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Victor Nunes Leal CORONELISMO, ENXADA E VOTO. © municipio ¢ o regime representative no Brasil 6 impressio CORONELISMO, ENKADA E VOTO ‘muito menos produto da importancia e do vigor dos senhores de terras, do que da sua decadéncia. A debi deiros s6 aparenta fortaleza em contraste com a grande massa lade dos fazen- = de gente que vive, mesquinhamente, sob suas asas e enche as umas eleitorais a seu mandado. © “coronelismo” assentay pois, nessas duas fraquezas: fraquera do dono de terras, que _ se ilude com o prestigio do poder, obrido & custa da submis» ica: fraqueza desamparada e desiludida dos seres © ‘quase sub-humanos que arrastam a existéncia no trato das sfo pol suas propriedades.* : Muito longe esto os “coronéis” de hoje ¢ de ontem — que to repetidamente tém de apelar para o brago do dele gado de policia — daqueles rebeldes ¢ poderosos senhores rurais de certo perfodo colonial, que eram 0 governo ea lei de seus dominios. O poder que uns ¢ outros ostentam, embora possa aprescntar aspectos extetiores semelhantes, € expresso; num caso, da forga de um sistema escravista e pactiarcal eri seu apogeu ¢, no outro, da fragilidade de um sistema rural decadent, baseado na pobreza ignorante do trabalhador da roga.e sujeito aos azares do mercado internacional de matérias? primas e de géneros alimenticios que no podemos controlar: ‘A mdlhor prova de que 0 “coron toma de decadéncia do que manifestagio de vitalidade dos senhores rurais, nds a temos neste fato: & do suerificio da autonomia municipal que ele se tem alimentado para sobreviver. 10” é antes sin2: CAPITULO SEGUNDO Atribuigées municipais 1—Coneeito quantiativo, II — Apogeu das cémaras coloniais. III — Reagao da Coroa. Fortalecimento do poder rea apés a trasladagso da Corte. IV — A lei de 1828. V—O Ato Adicional ea reagio centralizadora, ‘VI_— Auibuigées municipais no regime de 1891. VIE — A fase do Governo Provissrio de 1930. VIII — A Constituigio de 1934 e os departamentos de munici- palidades. IX — Submissio do muni de 1937. X — Constieuigéo de 1946: assisténcia whe- nica aos municipios ¢ fscalizagSo de suas finangas. XI — Intervengéo do Estado na ordem econémica: seu reflexo sobre as atribuig6es dos municipios, X11 — Municipalismo ¢ federalismo, I Precisar quais devam ser, numa boa organizasio admiinistrativa, as atribuigoes municipais, é tarefa de extre- ta dificuldade. As indicag6es muito gerais pouco esclareci- mento podem trazer. Quando se diz, por exemplo, que de- caber ao municipio as tarefas de natureza local, ou do 9 CORONELISMG, ENKADA E VOTO seu peculiar interesse, resta ainda definir 0 conceito auxiliar tomado para referencia, A dificuldade aumenta quando se observa que certos assuntos, que ontem sé diziam respeito & vida de um municipio, podem hoje interessar a diversos, a todo um Estado, ou mesmo ao pais inteiro. Essa variacao, ‘no tempo, da area territorial sobre a qual repercute um gran- de numero de problemas administrativos torna muito reia- tiva a nogio de peculiar interesse do municipio, ou de in- teresse local, perturbando a solusio do assunto no terreno doutrinario De resto, néo comporta o plano deste trabalho dis- cutir questées do municipalismo ideal, mas to somente pro- curar compreender alguns aspectos do municipalismo que 0 ‘nosso pais efetivamente tem conhecido. Neste sentido, o que ‘mais importa ¢ verificar como se tem ampliado ou restringido a esfera propria do municipio, comparando as diversas fases lumas com a5 outras € ndo com qualquer modelo erigido « priori em definitivo critétio de aferigio. Dentro dessa orientagio, comesaremos no periodo da mais ampla expansao das cimaras, nos tempos coloniais, ¢ seguiremos, dai por diante, as sucessivas limiragGes impostas & autonomia dos municipios, malgrado as diversas manifesta- ges, quase sempre esporadicas, em favor de maiores fran- quias municipais. 0 I Somente nas localidades que tivessem pelo menos 2 categoria de vila, concedida por ato régio,' podiam instalar-se as cAmaras municipais, cuja estrutura foi transplantada de Por- tugal, a principio, na conformidade das Ordenagdes Manue- Jinas e, mais carde, das compunha-se dos dois julzes ordinarios, servindo um de cada inas. A cimara propriamente dita? vyez,? ou do juiz de fora (onde houvesse) ¢ dos trés vereadores. Eram também oficiais da camara com fungées especificadas, 0 procurador, 0 tesoureiro e o escrivao, investidos por eleigio, da mesma forma que os juizes ordinarios ¢ os vereadores. A pré- pria cimara é que nomeava os juizes de vintena, almotacés, ros € outros funcionatios. depositirios, quadi Os oficiais da cimara, especialmente os vereadores ‘em suas deliberagées conjuntas com 0 juiz, ¢ os funcionérios subordinados incumbiam-se, no limite de suas atribuigoes, de todos os assuntos de ordem local, nao importando que fossem a. Os atos de de natureza administrativa, policial ow judi contetido normativo constavam principalmente das posturas € editais, subordinados ao controle de legalidade ¢ de conve- niéncia exercido pelo ouvidor, que tinha funcées de corregedor de comarca, 0 qual por sua ver era subordinado a outras autoridades na hierarquia administrativa colonial.’ Ao couvidor incumbia, assim, determinar is autoridades locais que “facam as benfeitorias publicas, calgadas, pontes, fontes, po- ‘G05, chafarizes, caminhos, casas do Concelho, picotas, ¢ outras a CORONELISMO, ENXADA E VOTO benfeicorias, que forem necessérias, mandando logo fazer as ‘que cumprir de novo sejam fetas, ¢ reparar as que houverem ister reparo”.® Resumindo as atribuigSes de carater local, dispunham as Ordenagoes que “aos vereadores pertence ter carrego de rodo o regimento da terra e das obras do Concelho, ‘ede tudo o que puderem saber, e entender, porquea terrae os moradores dela possam bem viver, € nisto hao de trabalhar”,? Para satisfago desses encargos, dispunham as cimaras de ren- das proprias, em regea exiguas, ou recorriam a contribuigées especizis para determinada obra.* Nao se pode, entretanto, compreender o funciona- mento das instituigdes daquele tempo, inclusive das autorida- des locais, com a nocéo moderna da separagio de poderes, baseada na divisio das funges em legislativas, executivas € judicidrias. ? Havia, nesse terreno, atordoadora confusio, exer- cendo as mesmas autoridades fungées pblicas de qualquer natureza, limitadas quantitativamente pela definigéo, nem sempre clara, das suas atribuigbes, ¢ subordinadas a um con- trole gradativo, que subia até 20 Rei.!? Descrevendo as cimaras da Colénia, observa Carva- Iho Mourdo que tinham “fang6es muito mais importantes do que as das modernas municipalidades. Assim € que, além das atribuigdes de interesse peculiar do municipio, exerciam elas fancdes hoje a cargo do Ministério Pblico, denunciando cri- ‘mes ¢ abusos aos juizes, desempenhavam fungSes de policia rural e de inspecdo da higiene puiblica, auxiliavam os alcaides 2 Arninvicoes ssumtcienis no policiamento da terra e elegiam grande ntimero de fun- cionétios da administragio geral, ais como: os almoracés, as- sistidos do alcaide-mor;"" os quatro recebedores das sas, os de- positirios judiciais, © do cofte de drfios, 0 da décima, os __avaliadores dos bens penhorados, 0 escrivio das armas, os qiua- drilbeiros — guardas polici is do termo — e outros funcio- - néios, Tinham, além disso, as Camaras 0 direito de nomear | procuradores as Cortes... + Afora as fungSes policiais e judicidrias, de que erata- - remos com mais minudéncia em outro lugar, 0 exercicio das atribuigGes da cimara competia, ou aos vereadores reunidos com 0 juiz, ou especificamente a determinado funcionario. O procurador, por exemplo, requeria ¢ fiscalizava as obras de "que necessitassem os bens do concelho, cobrava as multas, representava o concelho em juizo e funcionava como tesoureito, onde niio houvesse. O tesoureiro arrecadava as rendase fazia as ddespesas determinadas pelos vereadores, 0 escrivio funcionava como secretirio ¢ encartegado da escrituracio da cAmara ¢ como exctivia judicial nas causas de jurisdigio des © regime municipal sob 0 dominio holandés apre- sentava certas peculiaridades,!* e os aldeamentos de indios administrados por ordens religiosas nao podiam ser considera- dos exemplos de governo local."* [Niio é possivel, contudo, saber © que eram as cimaras coloniais pelo simples exame da legislagio aplicavel. Se, no entender de Carvalho Mourio, no chegamos a ter munici- 3 coron IsMO. ENKADA £ voTO palismo original, “pretensdes exorbitantes” ¢ os “impetos de rebeldia” das cimaras, que ele qualifica de “faros acidentais","” refletiram durante muito tempo o estado social da Colénia, com o poder privado desafiando © poder piiblico e quase sem- pre tolerado e néo raro estimulado pela Coroa. Durante pe- riodo bem longo — cujo termo final Caio Prado Jiinior situa em meados do século XVII, como adiante veremos —, a5 ci ‘maras exerceram imenso poder, que se desenvolveu & margem dds textos legais ¢ muitas veres contra eles, Nio raro, porém, a Coroa sancionava itpagses, praticadas através das cimaras pelos oniporentes senhores rurais. Legalizava-se, assim, uma situagio concreta, subversiva do di legislado, mas em ple- Cida nestas longinquas paragens. Seria dificil conver essas mani- festagies do poder privado em uma estrutura iia unidade fundamental — que imprimia o seu selo no conjunto das de- ig6es — era o extenso dominio rural, essencialmen- te monocultor ¢ construido sobre o trabalho escravo."