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7 mney Eduardo Uuveua anya Saunders ‘ Henrique Freitas Vicenzo Runa EpiToR Foto Do autor Guellwaar Adin Antonio Terra REVISAO Proyero Ga. Andrea Betania da Silva Guellwaar Adtin FoTO DA CAPA Diregao ve Arte Danga de Tupa de Marcos Rogger Dada Jaques F862 Freitas, Henrique O arco ea arkhé: ensaios sobre literatura e cultura / Henrique Freitas. - Salvador: Ogum’s Toques Negros, 2016. 290 p. ISBN 987-85-69277-11-8 1. Literatura africana (Portugués), 2. Literatura brasileira - Historia e critica. I. Titulo. CDD 869.09 Afro-rasuras: o hip hop como agén-i. piopolitica do: agencia $ letramentos Negros A favor do batuque da cozinha que nasce na covinha k x sinha na quer, ies Da poesia periferica que brota na porta do bar, Do teatro que nio vem do “ter ou nao ter? Do cinema real que transmite ilusao, Das Artes Plasticas, que, de concreto, quer substituir os barracos de madeiras. Da Danga que desafoga no lago dos cisnes. Da Musica que nao embala os adormecidos. Da Literatura das ruas despertando nas calgadas. A Periferia unida, no centro de todas as coisas. Contra 0 racismo, a intolerancia e as injusticas sociais das quais a arte vigente nao fala. Contra 0 artista surdo-mudo e a letra que nao fala. Sérgio Vaz O MOVIMENTO HIP HOP, um dos produtos mais potentes da diaspora africana, tem afetado de forma significativa as bases dos processos de letramento das populacées negras e periféricas, bem como do debate etnicorracial no Brasil, ao colocar-se contra 0 que aqui chamo, a partir de Michel Foucault (2008), de hiperpandptico, tornando-se uma efetiva agéncia de letramento extraescolar. Além de proporcionar um ensino/aprendizagem que se fundamenta nos usos sociais criticos da leitura e da escrita, o hip hop amplia os sentidos dos atos de ler e escrever, conectando-os ainda com os valores civilizatérios afro-brasileiros, sobretudo quando pensamos no contexto da Bahia/Brasil. © hip hop tem diversas narrativas de origem, send a mais forte a reuniao na década de 70 do século XX, em guetos de New York, como © Bronx, de experiéncias de imigrantes vindos da America Central, bem como de afro. americanos que viviam nas periferias estadunidenses, Ex. integrante de uma gangue chamada Black Spades e depois fundador da Zulu Nation, Afrika Bambaataa, nome artisticg do afro-americano Kevin Donavan, é considerado um dos responsaveis por reunir no hip hop os quatro elementos que irio constituir este movimento misico-cultural: a danca de rua, 0 rap (letra da musica que € falada-cantada); 0 DJ (o sujeito que comanda o aparelho de som chamado pick up) e o graffiti (escrita urbana que vaza os sentidos de publico e privado, constituindo-se, ainda, como uma mistura de artes visuais e escrita, originalmente realizada nas paredes dos centros metropolitanos). Muitos membros do hip hop defendem hoje outros elementos, como a consciéncia social, ou seja, a atitude. O hip hop nos EUA, dentre outras coisas, buscou mimetizar a guerra das ruas e a rivalidade violenta das gangues em producées artisticas que culminavam no desafio e nas batalhas simbolicas dos rappers, b-boys e Djs pal ver, respectivamente, quem rimava, dangava ou discotecava melhor. Neste sentido, ele ja emerge como um dispositive de “Producao da vida” para os subalternos (afro-americanos £ San saa e revertendo as estruturas aa musico-cultural y ie oe nae 3005 do século XX e eur sia eg 7 et i. wile em especial, as do He a Peele i pea a ado de Sao Paulo, O movimento hi prasileiro se reconhece, pois, desde fruto das experiéncias ( potencia, seja artistica, _ ue a sua emergéencia, como musicais) da diaspora negra e sua Seja aquela dos ao Processos educativos que incluem os letramentos de que falaremos mais adiante advém exatamente da exploracao desse lugar afrorrizomatico de que fala. 1. A diaspora negra como afror oma Pensar 0 conceito de diaspora africana ou de diaspora negra nacontemporaneidade exclusivamente como uma dispersao imputada por uma esfera politico-cultural dominante é tornar invisivel a resisténcia, as contra-narrativas e as produgées realizadas pelos africanos e afrodescendentes desde que o Atlantico tingiu-se de negro, funcionando como rota de passagem para 0 trafico de sujeitos escravizados. De