, os chefes das “tribos” bedja, que controlavam cada um de 200 a 275 homens adultos - ou seja 1.000 1.500 individuos -, viam-se outorgar o mesmo titulo de négus. Todavia, certas fontes arabes pré-islamicas reservam o titulo de milk’ (rei) ao soberano de Axum. Deve se tirar a partir desta situacao a conclusao de que, a partir desta época, - 89 - o rei de Axum era jé 0 todo-poderoso négus negast (rei dos reis) coroando um edificio de estrutura “imperial”? De fato, nos territérios onde o “rei” podia intervir diretamente, o Estado funcionava como um “reino tributario” no. qual © reconhecimento da autoridade suprema cabia ao négus negast: a submissao 86 se manifestava em certas ocasides, nomeadamente quando se registrava a entrega anual do tributo e quando se levantavam tropas para a guerra. ‘As guerras travadas pelos reis de Axum eram de dois tipos diferentes: “guerra de conquista”, na qual os vencidos eram reduzidos ao estado de objetos dos quais 0 vencedor podia dispor 4 sua vontade, e “guerra de pacificacao”, consistindo em voltar a impor a submissao aos “vassalos” e “dependentes” que tivessem afirmado ou manifestado de maneira excessiva a sua autonomia ou a sua independéncia, estando entendido que entre estes dois tipos extremos as situages intermediérias cram muito numerosas. Estas duas légicas so claramente trazidas a luz pela inscrigao relatando a campanha levada a cabo no século IV por Ezana, nas fronteiras ocidentais de Axum, contra os nobas € 0 kasu, que parecem ter sido tributarios de Kush e talvez jé de Axum: » Pela forca do Senhor do céu que me deu a realeza, o Senhor do universo em que acredito, Eu, o rei que ndo foi vencido, que nenhum inimigo se ponha diante de mim e que nenhum inimigo me siga. Pela forca do Senhor do universo, fiz guerra aos nobas, quando as tribos dos nobas se revoltaram, quando se revoltaram e se gabaram e disseram: “ele nao passaré pelo Takkazi” [...] Entao declarei-Ihes guerra e pus-me a caminho, pela forga do Senhor da terra, combati no Takkazi, em face de Temalké, e eles fugiram sem parar, ersegui os fugitivos durante vinte e trés dias, matando, fazendo prisioneirose ‘capturando despojos em toda a parte onde parava, enquanto as minhas tropas ue safam regressavam com prisioneiros e despojos, e eu queimava as cidades de pedra e aquelas que eram de palha, as minhas tropas pilhavam o seu trigo, © seu bronze, o seu ferro e destrufam os fdolos em suas casas, ¢ 0s armazéns de trigo e de algodao; elas atiravam pessoas 0 rio Seda, muitos pereceram nna gua, ndo se sabe 0 ntimero, enquanto elas afundavam com seus barcos cheios de uma multidéo de pessoas, de mulheres e de ctiangas. (AJ. Drewes eR. Schneider, Origine et développment de Vécriture éthiopienne jusqu’a époque des inscriptions royales d’Axoum, Annales d’Ethiopie, XIV, 1987, pp. 43-69) E necessério salientar que estas guerras participavam diretamente na prosperidade econémica do Estado. Quer tenham se beneficiado de um Privilégio de “exclusivo comercial” ou que a sua fortuna fosse o produto de heranca principesca ou de guerras estatais de pacificaco ou de conquista, os reis € 0s dignitérios de Axum encontravam nestas guerras o meio de aumentar a sua fortuna material e a sua capacidade de participago no negécio internacional. Se os rebanhos acumulados por ocasiao das guerras eram dificilmente negociéveis, j4 nao acontecia o mesmo com as pessoas, que se tornavam mercadorias de trafico. Mais globalmente, o tributo pago pelos Estados e pelos povos vencidos -90- era na maior parte dos casos convertido em mercadorias destinadas ao comércio internacional. : No plano da “politica estrangeira’, os reis de Axum organizaram a partir do século I uma politica continua de expansio que iria fazer do reino uma das poténcias “mundiais” desde os primeiros séculos da era crista. A partir do século Ill - ou seja, a partir do momento em que as fontes se tornaram disponiveis -, vé-se Axum langar-se numa “politica érabe” muito ativa e muito complexa, feita de uma sucesso de guerras e de aliancas facilitadas pela divisdo da Arébia em trés Estados rivais: Saba, Hadramawt e Himyar. Com efeito, as inscriges encontradas no sul da Ardbia, do século III (uma vintena No total), evocam freqiientemente as invasées e a presenca dos Aksuman (axumitas) ¢ dos Ahbashan (abissinios). A persisténcia destas guerras exteriores 6 confirmada pelo Monumentum Adulitanum, e pot insctigdes gravadas numa estela e no trono de um rei guerreiro, senhor de um grande exército terrestre e de uma poderosa marinha de guerra, cuja identidade continua a ser desafortunadamente desconhecida: ‘Todos estes povos, primeiro e tinico dos reis que me precederam, submeti- 085; & por isso que dedico reconhecimento aos mais importantes dos meus deuses, a Arés, que me engendrou e gracas ao qual submeti ao meu poder todos os povos que sio vizinhos do meu pais, do lado do Oriente até a terra do incenso, do lado do Ocidente até aos territérios da Etiépia e de Kasu, a uns indo ao seu territério € vencendo-os eu proprio, enviando aos outros 08 meus exércitos, ¢, tendo estabelecido a paz no universo inteiro que me est submetido, desci até Adulis para oferecer sacrificios a Zeus e a Arés, € também a Poseidon, a fim de que proteja os meus marinheiros; tendo reunido todos os meus exércitos para fazer um s6, acampei neste lugar e fiz dom deste trono a Arés no vigésimo sétimo ano do meu reino. (W. Wolska- Conus, ed., Cosmas indicopleustes. Topographie Chrétienne. Livro If, 63, Paris, Le Cerf, v. I, 1968, pp. 376-78) Redigidas por volta de 240 d.C., os Kephalaia do persa Mani confirmam a forca de Axum: “Ha quatro grandes reinos no mundo: o primeiro é o reino da Babildnia e da Pérsia; o segundo é o império romano, o terceiro é 0 reino dos Axumitas; 0 quarto € o reino de Silis [China?]”. Os sucessores deste rei guerreiro prosseguiram a mesma politica, como indica a titulagao de Ezana, 0 rei melhor conhecido do século IV: "Pela forca do senhor do céu, que, no céu como na terra, é vitorioso por mim, eu Ezana, filho de Ella-Amida, o homem de Halen, rei de Axum, de Himyar, de Raydan, de Saba, de Sahlen, de Seyamo, dos bega, dos kasu, rei dos reis, filho de Ella-Amida, que nao foi vencido pelo inimigo”. Se nao dispomos de fontes sul-ardbicas confirmando a continuidade da submissao da Arabia, sabe-se, em contrapartida, que Ezana guerreou sem descanso nas fronteiras do leste e do sudeste contra os bedja, pov némade independente vivendo nos confins de Axum, da Nubia e do Egito, e contra 2976 os noba e os kasu, sujeitos rebelados contra o rei axumita. Nao se conhece a evolucao da forca de Axum apés a morte de Ezana, que se verificou em meados do século IV. A Expositio Totius Mundi et Gentium, redigida nesta época, continua a louvar a forca e as qualidades militares dos axumitas. Mas parece que os territérios periféricos sujeitos a Axum tinham comegado entio a libertar-se. Himyar, na Ardbia, deve ter sido um dos primeiros a langar-se nesta via a partir do século IV, inaugurando um processo que se deve ter prolongado no século seguinte. Foi necessdrio esperar o século VI para que, sob a impulsao de Ellatzabaas ou Kaleb, bem conhecido gracas a varias inscricdes em lingua gueze e pelas crénicas hist6ricas gregas de Jodo Malalas e de Procépio, Axum procurasse recuperar a sua antiga forca. Tornada crista, Axum guerreou de novo contra Hymiar que, tendo adotado a religido judia, perseguia os seus stiditos cristaos, Esta politica recebeu o apoio do patriarca de Alexandria e, sobretudo, de