* © Rei, muitas vezes, era ou se mostrava impotente para deter o man- donismo desses porentados, que dominavam cimaras e, por meio delas, todo © espago territorial compreendido em sua Jurisdigao. A massa da populagio — composta em sua grande maioria de escravos ¢ dos trabalhadores chamados livres, cuja situagdo era de inteira dependéncia da nobreza fundidria ® — tambem nada podia contra esse poderio privado, ante o qual se detinha, por vezes, a propria soberania da Coroa. % Armpuicoes MUN Nao seria, pois, de estranhar que no petiodo aludido, de dominagao quase exclusiva do senhoriato fundii tives sem as cimaras wunicipais — instrumenco do seu poder na cordem politica — uma larga esfera de acribuigbes, que resulea- va muito menos da lei do que da vida. “Se dentro do sistema politico vigente da colénia — diz Caio Prado Jiinior — so descobrimos a soberania, o pader politico da Coroa vamos encontrilo, de faro, investido nos propriettrios rurais, que 0 cexercem acravés das adi Referindo-se as Cmaras de Sao Luis e Belém, assim pais.” inistragbes m\ descreve Joao Francisco Lisboa, em trecho clissico. enso poder politico que se arrogam os senados das duas cidades’ "Do exame e estudo dos seus arquivos, das memérias do tem- po, € das leis e carcas régias consta que os mesmos senados, dios, 10s com direito ou sem ele, taxavam 0 prego ao jornal dos mais trabalhadores livres em geral, aos artefatos dos mecinicos, 2 carne, sal, farinha, aguardente, ao pano ¢ fio de algodio, aos medicamentos, ¢ ainda &s proprias manufacuras do reino. Regulavam 0 curso ¢ valor da moeda da terra, pro- viam tributos, deliberavam sobre entradas, descimentos, mis- ses, a paz e a guerra com os indios, e sobre a criagio de arraiais e povoagées. Prendiam ¢ punham a ferros a fancion4- rios e particulares, faetam aliancas politicas entre si, chama- vam finalmente a sua presenga, € chegavam até a nomear € suspender governadores e capitis. Esta vasta jurisdigdo exer- citavam-na 86 por si nos casos de somenos importéncia; nos a5 CORONELISMO, ENXADA E VOTO ais graves, porém, convocavam as chamadas juntas gerais, nas quais se deliberava & pluralidade de votos da nobresa, milicia e clero.”® Entre as causas dessa usurpadora extensio de atribuit es, que perdura pelo menos até meados do século XVII; ocupa lugar de relevo a insuficiéncia do aparclhamento admi nistrativo no territério extenso, inculto e quase despovoado, ou seja, a fraqueza do poder puiblico. Em outras palavras,o fator basico dessa situago era o isolamento em que viviam os senho- res rurais, lives, portanto, de um elemento efetivo de contraste de sua autoridade. Além disso, como consticufam a vanguarda da Coroa na ocupacio da terra nova, defendida pelo gentio belicoso © ameagada por outras poténcias européias, no era muito consideravel a margem de conflito entre 0 poder privado ‘da nobreza teritotial eo poder puiblico, encarnado no Rei cem seus agentes, Por iss0 mesmo, 2 Metrépole, no somente se resignava, ante a prepoténcia dos colonos, como ainda thes conferia prerrogativas especiais. Protegia, por exemplo, os agtandes fazendeiros contra a concorréncia dos pequenas pro- dutores de aguardente, mandando destruir as engenhocas; tor- znava as cimaras privativas dos proprietirios de rerras, vedando a eleigao de mercadores; resguardava 0 patriménio dos senho- res de engenho, proibindo que fossem executados por dividas ex.* Por tudo isso, 0 latifindio monocultor ¢ escravocrara representava, a essa época, o verdadeiro centro de poder da Colénia: poder econdmico, social e politico." a6 Avamuicoes suster ste Il Viveiros de Castro contesta que as cimaras coloniais tenhiam exercido to amplas atribuigées com o beneplicito Em sua opinido, “a distancia em que estavam da Corte imava as camaras municipais a invadirem sem ceriménia a cata alheia; mas 0 Rei severamente as repreendia quando ajorchegava ao seu conhecimento, como fer, por exemplo, nas cartas régias de 4 de dezembro de 1677, 12 de abril de 1693, Ode novembro de 1700 ¢ 28 de margo de 1794, nas quais esti ymalmente declarado que as cimaras eram subordinadas aos - governadores, cujas ordens deviam cumptit, mesmo que tais ordens fasemtilegais, e consrdrias é junsdigao das cémaras”% No temos a menor intengo de enveredar pelas con- ‘wovérsias historicas, nem estamos habilitados para tanto, mas a observacio de Viveiros de Castro pode muito bem harmoni- zar-se com as afirmagbes precedentes, quando notamos que as ordens régias por ele invocadas™” pertencem ao periodo em que a Coroa jd comecara a refrear a nobreza rural da Col6nia. Nessa época jé reagia 0 Rei, para aflomar a autoridade piiblica do Estado contra a auroridade pessoal do pater familias, que era ao mesmo tempo senor de escravos, dono de “plantagio” e general de exército privado, A mais antiga das ordens reais mencionadas data de 1677, e € sabido que em fins do séeulo XVII ¢ comegos do XVIII, coincidindo em grande parte com a descoberta e exploragio das minas, a autoridade real na Col6nia se reforca extraordinariamente. o CORONELISNO, ENXADA E YOTO Caio Prado Jinior situa em tempos mais recuados a reagio da Coroa, que teria comesado a manifestar-se de modo efetivo na segunda metade do século XVII, princi- palmente depois de sacudido o jugo espanhol ¢ expulsos os holandeses.”* Por essa epoca jé tinha a Metrépole maior dis- ponibilidade de forgas para poder desempenhar, em terras brasileiras, grande parte do papel que vinha deixando a cargo da nobreza rural. O incremento do comércio, predominante- mente lusitano, e 0 aumento das populagdes urbanas contri- buem para esse resultado. Mas na motivagéo dessa mudanca avulta o desenvolvimento da economia colonial: quanto mais 4 Colénia crescia economicamente, mais se sentia peada pelo monopélio mercantil de Portugal ¢ pela proibigio, que Ihe fora imposta, de exercer atividades industriais.” Agravava-se a divergéncia de interesses entre colonos ¢ colonizadores, ¢ a decadéncia do comércio luso com as indias aumentaria 0 zalo de Portugal pelas terras americanas, de que passara a depen- dex. A descoberta das minas viria precipitar essa transforma- so. Enquanto os interesses da nobreza rural deixavam ampla margem aos da Metrépole e esta nio se achava em condig6es de exigit mais, 0 poder privado dos colonos encontrou apro- vagio e estimulo de parte da Coroa; mas esta passou a censu- ran, conter e punir os stiditos independentes, quando os inte- resses de uma ¢ outros entraram a colidir mais violentamente © 0 Rei jé estava em situagio de nao suportar insoléncias. Essa alterasio, é evidente, nfo se operou de modo brusco, nem reilineo: processou-se paulatinamente, com avangos ¢ re- wos, mas conduzindo de maneira irresistivel ao fortaleci- mento do poder real. © estudo das lucas de familias no Brasil ilustra bas- tante, em outro setor da vida social, © mesmo processo de vitalizagao da autoridade ptiblica e decadéncia do poder priva- do, cujos remanescentes ainda hoje sobrevivem, mas aliados do poder politico, € néo mais em opasicio a ele. Essas lucas so, em si mesmas, indicio evidente da auséncia ou fraqueza ico. A intervencéo do Estado em tais disputas, 4 principio em carater de mediacio, depois como érgio efeti- vamente jurisdicional, acompanha a linha de fortalecimento do poder politico da Coroa, na medida em que as novas con- digdes econémicas € sociais da Coldnia ¢ da Metropole permi- tiam ou impunham essa modificacio. As chmaras municipais, instituigSes em que mais di- recamente se refletia a influéncia do campo, néo podiam ficar imunes as transformagées aludidas. Nelas tinha a Coroa de pér especial cuidado, no scu embate com os nobres da terra; € estes, por sua vez, depois que se apossaram do poder central, nao podiam perder de vista © municipio, importante peca no jogo politico interno de um pais de vida predominantemente agriria. O estudo da evolugao do nosso sistema eleitoral ilustra bastante este ponto. Na primeira fase desse longo processo — na fase de implantasio efesiva da autoridade régia sobre 0 mandonismo 89 CORONELISMO, ENXADA E VOTO privado —, nfo necessitava a Coroa de profuundas reformas no ordenamento juridico vigente, pois a expansio das cimaras se fizera sobretudo & margem do regime das Ordenagées ou con- tale. Tinha apenas que recuar nas concess6es ras dos senhores rurais e dar execuio ao cédigo filipino, ou as as cima- utilizar-se dos expedientes que este ja permitia, Portanto, anuladas ou reduzidas as concessées da le- gislacéo extravagance, o que tinha a Coroa de fazer, para im- por efetivamente sua autoridade, era prestigiar e melhor apa- relhar seus agentes na Colénia, especialmente juizes de fora, ouvidores, governadores. Sem duivida, nio se limitou a isso, € chegou a nomear cla prépria, como oportunamente veremos, autoridades locais de inv O regime admi riferas*! demonstra suficientemente como a pressio de um ‘dura eletiva. crativo instaurado nas regides au- interesse maior tornou mais presente ¢ ativa a autoridade da Meuspole. Por isso mesmo, a Guerra dos Emboabas tem um valor tio altamente simbélico da hegemonia da Coroa sobre scus turbulentos colonos.”