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A obra de arte literária - Prefácio de Maria Manuela Saraiva

Prefácio à edição portuguesa (1)

Haverá um conhecimento objectivo de uma obra literária, conhecimento certo, a distinguir de


opiniões subjectivas e erradas? Roman Ingarden faz a pergunta no § 61 deste livro. Alargando o
problema, interrogamos: poder-se-á falar de obras objectivamente difíceis, isto é, de difícil acesso a
todo e qualquer leitor? Não o cremos, a não ser que se tome tal idéia como um caso-limite. Pois
somos tentados a acreditar que Das literarische Kunstwerk o realiza bastante bem.

Investigação rica mas prolixa, não raro obscura, desconcertante na sua economia interna, o presente
estudo desdobra-se em múltiplas linhas de fractura e convergência que irradiam de um terreno
fenomenológico husserliano de base para perspectivas de natureza lingüística, lógica, estética, sem
deixar de afirmar com insistência a pretensão de lançar as bases de uma ciência da literatura.

Este Prefácio foi escrito a partir da leitura do original alemão, quando a tradução portuguesa não
estava ainda concluída. Desconhecendo a paginação do volume português, não a podíamos citar.
Mas citar a paginação alemã, além de criar confusões, seria de alguma utilidade?... Uma tradução
destina-se, por definição, a um público que a prefere ao original por razões várias. O facto de o livro
estar dividido não só em capítulos mas também em parágrafos forneceu-nos a solução do problema.
Não é ideal, mas é a única de que dispomos. O parágrafo é geralmente curto, e neste caso a
numeração não muda. Por isso citaremos sempre o parágrafo e o leitor descobrirá com relativa
facilidade o texto, a teoria ou a problemática que estão em causa no nosso comentário.

Algumas vezes faremos referências a Husserl e às suas Investigações Lógicas (Logische


Untersuchungen). No caso em que tivermos de fazer citações precisas damos em português o passo
em questão, mas citamos a obra alemã, edição de 1913.

A Obra de Arte Literária tem três Prefácios, o da primeira edição, em 1930, e os de 1960 e de 1965,
respectivamente para as segunda e terceira edições. Para simplificar, quando se trate do primeiro
falaremos do Prefácio de 1930, ou do Prefácio, simplesmente.

Tudo isto em 1930, data da primeira edição do volume que hoje sai a público em tradução
portuguesa! (O ano de 1930 pode tomar-se como o marco aproximado que separa duas épocas, tanto
em lingüística como em lógica.)

Se toda a obra escrita é o espaço aberto e sempre disponível a uma infinidade de leituras diferentes,
esta é-o certamente de múltiplas maneiras. Em primeiro lugar, porque os diferentes leitores,
sectorialmente situados em qualquer destes pontos de vista: literário, lingüístico, lógico, estético,
filosófico..., farão, como é óbvio, a leitura para a qual os prepara a sua formação específica. Nada
impede de imaginar o leitor ideal, nestes tempos em que tanto se fala de interdisciplinaridade. Não
cremos, contudo, que tal leitor exista ainda. E aqui temos um dos paradoxos desta obra paradoxal.

Escrita em 1930, é natural verificarmos que está ultrapassada em vários dos sectores particulares de
que releva, apesar das notas acrescentadas à segunda edição, de 1960. E, no entanto, o leitor para o
qual foi escrita ainda não existe... Significa isto que ela vale sobretudo, em nosso entender, pelo seu
valor exemplar. Ê difícil imaginar o que representa de ousadia e de novidade uma obra como esta
que, ao querer lançar as bases de uma ciência por nascer (e, ao que parece, ainda hoje não
nascida...), o faz numa tão vasta ambição de síntese. Tão vasta que não sabemos se admirar a
grandeza do projecto ou nos admirarmos perante a sua ingenuidade.

Em lingüística, o Cours... de Saussure havia já suscitado reflexões sobre signo, símbolo,


significado, por parte de filósofos e de lingüistas; mas de semântica, em sentido actual, não poderá
falar-se ainda por longo tempo. Os primeiros trabalhos importantes da escola fonológica de Praga,
base da lingüística estrutural, aparecem precisamente por esta altura. Dos três centros de onde
irradia a renovação da lingüística e dos seus principais representantes — Trubetzkoy, Bloomfield,
Hjelmslev — era impossível ou pouco provável ter conhecimento em 1930. (Sem contar que a
redacção de A Obra de Arte Literária começou em 1927.)

Quanto ao chamado Círculo de Viena, os anos trinta são os da sua maior expansão (fundação da
revista Erkenntnis, diáspora provocada pela perseguição nazi, organização de congressos
internacionais). Uma nota ao § 18 de A Obra de Arte Literária, acrescentada em 1960, revela a
oposição de Ingarden ao programa positivista do movimento — o que se compreende facilmente
pelo que a seguir diremos.

Aliás, não é a única referência ao Círculo de Viena. Essa nota, porém, tem especial interesse porque,
ao lado de Carnap e de Wittgenstein, Ingarden refere-se a outra importante escola polaca de lógica,
em que sobressaem os nomes de Lesniewski, Zukasiewcz, Tarski. Portanto, e como seria natural,
conheceu o grupo de Varsóvia. No entanto, ao falar, no Prefácio e noutros passos, da nova lógica, ou
nova orientação em lógica, é a lógica fenomenológica que tem em mente.

Do valor estético da obra literária quase ninguém fala hoje. «Ainda não é formalizável, talvez
dentro de cinqüenta anos...», disse-nos alguém que se move na zona de influência de A.-J. Greimas,
durante o Seminário de Semiologia, realizado no Verão de 71, em Urbino. Mesmo o conceito de
obra literária se esfuma perante outros mais englobantes, como o de escrita. Quanto à aliança entre
lingüística e lógica, só na década de 50, com o segundo Wittgenstein, Chomsky e outros, se voltou a
tentar. Mas isto é terra prometida e mal vislumbrada para a maioria, mesmo nos nossos dias. E todos
os problemas respeitantes ao «autor», de que neste livro se fala, embora com certa cautela e
precaução?

Ingarden ainda acreditava em tudo isso.

Não deploramos o passado nem os sacrifícios epocais, que é por vezes indispensável consentir, para
uma sempre maior radicalização de conceitos básicos, para a renovação, crescimento e
reajustamento dos diferentes domínios do saber. Mas não deixamos de sentir a urgência de certas
recuperações fundamentais. Por isso desejaríamos ver neste livro, ultrapassado em certos sectores,
um sinal precursor de uma nova, futura era, de unidade e síntese (onde estas forem possíveis), mas
sobretudo menos redutora, mais englobante e fiel à complexidade do real.

Fenomenologia, lógica, estética... coisas a mais para o leitor médio de formação lingüística e
literária, a quem se destina, afinal, esta colecção. Ê para ele este Prefácio. Pensamos que lhe falta o
apetrechamento conceptual e terminológico de base para toda e qualquer leitura de A Obra de Arte
Literária, se não dispõe de uma iniciação à fenomenologia husserliana. Abrir o caminho a esta
iniciação, mais precisamente, ao entendimento deste livro no terreno de onde nascem as suas raízes
mais fundas, eis o que pretendemos em primeiro lugar.

