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29/10/2017 100 anos da Revolução Russa.

Os dez dias que deixaram de abalar o Mundo

Nos dias de brasa que se sucederam ao assalto do


Palácio de Inverno, à demissão do Governo
provisório de Alexander Kerensky, à tomada do
poder pelos bolcheviques e aos primeiros passos
para a instauração de uma ditadura do
proletariado, Leon Trotsky estava exultante. “O
que se está agora a passar na Rússia ficará para
sempre registado na História como um dos seus
maiores acontecimentos. Os nossos filhos, netos
e bisnetos falarão destes dias como o começo de
uma nova era na História da Humanidade”, dizia
o personagem que, ao lado de Lenine, mais
contribuiu para a Revolução de Outubro (25 de
Outubro no calendário juliano então em vigor na
Rússia, 7 de Novembro no calendário
gregoriano).

John Reed, um jornalista militante cujos restos


mortais estão depositados no mausoléu de
Lenine em Moscovo, e autor do célebre Os Dez
Dias que Abalaram o Mundo, certamente
concordaria. A Rússia mudara e, por contágio, os
proletários de todo o mundo unir-se-iam para
universalizar a revolução, matar o capitalismo e
acabar com a exploração do homem pelo
homem.

Mas havia quem duvidasse. O historiador Rui


Tavares lembra a propósito o cinismo do
Banqueiro Anarquista de Fernando Pessoa,
escrito em 1922, que a propósito dos
acontecimentos em Petrogrado (hoje São
Petersburgo) dizia: “E v. verá o que sai da
Revolução Russa… Qualquer coisa que vai
atrasar dezenas de anos a realização da sociedade
livre”.

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Cem anos depois, e olhando à forma fria e algo


distante como o mundo celebra esse evento
crucial da História do século XX, parece óbvio
que Fernando Pessoa foi mais visionário do que
Leon Trotsky. A revolução mudou o mundo, mas
fê-lo de forma efémera. Criou uma das correntes
políticas mais poderosas do seu tempo, mas foi
incapaz de a conservar depois da queda do
regime soviético em 1991. Mobilizou as crenças
de milhões de pessoas, mas foi incapaz de as
alimentar por mais do que 70 anos.

Por estes dias em que se cumprem 100 anos da


Gloriosa Revolução Socialista, o mundo deixou
de abalar. O que entre 1917 e 1991 foi visto como
um acontecimento fulcral do século passado
parece hoje um exotismo incidental,
insusceptível de festejo ou de condenação. Os
acontecimentos que John Reed conta com
empenho e entusiasmo fazem parte de uma
memória distante.

A revolução caótica, violenta e sonhadora que


levara pela primeira vez na história do mundo a
classe operária, os soldados e os camponeses ao
poder de uma grande potência europeia deixou
de ser uma memória incómoda. Em 1917, o
mundo ficara de facto abalado e as chancelarias
europeias assustadas, os sonhos mais radicais e
jacobinos da Revolução Francesa tinham sido
finalmente cumpridos, as utopias socialistas do
século XIX tornaram-se realidade, as profecias
de Karl Marx e de Frederich Engels aconteceram
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mesmo, a Primavera dos Povos de 1848 realizou-


se, as barricadas da Comuna de Paris de 1870
pareciam ter finalmente vencido. Durante três
gerações, essa paleta de vitórias deu origem à
crença na marcha irreversível do comunismo.
Para depois do colapso da Perestroika se dissipar
nas prioridades de um novo tempo com novos
desafios, ameaças distintas e respostas por
encontrar.

Experiência do "socialismo
real"
Apesar de estarem fora de moda, as visões que
profetizavam uma sociedade sem classes ou o
poder popular ainda são capazes de suscitar
devoção. “A revolução socialista é o
acontecimento mais marcante na História da
Humanidade, um acontecimento que simboliza a
luta pela emancipação dos seres humanos”, diz
Manuel Rodrigues, membro do Comité Central
do PCP e director do jornal Avante. Do outro
lado da barricada ideológica, Paulo Rangel
regista essa “utopia positiva”, mas não encontra
nada mais para comemorar. “Esse evento não é
um momento libertador como a Revolução
inglesa de 1649, ou as revoluções francesas e
americana do século XVIII. Não foi a vitória do
povo sobre o autoritarismo, mas de um
autoritarismo sobre outro”, diz o eurodeputado
eleito pelo PSD e colunista do PÚBLICO.