* A administracéo do Distrito Dia- mantino consticuird outro exemplo, ¢, justamente por set exa- gerado, € expressivo e util para a compreensio do processo que produziu o fortalecimento do poder do Rei.” ‘A trasladagéo da Corte para 0 Brasil e, depois, a independéncia e a constitucionalizacio do pals muito contri- buiram para acelerar 0 processo de redugio progressiva do poder privado. Mais préximo e melhor aparelhado, péde 0 90 Armavicoss stuniciens j6verno estender sua autoridade sobre o territério nacional om muito maior eficiéncia. No corter do século XIX (sobre- nudo com a reacio conservadora que, a partir de 1840, erigiu » centralizagao polftica € administrativa em principio basico de governo), assistimos a um trabalho perseverante de conso- idagio do poder do Estado. O fato novo e de grande significacio, que entdo se observa, & que 0 poder piblico, especialmente partir da abdicagio de D. Pedro I, deixa de set expresso de alguma coisa colocada acima e fora do pais, para refletir em sua com- posigdo justamente as forcas politicas de nossa prépria terra. Ja © problema politico nfo se pée em termas de uma disputa entre Colénia e Metrépole, nem entre interesses portugueses e brasileiros. O 7 de abril (jé que, para melhor compreensio, convém tomar um acontecimento marcante como ponto de tefeténcia) assinala a completa transferéncia do poder para as mos do senhoriaco sural, que deixava assim de operat no plano restrito das municipalidades para projetar sua impor- tncia econémica, sociale, portanto, politica em toda a exten- sio do Impétio. Afastada a Metropole como forca de contraste ¢ reduzidos os interesses lusitanos 4 situagio de no poderem mais influir eficazmente nos acontecimentos, outros serio os contendores nas disputas politicas que dai por diance vao en- cher as paginas de nossa histérta. Durante a Regéncia — pe- iodo que ainda esté a exigir estucos mais completos ¢ profun- dos —. as lutas cravadas assumem grande complexidade. Ao o CORONELISMO, ENXADA £ VOTO Armisuigoes smiciets lado dos motivos regionais de descontentamento das préprias ‘camadas dirigentes, caldeados pelas ide ipou qualquer ilusao que ainda subsistisse quanto ao fatu- " rovalargamento das atribuig6es das cimaras ram a independéncia ¢ a constitucionalizagao do pais, interfe: Releva notar, de comeco, que as cimaras foram de- laradas corporagées meramente administrativas, que no po- diam exercet qualquer jurisdicéo contenciosa. Sem duivida, + essa separagio do exercicio das atribuicbes admi tiram violentas reivindicagbes populares que provocaram sur preendentes composicdes no seio dos grupos dominantes Restabelecida a ordem, que significava principalmente cent jstrativas © lizagéo politica, © abafadas as pretenses das categorias in riores da populacao, a paz interna vai assentar-se na solide da rosa estrutura agratia, fundada na escravidio, ¢ as contend3s. politicas passaréo a travar-se no plano nacional e no seio da poderosa classe dos senhores rurais. O eixo politico deslocar judiciaisrepresentava um avanco no sentido da melhor orga- nizagio do servico puiblico, porque correspondia a0 principio ral da divisio do trabalho e especializagio das fansdes.* _ Entretanco, a énfase que pés a lei no carter admis wunicipalidades, por um lado, consticuia eficiente processo | téenico de redugio da sua autonomia e, por outro, concortia trativo das sed mais ou menos segundo o itineririo da riqueza agricol ‘que repousava principalmente nas culturas de acticar, algod: e café, © na escravaria que as tornava produtivas, 4 "para impedir que os municipios se tornassem centtos de ativi ide politica mais intensa, capazes de estimular os interesses € aspiragSes das camadas inferiores da populagio. As cimaras Vv Durante curto periode, que vai do regresso de D, Joo VI até 0 ano de 1828, diversas medidas sio tomadas no sentido de ampliat as “franquezas” municipais.™ Esse mo- vimento correspondia, sem dtivida, a mesma ordem de idéias de que resuleou a nossa independéncia. Nem ¢ de estranhar que assim fosse, pois, além de outros motivos, eram justa- ‘mente as cimaras ainstituiggo em que, durante tanto tempo, " tinham sido outrora instrumento da aristocracia tural em suas manifestagies de rebeldia contra a Coroa, e tiveram papel ativo, embora de eficicia duvidosa, no proprio movimento da independéncia. Depois que 0s sueessores daqueles agitados colonos haviam conseguido dominar o poder politico central, «essa antiga fungio das cimaras jé no seria motivo de beneme- réncia, mas demonstrasio de grave indisciplina, que cumpria reprimis prontamente. se refletia 0 choque entre os interesses nacionais e os lusita- ‘As camaras, pelo diploma de 1828, ficaram subme- ‘nos, representados estes pela Coroa portuguesa. Entretanto, a lei de organizagio municipal, de 1.° de outubro de 1828, tidas a um rigido controle exercido pelos conselhos gerais, pelos presidentes de provincia ¢ pelo Governo Geral. Cha- 2 93 CORONELISMO, ENXADA E VOTO mou-se precisamente doutrina da mzelaa essa conceps0, que consistia em comparar 0 municipio, na ordem administrati- | ‘va, 20 menor, na ordem civil; sua ineapacidade para o exerci cio das fungSes que the eram proprias impunha a criagao de um apercado sistema de assisténcia e fiscalizagio, a cargo dos poderes adultos.” ‘As fung6es administrativas das cimaras eram bas- ‘ante amplas ¢ vinham enumeradas com minticia. Cabia-Ihes cuidar do centro urbano, estradas, ponces, prisées, matadou- ros, abastecimento, iluminaso, agua, esgotos, saneamento, protegio contra loucos, ébrios e animais ferozes, defesa sani- tiria animal e vegetal, inspegio de escolas primarias, assistén- cia a menores, hospitais, cemitérios, sossego pt de costumes etc. Resumindo a lista, declarava 0 art, 71 que as cimaras deliberariam em geral sobre os meios de promover ¢ manter a tranqitilidade, seguranca, satide ¢ comodidade dos habitantes, asseio, seguranga, elegincia e regularidade externa dos edificios e ruas das povoasées. Sobre os assuntos de sua competéncia expediam pos- tuuras, mas estas vigorariam somente um ano, enquanto nfo fossem confirmadas pelos conselhos gerais das provincias, que as podiam alterar ou revogar. Das posturas municipais, que versassem matéria “puramente econémica e administrativa”, cabia recurso, na Corte, para a Assembléia Gerals nas provin- cias, para os conselhos gerais e presidentes e, através destes, para o Governo. “Em relacao aos atos de competéncia muni- 4 Arnravigges asumicinas — observa Carneiro Maia — dew a lei jutisdigéo tio ampla aos presidentes de provincia que, em graut de recurso, jodem eles conhecer, indistintamence de todas as delibera- es, acérdos, ou posturas das cimaras, em matéria de econo- ia € administragdo."** Das decis6es das cdmaras sobre escusa los eleitos que nao quisessem servir como vereadores, bem mo das que destituissem vereadores por motivo de conduca sprovavel nas sessGes, embora no versassem (ais atos sobre -matéria econdmica ou administrativa, também cabia recurso, respectivamente, para o presidente (na Corte, para 0 ministro do Impénio) ¢ para o conselho gral.” Em matéria financeira fram gtandes as restrigGes & autonomia municipal, como se yyera no capitulo préprio, e uma nova manifestagio da tutela consistiu, mais tarde, em cornar os préprios vereadores passi- veis de suspensio pelos presidentes de provincia,” v (© Ato Adicional, refletindo uma tendéncia bastante descentralizadora do ponto de vista das provincias, apenas transferiu para as assembiéias provinciais, entio criadas, a tensa turela que sobre as cimaras municipais vinham exercen- do os presidentes, os conselhos gerais, 0 ministro do Império € 0 parlamento.