Roma, que deu a Ellatzabaas um apoio logistico no decurso das campanhas contra Himyar. Depois da sua vitéria de 518, os axumitas apressaram-se a instalar no trono de Himyar primeiro um nativo cristo, depois um abissinio, Abraha. Himyar devia manter-se sob o controle de Axum até a sua conquista pelos persas em 572. Esta forca recuperada valeu a Axum outras simpatias, em particular a de Bizancio, cujo imperador Justiniano (527-565), ansioso face as ambigGes da Pérsia, enviou varias embaixadas a corte do reino afticano. Uma civilizagao préspera e brilhante Os fervilhamentos, os fluxos e refluxos desta histéria politico-militar contrastam com os movimentos muito mais lentos de uma prosperidade em crescimento continuo e de mutacées culturais chamadas a marcar muito duradouramente o futuro do Chifre da Africa. A prépria natureza das fontes disponiveis e o controle apertado do comércio por parte do Estado determinaram que as trocas internacionais interiores representassem o aspecto que é de longe 0 mais conhecido da economia de Axum. Esta nao era, contudo, uma “economia de transito”. Tudo se passa como se as trocas, cujos principais beneficiérios eram o rei e os dignitarios do reino, dependessem das atividades de caga e de coleta, ao passo que a economia de producdo servia quase exclusivamente para a subsisténcia das pessoas. Os raros dados disponiveis a respeito do regime alimentar (bolos folhados de trigo e carne, acompanhados por mel, manteiga, vinho, cerveja e hidromel) referem-se sem diivida as categorias sociais dirigentes mais do que & massa do povo. A agricultura conhecida através de algumas inscric6es, era praticada em terracos instalados nos flancos das colinas. Utilizavam charruas puxadas por bois ea irriga¢o para produzir trigo e outros cereais, assim como vinho. Ao lado dos bovinos, os camponeses axumitas criavam carneiros, cabras, mulas e burros. Os elefantes, que cles tinham conseguido domesticar, serviam unicamente a corte real. Do artesanato, ndo se conhece mais do que o trabalho -92- dos canteiros, dos pedreiros e dos carpinteiros, cujas construgGes gigantescas sobreviveram até agora, assim como o dos ceramistas, homens ou mulheres, de que a arqueologia exumou restos muito numerosos: tacas ¢ tigelas, pratos, marmitas, cAntaros, jarros, nos quais aparecem decoracdes mais ou menos a partir do século VI. Em virtude da sua posi¢ao, Axum ocupava um lugar central como ponto de passagem ou como parceiro integral nas trocas entre o império romano e, pelo mar Vermelho, os paises da Asia e da Azinia. Este comércio apoiava-se numa rede de cidades onde podemos distinguir trés niveis simultaneamente: Axum, capital politica e econémica; Adulis porto do reino e empério do negécio internacional; entre os dois, as cidades situadas nas extremidades do planalto e servindo de escala. O Périplo do mar Eritreu descreve Adulis como “um porto criado em virtude da lei... [E] uma aldeia de assaz grande extensio, de onde ha trés dias de viagem até Koloé, uma cidade do interior e o primeiro mercado do marfim. Deste lugar a cidade do povo chamado Auxomitoi (Axumitas), hé ainda cinco dias de viagem. E lé que chega todo o marfim provindo do pais para la do Nilo através da regiao chamada Kyneios (Senar) que dai segue para Adulis. Quase todos os elefantes ¢ 0s rinocerontes abatidos vivem no interior, se bem que de tempos a tempos, sejam.cagados na propria costa nas proximidades de Adulis”. E também o Périplo do mar Eritreu que nos informa a respeito das mercadorias trocadas: Importam-se nestes lugares estofos sem preparo fabricados no Egito pelos barbaros; vestudrios de Arsince [cidade do Egito, préxima a atual Suez]; mantas de qualidade mediocre tintas em diversas cores; cobertores de linho com franja dupla; numerosos artigos de cristal, outros de murano feitos em Diospolis [Tebas?]