Se na origem da revolução há a marca de um


sonho e a exigência da justiça no combate contra
a “opressão tirânica dos czares”, como a define
Manuel Rodrigues, o resultado final do processo
justifica para muitos o seu enterro na memória.
Jaime Nogueira Pinto, politólogo, empresário e
escritor lembra que é difícil haver qualquer ponta
de “orgulho” na reafirmação da experiência do
“socialismo real”. “É o terror vermelho começado

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já com Lenine e Trotsky e consumado por


Estaline, são milhões e milhões de vítimas de
fomes políticas, de torturas, de campos de morte.
É um fracasso histórico e uma grande mentira”,
nota. “Com excepção do PCP, que não quererá
muito reclamar o legado, os partidos comunistas
praticamente desapareceram da Europa. E as
‘utopias reais’ que restam – Cuba, Coreia do
Norte (…) – são risíveis ou assustadoras”,
acrescenta o politólogo. À esquerda, o
historiador Rui Tavares, colunista do PÚBLICO,
concorda: “Não há quem seja capaz de defender
o legado da revolução, ou o regresso ao que se
fez na altura”.

É o terror vermelho começado já com Lenine e Trotsky e


consumado por Estaline, são milhões e milhões de vítimas de
fomes políticas, de torturas, de campos de morte. É um fracasso
histórico
Jaime Nogueira Pinto, politólogo

Para lá dos olhares de defesa ou de condenação,


a “Gloriosa Revolução Socialista” impõe-se pelas
marcas que ainda hoje se conservam na
geopolítica, que se consagram na geografia ou
resistem no campo das ideias. Durante toda a
“breve história do século XX”, na famosa
definição do historiador britânico de inspiração
marxista Eric Hobsbawm, o exemplo da
Revolução de Outubro de 1917 chegou a ser mais
do que um abalo. Foi uma esperança que
mobilizou as paixões e os ódios de milhões de
pessoas. Foi uma inspiração para progressistas
ou uma aflição para conservadores e liberais. A
expansão do comunismo no pós-Segunda
Guerra Mundial ameaçou tornar-se um destino.
Mais de um terço da humanidade chegou a viver
em regimes moldados ou inspirados na fórmula
vitoriosa dos bolcheviques. Nem a barbárie das
fomes impostas que levaram à morte de milhões

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de camponeses ucranianos, nem as purgas


estalinistas, nem o Gulag, nem o novo
imperialismo soviético, nem o esmagamento da
revolta húngara de 1956 ou da Primavera de
Praga de 1968 foram capazes de matar no
Ocidente a crença num destino com “amanhãs
que cantam”. Foi o fim da Guerra Fria, o colapso
soviético em 1991 e o augúrio de um “fim da
História” que imporia o triunfo generalizado da
democracia liberal a esvaziar irreversivelmente o
poder dessa ideia.

Cartaz comemorativo do 13.º aniversário da revolução COLECÇÃO HERITAGE/GETTY IMAGES

Separar os "brancos" dos


"vermelhos"
O registo frio com que se comemoram os 100
anos da revolução é o sinal inequívoco desse
triunfo. Pelo menos na Europa Ocidental. Em
Bruxelas, os países que ficaram do outro lado da
Cortina de Ferro invocam os tempos sombrios da
era soviética. Nas outras capitais europeias,
organizam-se conferências e pouco mais. Para lá
da reedição de A Tragédia de um Povo de
Orlando Figes (edição Dom Quixote), a obra
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seminal da Revolução publicada pela primeira


vez em 1996, da publicação de uma nova
biografia de Lenine da autoria do historiador
Victor Sebestyen (Lenin the Dictator: An
Intimate Portrait) ou uma nova interpretação
dos eventos revolucionários de Sean McMeekin
(Russian Revolution, a New History), a
efeméride passou ao lado do universo editorial.