*! O presidente conservou ainda poderes im- porcantes, sobrerudo em conseqiiéncia da reacio conservado- ra e da jurisprudéncia do Conselho de Estado. Nao falta quem considere que a situasao dos municipios piorou com a 95 CORONELISMO, ENXADA E VOTO reforma da Constituicio,"* mas, no pensamento dos liberai que a idealizaram, seu principal objetivo era permitir qué cada provincia, atentas as peculiaridades locais, ficasse efi condigées de estabelecer 0 regime municipal que lhe Fosse | mais conveniente.? a © que parece, entretanto, mais plausive] ¢ que is” forgas politics liberais daquela época o que interessava eté fortalecer as provincias perante o Governo Geral. A concesséo de maior autonoi ria para esse resultado, porque poderia pér em risco a homo: sgeneidade da situagZo dominance na provincia, Com os musi ipios controlados estreitamente pelas assembléias, estariam as provincias, como unidades coesas ¢ fortes, mais hal resistir & absorvente supremacia do centro. # Respondia, sem diivida, a esse pensamento a at 0 conferids ao legislative provincial de regulamentar a facul- dade, que tinham os presidentes, de nomear, suspender ¢ de- mii os empregados provinciais."" Mas a indicagdo mais clara desse propésito encontramos no art. 13 do Ato Adicional, que suprimiu a sangao do presidente para as leis provinciais que regulassem determinados assuntos. Entre estas inclufam-se as leis concernentes a receita e despesa, a fiscalizagio financeira e prestacio de contas dos municipios, criasio, supressio, provi- mento € remuneracéo dos empregos municipais. Com tais poderes sobre a vida das comunas, podia a cortente preponde- rante na assembléia adquirir, em toda a provincia, uma grande 36 40s municipios certamente nfo concorsé! Arniauigaes swsicrrns _jafluéncia, capaz de lhe dar a desejada auroridade nos enten- -dimentos ¢ desavengas com o governo central (Os fatos posteriores mostrario, entretanto, que a fi- gura dominante no cenério provincial continuaria a ser 0 pre- idente, delegado do Imperador, cuja funcéo politica mais iportante era garantir a vitéria eleitoral dos candidatos joiados pelo governo.© A ‘Adicional, a reforma do Cédigo de Processo Criminal e, em Jarga medida, a jurisprudéncia do Conselho de Estado" foram ‘1a dos de interpretagio do Ato rincipais instrumentos que garantiram a preeminéi fentes de provincia e, por intermédio deles, a consolida- joido poder central, sem que se possa esquecer 0 papel de- ‘sempenhado nesse processo pela mentalidade conservadora do Senado € pela precaria situagéo financeira das provincias. Os Projetos que se discuriram durante o Segundo Reinado! nenhuma alteracao substancial propunham na situagio de | dependéncia das comunas; alguns deles, pelo contririo, refle- tiam 0 propésito de tornar o poder provincial mais acuance dentto do municipio, através de um orgio executivo local, nomeado pelo presidente da provincia. Observa Hermes Lima que nfo se pode compreen- der a reagio centralizadora no Impétio sendo, pelo menos ‘Num pais grande parcialmente, em fungio do regime se como 0 nosso, de caracteristicas geogrificas ¢ econdmicas tio Aiversifiadas, se as provincias fossem dotadas de amplos po- deres, podetia suceder que em algumas delas o erabalho livre CORONELISMO, ENXADA & VOTO pusesse termo i escravidio, E como nifio seria possivel aco tncia, no mesmo pais, desses dois regimes de trabalho ant gonicos, os escravocratas, que dominavam 0 cendtio p nacional, nfo podiam deixar de recorrer 8 centralizacio resguardar, em todo 0 Império, a continuagio da escravatii- 1a.°A centralizagao, dizem os historiadores, salvou a unidade. nacional. Também salvou a unidade do trabalho escravo, gundo a aguda interpretagéo de Hermes Lima, resguardando;, assim, em sua integridade, a estrutura econdmica do pais. vi A autonomia municipal foi assunto que preocupou ‘05 constituintes de 1890, mas principalmente no que respé a eletividade da sua administragao, como se verd no capiculd seguince. O ambiente doutrinario da Assembléia era favoravel , como desdobramento tedrico da idéia federai depois de haver inutilmente procurado coexistir com 0 tronos Seo federalismo tem como principio bisico a descentralizagao (politica e administrativa), seria perfeitamence légico estendet 2 descentralizagao & esfera municipal. Néo faltatia, aids, na Co aicipio esti para o Estado na mesma relacio em que este se encontra para com a Unifo.® “Escava reservada & Reptiblica — escreveu Carvalho ‘Mourdo —a gléria de instaurar no Brasil a verdadeira autono- inte, ¢ ainda mais tarde, quem sustentasse que o mu- 38 uunicipal.® Entretanto, os primeiros arrojos municipa- rbem depressa comecaram a esfriar. As Constituig6es es- nfo tardaram a ser reformadas, reduzindo-se 0 princt- ‘daautonomia das comunas a0 minimo compativel com as éncias da Constituigdo federal, que eram pot demais im- precisas, deixando os Estados praticamente livres, no regular 0 ro. A esse respeito dird Carlos Porto Carrero: “Nota-se, rompulsando a maior parte das Constituigées estaduais, que aselas foram, de comeco, prodigas de disposigdes liberais, fetonhecendo © outorgando aos municipios ampla auto- mia. Pouco depois entrou a retrair-se 0 espitito liberal jsladores de alguns Estados. As reformas surgiram cer- ceando os direitos dos municipios, ora deverminando taxativa- mente as condigdes segundo as quais podiam gerir os seus ‘negécios, ora tirando-Ihes a faculdade de eleger 0 chefe do seu poder executivo” Deixando agora de parte outros aspectos, que serio tratados nos capitulos subseqiientes, cumpre observar que ~ muitas das Constiuicdes estaduais estabeleceram um sistema | de fiscalizacdo da administracio ¢ das finangas municipais por "parte do Estado. Essa verificacio se exercia freqiientemente a ‘posteriori, mas algumas vezes a priori. Ademais, enquanto nal- guns Estados havia um puro controle de legalidade sobre a vida dos muni , © qual se pratica evidentemente em ambitos ‘mais restitos, em outros o controle era também de oportuni- dade e conveniéncia.®® Com tais expedientes podiam os gover- 99 CORONELISMO, ENXADA E VOTO nos dos Estados tutelar as municipalidades, com vistas 20 inte! resse politico da concentragéo do poder na érbita estadual Do ponto de vista estritamente juridico, é evidente que 2 Constituigéo federal admitia restrigées & autonomig administrativa e politica das comunas. A autonomia municl- pal, segundo o art. 68, estava referida & nogéo de “peculiar interesse” dos municipios, mas este conceito auxiliar nfo foi definide no texto constitucional, Ao legislador constituinte estadual e, nos limites por ele permitidos, 20 legislador ordiné- rio, tocava a tarefa de discriminar as matérias ¢ os limites di competéncia municipal « O legislative federal poderia ter construido uma dourrina diferente, no uso da facuidade de decretar a interven? frasao dos principios constiz Gio nos Estados por motivo d tucionais. Nao o fez, porém. O Supremo Tribunal Feder: cemprecago fat com algumas excesées, também consagrou a vorével aos Estados. De acordo com o postulado bisico do nosso regime, cabia a Corte Suprema interpretar final ¢ con clusivamente a Constituicio; podia, pois, imprimir rumo di- ferente a0 nosso municipalismo, se entendesse que determina dos principios estavam necessariamente contidos no conceito constitucionai de “peculiar interesse”, como sustentava Pedro Lessa. Mas também nfo o fez. ‘Além dos argumentos de ordem propriamente juridi- a, baseados na letra da Consticuigio e no subsidio histsrico dos wabalhos parlamentares,” também tivemos uma doutrina pol 100 |) sia justificativa das restrig6es 4 autonomia municipal. Castro ~ Nunes, em livro de muita repercussdo, sustentou que no regime federativo a unidade politica é 0 Estado e no 0 municipio. | Consegiientemente, o regime unititio nos Estados é 0 mais consentineo com a teoria do federalismo. A subfederacio dos Iiinicipios, se assim nos podemos exprimir, era mais propria «das monarquias unitiris, Por isso mesmo, propunha 0 autor, ‘para melhoria de nossa organizacio municipal, diversas medidas Levi Carneiro, depois da Revolugéo de 1930, com 0 objetivo de contribuir para os estudos de reconstitucionalizagio i P; | do pais, desenvoiveu, em volume de ampla tepercussio, as idéias sustentadas em dois artigos anteriormente escritos sobre 0 de Castro Nunes. Embora divergindo dos conceitos deste a mo sobre a posi¢do do municipio na federacio,” aquele jurista negava, entretanto, que o municipio estivesse para os Estados como os Estados esto para a Unio. Acabava por sugeris me- dias de resco a auronomia municipal, conquanc su pen- samento fosse antes ampliar 0 controle judi munas € no a tutela do legislativo ou do executivo.* ‘Muito ilustrativos como corpo de doutrina, do pon- to de visca que ora nos interessa, foram os discursos proferidos por Francisco Campos na Camara des Depuracios de Minas Gerais, por ocasido da reforma constitucional de 1920. A tese entio desenvolvida para justificar restrigbes & autonomia mu- nicipal baseava-se em que, moderamente, quase todos os CORONELISMO, ENXADA E VOTO importantes problemas de que cuida a administragéo muni pal transcendem dos estreitos interessar, portanto, ou a mais de um municipio, ou a todd Estado. Era, pois, conveniente armar 0 Estado dos elementos necessirios para, no ambito da administracio dos mune! fazer prevalecer os interesses gerais sobre os inceresses locais.2 A proposta da reforma constitucional de 1926 insp! rar-se-ia em patte nesse pensamento, embora importasse, sob cada liberdade que’: cerros aspectos, restrigfo da quase ‘ham o5 Estados no concernente & otganizacéo municip: Relativamente lagio de principios constitucionais, incluit-se entre estes" da auronomia dos municipios. Foram, entretanto, postas de lado, na discussio, para apressar 0 andamento da reforma, ds ropostas referentes propriamence a organizacao munici resultado final da politica municipalista do regime de 91 foi mesquinho. Apesar disso, no cessaram as controvér- sias, afirmando uns que era preciso ter mais comedimento na veneragio do “dogma” auronomista, enquanto outros susten- tavam