acordo com Paul Gilroy (2001), na complexa rede de relagdes que se originou com a mistura e 0 movimento de diversas culturas que se cruzaram por meio da travessia compulséria do oceano, a diaspora negra passa a ser entendida através das semelhangas e dos sentimentos de solidariedade provocados pelas experiéncias de desterritorializagao e€ reterritorializagao dos povos em transito. Os sprays para grafitagem, as pick ups para a usados para a agao dos break sio operadores que conectando os grafismos strais desde a discotecagem e€ os microfones MCs, bem como o corpo do mixam as identidades negras, contemporaneos com as grafias rupestres ances| in Africa Antiga, mas também com os grafismos indigens : rem da América; a arte do DJ e MC figura como aprendizage m¢ aedo griotica africana, mas tambem das culturas dos sound systems jamaicanas e da poes dub e do slam; ea danca dg break como rastro da memoria negra que Se constitui a cada passo pelo Atlantico e no Brasil produtivamente se (con) funde com a capoeira, por exemplo, DJ Hum, considerado uma das pedras fundamentais do hip hop no Brasil, ao ser indagado sobre como ele pensava 0 exercicio de sua arte como Dj, responde sem titubear: “O DJ eo MC tém relacio com o griot. Na arte do griot primeiro vem o som, tum, tum, tum, tum, sd depois a voz. E a base sonora que vai ditar 0 compasso, a cadéncia da narrativa ritmada que vai ser realizada. Pra que o bom rap ocorra é a mesma coisa: primeiro tem que escutar e depois seguir a batida!”*. A diaspora abala a perspectiva essencializante de unanimidade racial e de tratamento dos negros como se fossem exatamente idénticos, questionando os modelos de classificagao que foram usados para os africanos e 0s afrodescendentes durante a colonizacao e também apés este periodo, ja que ela afeta uma ideia de origem e de identidade unicas, compreendendo o homem e a mulher negros como seres complexos, constituidos de miultiplas raizes, de matrizes diversas e fragmentadas. A Africa plural encenada aqui é devir e nao mais esséncia ontoldgica ou signo de um desejo indcuo de retorno do mesmo. E 0 que ela tornou- se nos fluxos dos didlogos/atritos entre as comunidades do Atlantico Negro que forjaram para si modos de ser negro das pick ups as paredes. Stuart Hall, em Da didspora (2003), ao refletir sobre # 48 - Depoimento. : = culinatlevean ae de D] Hum em uma mesa redonda no I Coléquie Internat al * Atro-Brasil América, realizado de 10 a 13 de abril de 2012, pelt cultura caribenha, fala da ineficiéncia de se pensar a cultura negra com base em modelos orientados pela ideia de origem/copia, destacando que as culturas da diaspora tém que ser compreendidas em suas relagdes com outros povos da diaspora e nio apenas com a Africa. Logo, na realidade prasileira, retrabalhar a Africa foi e continua sendo um exercicio potente para as politicas e expressdes culturais dos secs. XX e XXI. Dai, a relevancia ainda maior para se pensar no hip hop neste contexto, jd que ele é exatamente fruto das experiéncias multirrefenciais proporcionadas pela diaspora. Alias, o sample (fragmento de uma misica incorporado em outra), mais que um recurso para a composi¢ao musical é a materializagao modelar afrorrizomatica, uma vez que, por mais que se identifique de que cancao ele foi extraido, ao ser desterritorializado e reterritorializado, retorna em diferenga pertencendoa rede que o conectaa outros referentes. Grupos de rap como 0 Orishas, de Cuba e 0 Opanijé, da Bahia/ Brasil, nao sé sampleiam icones da musica negra mundial, mas, sobretudo, a dimensio cosmogonica das religides de matriz africana presente nos tambores e nas cangées rituais, seja da santeria ou do candomblé, potencializando ainda mais esses rizomas negros que se interconectam de forma polifonica e descentrada na teia da diaspora. A condi¢ao diaspérica € capaz de conferir criatividade e de gerar satisfacao, oferecendo as bases para se transgredir 0 poder e o saber que tentaram ou que ainda tentam colonizar os afrodescendentes espalhados pelo mundo: a capoeira, a musica afro-brasileira € a literatura-terreiro sao exemplos desta experiéncia; as religides de matriz africana eas redes de sociabilidades negras construidas no Brasil, como as irmandades, sao também grandes modelos desta Condicag diasporica. Elas operam a partir da transformagao a experiéncia traumatica de um passado colonial scravocrata em arte, em formas de empoderamento negro e de sua cultura na diaspora, fazendo com que as raizes africanas espraiem-se ainda mais produtivas pelo mundo. Este ¢ 9 sentido de diaspora com que operamos aqui e ele que esta na base dos letramentos negros que confrontam a estrutura do hiperpanotico. 