} lato utilizado como ornamento e em fragmentos em lugar de moeda; folhas de cobre para fazer utensflios de cozinha e que se cortam em pulseiras ¢ argolas de tornozelo para as mulheres; ferro com que se fazem lancas empregadas contra os elefantes ¢ outros animais selvagens e nas suas guerras. [...]. Assim também na regio de Ariaca [golfo de Gambay, na india], do outro lado deste mar, obtém-se ferro indiano, ago € tecido de algodio indianos, pano largo chamado monaca e aquele a que se chama sagmatogéneo, cintos, vestudrios de couro, tecido de cor malva, alguma musselina ¢ laca de cor. Destas regides exportam-se marfim, casco de tartaruga e como de rinoceronte. A maior parte daquilo que af se traz é levado para este mercado de janeiro a setembro, quer dizer de Tybi a Tote, mas as vezes langam-se ao mar por volta de setembro. (R. Mauny, “Le Périple de la mer Erythrée et le probléme du commerce romain en Afrique au sud du limes”, Journal de la Société des africanistes, 38, 1968, pp. 19-34) Aesta lista, confirmada pelas escavacdes arqueolégicas de Axum, Adulis © Matara, é necessdrio acrescentar os produtos alimentares: importagao de azeite e de vinho de Laodiceia (Siria) e da Itélia, de cereais, de vinho e de suco a93 = de uva do Egito, de trigo, de arroz, de milhete (eleusine africana), de cana-de- agticar e de dleo de gergelim da india; exportacao de trigo de Axum. As cidades axumitas mais importantes abrigavam pequenas comunidades de comerciantes estrangeiros: romanos e bizantinos, assim como arabes e indianos. Enxertavam- se nestas redes as trocas a longa distancia afticanas, em particular o comércio do ouro de Sassou (“nas paragens do qual se encontra a nascente do Nilo”) que Cosmas Indicopleustes descreveu no século VI, recorrendo talvez 20 mesmo tipo de narrativas mais ou menos lendarias nas quais Herddoto encontrara a famosa descri¢io do “comércio mudo”, feito pelos cartagineses na Africa ocidental: De dois em dois anos, o rei dos axumitas, por intermédio do chefe de Agaw envia 0s seus homens para 0 comércio do ouro. Muitos outros comerciantes se juntam a eles, de maneira que so mais de quinhentos. Levam bois, pedras de sal e ferro. Chegados perto do pais, param ali mesmo. Empilhando uma ‘quantidade de arbustos espinhosos, constroem uma grande cerca e mantém- se no interior; abatem os seus bois, cortam-nos em pedacos e expoem a carne sobre os arbustos assim como as pedras de sal e o ferro. Chegam entdo os indigenas trazendo as pepitas de ouro, grandes como graos de feijdo, e que se chamam tagkhara; p6em uma ou duas, ou mais em cima dos pedagos de carne que Ihes agradam, em cima dos blocos de sal ou em cima do ferro, e poem-se de lado. © proprietério do boi aproxima-se, e, se esta satisfeito, recupera o ouro; o indfgena por sua vez, sobrevém ¢ leva a came, as pedras de sal ou 0 ferro; inversamente, se o vendedor nao esté satisfeito, deixa 0 ouro; entao 0 outro, vendo que o vendedor nfo o recuperou, regressa; € entdo ou acrescenta ouro, ou entdo pega no que Ihe pertence e afasta-se, (W. Wolska-Conus(ed.), Cosmas Indicopleustes. Topographie Chrétienne, Livro Il, 51-52, Paris, Le Cerf, vol. I, 1968, pp. 360-62) Com um enraizamento profundamente africano, a cultura axumita revela muito cedo um auténtico cosmopolitismo. Nos restos materiais dos periodos “pré-axumitas” dominam empréstimos a civilizagdo meroitica e particularismos locais, tanto do ponto de vista da arquitetura, da escultura, da ceramica, como no dominio das crengas e das praticas religiosas, coisas que Axum herdou, conservadas ou enriquecidas, conforme os casos. As influéncias estrangeiras, j4 presentes no periodo “pré-axumita”, sobretudo provenientes da Arébia