Mas aqui as coisas complicam-se. Por um lado, Ingarden faz um apelo constante a noções
fenomenológicas fundamentais: intencionalidade (acto de simples intenção, objecto intencional,
correlato intencional, factor de direcção intencional...), intuição, representação, preenchimento
(Erfüllung), doação originária... No entanto, quem leia o seu livro e esteja familiarizado com o
pensamento do «.venerado mestre-» verifica que expressões idênticas ou semelhantes às de Husserl
podem recobrir realidades diferentes! Está neste caso a noção, tão importante para Ingarden, de
puramente intencional, com as sub-distinções que lhe estão ligadas (§§ 20-22, entre outros). Mas o
contrário também pode acontecer, isto é, que uma ligeira alteração terminológica exprima
exactamente a doutrina de Husserl. Pensamos na teoria da Wortlaut (a palavra no seu aspecto
fónico), em que o discípulo cuida jazer obra um tanto original (§§ 9, 10, 12) e que é, quanto a nós,
no essencial, a teoria husserliana do signo verbal (Wortzeichen), termo a que Ingarden recorre
também, sobretudo no final da obra (§§ 62, 64, 66). E há a presença constante do professor de
Góttingen praticamente em todas as páginas deste livro, mesmo quando não é nomeado. Basta
indicar o peso enorme, desmedido, da intuição em sentido husserliano, que nos parece ser o eixo em
torno do qual se organizam todos os elementos que contribuem para a valorização estética da obra
literária. E há as críticas e divergências apontadas por Ingarden no Prefácio de 1930 e nalguns
outros passos, nomeadamente no importante § 66.

No âmbito destas divergências se inscreve o famoso e irritante debate entre Realismo e Idealismo,
que aterroriza os novos e faz sorrir os cépticos. Falar de filosofia, hoje? É verdade que se não fala
muito de filosofia, que se julga possível neutralizá-la, pelo menos metê-la entre parêntesis,
recorrendo a noções puramente «operacionais»... É verdade também que Ingarden nem sempre é
claro e que o debate entre Realismo e Idealismo passou de moda. Não nos parece, contudo, tão
ultrapassado como isso ao insistir na necessidade de uma reflexão filosófica sobre o fenômeno
literário.

Acabámos de delinear, muito por alto e a partir de alguns exemplos mais relevantes, um estudo a
fazer - as relações entre o pensamento de Husserl e o de Ingarden —, estudo que não cabe num
prefácio, pois, a ser feito, teria de ser longo, minucioso, fundado em citações precisas das obras dos
dois filósofos.

Não queremos, contudo, deixar o leitor não especialista completamente desarmado. Mas não é fácil
explicar em poucas palavras o que é intencionalidade, constituição, redução eidética, redução
transcendental e outras noções fundamentais; nem parece indispensável fazê-lo aqui. Existe uma
bibliografia em português que os estudiosos de literatura e de lingüística só ganharão em conhecer
[NA: De A. F. Morujão, A Doutrina da Intencionalidade na Fenomenologia de Husserl (Coimbra,
separata da Biblos, XXX, 1955); Mundo e Intencionalidade (Coimbra, Instituto de Estudos
Filosóficos, 1961). De J. Fragata, A Fenomenologia de Husserl como Fundamento da Filosofia
(Braga, Livraria Cruz, estudos public. pela Fac. de Filos. de Braga, 1959); Problemas da
Fenomenologia de Husserl (Braga, Livraria Cruz, estudos public. pela Fac. de Filos. de Braga,
1962). De G. de Fraga, De Husserl a Heidegger. Elementos para unia Problemática da
Fenomenologia (Coimbra, Instituto de Estudos Filosóficos, 1966). Por último, um breve mas útil
artigo de M. Antunes, «Crítica literária e fenomenologia» (in Brotéria, LXXVI, 4, 424-35).].

Posto isto, retomaremos alguns dos problemas atrás indicados e outros que julgarmos necessários,
começando por situá-los numa perspectiva histórica.

§ 1. Ingarden e Husserl

Ingarden foi discípulo de Husserl em Göttingen, a partir de 1909 aproximadamente, e segue-o para
Freiburg, onde este ensinou desde 1916 até ao fim da sua carreira docente.

Largos anos de convívio pessoal e uma comunicação de idéias que a separação não quebrou e se
traduz por numerosos artigos sobre Husserl e por uma volumosa correspondência mantida quase até
à morte do fundador da fenomenologia, em 1938 (Supomos, por indicações do Prefácio de 1930,
que Ingarden permaneceu um ou dois anos em Freiburg. O que perfaz cerca de oito anos de
«aprendizagem» husserliana.).

Da profunda marca deixada pelo professor e amigo no jovem estudante polaco que, por volta dos
dezoito anos, chega a Göttingen para conhecer o autor das Logische Untersuchungen, é a presente
obra testemunho irrefutável. Influência profunda que se alia a não menor independência de espírito.
Ê esta a sorte comum de todos os grandes iniciadores. Mas talvez só eles mereçam ter discípulos
dissidentes...

O debate entre Realismo e Idealismo (que, segundo Ingarden, é o horizonte último dentro do qual se
investiga a essência da obra literária), as sérias reservas feitas ao idealismo transcendental e outras
posições do filósofo polaco só se podem entender à luz da doutrina das Investigações Lógicas e da
evolução de Husserl durante o chamado período de Göttingen (1901-1916). Esta evolução
surpreendeu a maioria dos seus adeptos da primeira fase; H. Spiegelberg, que conheceu muitos
deles pessoalmente, fala mesmo de consternação, «consternação crescente».

No começo do século, em 1900 e 1901, Husserl publica os dois volumes de wna das obras que
marcarão profundamente esse mesmo século, as Investigações Lógicas, cuja repercussão no mundo
intelectual alemão foi enorme. E precisamente em 1901 deixa Halle e é nomeado professor em
Göttingen. Atraídos pela leitura deste livro, pelo prestígio do seu autor, começam, por volta de
1905, a chegar à célebre cidade universitária os primeiros discípulos, estudantes ou jovens
professores. Entre eles, Adolf Reinach, Johannes Daubert, Moritz Geiger, Theodor Conrad, Hedwig
Conrad-Martius, Wilhelm Schapp, Alexander Koyré, Jean Héring, Roman Ingarden, Edith Stein e
outros. A guerra de 14 dispersa definitivamente estes primeiros ouvintes e críticos que, entretanto,
formaram «círculos fenomenológicos» em Munique e em Göttingen. Mas a «Primavera
fenomenológica», como J. Héring chamou a esta época de intensa vitalidade e entusiasmo, declina
muito antes, se a entendermos como adesão sem reservas. Husserl nunca teve a equipa de
investigadores que desejou, trabalhando sistematicamente segundo o seu plano e o seu método n.
Não falando já das defecções célebres de Max Scheler e de Heidegger, esta numa fase posterior, o
primeiro choque que alertou o ainda reduzido grupo de fenomenólogos-aprendizes foi o curso de
Verão de 1907, que ficou inédito até 1947. Aí aparece, segundo os comentadores actuais, o primeiro
esboço da redução transcendental. Por outras palavras, aí começa Husserl a abrir caminho para a
verdadeira fenomenologia, que tem o seu acto oficial de nascimento em 1913 com a publicação do
vol. I das Idéias para uma Fenomenologia Pura e Filosofia Fenomenológica.

Em 1929, R. Ingarden trabalhava no presente estudo quando aparece Lógica Formal e


Transcendental, onde o idealismo husserliano é confirmado uma vez mais; a esta obra se refere no
Prefácio de 1930, para sublinhar com júbilo os pontos de convergência entre o seu pensamento e o
do antigo mestre, para recusar, com certa subtileza mas de maneira inequívoca, o idealismo
transcendental. Este é, de facto, quanto a nós, a opção filosófica de baseado método
fenomenológico, da fenomenologia tal como Husserl a concebeu. Mas esta recusa, que não é só de
Ingarden, como vimos, vem de muito antes!