Na Rússia, a pátria da Revolução, as justificações


vão no entanto muito para lá da noção sobre a
decrepitude de uma ideia. Ou da rejeição do
legado que ela gerou. A era soviética é ainda uma
ferida aberta que o regime tenta cicatrizar com o
esquecimento. Nesse esforço, tudo é feito com
cautela e precisão, até porque o Partido
comunista é ainda hoje a segunda força política
(obteve 13% dos votos em 2016). O Governo
nomeou uma comissão para organizar as
comemorações da efeméride e entregou a sua
liderança a Sergey Naryshkin, que dirige a
Sociedade Histórica da Rússia e os serviços
secretos no exterior do Governo (a SVR). O seu
programa consiste em promover conferências,
numa recriação da tomada do Palácio de Inverno
e pouco mais. Falar da revolução, sim, desde que
se evite a fractura que há 100 anos separa os
“brancos” (igreja, nobres, conservadores) dos
“vermelhos”. Ao contrário do que aconteceu há
dez anos, a televisão ausentou-se em sintonia
com o desinteresse que se instalou na sociedade
russa.

Se na Rússia há condescendência ou apoio ao


legado do regime que nasceu da revolução de
1917, principalmente entre os mais velhos,
também há contestação e intolerância. “Há
muita gente que considera a revolução um
desastre para a Rússia. Como a extrema-direita
ou a Igreja Ortodoxa Russa”, diz José Milhazes,
jornalista e historiador que viveu 38 anos em

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Moscovo. “Há quem considere o czar Nicolau II


um santo e diga que a revolução de Outubro foi
uma obra do diabo, da maçonaria, dos judeus”,
acrescenta o jornalista. A saudade do tempo
imperial, em que a “Rússia Sagrada” se
manifestava numa aliança inabalável entre a
Igreja, a nobreza e o czar permanece. Este
Verão, o anúncio da estreia de um filme de Alexei
Uchitel que contava uma relação amorosa entre
o czar Nicolau II e uma bailarina polaca
(Mathilda Kschessinska) gerou uma vaga de
protestos entre os ortodoxos que culminaram no
lançamento de cocktails molotov contra o
estúdio do realizador. A relação que está na base
do guião aconteceu antes de o czar se casar com
Alexandra. Mas nem essa factualidade impediu
que o extremismo da direita admitisse uma
“afronta” à imagem imaculada do imperador.

O cuidado com que o Governo pretende


organizar as comemorações pretende afinal
continuar uma linha de reconciliação do país que
Boris Ieltsin inaugurou e que Vladimir Putin e o
seu fiel companheiro Dmitri Medvedev tentam
há anos consolidar. Em 2005, a data que
celebrava o dia do assalto ao Palácio de Inverno
(8 de Novembro) deixou de ser feriado. O
Kremlin usa agora essa data para celebrar com
paradas militares a partida dos soldados que, em
1941, saíram da Praça Vermelha para travar o
avanço dos alemães que estavam às portas de
Moscovo, na II Guerra Mundial. Em vez da
revolução, a Rússia comemora hoje no dia 4 de
Novembro o “Dia do Acordo e Reconciliação”,
feriado que celebra a expulsão das tropas polacas
em 1612, o primeiro passo para a criação do
estado moderno na Rússia com a subida ao
poder dos Romanov.

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Putin tem uma relação muito ambígua em relação ao passado


soviético. Elogia uns factos, condena outros. Isso cria alguma
confusão”
José Milhazes, jornalista