que 2 autonomia municipal, que conhecéramos, no passava de um: VIL A Revolugéo de 1930 deparava-se, desde logo, uma ica da Repitblica Velha, cujas raizes estavam entrelagadas nas situages munici- Bigantesca tarefa: desmonrar a maquina p es comunais, passando’® eervengio nos Estados por motivo de vib= Arainuigoes swwnteieas Ao lado desse problema, surgiria naturalmente 0 da ‘montagem de uma nova miquina, por muito idealistas que ssem de comeso os chefes da revolugio. Ao mesmo tempo, preocupagio, nem sempre esclarecida, de dar eficiéncia ao os:0 aparelhamento administrativo, bem visivel nos elemen- mais mogos, encontrava na realidade do nosso pais as mais igestivas seduces para a tutela administrativa dos munici- Falta de mérodos racionais, desorientacio administra jstdo financeira perdulésia, dividas crescentes, balbiiedia ituracZo, quando havia, exagéo tibutéria deficiente ¢ ida por critérios partiddrios, estes e outros defeitos foram ‘ritrados fartamence em nossa administragéo municipal. Atendendo, aparentemente, aos dois objetivos — de lado, desmontar a maquina polfvica corrompida e, de stragdo municipal — a'legislagio do Governo Provisério, além de insticuir em cada ‘outro, moralizar e dar eficiéncia & admi ‘municipio um prefeito nomeado, assistido em regra de um J, estabeleceu um sistema de recursos, que subia do prefeito ao interventor ¢ deste ao chefe do governo nacional. Abrangia-se, deste modo, efetivamente, toda a es- superiores, nfio sb do ponto de vista da legalidade, seniio ram- bém da conveniéncia e oportunidade dos seus atos. Nem seria possivel admitir-se que, na auséncia de qualquer drgéo local representativo — pois conselho consultivo insticuide néo tinha esse eardver —, ficasse o prefeito imune a qualquer fisca- 103, CORONELISMO, ENXADA £ VOTO lizagio e controle. O interesse dos préprios municipes impu~ nha um sistema de recursos, que naquelas citcunstincias no podia ser muito diverso do adorado, mas 0 governo estadual 36 excepcionalmente estaria fisposto a desautorar scus prepostos politicos no municipio. Compreende-se um sistema tio rigorosamente hie- rarquizado, desde que se destinava a desempenhar papel tran- sitério, durante o periodo de governo discricionério que su- cedia 2 uma revolugio vicoriosa. Entretanto, uma inovacao adotada nessa fase, com o propésito de moralizar a adminis- tragio municipal e dar-lhe maior eficiéncia, viria a impor-se no proprio petiodo constitucional que se seguit, ficando de- finitivamence entrosada em nossa organizagio administrativa. Referimo-nos ao departamento de municipalidades, Orga esta dual, cujo nome variava, mas entre cujas importantes atribui- (G6es se incluia dar assisténcia técnica aos municipios, coorde- nar suas atividades em funcio de planos estaduats,fiscaizar a elaborasao ¢ execucao de seus orsamentos, opinar previamen- te sobre um grande nimero de medidas administrativas ere. Cabia, enfim, a esse orgio,dependente diretamente do inter- ventor, exercer a extensa tutela que a legislagéo em vigor ou- torgava ao governo estadual sobre a vida administrativa dos municipios. As experiéncias feitas pelos Estados de Sio Paulo ¢ Espirito Santo atrairam a atengfo de muitos outros, que ali se inspiraram para instituir érgéos semelhantes. Na Assembléia Armiourcors Constituinte de 1933-34, a bancada p: clogio dessa novidade, apresentando um balango dos seus be- neficios, sobretudo no terreno da gestdo financeira. Os muni- cipios paulistas tinham reduzido suas dividas e melhorado sua sieuagio orcamentétia gracas a assiscencia e fiscalizagio daque- le deparcamento. Os representantes de outros Estados, que haviam criado departamento semelhante, também prestaram lista fer clogtiente depoimento sobre as exceléncias da importante inovacéo ad- ministrativa,® em torno da qual se formou, na Assembléia, um halo de tamanho prestigio que um depurado capixaba reivindicou para o seu Estado a gloria de cambém haver des- ‘coberto tao valioso instrumento de progresso.® Nio é preciso um exame muito profundo para se ver como a conveniéncia da criagéo, nos Estados, de uma nova maquina politica, a ser comandada, no mais pelos “carcomi- dos”, mas pelos senhores do dia, se conjugava perfeitamente com o empenho patridtico de aperfeigoar a administragao dos municipios, tornando-a mais econémica e produtiva. Fazen- do-se énfase sobre esta razio de ordem piiblica, 0 interesse politico da montagem das maquinas partiddrias podia apare- cer aos olhos de todo o pais revestido de uma sélida base doutrinéria, capaz de proegé-lo contra os defensores da maior auronomia municipal, tZo intimamente assoctada, na pritica, com a insoivéncia e anarquia de muitos munielpios no regime derrubado pela revolugio. Ressuscitava-se, portanto, com ou- tras palavras, a velha dousrina imperial da tutela, os CORONELISMO, ENXADA E VOTO E evidente, e nem precisaria observi-lo, que pari ‘muita gente bem intencionada nao parecia t4o ostensivo este matriménio do interesse partidério com a aspiracio do pro>: ‘gresso administrative. A predisposigao psicolégica dos polft cos, que sempre se julgam mais capazes que os adversirios; poderia contribuir para a confuséo nfo intencional entre'é. bem do pais ¢ a sua prépria conveniéncia partidéria. Exemp! muito tipico dessa posigio foi adotada pelo Depurado Gal de Resende Passos, na segunda Constituinte republicana. pressionado com a desorientaglo, desperdicio e ineficiéncia administragio muni melhor como secretirio do Interior em Minas, propunha que 105 Estados fossem os tinicos juizes da extensio que devesse ter a autonomia de seus municipios.®” A autonomia excessiva — € como tal the parecia a desfrutada até entio pelos nossos municipios — era um grave mal, a que a acéo orientadora ¢ fiscalizadora do Estado deveria dar remédio. Estamos convencidos de que a condigao de deputado | governisca nfo influia no seu juizo sobre a conveniéncia ptibli- a dos pontos de vista que sustentou, embora suas idéias pu- dessem ser igualmente defendidas por outro deputado que s6 Jevasse em conta o fato de ser governista. Tanto assim que, em seu diagndstico da situagio, havia uma implicita condenagao da submissao politica dos municipios. A seu ver, uma seria anomalia minava nossa organizagio municipal: ao mesmo tempo em que se achavam policicamente submetidos a0 Esta- 106 al, que ele viria mais tarde a observar | Armuicors moniciass ispunham os municipios de uma irrestrta liberdade ad- trativa, de que em regra se utilizavam mal. © importan- jm sua opinido, era orientar ¢ fiscalizar a ago municipal no eno administrative. © equivoco do diagndstico estava em supor que 0 legais ou extralegais, icipios, ® goveino estadual, que tinha poderes — ‘importa — para dominar politicamente os muni (o‘tivesse auroridade para Ihes influenciar a administragio “num sentido benfazejo. Bastaria, pensamos nds, que o Estado “utlizasse 0 seu prestigio incontrascivel para aquele fim. Mas JsS0; em regra, nao se fazia, porque o interesse maior da si- lo estadual nao era de ordem administeativa e sim eleito- tal, A politica dos “coronéis” consistia precisamente nesta re- iprocidade: carta-branca, no municipio, a0 chefe local, em toca do seu apoio eleitoral aos candidatas bafejados pelo govern do Estado. vil Na Constituinte da Segunda Repiblica predomina- ram, em relagio ao problema municipal, urés tendéncias princi- pais. Em conseqiléncia, garantiu-se o principio da eletividade da administragio municipal, com excegbes expressamente consa- gradas na Constis ‘aumentou-se a receita dos munici- ios” finalmence, foi instituido certo controle sobre a adminis- ‘tragéo municipal, com base na experiéncia dos departamentos de municipalidades do periodo de governo discricionitio. 07 CORONELISMO, ENXADA £ VOTO ‘As duas primeiras tendéncias poderiam ser de algun modo relacionadas com a composigo dominance da Assem= bidia, pois grande numero de deputados labutara na oposigio durante a Republica Velka, embora muitos ali figurassem cos = mo representantes dos novos governos que se instituiram em seus Estados depois da revolugio. Sua anterior exper oposicionista — que lhes permitia avaliar com justeza a eficé cia da nomeacdo de prefeitos e da escassez. das rendas muni cipais como instrumentos da interferéncia do Estado na vida municipal — pode ter contribuido para que formassem mai- otia na Assembléia as vozes favoriveis 20 maior resguardo da autonomia politica das comunas. A numerosa bancada de oposicao, que as eleigdes de 1933 levaram & Consticuinte; também ha de ter influido no mesmo sentido, porque nio Ihe conviria fortalecer as situagées estaduais adversas. Além do ‘mais, 0 mecanismo de reciprocidade do sistema “coronelista” sempre tornou mais sentida a ofensa ao principio da autono- mia quando atingia a eletividade da administragio munici- pal. Esca questo vinha logo ao primeito plano sempre que se discutia © problema do municipio, e a seu respeita de certo modo se generalizou a conviecgo de ser a regra da eletividade indispensavel & vida municipal aurénoma. Jo mesmo no sucedia com a administragéo pro- priamente dita. A Repiiblica