2. O que sao os Letramentos negros? Problema com escola, Eu tenho mil, Mil fita, Inacreditavel, mas seu filho me imita, No meio de vocés, Ele é 0 mais esperto, Ginga e fala giria, Giria nao, dialeto Racionais MCs (Negrodrama). Os letramentos negros sao os usos sociais das leituras € escritas dispersas dentro e fora do ambiente escolar que atuam de forma critica em favor das reexisténcias 4a populacao negra, por meio do reconhecimento dos valores civilizatérios afro-brasileiros, de uma politica antirracist@ e da autoafirmacio identitaria negra. Eles voltam-s¢ também contra aquilo que Florence Carboni e Marie Maestri (2005) chamam de escravizagio da linguage™ ou seja, a impregnacao do sj subalternizantes que se n produzindo Perigosas hiera Para compreendermos yamos exemplifica-los atrav. atualmente como &n0 linguistico Por sentidos aturalizam e se disseminam rquias linguisticas, melhor os letramentos negros, és do hip hop, Pois eles funciona importante agéncia de letramento extraescolar (um daqueles lugares que estimula os diversos usos da leitura e da escrita) em muitas cidades brasileiras. Para isto, o hip hop utiliza-se de Praticas pedagégicas advindas do Movimento Negro, cobrando ainda que os 8 q corpos dxs jovens negrxs nao se anulem nos processos inclusives escolares de que participam. Além do papel, a parede, o corpo e a voz tornam-se os suportes nos quais os jovens das periferias tecem produtivas redes de leitura e escrita que se entrelacam, a pati de um principio que visa a uma proficiéncia transcen 7 perspectiva do letramento funcional e da castracao ee pelo hiperpandptico. Desta forma, rappers, gralteiros, i simpatizantes do hip hop, breakers, disk joqueis, b-boys € P nsino basico, que em alguns casos mal concluiram °, ens Paes f ublica, for: i ade escolar publica, ; oe realid do hip hop. Mano Brown € Nas ruas, por meio dos elementos : ee hip hop nacional, : . incipai oentes MV Bill, dois dos principais exp « pouco escolarizados que gig eer! “ mae op no caso de Bill, at . D etri: % lograram éxito como excelentes como autor de livros. Consideragoes finals Na obra Letramentos de reexisténcia, Ana Licia Silva Souza (2011) mapeia a reexisténcia etnicorracial dos jovens negros nas periferias brasileiras por meio dos quatro elementos artisticos que integram o hip hop (Dj, MC, b-boy/b-girl, grafiteirx), reconhecidos pela autora como importantes agentes de letramento. Ao conectar- se com uma politica antirracista e de autoafirmacio etnicorracial negra, através dos elementos do hip hop, os letramentos de reexisténcia tornam-se também letramentos negros, vinculando-se ainda aos valores civilizatérios afro-brasileiros: ancestralidade, memoria, oralidade, circularidade, energia vital (axé), corporeidade, ludicidade, musicalidade, religiosidade, cooperativismo." A compreensio dos valores civilizatérios afro- brasileiros nos auxilia na tarefa de entendermos melhor como os letramentos negros no hip hop operam contra a violéncia biopolitica que deixa morrer ainda hoje muitos jovens nas escolas publicas brasileiras que continuam tendo “mil fitas’, ou seja, muitos problemas, com a educasae formal “gratuita” ofertada no Brasil, sobretudo para 0S Jovens negros e periféricos que nao se reconhecem é Pih Muitas vezes se veem negados nas praticas escolares. Referencias A Cor e on Valores civilizatorios 4fro-brasileiros, Dis www. oa a tura.org br. Acesso em: 26 jan, 2012 CARBONI, i ‘rence; MAESTRI, Mario. A linguagem escravi poder a le classes. 2. ed. Sag Paulo, Expressao Popular, 2005. CORREIA, planar Antonucci Correa (Org.). Praticas de letramento no ensin, b escrita, . Sa . 4 one a !scurso, Sdo Paulo: Parabola Editorial nen Grossa, PR FOUCAULT, Michel. Em defesa da socie (1973-1976). Trad. Maria Ermantina Galv. FOUCAULT, Michel. 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