do sul, tornam-se mais evidentes a partir do século I mais ou menos. A lingua grega era utilizada, tal como 0 gueze, como lingua da monarquia, e muitos reis, entre os quais Zoscalés (século I) e Ezana (século IV), falavam e escreviam grego. No que se refere & escrita, que Axum transmitiu a Etiépia, ela tomou alguns dos seus principios ¢ dos seus elementos tanto Arabia do sul como a india. Mas Axum nio se contentou em receber as influéncias estrangeiras; a sua cultura também irradiou para ambos os lados do mar Vermelho, mesmo se este aspecto tem sido pouco -94- estudado até agora. Foi avangada a hipétese, por exemplo, segundo a qual 0 criador da escrita arménia, Mesrop Mashtotz, teria utilizado a escrita axumita vocalizada para inventar a sua, Foi no plano religioso que estas trocas atingiram o alcance mais duradouro. Os cultos pré-axumitas prolongaram-se muito além das mutacdes religiosas operadas no princ{pio da era cristd. Estes cultos assentavam num vigoroso politefsmo no qual emergem varios deuses aos quais os axumitas sacrificavam animais domésticos (bois, vacas e ovelhas): Astar, divindade c6smica, cujo culto foi muito popular; Beher e Meder, divindades cténicas* freqiientemente associadas uma outra; Mahren, divindade étnica e dindstica dos axumitas, também venerada como deus da guerra. Cultos egipcio- merofticos entraram muito cedo na regido, como mostram algumas referéncias a objetos servindo para o culto dos deuses egfpcios como Hantor, Ptah e Hérus. Desde o principio do periodo axumita, poderosas influéncias religiosas penetraram no pats. As mais visiveis foram gregas. Os axumitas adotaram certos deuses gregos dos quais nao possuiam o equivalente: assim Poseidon, deus dos Mares, tornou-se muito popular em Adulis e em toda a costa do mar Vermelho. Mas outros deuses gregos foram assimilados a deuses pré- axumitas, sendo o exemplo mais surpreendente a associacdo de Mahren com © grego Ares, o deus da guerra. Com a Arabia do sul, as trocas religiosas eram intensas e remontavam as épocas mais antigas. Da Ardbia veio 0 judaismo que foi associado durante algum tempo, como indica o Tarik Negaste (Histéria dos reis), a0 grupo dirigente. Até se encontraram em Axum estdtuas de Buda que indicam menos uma conversao dos axumitas ao budismo do que a presenga dos comerciantes indianos na capital do reino. Nesta perspectiva, a penetracao do cristianismo no reino ndo é de molde a surpreender. Data, aproximadamente, dos anos 330-360 correspondendo ao reino de Ezana. De acordo com as tradig6es reais registradas no Tarik ‘Negaste, a gloria desta iniciativa caberia a Fruméncio, um cristo de Tiro que, no regresso de uma viagem a india, parou em Axum e conseguiu introduzir- se na corte na época de Ella-Amida. Nomeado conselheiro do rei e preceptor dos seus filhos, teria tido uma grande influéncia sobre Ezana. Tendo partido para Alexandria, Fruméncio fez-se consagrar bispo e voltou a Axum onde batizou o primeiro rei cristio de Axum, Ezana. Mais do que a iniciativa de um s6 homem, a cristianizagdo de Axum inscreve-se na historia muito mais ampla das trocas comerciais ¢ culturais entre esse reino africano e Bizancio/ Constantinopla. O reino de Constantino, o Grande (imperador de 306 a 337), € contemporaneo do rei axumita Ella-Amida. Este e uma parte da sua corte parecem ter sido sensiveis 4s querelas doutrinais dividindo os cristaos nesta época e a exaltacao do cristianismo na esteira do Concilio de Nicéia (325). O batismo de Ezana no foi mais do que um momento - sem diivida o mais espetacular, de um processo de cristianizacao mais lento, que nfo se verificou -95- sem suscitar grandes resisténcias. A comparagao das versdes gregas e guezes das inscrigdes reais, quando as duas existem, é muito instrutiva a