Podemos imaginar sem custo o jovem estudante polaco chegando a Göttingen, por volta de 1910,
trazendo na bagagem as Investigações Lógicas (é ele quem o diz, algures) e verificando que o seu
autor ultrapassara já a fase atingida por essa obra, fase pré-transcendental em que apenas se
propusera estabelecer com rigor as bases de uma nova lógica e em que (herança do positivismo, já
decadente, mas com muita força ainda) tentara manter-se numa neutralidade filosófica em relação
ao Idealismo como ao Realismo.

Esta neutralidade, aliás, é discutível. Entre os especialistas de Husserl há quem veja, hoje, nas
Investigações uma orientação idealista. Mas a primeira reacção foi diferente. E Husserl contribuiu
muito para essa interpretação ao dizer «com uma ironia séria»: «Os verdadeiros positivistas somos
nós!»

A fenomenologia das Investigações Lógicas ou a ilusão das terceiras vias! A Primavera de


Göttingen ou o desmoronar de mal-entendidos que, mais uma vez, Husserl foi o primeiro a criar
com a sua famosa palavra de ordem: Zu den Sachen selbst! Nada que não sejam as próprias coisas
(die Sachen selbst), vistas em si mesmas e com um olhar novo. . . A intuição.. . A pura descrição das
essências — e, para começar, das essências ou idéias lógicas.

Hegel provisoriamente expulso da circulação na Alemanha, Freud ensaiando os primeiros passos,


Nietzsche, o obscuro, a poucos acessível, Kierkegaard ainda não descoberto senão no seu país, onde
ninguém é profeta: a cena filosófica está vazia. Cansados dum kantismo que sobrevivia em
comentários de comentários ou em secundárias ramificações de escola, dum positivismo redutor e
pobre, duma psicologia adolescente, ingênua e aguerrida que se julgava o centro do universo,
compreende-se que os primeiros leitores e ouvintes de Husserl vissem nele o que os franceses viram
em Bergson: um renovador. Um renovador que afirma a necessidade de regressar ao concreto, à
experiência imediata: a intuição das essências; que recusa opções metafísicas; que introduz uma
certa ordem na lógica, anexada pela psicologia; que forja ou renova noções que se consideram
chaves capazes de abrir todas as portas. Antes de mais, a noção de intencionalidade.

Infelizmente para os primeiros entusiastas, em 1907 e em 1913 Husserl dá dois grandes passos na
direcção do idealismo transcendental. Regresso a Kant ou a algo de muito parecido com a filosofia
de Kant? Infidelidade ao ideal da fenomenologia como ciência rigorosa? Repúdio de uma
concepção supostamente realista do princípio de intencionalidade?

Husserl é um eterno iniciador. Em cada obra se renova, em cada estudo recomeça a caminhada
infatigável para fundar a filosofia. Um projecto inicial que se mantém, alargando-se sempre, em
cada fase uma versão nova da fenomenologia. Ê por isso que encontramos hoje tantas
fenomenologias diferentes: a de Sartre, a de Merleau-Ponty e, muito antes, a de Reinach, a de
Pfander, a de Nicolai Hartmann, a de Max Scheler. A de Roman Ingarden.

O mestre forneceu os materiais de base. Com eles, cada um dos ouvintes ou leitores muito cedo foi
para o seu canto trabalhar, erguer a sua tenda. A de Ingarden é uma entre tantas outras.

Destrinçar o que nela há de autenticamente husserliano e de elaboração pessoal, repetimos, seria


matéria para um estudo profundo e extenso. Aqui, temos de nos limitar a abrir caminhos. Mas o que
foi dito permite ir um pouco mais longe.

Nas suas linhas gerais, o problema põe-se mais ou menos nestes termos: enquanto Husserl se renova
constantemente, Ingarden, de certa maneira, parou ao nível das Investigações Lógicas e de Idéias,
muito mais perto da primeira que da segunda obra.

Não que Husserl fosse a única influência recebida. Igualmente importantes foram as de Pfander e de
Bergson. E o leitor pode verificar por si a numerosa lista de outros autores citados neste volume.
Também não pensamos que Ingarden tenha aceitado em bloco as Investigações, pois se afasta delas
em pontos importantes. Sabemos, por outro lado, que é bom conhecedor de escritos posteriores de
Husserl, publicados ou inéditos, alguns dos quais são aqui referidos. Queremos dizer que os
problemas que mais fundamente o tocaram e suscitaram a sua reflexão vêm das Investigações
Lógicas e de Idéias. É dentro da problemática destas obras que se move, do seu conteúdo ou do
impacto por elas produzido — dos aplausos, dúvidas, perplexidades, críticas, interpretações várias
que suscitaram.

Quer as aceite, quer as rejeite ou discuta, é dentro deste horizonte que se mantém. Um exemplo do
primeiro caso, o «fantasma» do psicologismo; do segundo, o debate entre Realismo e Idealismo.

Diremos uma palavra sobre cada um deles, começando pelo último.


§ 2. O debate entre Realismo e Idealismo

O contributo mais original de Ingarden em fenomenologia é talvez constituído pelas suas análises
da obra de arte: literatura, para começar, mas também música, pintura, arquitectura. A sua obra
fundamental, porém, diz respeito ao debate entre Realismo e Idealismo, problema de todos os
tempos que retomou aguda actualidade com a adopção, por parte de Husserl, de um novo idealismo
transcendental. E Spiegelberg cita Der Streit um die Existenz der Welt como o estudo mais
significativo do pensador polaco. J. Héring confirma este testemunho dizendo que todos os
problemas suscitados pela nova atitude filosófica de Husserl, concretizada em Idéias, são
exaustivamente tratados no importante manuscrito de Ingarden e faz votos pela sua rápida
publicação em francês ou alemão.

Não conhecemos este livro, cujo título, A Controvérsia Acerca da Existência do Mundo, só por si
remete para um problema central de Idéias. Algo se pode deduzir das referências que encontramos
em A Obra de Arte Literária (notas da segunda edição), mas apenas um problema nos interessa
agora: o que diz respeito ao ser da obra literária.

Basta consultar um Vocabulário de Filosofia para verificar como são múltiplas e por vezes
discutíveis ou pouco claras as noções de Realismo e de Idealismo. Assim, por exemplo, importa não
confundir o ponto de vista epistemológico com o ponto de vista ontológico, que são distintos,
embora correlativos: uma teoria do ser está sempre ligada a uma teoria do conhecer. Não só é fácil
misturar os dois planos como se tornaram correntes designações equívocas. A doutrina platônica das
idéias, que aqui nos interessa de maneira especial, tanto pode ser considerada idealista (as idéias
têm prioridade sobre os seres individuais e materiais, que apenas são o seu reflexo ou imagem)
como realista (as idéias têm uma existência real e autônoma).

J. N. Mohanty afirma a propósito de Husserl: «Ele é um dos raros, entre os filósofos anteriores à
filosofia analítica, que recusa qualquer classificação em "ismo". De facto, o método que lhe é
próprio permitiu-lhe combinar na sua filosofia elementos tão diversos como "realismo" e
"idealismo", "Nacionalismo" e "empirismo", "positivismo" e "pragmatismo", "intuicionismo" e
"inte-lectualismo".» Em nossa opinião, já o dissemos, a filosofia de Husserl é essencialmente uma
forma de Idealismo. Mas julgamos possível, como Mohanty, encontrar nela todas estas tendências
— tensões internas que talvez nunca se resolvam. O que ajuda a explicar a pluralidade de
«fenomenologias» a que Husserl deu origem, assim como a multiplicidade de interpretações (por
vezes opostas) do seu pensamento.

Se isto se aplica à obra husserliana considerada no seu conjunto («obra» de que aliás se não pode
falar enquanto houver inéditos não publicados...), aplica-se, de maneira especial, às Investigações
Lógicas.