Para um homem como Vladimir Putin, um ex-


agente do KGB que chegou à presidência em
2000, a revolução foi um acidente de percurso,
mas a queda da União Soviética “foi a maior
tragédia geopolítica do século XX”, como
afirmou há anos no Parlamento. “Putin tem uma
relação muito ambígua em relação ao passado
soviético. Elogia uns factos, condena outros. Isso
cria alguma confusão”, diz José Milhazes. Por
um lado, a Rússia que ele quer personificar é
uma entidade una e indivisível que vem dos
czares, abarcou a era soviética e se prolonga
naturalmente sob o seu comando. Nessa linha
fluida do tempo, não pode haver lugar para
nódoas, nem revoluções. Com a sua subida ao
poder, os livros escolares deixaram de denegrir o
passado soviético. Em 2007, numa conferência
com professores de História, Putin declarou que
“sim, nós tivemos algumas páginas terríveis;
lembremo-nos dos acontecimentos iniciados em
1937, não nos esqueçamos deles” (nesse ano
ocorria o auge da grande purga que culminou
nos infames “julgamentos de Moscovo”, onde
Estaline dizimou a velha guarda do bolchevismo
condenando à morte líderes históricos como
Zinoviev, Kamenev, Radek ou Bukharin). “De
qualquer modo”, continuou, “nós não lançamos
mais bombas sobre um pequeno país de que
todas as bombas largadas na II Guerra Mundial,
como os americanos fizeram no Vietname”.

Comemorar a revolução pode fazer sentido para


sublinhar as conquistas soviéticas na ciência ou
para celebrar o esforço titânico da Rússia na II
Guerra Mundial e homenagear os 20 milhões de
russos mortos na vitória contra os alemães. Não
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para homenagear vanguardas revolucionárias ou


movimentos de massas em desafio às
autoridades. Putin acolhe nas suas pontes com o
passado figuras como Estaline ou Ivan, o
Terrível, porque eles ajudaram a projectar e a
consolidar o sonho da Grande Rússia. No que, de
resto, é acompanhado por uma parte significativa
da população russa. Na sua introdução à edição
comemorativa dos 100 anos da revolução da
obra A tragédia de um povo (a mais abrangente e
profunda obra historiográfica sobre o período), o
historiador Orlando Figes lembra um concurso
de 2011 na televisão chamado o “Tribunal do
Tempo”, em que se discutiam os crimes
humanos praticados na era de industrialização
de Estaline. Nas suas respostas, 78% dos
espectadores consideraram que esses crimes se
justificavam à luz de uma “terrível necessidade”.

Cartaz do artista plástico russo Nikolai Mikhaylovich Kochergin, 1932 COLECÇÃO BETTMAN / GETTYIMAGES

As causas e as consequências

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Para restaurar o significado original do imparável


“movimento de massas” que entre Fevereiro e
Novembro de 1917 derrubou a dinastia Romanov
que durava há três séculos e seguiu Lenine e
Trotsky no destino que levaria a um mundo
melhor, talvez faça sentido olhar para as causas,
perceber a lógica do movimento e, por um
instante, parar no momento da tomada de poder
dos bolcheviques. Em Fevereiro, a falta de pão
em Petrogrado (na época a capital imperial)
origina uma série incontrolada de greves e de
conflitos com a polícia. Os soldados, vítimas de
uma cadeia de comando insensível e
incompetente que conduzira à matança na frente
leste da Primeira Guerra Mundial, colocam-se ao
lado da população. O poder do czar e da
oligarquia fica nu. Daí a seis meses, seria a vez do
ensaio de democracia parlamentar conduzido
pelo Governo de Kerensky ser dizimado pelo
radicalismo imparável dos bolcheviques.

A primeira etapa da revolução, em Fevereiro,


pode ser vista como a repetição dos protestos de
1905, que forçaram o czar Nicolau II, o “grande
autocrata da Rússia”, como se intitulava, a
resignar-se a uma leve abertura do regime,
autorizando a criação de um parlamento (a
Duma). Era, afinal, o corolário de uma longa luta
entre as aspirações de uma sociedade cada vez
mais urbana e aberta aos avanços do
constitucionalismo, dos direitos e liberdades
fundamentais e da democracia burguesa que se
haviam espraiado um pouco por toda a Europa
durante o século XIX. Na Rússia, porém, todas
as tentativas de abertura acabaram por ser
violentamente reprimidas. Em 1860, Alexandre
II, avô de Nicolau, ensaiou uma tímida
liberalização: libertou os servos (a Rússia foi o
último país europeu a fazê-lo), permitiu a
organização de partidos, relaxou a censura e
ensaiou um programa de reformas na

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administração para acolher a dissidência e


demolir um regime anacrónico e fossilizado. O
seu assassinato em 1881 pelo grupo extremista
Vontade do Povo deitaria tudo a perder.