este respeito. Possuimos uma do reino de Ezana, datada de mais ou menos 350, exaltando a vit6ria deste rei sobre os boba ¢ os kasu da Nubia. O texto grego, visivelmente destinado a impressionar favoravelmente os visitantes estrangeiros, exalta Ezana como “servidor de Cristo”, e pée em evidéncia um apego sem falhas ao cristianismo. Em contrapartida o texto gueze, destinado ao povo de Axum, referia-se unicamente ao monotefsmo. De resto, um dos conceitos designando © deus dos cristaos ~ Egziabher (deus Beher) — estabelecia uma continuidade explicita entre o novo deus e a antiga divindade ctonica Beher. Podem se fazer observagdes andlogas a respeito da difusao do cristia- nismo no reino. As tradigées reais e mondsticas etfopes atribuem-na a “nove santos” (Teseatu Kidusan) — Afsé, Alef, Aragawi, Garima, Guba, Liqanos, Pan- talewon, Sehma, Yimaata — que teriam vindo de “Roma”. Também aqui se trata de uma narrativa de fundagio, na qual se apéiam as diferentes ordens monisticas etfopes declarando descender destes “nove santos”. Houve certa- mente um afluxo para Axum de monges monofisistas fugindo as perseguigdes de que eram vitimas na Siria e que se ilustraram depois pelo seu proselitismo. ‘Mas a propagacao do cristianismo.deveu também muito 4 ago combinada dos Prelados e religiosos axumitas e dos principes que, a partir do século IV, procu- raram materializar a ocupacao do territério construindo igrejas e encontraram na distribuicao de terras 4s ordens mondsticas um meio cémodo de tomar efetivamente posse dos tertitérios submetidos a sua autoridade. Estas evolug6es contrastadas, de Meroé a Axum, iam revelar-se de um efeito duradouro na formacao de espagos politicos na Africa. A desaparicao do reino de Meroé acabou por consagrar a cesura inaugurada no século VII a.C. com a queda no Egito da XXV dinastia e opondo um Egito cada vez mais mediterranico ¢ uma Niibia cada vez mais africana. Nos paises situados mais a sul do seu territério, o Egito via apenas, a partir de ento, reservatérios de mercadorias e postos fronteiricos destinados a serem neutralizados, ou entdo conquistados. Se Meroé desapareceu do mapa politico africano, persistiu na meméria, nas instituig6es politicas e nas culturas materiais do continente negro. Devemos ver nas tradicdes de origem de alguns povos oeste-africanos € centro-africanos que evocam homens vindos de leste uma referéncia a heranca meroftica e considerar a presenga, em algumas regides da Africa, de praticas registradas pela primeira vez em Meroé (realeza sagrada, técnica da cera perdida, trabalho do ferro) como uma influéncia direta deste reino? Podemos também satisfazer-nos em considerar que estes parentescos remetem para um fando cultural comum. Com Axum enfim, novo centro de gravidade politica destes periodos antigos, a Africa possufa em seu “chifre” a base de um dos seus espagos politicos mais duradouros. -96- NOTAS ' Abrange varias espécies de peixes fluviais europeus que lembram bagres de agua doce (Nota do Revisor da Tradugio). * De Chthonia que, em grego, significa “da terra” (N. R. da). 297= LEITURAS COMPLEMENTARES 1 “image du Noir dans I art occidental, volume I: Des pharaons d la chute de Empire romain, Paris, ‘The Menil Foundation, 1976. DAVIDSON, B. L “Afrique ancienne. Paris, Francois Maspero, 1973. FAGE, J.D. e OLIVIER, R.A. (eds.) Papers in African Prehistory. Cambrige University Press, 1970. MAUNY, R. Les siécles obscurs de I Afrique noire. Histoire et archéologie. Paris, Fayard, 1970. OLIVER, R. The African Experience. Major Themes in African History from the Earliest Times to the Present, New York, Harper Collins, 1992. O conhecimento adquirido: uma outra Africa a redescobrir CHARLES-PICARD, G. e C. 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