Retomamos aqui o apontamento do parágrafo anterior, sobre as primeiras reacções a este livro,
desenvolvendo um pouco o que atrás ficou dito. Houve quem nele visse um positivismo mais largo
— que admitia, por exemplo, uma intuição intelectual — mas se abstinha de tomar posições
metafísicas. Uma parte significativa deste grupo interpretou a recusa do Idealismo e do Realismo
como uma terceira via que liquidava definitivamente o dilema secular. Mas, ao contrário destes,
muitos, e não só entre os discípulos da primeira hora, viram na fenomenologia nascente uma
abertura ao realismo epistemológico. Outros, porém, deram à famosa intuição das essências um
sentido platonizante ou «idealista»...

Podíamos continuar a lista, mas paramos aqui pois chegámos ao ponto que nos interessa.

A independência da consciência e do mundo caracteriza o realismo epistemológico medieval.


Quanto à segunda alternativa aqui enunciada, cremos que ela se aplica com alguma exactidão à
ontologia fenomenológica de Sartre. É uma interpretação grosso modo realista do princípio de
intencionalidade que Sartre apresenta aos leitores franceses num célebre pequeno artigo de 1939:
«Une idée fondamentale de la phénoménologie de Husserl: l'intentionnalité» (in Situations I, Paris,
Gallimard, 1947), 31-5. De uma maneira geral, é esta a tendência que permanece na escola
fenomenológica francesa.

No respeitante ao último problema enunciado, encontrámos provavelmente a posição de Ingarden.


Uma nota do § 18 dá-nos conta de perplexidades e oscilações por que passou em épocas anteriores
às da redacção de A Obra de Arte Literária. O certo é que, ao escrevê-la, compara o Idealismo das
Investigações Lógicas com o idealismo transcendental (idealismo alargado. . .) da Lógica Formal e
Transcendental. Mas só ao último faz sérias reservas.

Mais uma vez enunciamos um problema que vamos reduzir às suas linhas elementares.

Qual o ser da obra literária e (ou) das objectidades que nela se manifestam? Os caps. 1 e 2 do
presente livro (§§ 2-7) respondem à pergunta, numa reflexão cerrada e densa. Mas o problema fora
posto logo no Prefácio e é retomado posteriormente, por exemplo nos §§ 18 e 66.

No essencial, a solução de Ingarden consiste em recusar a alternativa entre ser real e ser ideal para
introduzir uma terceira modalidade de ser: o puramente intencional, que caracteriza, entre outros, o
ser da obra literária. Puramente intencional porque ontològicamente não autônomo mas dependente
da consciência que o cria.

De certa maneira, esta nova modalidade de ser é também uma terceira via — que não exclui mas se
acrescenta às duas zonas de ser consagradas por uma longa tradição. A analogia com a terceira via
husserliana ou pseudo-husserliana permanece, contudo, no desejo de quebrar a alternativa entre
Realismo e Idealismo, para admitir, neste caso, uma terceira dimensão ontológica.

Numa perspectiva puramente fenomenológica, seria a essência da obra literária a única a investigar
e descrever. É nesta linha que devemos compreender a teoria dos estratos e outras análises dos
últimos capítulos. Mas Ingarden afirma com freqüência que a mera descrição fenomenológica lhe
não basta. Por isso o objecto do seu estudo se insere num horizonte mais vasto, a análise
fenomenológica é acompanhada — precedida — por uma reflexão ontológica na qual,
precisamente, tomam lugar e sentido a discussão do ser da obra literária.

Voltando às Investigações Lógicas, é curioso verificar que Ingarden as rectifica ou completa, mais
do que as rejeita. Fala-nos das duas concepções opostas em lógica: a psicologista e a idealista; esta
última, afirma, tem o seu representante mais significativo em E. Husserl e nos dois volumes de
1900-1901 (§ 18). E, se lermos algumas passagens atrás indicadas (Prefácio de 1930, §§ 18 e 66),
parece-nos fácil concluir que Ingarden perfilha, de maneira muito menos inequívoca que Husserl, o
platonismo das essências, quanto a nós erradamente atribuído ao mestre. Apenas faz algumas
distinções, importantes mas secundárias, quanto ao assunto que estamos tratando. Retira às
significações husserlianas a idealidade, isto é, a intemporalidade e a invariabilidade, mas para a
atribuir ao que chama essências, conceitos, objectidades ideais. Esta zona da idealidade pura é
apresentada em termos que nos parecem perfeitamente platonizantes, talvez melhor, agostinianos.

Poder-se-ia objectar que apela, neste caso, para a teoria da intersubjectividade, que cita mesmo as
Meditações Cartesianas no § 66. É, sem dúvida, um contributo valioso para o problema de que se
ocupa nesse parágrafo (e que retomaremos em breve). As suas observações têm actualidade e lêem-
se com imenso interesse. No entanto, o apelo à intersubjectividade funciona também (sobretudo
dentro da economia do livro) como um desvio que lhe permite regressar ao ponto de partida, por
outras palavras, que lhe serve para distinguir significação e conceito, para fazer do conceito o
fundamento ontológico das unidades de significação e, finalmente, para manter as três zonas de ser:
ser real, ser ideal, ser da (criado pela) consciência.

Sem poder concluir, pela leitura de A Obra de Arte Literária, quais as posições tomadas pelo
filósofo polaco em todos os aspectos da controvérsia entre Realismo e Idealismo, parece-nos que a
análise sumária que acabamos de fazer confirma o que atrás dissemos sobre a fase da
fenomenologia husserliana que sobre ele teve influência decisiva. A comparação com Heidegger
pode ser elucidativa. Enquanto o autor de Sein und Zeit faz, em relação ao mestre comum, uma
opção comparável à de Ingarden mas cria uma metafísica com bases totalmente novas, este fica
preso à problemática da sua juventude em Göttingen.

Que a distinção entre intencional e puramente intencional (com as subdistinções que se seguem) não
é husserliana, seria possível demonstrá-lo com facilidade. O próprio Ingarden o sugere, talvez,
numa nota ao § 20. Aplicado à literatura, o puramente intencional parece-nos corresponder à ficção
de Husserl: literatura e artes em geral, embora Ingarden empregue as duas noções sem as distinguir
claramente.

A ficção está ligada à modificação de neutralidade, modificação do «quase», do «como se» (ais ob),
passagem ao irreal ou puramente estético. Estas são as designações mais correntes em Husserl.
Reconhecemo-las em muitas páginas deste livro, nomeadamente nos §§ 25, 33-37, 63... Ingarden
emprega ainda outras, de origem lógica. No § 33 parece marcar uma certa distância entre a sua
teoria e a modificação de neutralidade husserliana. Tanto quanto uma leitura atenta nos permite
concluir, Ingarden desenvolve e aplica a domínios concretos e diferentes dos de Husserl a teoria
condensada nos §§ 109-111 de Idéias I e de outros escritos. Mas, no essencial, não vemos a menor
diferença entre os dois autores. Há mesmo descrições da Neutralitätsmodifikation extremamente
felizes e perfeitamente conformes à doutrina do mestre.

Só mais uma palavra a terminar este parágrafo. Que Ingarden, como tantos outros que o fundador da
fenomenologia, de perto ou de longe, tocou, tenha seguido o seu próprio caminho, é com ele e com
os seus leitores. Mas, num país onde o pensamento husserliano é tão mal conhecido, esta tradução
pode constituir um perigo grave: o de atribuir a Ingarden idéias que são de Husserl ou de pôr em
circulação como husserlianas idéias e teorias que, de facto, o não são. E isto em pontos tão
fundamentais como é, por exemplo, a intencionalidade.