Velba sempre fora mais tolerante com a extensio das franquias comunais no tezreno adminisera- tivo do que no politico, como jé tivemos ocasido de referit. Aramurcoes Mas, 20 mesmo tempo, a experi acia do regime anterior susci- tava muitas reservas pela ineficiéncia e pela irregularidades da administragio municipal, Tudo isso se aliava & nova posicio politica da maioria da Assem| , que era, antes da revolucio, predominantemente oposicionists e passou, depois, a ser go- vernista, Nao ¢ ficil e ralvez nem seria possivel discernir até que Ponto a maioria da Assembléia estava consciente de que os departamentos de municipalidades, cuja criagao iria ser autori- zada no texto constitucional, poderiam influir nos municipios como instrumentos politicos da situagéo estadual. Mas néo falcou quem fizesse calorosas adverténcias nesse sentido, e ¢ bem provivel que essa possibilidace tivesse desempenhado 0 seu papel na instituicio de tal érgéo, tanto assim que viria a ter por funcio, ndo sé prestar assisténcia técnica @ administragao municipal, como ainda fiscalizar as suas finangas.” E importante observar a este respeito que essa al buigdo fiscalizadora provocou acesos debates na Assembléia. A ctiagio dos departamentos fora pedida pela bancada de Sao Paulo na emenda n° 703, ao anteprojeto, que facultava “aos Estados criarem orgios de assisténcia técnica aos Munici- pios, ¢ de verificagao das suas financas”. © parecer Cunha Melo conservou o termo verificacao, passando o dispositivo, com redacdo diferente, a ser 0 art. 130 do projero da Comis- so Constitucional.”” Foi a emenda n.° 1.945, “das grandes bancadas”, que propés 0 vocibulo fircalizardo, em lugar de verificagie, tendo 109 eee eee oe Arampuicors musicals 9 Deputado Soares Filho, na mesma data, feito idéntica prd ‘mn passo sem consultar o centro ¢ aguardar suas decisées. Em posta.” Em sua justificagao, dizia o representance fluminenst “A emenda mantém o mesmo principio salutar ¢ moralizadér, i opinigo, a medida proposta visaua (sc) “entregar os muni- ias submissos a0 govemo do Estado”. Sujeitos, nfo a um dando-lhe, porém, uma redagio mais compreensiva dos seis. _tplbunal de contas, dotado de garantias, “mas a uma organiza- intuitos”, Foi em outras palavras o que disse depois 0 Dept eo: burocratica de qualquer secretaria do governo”, ficariam tado Itineu Joffily: “De que serve verificar a situagio dos mit” municipios “jungidos ao carro do poder”. E concluia: “Dei- a nicipios, se ndo dispée (0 departamento) de sancio em casordé gio * j*Pressio — autonomia municipal — ¢ retira-se 0 irregulanidade? O Estado deve, porem, fiscalizar. A sang? poders vir na lei estadual que permitir essa fiscalizaga gonteiido, Fica a casca ¢ tira-se 0 mi lo". Diversos outros deputados se pronunciaram da teibuna, jf contra a existéncia contra a sua fungio fisca- licadora, e outros fizeram declaragio de voto em tal sentido.” O segundo parecer Cunha Melo opinow cont substituicao, por entender que a palavra fiscalizasdo podia “se? interpretada como mais atentatéria da auronomia municipal" =O Deputado Augusto Viegas, depois de dizer que, no por aqueles que haviam pedido a supressio do questionado = melhor dos casos, aquele érgio técnico e fiscalizador acabaria "por dispor a vontade das financas municipais, e que o disposi ~ vo do projero “possbilitaria todos 0s desatinos” aos adminisera- artigo. Como explicou depois, a palavra fiscalizapdo parecia- Ihe “rigorosa demais” No plendtio foi requerido destaque do trecho que substitula 0 vocibulo verificagdo por fiscalizapao, tendo preva- belo ce modo patético: “fago sinceros votos a Deus para que eu lecido este tilimo por 157 votos contra 46.” 4 ‘steja em erro € para que, assim, no se verifiquem meus som- dores “que pretendesser fazer politicagem”, encerrou o seu li brios prognésticos” * Esses votos nio foram ouvidos, porque os departamentos de municipalidades, no depoimento de Orlando |) M, Carvalho, nfo tardaram a servir de insttumento politico." Essa expressiva maioria, traduzindo 0 pensamento ‘manifestado pelas grandes bancadas na emenda 1.945, indica- va claramente que a situago dominante queria permitit aos Estados armarem o deparramento de municipalidades com : A proibicio de empréstimos externos sem prévia au- torizagdo do Senado e a possibilidade de intervengio do Es- tado nos municipios por motivo de insolvéncia sé0 outros poderes mais efetivos. Mas isso nao passou sem grande resis téncia. Daniel de Carvalho declarou que aquele rgio, “deno- minado de assisténcia técnica e fiscalizagao financeira”, redu- tiria “a nada” 0 municipio, que dal por diante nfo poderia dar "+ aspectos da politica de controle financeiro adotada pela Cons- tituigo de 16 de julho.” no : ae un CORONELISMO, ENXADA E VOTO Arminvicoes Municinss Houve, pois, contradigao na obra da Constieuince de 1934: ao mesmo tempo em que procurava, por um lado, gae quer os hos consultivos do periodo de governo discrici- jonério que se seguiu Revolucio de 1930), como ainda ficou 2 sua administragio sujeita a um severo sistema de controle, nto prévio como ulterior. Além dos departamentos de ‘municipalidades, que podiam subsistir, o decreto-lei n® 1.202 iow, em cada Estado, um Departamento Administrativo, destinado a prestar assisténcia aos governos estadual e munici- rantir melhor 2 auronomia municipal, por outro, consciente: mente ou néo, permitia aos Estados, através dos departamen’ tos de municipalidades, exercer tutela administrativae pol sobre as comunas. x © legislador constituinte de 1937 foi mais coerenti pis ¢ exercer controle sobre eles. Esse departamento era, sem divide, de certa utilidade para a administragio, sobretudo porque inequivocamente antimunicipalista, Nao 86 conservei quando nele tinham assento pessoas de experiéncia adminis- ‘0s departamentos de municipalidades, como reduziu a recei municipal e suprimiu o principio da eletividade dos prefeitos. “ wativa e competéncia técnica. Sua principal rarefa consistia ‘em dar aprovacio prévia a decretos-leis do interventor e dos As idéias sustentadas havia mais de tréslustros pelo Prof. Fran: - prefeitos, ® rarefa em que o departamento exercia controle de légalidade, oportunidade ¢ conveniéncia. Esse érgio, cujos membros eram de livre nomeagio do Presidente da Repiil deveria funcionar principalmente como instrumento de con- cisco Campos vinham concretizar-se na Carta Constitucion: de que fora 0 principal redator. Relativamente, porém, 20 periodo do Estado Novos ‘© que cumpre ao observador examinar nao é a letra da Cons! uuaste do interventor. Na pritica, porém, as nomeages eram feitas por indicagéo exclusiva do interventor, que passava a ter no departamento, no um fiscal, mas um aliado. Depois do decreto-lei no 1,202, criou-se na capital do pats, subordinada ao Ministro da Justica, a Comissio de Estudo dos Negécios Estaduais, de nomeagio do Presidente da Repiiblica, Como a citada lei sao do Chefe de Estado para muitas medidas legislaivas e administrativas estaduais e municipais* 0 érgio incumbido de opinar sobre a legalidade, oportunidade ¢ conveniéncia de tituiggo, que nunca chegou a ser aplicada nas partes em que devia atuar principio eletivo ou representativo, do qual de- pendia 2 organizagao constirucional dos Estados. Quanto aos Estados € municipios, o que vigorou durante essa fase foi © regime declarado provisério, instituido no decreto-le n° 1,202, de 8-4-1939, alverado parcialmente pelo decreto-lei n° 5,511, de 21-5-1943, Culminou af o sistema da tutela, Nao s6 0 municipio ficou privado de qualquer érgio local \s40 exigia prévia aprova- representative ou pseudo-representativo (pois no havia se- uz CORONELISMO, ENXADA E VOTO tals medidas era exatamente essa comissio, cujos pareceres 0 ministro competente encaminhava, com 0 seu conselho, a consideragéo presidencial.® Por outro lado, 0 mesmo de- creto-lei estabelecera recurso dos atos municipais para 0 incer- ventor. As decisées deste ¢ os atos da comperéncia estadual origindria eram, por sua vez, suscetiveis de recurso para 0 Presidente da Reptiblica. Na informagio dos recursos dos mu- nicipios para o Estado funcionava 0 Departamento Adminis- trativo Estadual, enquanto este ea CENE informavam os recursos submetidos ao Presidente."” Num regime que visava conferir poder incontrasté- vel ao chefe do govemo, nao seria de estranhar essa organiza- ‘0 hierarquica, em que atos comezinhos da administrasa0 municipal, depois de longa peregrinagio, vinham ser decidi- dos, em ultima instincia, por despacho presidencial. A preo- ‘cupagao da centralizacdo politica no Estado Novo, que nunca procurou dar vida real 4 méquina representativa criada na Carta de 10 de novembro, era tio evidente que a completa anulagdo da autonomia municipal nesse periodo no deman- da qualquer outra explicagio.