A revolução socialista é o acontecimento que simboliza a luta


pela emancipação dos seres humanos
Manuel Rodrigues, director do "Avante"

O seu filho Alexandre III e, depois de 1894,


Nicolau II dispuseram-se a enfrentar os liberais e
os socialistas e fizeram regressar o modelo
musculado da tradição autocrática “moscovita”.
A insensibilidade do último czar perante as
carências do seu povo era extrema – na
celebração da sua coroação, em 1896, 1300
pessoas morreram esmagadas, mas nem isso
impediu a família imperial de ir ao baile
organizado pelo embaixador francês nessa noite.
A repressão era continuada e brutal e a violência
política que fez germinar os socialistas
revolucionários ou os operários social-
democratas (os bolchevistas são o ramo radical
deste partido) tornou-se uma forma de vida. Em
29 de Janeiro de 1905, dia que ficaria conhecido
por “domingo sangrento”, as forças de segurança
puderam disparar livremente para travar o
avanço de manifestantes indefesos, entre os
quais mulheres e crianças. Morreram mais de
mil pessoas. Em Junho, no esmagamento do
motim da tripulação do couraçado Potemkin,
dois mil civis perderam a vida.

Nicolau II “foi o pior czar da História da Rússia e


levou o país para a catástrofe”, diz José Milhazes.
A sua cedência destaparia um pouco a pressão
política e social, mas a abertura do regime que
anunciou num manifesto colidia com a sua
vontade e não passou de um gesto de
dissimulação. A Duma tinha apenas um poder
decorativo. A passagem pelo cargo de primeiro-
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ministro de políticos reformistas como Piotr


Stolypin revelou-se inútil perante as forças
conservadoras congregadas em torno do czar
(Stolypin seria assassinado na ópera de Kiev por
um esquerdista radical e o seu nome acabaria
eternizado nas “gravatas de Stolypin”, que
Lenine citava para descrever os seus métodos
repressivos). O poder oculto de um místico como
Grigori Rasputin na corte imperial (a imperatriz
Alexandra, de origem germânica, acreditava que
ele tinha poderes para curar a hemofilia do
príncipe herdeiro, Alexei) causava revolta. Os
escândalos financeiros em que Rasputin se
envolveu e os seus deboches sexuais tornaram-
no num personagem odiado – acabaria
assassinado a tiro por dois homossexuais
próximos da corte em Dezembro de 1916, depois
de o veneno servido com vinho Madeira não ter
resultado.

A entrada da Rússia na I Guerra Mundial


colocaria o regime sob um stress insustentável. A
revolta de Fevereiro de 1917 obriga o czar,
perplexo e queixoso dos “traidores”, a abdicar.
Um Governo provisório dominado pela esquerda
radical sob a presidência de Kerensky toma o
poder. A dinâmica da revolução entra então
numa espiral de descontrolo. Ao lado do poder
do Governo ergueu-se um novo poder centrado
no Soviete de Operários e Soldados de
Petrogrado. Os sovietes (conselhos) tinham
aparecido na revolta de 1905, mas 12 anos depois
mostraram uma capacidade de mobilização e de
influência que em breve esvaziaria o Governo.
Principalmente depois de Lenine ter feito a sua
longa viagem num comboio pago pelo Governo
alemão (interessado na desestabilização do país)
e ter desembarcado na Estação da Finlândia, em
Abril de 1917.

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Ao contrário das expectativas, o Governo não


acaba com a guerra. Nem avançou com a entrega
de terras aos camponeses. Nem foi capaz de gerir
a máquina administrativa do Estado para
garantir alimentos básicos à população ou aos
soldados da frente. No final de Outubro, a Rússia
urbana era o caos. No culminar da tensão desses
dias, Lenine e Trotsky forçam o golpe, apesar da
oposição interna no partido. O apelo a “todo o
poder aos sovietes” estava a dar frutos. A sua
“dinâmica revolucionária” era imparável. O
escasso poder do Governo baseado no Palácio de
Inverno ruíra. A ditadura do proletariado estava
para breve.