Sem tratar a questão, parece-nos útil uma rectificação de princípio. Tratar o intencional (ou o
puramente intencional, tanto faz, visto que esta distinção começa já por não ser husserliana) como
um modo de ser é falsear Husserl, é colocar o problema num plano ontológico em que este nunca o
colocou24. A intencionalidade husserliana é uma propriedade da consciência, propriedade essencial
que a define totalmente: a sua capacidade de referência ao ser, segundo modalidades ou intenções
várias: perceptiva, imaginativa, estética, intenções afectivas que se diversificam ao infinito, modos
de intencionalidade puramente racionais, como os que encontramos na lógica... Limitamo-nos a dar
uma pálida idéia de um domínio por assim dizer ilimitado.

Mas esta é apenas uma primeira aproximação: porque, antes da redução transcendental, portanto, ao
nível das Investigações, a intencionalidade é um encontro; depois, é uma constituição.

§ 3. Psicologismo, antipsicologismo, fenomenologia

A crise das ciências é um fenômeno bem conhecido que domina as últimas décadas do século
passado e entra pelo século XX. Husserl é um dos que, ao lado de tantos outros, enfrentam esta
crise e tentam resolvê-la. Por isso passa da matemática à lógica, da lógica à fenomenologia, numa
motivação que permanece através de metamorfoses várias: a de introduzir ordem, clareza e rigor
num edifício onde reina o caos.

Na sua tentativa para fundar a lógica em bases sólidas encontra o psicologismo, ou seja, o
imperialismo da psicologia, que, juntamente com a história, tenta reduzir todas as outras ciências a
meras províncias do seu império. Os leitores de formação linguística ou literária estão
familiarizados com a abusiva pretensão da história, com o historicismo reinante na «filologia» e na
crítica literária, sobretudo pelas reações famosas e fecundas que provocou. Conhece menos o
psicologismo, mas o modelo historicista apresenta caraterísticas idênticas. Talvez se possa dizer que
eram dois monopólios em concorrência, ou aliando-se por vezes, para tornar mais confusas as
coisas.

O psicologismo lógico era, pois, uma realidade. Mas a ética, a estética, e assim por diante, não
escapavam ao seu projeto de dominação ou dominação efetiva. «O mundo é a minha
representação», tal a fórmula corrente no final do século que condensa bem o psicologismo
epistemológico. Esta tendência remonta a Hume e é dela que fala Sartre no artigo citado páginas
atrás, que muitos leitores portugueses conhecem. «Que é uma mesa, um rochedo, uma casa? Uma
certa reunião de "conteúdos de consciência", um arranjo destes conteúdos. Ó filosofia alimentar!»
«Contra a filosofia digestiva do empírio-criticismo, do neokantismo, contra todo o "psicologismo",
Husserl não se cansa de afirmar que é impossível dissolver as coisas na consciência.»

Antecipando sobre o assunto do § 5, não convirá lembrar que a famosa «imagem acústica» de
Saussure é um exemplo admirável da «filosofia alimentar» de que fala Sartre? Uma espécie de
duplo (imagem), de cópia, de representação psíquica no interior da consciência concebida como
armazém... Assim, Saussure escapou à tutela da história mas não escapou por completo à psicologia
dominante do seu tempo. Felizmente que há outras coisas, e bem melhores, no Cours de linguistique
générale. A «imagem acústica» é, porém, uma noção psicologista típica.

Quando Husserl escreve as Investigações Lógicas, o psicologismo, sob todas as suas formas, e
especialmente o psicologismo lógico, é de fato um gigante que se torna indispensável derrubar e
vencer. A finalidade do vol. I, Prolegômenos à Lógica Pura, é precisamente esta: desembaraçar o
terreno do mal-entendido que tudo adulterou ao reduzir os conceitos lógicos a meros produtos de
operações psíquicas, a conteúdos de consciência. Confundir fato e essência, afirma ainda Husserl
em Ideias, é misturar os planos. As essências — e, para começar, as essências lógicas — devem ser
compreendidas na sua pura idealidade, isto é, naquilo que são, tal como uma intuição pura as
apreende, libertas da interpretação psicologista que as reduz a conteúdos psíquicos. Por isso as
designa, nas Investigações, por species ideales.

Em nosso entender, não há aqui nenhum realismo das essências ou «idealismo» de tipo
platonizante. Husserl foi mal servido pela sua formação matemática e lógica. E, sobretudo, o desejo
de restaurar a especificidade do conceito lógico, de o subtrair à zona de influência psicologista,
levou-o sem dúvida a expressões ambíguas.

Seja como for, Ingarden aceita o Idealismo das Investigações Lógicas, quando aplicado à zona das
idealidades puras. Assim como continua, trinta anos depois dos Prolegômenos, a esgrimir contra o
psicologismo. É certo que esta tendência era profunda e, por mais decisiva que tenha sido a
influência de Husserl junto de estudiosos das mais variadas especialidades que se converteram à
fenomenologia (dando origem a correntes de lógica fenomenológica, de estética fenomenológica,
etc, etc), o psicologismo não morreu de vez. Posto seriamente em causa, vai sobrevivendo.

O que era um gigante, no início do século, não se transforma em simples moinho de vento, três
décadas depois. No entanto, a sua persistência, menos generalizada, mais enfraquecida, não parece
justificar totalmente a luta encarniçada que atravessa o presente volume. Com efeito, Ingarden não
cessa de combater o psicologismo, da primeira à última página de A Obra de Arte Literária.

Porquê? Há razões objetivas para tal. Mas o nó da questão situa-se numa zona mais profunda, num
debate interior que Ingarden trava consigo mesmo e que não acaba por resolver, pelo menos neste,
livro. Ele reside, quanto a nós, no fato de não ter acompanhado Husserl na sua posterior evolução.

Só a teoria da redução transcendental (que põe a nu a zona da consciência pura, onde esta se
descobre a si mesma como poder constitutivo de todos os sentidos em que apreende o mundo e de
todas as modalidades intencionais desta apreensão) permite a Husserl ultrapassar, de maneira
definitiva, o nível psicológico. Se é certo que as Investigações Lógicas destruíram o pressuposto
psicologista, também é verdade que a fenomenologia não logra ainda desprender-se por completo
da descrição psicológica.

Ora foi mais ou menos aí, dissemos, que Ingarden parou. Do antipsicologismo das Investigações e
de Ideias releve certos elementos básicos e, em primeiro lugar, a distinção entre objeto (conteúdo)
intencional (de um ato ou de uma frase) e conteúdo real (entenda-se aqui real no sentido de
psíquico, quase a resvalar para o fisiológico). Por outras palavras, o intencional é uma
transcendência na imanência, algo que se manifesta ou aparece na consciência pura mas se
distingue do seu fluxo imanente real.

Tudo isto adquire sentido na fenomenologia husserliana da maturidade, assente nos dois pilares que
são redução transcendental e constituição. Mas Ingarden permanece na ambiguidade da primeira
fenomenologia (chamemos-lhe assim...), não se libertando, por isso mesmo, da ameaça do
psicologismo. São várias as perplexidades, explícitas ou implícitas, que o fazem oscilar
perpetuamente entre uma descrição fenomenológica e uma descrição psicológica. É a última,
contudo, que predomina em A Obra de Arte Literária. No único parágrafo introduzido em 1960,
segundo cremos, o § 25a, chega a acusar Husserl e Pfander de se não terem libertado por completo
do psicologismo. Por isso, a própria fenomenologia, tal como a entende, é uma atitude que só
assume a medo e quando não pode deixar de ser.

A este propósito queríamos chamar a atenção para dois problemas, sendo o primeiro, como é
natural, o da análise fenomenológica que esperaríamos encontrar neste estudo. O segundo diz
respeito à problemática da «obra aberta», para empregar uma expressão familiar aos nossos leitores.