® Assim, mercé de raz6es politicas notorias, adquitiu nessa fase uma forma ostensivamente exagerada o antigo € persistente processo de redugio da autonomia municipal, que sofrera duas pausas breves e de conseqiiéncias pouco pro- fundas, no comego da Repibiica e na vigencia da Consticui- cdo de 34, m4 Armuigars og Este 0 panorama encontrado pela Assembléia Cons- tituinte de 1946, que revelou maior preocupagio que a da Segunda Repiiblica pela sorte dos municipios. O seu “enter- necimento municipalista” manifestou-se principalmente na solucéo dada a0 problema tributirio © seguiu, no mais, os mesmos rumos evidenciados na Constituinte anterior. A auto- nomia dos municipios foi garantida: pela eleicao do prefeito e dos vereadores; pela adminiscracio propria, no que concerne ao seu peculiar interesse. Conccituou-se o peculiar interesse do mu dos tributos de sua comperéncia, aplicagio de suas rendas ¢ io, especialmente, pela decretagio e arrecadagio organizagio dos servigos piiblicos locais.” Sustentou Mario Masago, na Assembi nogio de autonomia se restringe & composicao do governo sua eletividade. O problema das a que a municipal, ou s ‘g6es administrativas, constituindo 0 ambito do peculiar in- teresse, @ estranho ao conceito de autonomia, que é de natu- reza politica. Essa distingao foi combatida por virios de seus colegas, para os quais a definicio da esfera de administracio prépria do municipio também se inclui na nogio de autono- mia.” Com efeito, embora se possa, doutrinariamente, dis- tinguir 2 auconomia politica da drbita de administragio pe- culiar, na pritica ambos os conceitos sio inseparaveis para compor a vida relativamente independente do muni Por dois caminhos pode ser amesquinhado © municipio: CORONELISMO, ENXADA E VOTO ou pelo exercicio auténomo de atribuigées minimas, ou pelo exercicio tutelado de amplas atribuigdes. De nada valeria a administragao eletiva, se estivesse peada em seus menos res movimentos. 28 A Constituigio de 1946 permite aos Estados a cris! ‘Gio de orgios especiais, com a tarefa de prestar “asistencia técnica” aos municipios.°® A Constituigio anterior, como jé vimos, também faculrava a tais departamentos “fiscalizar” as finangas municipais. O anteprojeco incumbia essa tarefa a tris bunais de contas estaduais, cujos membros tivessem as garans tias dos desembargadores." Transferiu-a 0 projeto primitivé. para as cimaras municipais, podendo qualquer vercador re corter, nas condigdes previstas, pata o Tribunal Estadual de Contas, para cujos membros nfo se impunham garantias espe- ciais.* O projeto revisto adotou, finalmente, a solucio que prevaleceu no texto definitivo: a fiscalizago da administragio financeia, especialmente a execucéo do orgamento, sera feita, nos Estados ¢ municipios, “pela forma que for estabelecida nas constituigdes estaduais °° Ficaram, portanto, as assem| constituintes dos Estados com pleno arbittio no que toca fiscalizagio da gestio financeira dos municipios, podendo in- cumbi-la aos préprios érgios de assisténcia técnica, atribuin- do-lhes, dessa forma, certa dose de ago rutelar sobre as co- munas, Tanto mais que a fiscalizagio aludida, nos préprios termos da Constituigao federal, abrange a execugio do orga- mento. E verdade que a autonomia municipal, por texto ex: 16 __presso, compreende a aplicagio das rendas préprias, mas tam- bém a Constivuigio de 34 assim dispunha e isso nfo impediu ‘que, a pretexto da fiscalizapto permitida em outro dispositive, 0s departamentos de municipalidades chegassem a ter Funda ingeréncia financeira na vida dos municipios. + Além disso, a participagio que es municipios tive- | ram nos tributos sobre lubrificantes ¢ combustiveis liquidos = ou gasosos, sobre minerals e energia elerica, deverd ser utiliza- da para “Os fins estabelecidos em lei federal”. Também exige a Constituigio que pelo menos metade da cota do imposto de renda destinada aos municipios seja aplicada “em beneficios de ordem rural”? Ai estéo outras cantas fontes provaveis de interferéncia na vida financeira dos municipios, jé que a a casio de tais suprimentos de receita para os fins apropriados cexige regulamentacio federal e, eventualmente, imposigio de sangées em caso de transgressio. Tudo isso pode dar origem a um incémodo aparelho de fiscalizacao.™* Conseqiientemente, a execugio das novas normas constitucionais poderd, de fucuro, restaurar, em grande parce, « sistema imperial da curela XI Parece fora de diivida que as condigBes da vida mo- derma néo sio muito favoraveis ao desenvolvimento das atti buigdes municipais, ou, em outras palavras, sf mais favori- veis & extensio dos poderes centrais. Um niimero cada vez hr CORONELISMO, ENXADA = VOTO Aramicoes stuntetats didsio, com jurisdigéo territorial determinada, em primeiro lugar, porque os municipios que tenham interesses comuns podem pertencer a mais de um Estado ¢, em segundo lugar, porque a area que constitui uma “regio” para fins, por exem- de exploragio hidrelécrica nfo ser necessariamente a mes- tives, como maior de problemas administratives requer solucio de con: junto, sengo para o pais inteiro ou para todo um Estado, ad menos para um grupo de municipios, que eventualmente podem pertencer a Estados diferentes, As estradas de rodagem J4 si, por exemplo, em grande pate, um problema nacional, que vai sendo progressivamente subtraido a competéncia mu nicipal, Também os problemas de saneamento apresentam em medida crescente esse carater. A proporcao que ampliarmos 0 uso da eletricidade, os municipios nem serio capazes de ent: interessada em outtos problemas admi hayegagio, rodovias, protecio do solo, reflorestamento etc. A ido de entidades especiais, com personali- le Juridica propria, dispondo de autonomia administrativa Gfinanceira, parece a solugao mais indicada e a que provavel- preender individualmente a construgéa de grandes centrdis a forma que melhor elétricas, nem de enfrentar isoladamente as poderosas empre: sas que porventura se incumbam de tal servico. Na medidiy ene prevalecerd entre nés. E, a conveniéncia da centralizagio de certos servi- 3s piblicos com a autonomia dos municipios, que participa- da composigio ou escolha dos quadros dirigentes da organizagio regional. Por outro lado, na medida em que aumenta a inter- vyengio do poder piblico na vida econdmica, 0 municipio poderia adquirir atribuigBes novas num terreno que tem fica- do predominantemente reservado & compeuigio individual. pottanto, em que estes ¢ outros encargos, por conveniéncia publica ou por necessidade técnica, se forem centralizandos. cotrespondentes parcelas de autoridade serdo amputadas municipios. No mais das vezes, isto se fart por sua propria’ deliberagdo ¢ no seu préprio interesse, Faltando, porém, essa concordancia, a interpretacio dos poderes implicitos da Uniti e dos Estados poderd eventualmente oferecer a necessi- ‘As chmaras coloniais muitas vezes exerceram esse papel de 1a solugio teérica. A associagio de municipios numa organi- regulamentagéo da economia local. No mundo moderno, zagdo parestatal incumbida de realizar servicos piblicos co- muns” responde a essa previsio." Nao ¢ nova, aliés, entre nés, a idéia de se inst acima do municipio © abaixo do Estado, uma entidade de porém, essa intervencio depende de um planejamento que tanscende os limites do municipio ¢ do Estado e que ha de ficar, por isso mesmo, confiado a auroridades federais. No periodo do Estado Novo, o aparclhamento de intervencio do poder piiblico na atividade econémica seguia Ambito regional, mas nfo tém tido éxito as tentativas nesse sentido,"®" Nem seria convenience instieuir esse poder interme- ue i CORONELISMO, ENXADA & VOTO ‘mais ou menos a estrutura administrativa: enquanto 0 poder federal controlava os orgios de agio federal, aos Estados se confiava o controle dos estaduais e, finalmente, a autoridade municipal (o prefeito, individualmente ou assistido de uma comissio) se desincumbia da tarefa no plano local. Numa fase como essa, de poder nitidamente hierarquizado, a solugdo era perfeitamente normal, pois o sistema adotado para executar a intervengéo econdmica fortalecia os poderes dos intervento res, delegados do governo federal, ao mesmo tempo que refor: sava os poderes dos prefeitos, agentes do governo estadual, A intervengio na economia funcionava, assim, como poderosa fonte de poder, que ajudava a consolidar a maquina politica na triplice esfera — federal, estadual e municipal." ‘Mas € licito imaginar que as coisas continuaro do mesmo modo, havendo situagdes politicas estaduais em opo- sicdo a federal ¢ situacSes municipais adversas & estadual? Em tal emergéncia, na qual jé nos achamos, parece uma aticude ‘mais realisca admitir que o governo federal institua, nos Esta- dos criticos, érgos proprios para execugio do seu planeja- mento econémico, ¢ que estes érgios (ou governos estaduais, quando for o caso) fagam 0 mesmo em relagdo aos munici- pios oposicionistas. Nesta hiptese, a tendéncia intervencio- nista moderna tera conseqiiéncia inversa da que foi acima assinalada: a presenca, no municipio, de autoridades néo- locais, com poderes téo importantes, como seja, intervir na atividade econdmica dos cidadios, sem diivida trara sério embaraco, senio administrativo, pelo menos politico, aos orgs locais de governo. aumento da receita dos municfpios pode contri- buir eficazmente para a auronomia da sua administrago, mas & bem provivel que ao fortalecimento econdmico dos mu clpios nfo corresponda idéntico reforgo de sua autonomia politica, Sem solidez financeira nao pode o municipio ter inde- pendéncia politica, mas a primeira ndo envolve necessariamen- tea segunda, porque pode vir acompanhada de um sistema de controle. E esse sistema parece, quando nfo propiciado, a0 menos permitido pela prépria Constituicéo de 18 de setembro. xiL No creptisculo da Monarquia, o Gabinete Ouro Pre- to anunciou, como ponto importance do seu programa, 2 re- forma municipal, matéria que o Presidente do Conselho ja havia estudado anteriormente. Essa manifestagio dos intuicos governamentais foi muito omissa," mas afirma-se que a preocupacio do velho liberal era revigorar a monarquia pelo fortalecimento dos municipios; 0 que equivale a dizer: pelo enfraquecimento politico das provincias."