O passado talvez presente


Mais do que as consequências trágicas do terror
leninista e estalinista, a grande lição que se pode
extrair da Revolução de Outubro está
principalmente na sua dinâmica. Um líder
determinado e ousado como Lenine, capaz de
organizar uma vanguarda revolucionária para
derrubar o poder, faz sentido nos nossos
tempos? O descontentamento generalizado das
massas populares é capaz de promover na
actualidade abalos sísmicos que obrigam à
mudança de regimes? No seu prefácio à actual
edição de A Tragédia de um Povo, Orlando Figes
deixa pistas para estas interrogações. Para o
historiador, as similitudes entre a Revolução de
Outubro e o Euromaidan na Ucrânia, em 2013,
ou a Primavera Árabe são evidentes. Depois, os
métodos do ISIS (Estado Islâmico), “o uso da
guerra e do terror para criar um estado
revolucionário, a devoção fanática e a disciplina
militar dos seus seguidores, e o seu brilhante uso
da propaganda foram aprendidos com os
bolcheviques na guerra civil russa”.

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Fazer pontes entre o passado e o futuro é um


exercício cheio de riscos e de dúvidas. “1917 foi
1917. A revolução resultou de um exército de
camponeses desmoralizados pelas derrotas
sofridas, com uma elite político-social mais ou
menos desacreditada em termos de legitimidade,
e da teimosia de Kerensky em querer prosseguir
a guerra ao lado dos Aliados anglo-franceses a
quem a Rússia era devedora de grandes somas”,
nota Jaime Nogueira Pinto. “Havia um
operariado forte nas áreas de Petrogrado e
Moscovo e havia Lenine, que percebia de
técnicas de golpe de Estado e de revolução, como
se viu nas Teses de Abril e no que fez depois”,
acrescenta o politólogo. Manuel Rodrigues segue
de perto esta análise quando diz que “nenhum
acontecimento é repetível sem as condições
exactas em que se desenvolveu”. E explica: "A
revolução aconteceu no contexto objectivo da
velha Rússia, um país oprimido, num tempo de
guerra, com grande miséria e um povo com mais
de 75% de analfabetos. E depois havia os factos
subjectivos, como o papel notável de Lenine, a
teoria revolucionária de Marx e Engels, a
formação dos sovietes ou do partido
bolchevique”.

Mas não se perde nada em fazer cenários e em


retirar dos acontecimentos de há 100 anos lições
que podem antecipar os desafios do presente.
“Marx e a revolução Russa têm interesse, dada a
crescente clivagem que hoje existe entre as
classes sociais. O que é evidente na ascensão dos
populismos é a clivagem entre uma classe
globalizada e uma classe não globalizada. Não sei
se aí não há o risco de a qualquer momento
haver a vingança de uma classe sobre a outra”,
explica Paulo Rangel. “Só temos de pegar na
nossa imaginação e regressar no tempo 100
anos, num contexto diferente, com guerra,
carências, etc., para entendermos como é que as

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massas podem virar de um momento para o


outro”, diz Rui Tavares. Olhando o presente,
poderá haver um novo cataclismo com este? “Eu
digo que sim. A revolta e indignação são reais.
Estamos num período de grande
imprevisibilidade política. O populismo é uma
ameaça”, considera este historiador.

Só temos de pegar na nossa imaginação e regressar no tempo


100 anos, num contexto diferente, com guerra, carências, para
entendermos como é que as massas podem virar de um
momento para o outro”
Rui Tavares, historiador

Um movimento de massas revolucionário “é


mais provável do que aquilo que todos julgamos.
Uma revolução no sentido mais mítico do termo
não é improvável. A simples sucessão de
acontecimentos nos últimos três anos, com o
'Brexit', a eleição de Trump, os regimes da
Hungria ou da Polónia ou a Catalunha,
mostram-nos que algo pode estar a acontecer.
Não sabemos o quê, mas que pode acontecer
alguma coisa, isso pode”, nota Paulo Rangel.
Numa terminologia de inspiração marxista, pode
dizer-se que o mundo actual estará a criar
“condições objectivas” para novos abalos como o
de 1917. O que consagraria a fatalidade do
materialismo dialéctico. “O rumo da História é
este: uma sociedade com classes antagónicas,
com oprimidos e opressores, levará sempre os
oprimidos a desenvolverem lutas no sentido de
se libertarem”, argumenta Manuel Rodrigues.