N. Hartmann, M. Geiger, H. Conrad e outros aplicaram o método fenomenológico à estética em


geral ou à exploração de domínios específicos da criação artística. Ingarden tem lugar neste sector,
segundo H. Spiegelberg e R. Bayer. Mas... il faut y regarder de plus pres, como diria Sartre.

No Prefácio à terceira edição deste livro, o professor de Cracóvia explica como, pouco a pouco e
em diversos escritos, se foram delineando os contornos de uma estética fenomenológica, como ele
próprio a entende. Só a totalidade destes estudos dará, pois, uma ideia exata da sua doutrina. A Obra
de Arte Literária é apenas uma fase num longo caminho. Impossível caraterizá-la fora de uma visão
de conjunto. O que se pode verificar é que a análise fenomenológica só de longe em longe aqui
aparece.

No início do § 6 faz-se uma série de distinções importantes: ontologia da obra literária; psicologia
da produção artística no domínio da literatura; análise dos atos de consciência que estão na origem
da estruturação da obra literária; obra considerada em si mesma e distinta, tanto de um como de
outro ponto de vista (o psicológico e o fenomenológico, segundo cremos). Estas distinções
parecem-nos certas. Apenas lamentamos que o excessivo receio do psicologismo tivesse impedido
Ingarden de ir até ao fim das exigências do método fenomenológico. R. Odebrecht faz-lhe esta
mesma crítica; Ingarden responde numa nota ao § 2 da segunda edição. Mas, por mais valiosa e
penetrante que seja a teoria dos estratos, estes «pairam no ar», efectivamente. Assim como a análise
horizontal da obra literária, a sua ordenação temporal e espacial (§§ 54-55). Aí deparamos com
observações de real interesse que apontam para os estudos das estruturas narrativas de um
Brémond, de um Barthes, de um Greimas (de Barthes, sobretudo, no famoso artigo de
Communications 8) e para os que se relacionam com o tempo na obra literária, tais como os de J.
Pouillon e G. Poulet. Mas de análise fenomenológica apenas alguns apontamentos esporádicos. Há
a salientar os §§ 62 e 66, onde se condensa o que é possível colher fragmentariamente, aqui e além,
sobre uma fenomenologia da obra literária, quer do ponto de vista do leitor, quer do ponto de vista
do autor.

Falamos, no início deste Prefácio, da necessidade de certas recuperações fundamentais. Entre elas a
do «autor».

A par de tentativas várias, mais felizes umas que outras, feitas sob o signo da psicanálise, e que,
mesmo que o não queiram ou professem o contrário, visam, por uma necessidade interna, a esta
recuperação — não poderíamos pensar na fenomenologia como outra via diferente a tentar, com
vista à mesma finalidade?

Passamos agora ao que chamamos a problemática da «obra aberta».

Nos caps. 13 e 14 (§§ 61-67), a propósito do terceiro estrato da obra literária, R. Ingarden põe o
problema do estado de disponibilidade da obra, de certas zonas de indeterminação que nela
encontramos, ou seja, em resumo, a possibilidade que esta oferece de leituras diferentes, quer
pessoais, quer epocais. Impossível ler estas páginas sem pensar na teoria de Umberto Eco. Certas
afirmações do cap. 13 poderiam ser atribuídas a Eco ou mesmo a Roland Barthes.

A distinção que faz entre a obra em si, idêntica a si mesma, e as suas concretizações, múltiplas e
variáveis, continua em discussão. Uma interpretação husserliana levar-nos-ia a considerar que um
objeto X só se torna obra escrita pela leitura que dela fazemos, eventualmente obra literária,
esteticamente positiva ou negativa, pelos juízos de valor que lhe atribuímos. Ingarden aproxima-se
desta solução no § 65. Afirma, mais de uma vez, que a obra apenas se manifesta ao leitor na sua
concretização, isto é, no ato da leitura, o que está muito perto da teoria husserliana. Admite até que
o papel ativo do leitor e do crítico possam destruir a própria obra para produzir, em seu lugar, uma
obra nova.

Tudo isto no cap. 13 (§§ 61-64). Mas, no início do cap. 14, § 65, eis que o perigo do psicologismo,
com o seu corolário — o subjetivismo —, lhe surge como ameaça à objetividade, à identidade da
obra. Procura então recuperar o terreno perdido (quanto a nós, ganho) recorrendo à idealidade do
conceito.

Já foi dito que Ingarden distingue significação e conceito e que só ao último atribui o estatuto
ontológico da idealidade pura. Só o conceito é imutável, invariável, intemporal, enquanto as
significações podem variar. Mas o conceito é o fundamento da significação! Pela participação ao
mesmo conceito, dois interlocutores podem compreender-se empregando palavras que, em
princípio, admitem significações diferentes. De maneira análoga, dois ou mais leitores podem ler o
mesmo livro, cujo estrato significativo é susceptível de originar leituras várias, melhor: seria, mas
não é. As significações remetem para os conceitos e estes são garantia de estabilidade. Assim se
esconjura o risco da confusão, da pulverização subjetivista do objeto literário.

Esta a solução de Ingarden para restaurar e fazer valer os direitos da identidade da obra (§ 66).
Convém parar um pouco e olhar para trás. Nos §§ 7 e 8 voltaremos ao 3o estrato e então se verá
melhor quais as possibilidades reais que Ingarden concede à indeterminação da obra literária. Para
já, não esquecer que a questão surgiu com esta motivação, circunscrita, pois, por limites
relativamente modestos.

Aconteceu, porém, que a problemática se desprendeu do ponto de partida, foi alargada, formulada
na sua dimensão máxima: a obra literária surgiu-nos como promessa de um espaço totalmente
disponível a uma pluralidade ilimitada de leituras. Mas a abertura concebida nestes termos foi logo
neutralizada. Como vimos.

Que pensar da solução proposta por Ingarden? Ela aparece-nos como uma tentativa arriscada, um
percurso sinuoso que não acaba por nos convencer nem parece convencer por completo o próprio
autor. O § 67, que fecha o capítulo 14, exprime mais dúvidas do que certezas. Reconheçamos,
porém, que Ingarden teve o mérito de não fugir a um assunto difícil e escolheu um caminho que,
sem ser indiscutível, merece reflexão.

A semântica moderna encontrou as mesmas dificuldades. Neste e noutros sectores de investigação


da linguística e da literatura diversas teorias foram propostas. Novos conceitos surgiram. A questão
mantém-se no horizonte.

Ao problema da leitura se liga de perto o da leitura crítica, da análise literária. São conhecidas as
divergências que dividem este sector e que é possível reduzir a duas tendências fundamentais: uma,
um neopositivismo que busca critérios científicos de análise; e outra ou outras formas de abordagem
do fenômeno literário que se arriscam a cair num neo-impressionismo.

Sem resolver o problema, é muito possível que o filósofo polaco tios marque o rumo certo ao
afirmar que se torna indispensável determinar os limites de variabilidade de uma obra literária (§
64). Por outras palavras, e indo ao fundo da questão: há limites, fronteiras a estabelecer. Talvez com
mais rigor, parece-nos indispensável, hoje, que ao abordar uma obra literária o façamos num projeto
fundamental de ultrapassar o impressionismo fácil do passado. Para isso há apetrechamentos
científicos de inspiração vária que não é permitido desconhecer e entre os quais é possível escolher.
Posto isto, e para além desta exigência fundamental, há ainda lugar para a subjetividade do leitor-
crítico que se assume como sujeito. Gostaríamos de acrescentar: que não pode deixar de o fazer!