™ Entretanto, a jul- gar por seu trabalho de 1882, parece pouco provavel que ob- tivesse esse resultado. Fossem, porém, quais fossem as perspec- ica de Ouro Preto, sua posigio confirma tivas de éxito da pe a suspeita de que 0 nosso movimento federalista,"" desde as concessdes que Ihe fez 0 Ato Adicional, ndo se assentaria no CORONELISMO, ENXADA E VOTO contrario, as uni robustecimento politico do municipios des maiores se consolidariam com o sacrificio da autono: municipal, expediente eficaz na homogeneizaco politica da, provincia e, mais tarde, do Estado.' A concentragio do poder em nosso pals, tanto nd cordem nacional como na provincial ou estadual, processo através do enfraquecimento do municipio. Nao existe a met contradigéo nesse processo. E sabido que o poder central, tia Monarquia, nao mantendo relagées com o municipio seni para o tutelar, assentava sua forca politica no mando inco: trastivel exercido pelos presidentes de provincia, delegados sua imediata confianga, Consequentemente, 0 proprio poder central se consolidou através de um sistema de concentracéo de poder provincial, isto é, pelo amesquinhamento dos municipio: ‘Nio seria, pois, de estranhar que as provincias e, mais tarde, os Estados, quando procuraram reunir forcas para enfrentar 0 centro, continuassem a utilizar o mesmo processo. Alids a tutela do municipio tinha em seu favor 0 peso da tadigio. A historia ulterior da Republica federativa ilustra plenamente essa interpretagao. No lugar do presidente de pro- vincia todo-poderoso, viria inscalar-se 0 todo-poderoso gover- nador de Estado. Campos Sales nao tardaria a inaugurar a chamada “politica dos governadores”, que era mais o reconhe- cimento de um fato consumado que invengzo de seu talento politico. A concentragéo de poder continuava a pracessar-se 1a Orbita estadual exacamente como sucedia na esfera provin- mm Araimuicoss wuntenate ‘Gal durante 0 Império; mas, como a eleigio do governador de Eade fo dependia tdo puramence da vontade do centro como outrora a nomeacio do presidente de provincia, o chefe do:governo federal s0 tinha duas alternativas: ou declarar guerra as situagdes estaduais, ou compor-se com elas num Hsrema de compromisso que, simultaneamente, consolidasse © governo federal e os governos estaduais." Para que o processo se desdobrasse por essa forma, 0 I expiatorio teria de ser ineviravelmente 0 municipio, s@- ificado na sua autonomia. Entre nés, tanto 0 executive mo .0 legislative € o judicidtio Federais favoreceram a con- ‘entracao de poder nos Estados & custa dos municipios. Alias, 10s, deixados & sua livre “a simples idéia de que os muni. “dererminagio, acabariam nas méos de oligarquias locais — [que se manteriam, em caso de contestagio, pelo suborno € pela violéncta— conduaia muio naruralmente & concluslo de ‘que era preciso dar ao Estado os meios de impedir aquela possibilidade. Porém o que costuma passar despercebido é que © governo estadual, habicualmente, ndio empregava tais instru- izava contra os adversérios. ‘mentos contra os amigos: s6 0s u A razio jé foi dada no capitulo primeiro: a maior parte do eleitorado rural — que compée a maioria do eleito- rado coral — é completamente ignorante, ¢.depende dos fa- obedece. Em conseqiién- zendeiros, a cuja orientagao pol cia desse fato, reflexo politico da nossa organtzagio agriria, os chefes dos partidos (inclusive 0 gaverno, que contvola o parti- ns CORONELISMO, ENXADA E VOTO do oficial) tinham de se entender com os fazendeiros, através dos chefes politicos locais. E esse entendimento conduzia a0 compromisso de tipo “coronelista” entre os governos esta duais © os municipais, a semelhanga do compromisso politico que se estabeleceu entre a Unido e os Estados. Assim como nas. relagées estaduais-federais imperava a “politica dos governa+ dores”, cambem nas relagbes estaduais-municipais dominava 0 {que por analogia se pode chamar “politica dos coroneis”. Atra- vés do compromisso tipico do sistema, os chefes locais pres! ‘igiavam a polttica eeicoral dos governadores ¢ deles recebiam © necessirio apoio para a montagem das oligarquias munic pais. Para que aos governadores, e nao aos “coronéis”, tocasse a posigdo mais vantajosa nessa troca de servigos, 0 meio técni- co-juridico mais adequado foram justamente as limiragies & autonomia das comunas. Assim se vé como os nossos juristas-idealistas, que pretendiam limitar 0 poder dos municipios para impedir as oligarquias locais, acabaram dando aos governadores os meios de que se serviram eles para montar, em seu proveito, essas ‘mesmas oligarquias locais, fundando, assim, as oligarquias es- ‘aduais que davam lugar, por sua vez, a esta outra forma de entendimento — entre os Estados e a Unio, que se conhece ‘em nossa histéria por “politica dos governadores”, Nessa mais ampla composicfo politica, os instrumentos que mais eficaz- mente gurantiam a preponderancia do Presidente da Repuibli- caeram, na ordem financeira, os auxilios da Unio, destinados Ariypuicors swumiciras asuprir a escassez das rendas estaduais, c, na ordem politica, 0 reéonhecimento de poderes (a degola), que podia mancer no Congresso Federal, ou dele expulsar, os senadores ¢ deputados ‘qe as fraudes e os chefes locais extraiam das urnas. Tanco um "€omo outro — o compromisso dos governadores com os “co- Fonéis” e 0 compromisso dos presidentes com os governadores ‘sh assentavam, portanto, na inconsciéncia do eleitorado rural 6 Por isso mesmo, no tipo de estrutura agraria predominance em nosso pals, E evidente, porém, que a politica dos “coron Conduziu ao fortalecimento do poder estadual de modo muito mais efetivo do que a “politica dos governadores” garantia 0 teforcamento do poder federal. Nas relagdes federais-esta- duais, embora o Presidente da Republica dispusesse de muitos meios mais brandos e bastante eficazes para convencer das conveniéncias da reciprocidade aos governadotes menos aco- modaticios, a ultima ratio para 0 nao-conformismo seria a incervenglo federal, que arrastava pelo menos a eventualidade de ago armada e cruenta, Nem sempre conviria ao Chefe de Estado arrostar as possiveis conseqiiéncias que a repercussio nacional dessa medida poderia ocasionar. Tais perigos no ocorriam na mesma proporcao nas relagoes estaduais-municipais. Quando falhassem os meios suas6rios — nomengbes, favores, empréstimos, obras puiblicas sob 0 comando de um dele —; 0 destacamento poli eficiente, poderia com relativa facilidade convencer os “coro- CORONELISMG, ENXADA E VOTO néis” recalcitrantes, ¢ decerto nfo faltaria, nesta hipétese, a = colaboracio calorosa de outra corrente politica municipal. Se- melhante processo de persuasio, freqiiencemente seguido de violéncias, nao tem no ambito estadual a mesma repercussao que a intervengao nos Estados pode eventualmente provocar CAPITULO TERCEIRO Eletividade da administragao municipal ‘no ambico nacional, mesmo porque a importancia do munick pio em face do Estado nao ¢ proporcional a importéncia do. Estado relativamente & Uniso. As consideracdes precedentes parecem deixar fora de diivida que 0 nosso federalismo se tem desenvolvido a custa do municipalismo: 0 prego pago foi o sistematico amesqui- nhamenco do municipio, apesar da abundan 1 — Eletividade das cimaras municipais no perfode colonial. Il — No Império ¢ na Replica. 11 — Criagio do executive municipal no Brasil. IV — Pre- feitos cletivos ¢ prefitos de livre nomeacio no regime de 1891. V — Discussio do problema na Consciuin- te de 1933-1934, VI — Solugio adotada pela Cons- tituigio de 1946, VII — O judicidrio e as eleigées ‘municipais na Repiblica. VIIT — Importincia do ‘executivo municipal ¢ da forma de sua investidura. i A tradigio da cletividade sempre foi, entre nés, muito mais sélida em relacio 4 cimara municipal do que no tocante aos prefeitos. A importincia da cimara avulta nos periodos da Colénia ¢ do Império, nos quais nao tinhamos o executivo local como érgio diferencado ¢ auténomo.' Na fase republica- nna, com a presenga do prefeito {ou que outro nome tivesse), essa importincia diminui, mas, ainda assim, travaram-se con- trovérsias politicas e doutrindrias sobre a verificagio de poderes dos vereadores, problema inseparivel do da eletividade, * 126 fe

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