Se a revolução de 1917 nos mostra como a


injustiça, a opressão ou a carência de bens
básicos são capazes de mobilizar multidões, a
energia desse protesto só se concretiza se houver
uma organização capaz de a exponenciar e uma
ideia para a cimentar. Para os comunistas, o

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29/10/2017 100 anos da Revolução Russa. Os dez dias que deixaram de abalar o Mundo

programa de Lenine e dos bolcheviques


permanece actual. “A luta pelo ideal de uma
sociedade onde não haja exploração do homem
pelo homem continua e dará origem a novos
projectos”, diz Manuel Rodrigues. Mas, essa
visão não será hoje ainda mais utopia do que era
há 100 anos? Afinal, não foi o próprio regime
soviético a instituir que todos os homens são
iguais, mas que há homens mais iguais do que
outros, na célebre definição do estalinismo feita
pelo britânico George Orwell no seu seminal O
Triunfo dos Porcos?

O que é evidente na ascensão dos populismos é a clivagem entre


uma classe globalizada e uma classe não globalizada.
Paulo Rangel, eurodeputado

O romantismo de uma sociedade perfeita, sem


classes, sem exploradores e explorados, “tem a
ver com a utopia e com a radicalidade da utopia.
Ou dos mitos. É a ideia de uma sociedade
perfeita que transforma a condição humana”, diz
Jaime Nogueira Pinto, que avisa: “No fundo é a
ideia – romântica e anti-cristã – que a sociedade
pode, por voluntarismo, mudar a condição
humana. Resultou mais em distopia do que em
utopia. Não tem dado grandes resultados
práticos, mas também é preciso manter essa
ideia de mudança, sem a qual ainda estaríamos
nas cavernas ou nas pirâmides”.

“A utopia faz falta”, avisa Paulo Rangel. E um


instrumento para se ensaiar, também. Se há
muitos pensadores a fazerem diagnósticos
profundos sobre a realidade, como o alemão
Ulrich Beck com a sua “sociedade de risco”, ou
como o fez o polaco Zygmunt Bauman com o
conceito de “sociedade líquida”, nota Paulo
Rangel, nenhum pensador ajustou as ideias a
um código de acção para deixar de se pensar
apenas no mundo mas para o transformar, como
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fez Karl Marx. E aí, uma vez mais, o exemplo


soviético, com a sua indiferença pela pessoa
humana, é dissuasor. “O sonho da sociedade
justa é um projecto que procede a revolução de
Outubro e espero que sobreviva muitos anos ao
final do comunismo”, diz Rui Tavares. Porque,
afinal, os ideais de liberdade, igualdade e
fraternidade são anteriores a Lenine e há uma
corrente no pensamento socialista que vai
resistindo aos humores do tempo. “Deve
continuar a pensar-se o socialismo como
começou a ser pensado na revolução Industrial.
A revolução russa não conseguiu estragar essa
ideia”, nota Tavares.

Até por isso, regressar a Novembro de 1917 é


uma forma de afinar ideias para a direita e para a
esquerda e enquadrar os acontecimentos de 1917
num tempo que talvez não esteja tão distante
desses dias como se pensa. “O que me preocupa
é que estejamos a repetir o que aconteceu antes
da Primeira Guerra Mundial”, diz Paulo Rangel.
Na Primavera de 1914 a Europa vivia
descontraidamente e a guerra era para a
generalidade dos europeus uma miragem. Em
Agosto tinha começado o horror que matou mais
de 10 milhões de pessoas. E em Fevereiro de
1917 rebentou a primeira etapa de uma revolução
que abalaria o mundo pelo seu radicalismo, pela
sua violência e pelos custos humanos que
provocou. Talvez, por isso, o regime soviético
possa ser esquecido; mas as causas e os
processos que o instituíram, não.

Este artigo encontra-se publicado no P2,


caderno de domingo do PÚBLICO

manuel.carvalho@publico.pt

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