Não se julgue que esta precisão é um pormenor sem importância. É muito mais do que isso. Na
verdade, cada leitor-crítico não pode ler uma obra a não ser a partir da situação que ele mesmo é —
situação sempre ligada a uma possibilidade de opção —, situação e opção reveladas já, e antes de
mais, no método que escolhe ou consente para se introduzir no universo a explorar.

§ 4. A teoria dos estratos

Impossível passar em silêncio, neste Prefácio, a famosa teoria dos estratos, que constitui o
travejamento fundamental de A Obra de Arte Literária. Ainda aqui encontramos a influência de
Husserl. Aliás, Pfänder, Ingarden, Hartmann, outros talvez, foram todos beber à mesma fonte.

O livro Teoria da Literatura, de R. Wellek e A. Warren, foi, sem dúvida, o principal instrumento que
divulgou junto do público português o nome do filósofo polaco e quase exclusivamente a teoria dos
estratos! Primeiro, a tradução espanhola, de 1953, que teve larga difusão nos nossos meios
universitários. Anos depois, a tradução portuguesa. O original inglês é de 1942 e a ele se refere
Ingarden no Prefácio à terceira edição do presente livro para rectificar interpretações que considera
erradas ou superficiais do seu pensamento. A breve referência de Wellek-Warren não parece, de
fato, uma boa introdução, mas a «análise engenhosa e altamente técnica» do antigo estudante de
Göttingen não torna muito acessível o seu trabalho.

Com efeito, a enumeração dos quatro estratos, que se encontra no § 8, e à descrição dos quais é
consagrada a quase totalidade do volume, suscita numerosas interrogações.

Num quadro de pensamento e terminologia tradicionais (as unidades linguísticas são ainda, neste
livro, a palavra e a frase; as modernas noções de fonema, monema, morfema, sintagma, são-lhe
desconhecidas), Ingarden fala-nos, contudo, de problemas a que Saussure, Buhler, Jakobson, Eco,
Greimas, Barthes... nos habituaram. A alguns se fez referência. Podemos acrescentar o problema do
significado, o das funções da linguagem e outros.

A palavra função aparece-nos, por assim dizer, a cada página deste livro com sentidos diversos.
Mas, com frequência, estratos e funções (no sentido, hoje corrente, de funções da linguagem) estão
relacionados ou confundidos. Esta relação não é clara mas é profunda no espírito de Ingarden e vem
de 1930. Numerosas passagens de A Obra de Arte Literária se ocupam da função expressiva
Funktion des Ausdruckens ou Ausdrucksfunktion por vezes, geralmente Funktion der Kundgabe ou
Kundgabefunktion. Encontramo-la nos §§ 9, 10, 12, 19, 26... O § 19 tem especial interesse, pois
refere um artigo de K. Buhler, de 1920, que contém um esboço do esquema que a Sprachtheorie
difundiu em 1934: as três funções da linguagem. Mas a influência de Buhler não é única; outros
autores são citados, no texto ou em notas, Husserl nomeadamente, no § 13. Esta última influência
revela-se ainda na preocupação de Ingarden em distinguir a função expressiva de outra — que
passaremos a designar por função apresentativas —, ou seja, a Darstellungsfunktion de Buhler,
função denotativa ou referencial de Jakobson.

Tudo isto se tornará mais claro nos parágrafos seguintes ao considerarmos alguns problemas que a
teoria dos estratos suscitou.

A fim de abrir caminho aos dois problemas que atrás mencionamos: o significado, as funções da
linguagem, é útil chamar a atenção para duas notas acrescentadas à segunda edição, uma ao § 9,
outra ao estudo de 1958, As funções da Linguagem no Espectáculo Teatral, (§ 3), publicado em
Apêndice.

Estas duas notas foram motivadas pelo sucesso da Sprachtheorie, que apareceu pouco depois da
obra de Ingarden; nelas se encontram associados os nomes de Buhler, Husserl e Twardowski. A
intenção de Ingarden parece clara: Buhler não é tão original como se pensa porque, antes dele,
Husserl tinha isolado, nas Investigações Lógicas, a função expressiva, que aliás se encontra já em
Twardowski numa obra de 189436. A segunda nota é mais extensa e pretende ser mais explícita que
a primeira. Citando sempre as Investigações, acrescenta-se: Husserl ocupou-se aí minuciosamente,
demoradamente (ausfurlich), de Ausdruck e Kundgabe (podemos traduzir, respectivamente, por
«expressão» no sentido de expressão verbal e «expressão» ou «manifestação» no sentido de função
expressiva). Husserl modificou esta terminologia, numa época posterior, para Bedeutung e
Ausdruck («significação» e «expressão»). Há aqui algumas confusões.

Mais uma vez, e generalizando, o que é e o que não é de Husserl? Sem descer a um estudo
exaustivo, repetimos, tocaremos no assunto, e Husserl estará presente nos quatro pontos seguintes,
todos eles suscitados pela teoria ingardiana dos estratos, a saber: a teoria husserliana do signo
linguístico; percepção e significação; estratos e funções da linguagem; para uma estética da
intuição.

§ 5. A teoria husserliana do signo linguístico

Na última nota citada no parágrafo anterior Ingarden mistura dois problemas: o da função
expressiva e o da expressão verbal. Vamos separá-los, deixando para o § 7 decidir se encontramos
ou não em Husserl a dita função. Do que não há sombra de dúvida é que Husserl formula em 1901
uma teoria do signo linguístico que tem semelhanças notáveis e diferenças não menos importantes
com a de Saussure.

Sem fazer uma análise exaustiva da questão, não queremos deixar de assinalar o fato, demasiado
esquecido. Apenas alguns apontamentos, no desejo de que alguém os retome para estudo mais
profundo e completo. [Supomos conhecido dos leitores o Cours de linguistique générale, o que nos
dispensará de citações constantes. Citá-lo-emos apenas quando houver problemas de interpretação
ou quando isso nos interessar por razões especiais.]

Três pontos fundamentais parecem aproximar Saussure e Husserl: a descoberta de uma ciência dos
sinais em geral; o princípio de imanência a presidir às relações entre significante e significado; o
anti-historicismo dos dois pensadores, com a consequente preferência pela descrição sincrônica e
sistemática das coisas mesmas.

Trata-se de afinidades, não de coincidências absolutas. Assim é que os três pontos acima indicados
só podem ser tomados como tendências que vão no mesmo sentido. Muitas restrições, reservas e
precisões há a fazer agora.

Em primeiro lugar, Husserl nunca fala de semiologia. Refere-se, contudo, e logo no início das
Investigações Lógicas (1a Investigação, cap. 1, § 1), a um vasto domínio de sinais ou signos. O
sinal (Anzeichen) não é o mesmo que signo (Zeichen) e signo é também diferente de expressão
(Ausdruck). Na prática podem tomar-se os signos no sentido de sinais, indícios, marcas distintivas...
Exemplos: o estigma, signo do escravo; a bandeira, signo da pátria; os monumentos; o nó no
lenço. . . «Em sentido rigoroso, uma coisa não pode ser chamada signo (Anzeichen) anão ser nos
casos em que serve efetivamente a um ser pensante de indicação para outra coisa qualquer.» (Log.
Unt., II, 1, 24-5) Neste vastíssimo campo Husserl faz várias distinções, em que não itos detemos
para ir à que mais interessa: signos indicativos, de um lado; signos significantes ou expressões, do
outro (Op. cit., II, 1, 30). Estes últimos têm um lugar à parte no conjunto: «Todo o signo é signo de
qualquer coisa, mas nem todo o signo tem uma "significação", um "sentido" que seja expresso com
o signo.» (Op. cit., II, 1, 23)

Não encontramos a designação que Saussure tornou célebre; também não aparece a ideia de
conjuntos ou sistemas de sinais. Com estas reservas, Husserl não andou muito longe da intuição do
mestre de Genebra.

Quanto à confusão entre signo e sinal, inaceitável para um saussuriano, ela não é grave para
Husserl. O signo de Saussure, que é a totalidade (do significante e do significado), corresponde à
expressão (Ausdruck) de Husserl [a expressão, no seu aspecto físico, chama signo sensível,
complexo fônico articulado ou escrito num papel (Log. Unt., II, 1, 31); O signo linguístico
husserliano é o significante saussuriano (menos a imagem acústica) reduzido, por abstração, à pura
materialidade].

Sobre imanência muito haveria a dizer, mas limitamo-nos ao essencial. Saussure operou uma
revolução na linguística ao banir a ideia da língua como nomenclatura. Em vez de termos e coisas, o
signo saussuriano nunca desemboca no mundo extralinguístico pois liga significante e significado.
Há algo de muito semelhante no projeto fundamental (mais inconsciente do que consciente ou só
progressivamente consciente...), na ideia-diretriz da fenomenologia husserliana. Entendida como
idealismo transcendental, que é ela senão a descoberta da consciência constituinte e das
significações que constitui? «Zu den Sachen selbst!», proclamava o professor de Göttingen, mas o
que o preocupava nessa mesma época não eram as coisas mas os seus sentidos: a consciência e os
modos como as coisas se lhe manifestam.

A I Investigação Lógica tem por título Expressão e Significação (Ausdruck und Bedeutung). A
expressão remete para uma significação — o significado de Saussure. A análise da significação dá
lugar ou relaciona-se com muitas outras distinções. Entre elas, a de objeto intencional e matéria
intencional. Matéria intencional ou unidade ideal de significação (Log. Unt., II, 1, 46). A
significação determina a referência intencional de um ato, na linha objetiva. Se tomamos, por
exemplo, um ato de pensamento, um triângulo pode ser pensado sob dois aspectos diferentes:
triângulo equilátero, triângulo equiângulo; Napoleão pode ser pensado como o vencedor de Iena ou
o vencido de Waterloo (Op. cit., II, 1, 46). Em ambos os casos temos o mesmo objeto, apreendido
sob significações ou sentidos diferentes. O sentido nunca coincide com o objeto: é o objeto tal como
nos aparece. E pode aparecer-nos de variadíssimas maneiras! Por outras palavras, há que distinguir
o objeto sobre o qual se pensa algo e aquilo que dele se pensdH. Neste segundo termo tentos o
significado, constituído pela consciência.

Estamos, pois, já, no domínio da imanência.

Em princípio, o objeto intencional também não é uma transcendência. Mas, ao nível das
Investigações Lógicas, o intencional é insuficientemente elaborado. Napoleão parece ser o
referente, introduzido posteriormente a Saussure. Nas Ideias I a redução transcendental põe o
mundo entre parêntesis, total e definitivamente. Claro que no interior dos parêntesis vamos
encontrar o mundo! Mas tudo quanto a análise noético-noemática permite descobrir é a consciência
pura e o mundo nela constituído.

Falamos de três pontos de afinidade entre Husserl e Saussure. Sobre o terceiro limitamo-nos a uma
citação de B. Malmberg: nas Investigações Lógicas Husserl «reclama uma "gramática pura" e
proclama a existência de leis estruturais, mesmo na língua» [Les nouvelles tendances de la
linguistique (Paris, P. U. F., 1968), 308].

Esta afirmação pode induzir em erro. Não há dúvida de que Husserl anteviu a possibilidade e a
necessidade do que chamamos hoje análise estrutural. O seu anti-historicismo, a sua formação
lógica predispunham-no para tal. No que respeita à doutrina do significado ficou, contudo, muito
aquém de Saussure. A distinção saussuriana entre significado e valor, a descoberta de que o valor de
uma palavra depende da constelação em que está inserida, dos seus «arredores», são mais fecundas
para a fundamentação da semântica estrutural do que a análise estática de Husserl. É certo que este
admite as «significações ocasionais», como Ingarden refere no § 18 de A Obra de Arte Literária.
Mas é uma abertura tímida em relação à visão de Saussure.

Temos aqui o primeiro elemento que opõe os dois pensadores. Sem ser total (e merecer, em nossa
opinião, um estudo mais profundo), não pode deixar de ser assinalado.

O segundo oferece a mesma caraterística. É conhecido o lugar privilegiado que Saussure atribui à
língua falada e considerada como fator de comunicação. A primeira vista, não existe nenhum
privilégio deste gênero em Husserl, pelo menos nas Investigações Lógicas. Quando fala da
expressão considera-a, indiferentemente, como signo verbal ouvido ou escrito. Refere-se, no
entanto, à função de comunicação da linguagem dizendo que esta é a sua função originária (Log.
Unt., II, 1, 32). Seria necessário completar estes dados com a teoria da intersubjetividade,
caraterística da sua última fase.

Chegamos ao terceiro elemento que opõe Husserl e Saussure. Em rigor, só deveria ser estudado
numa visão global que comparasse as duas concepções de signo linguístico. Mas estamos perante
uma divergência tão profunda e radical (ao contrário das duas precedentes) que não podemos deixar
de lhe dar um lugar à parte. Trata-se da imagem acústica, já atrás mencionada (A obra de arte
literária - Prefácio de Maria Manuela Saraiva 3).

Para compreender a origem e natureza deste conceito conviria lembrar a crítica que Sartre faz, em
L'imagination, à maneira como a chamada «imagem mental» foi concebida durante os últimos
séculos, de Hume a Taine ou Spencer, digamos com certo optimismo. A «imagem mental» não
passava de cópia enfraquecida da percepção, uma espécie de duplo — de natureza vária, consoante
a interpretação dos teorizadores— que se vai «armazenando» na consciência, no cérebro, se
preferirem. Un petit tableau à l'intérieur de la conscience... à semelhança dos quadros que
penduramos nas paredes das nossas casas.

Nos dois livros que consagra ao assunto, L'imagination e L'imaginaire, Sartre afirma que a
fenomenologia husserliana fornece um princípio capaz de acabar definitivamente com. o postulado
de imanência («filosofia alimentar»...) que se encontra já na escolástica e na filosofia grega. O
nosso estudo L'imagination selon Husserl confirma o juízo de Sartre [Sobre o postulado da
imanência cf. pp. 38, 42-57, 62-3, 94-6, 100, 116, 140, 163-8, 248, 253].

Neste ponto, o método fenomenológico vai muito mais longe do que a psicologia cientista das
«marcas depostas em cada cérebro» [Cours de linguistique générale, trad. port. (Lisboa, Publicações
Dom Quixote, 1971), 49] que alimenta a cultura de Saussure.

Não falta sequer, no Cours de linguistique générale, o paralelo entre as duas espécies de imagem, a
imagem acústica e a imagem visual, ou seja, a palavra escrita: «A língua é a depositária das imagens
acústicas e a escrita a forma tangível dessas imagens.»

[NOTA: Op. cit., trad. port., 43. «En outre, les signes de la langue sont pour ainsi dire tangibles;
l'écriture pent les fixer dans des images conventionnelles, tandis qu'il serait impossible de
photographier dans tous leurs détails les ates de la parole; la phonation d'un mot, si petit soit-il,
represente une infimté de mouvements musculaires extremement difficiles à connaítre et à figurer.
Dans la langue, au contraire, il n'y a plus que l'image acoustique, et celle-ci peut se traduire en une
image visuelle constante. Car si l'on fait abstration de cette multitude de mouvements nécessaires
pour la réaliser dans la parole, chaque image acoustique n'est, comme nous le verrons, que la
somme d'un nombre limite d'éléments ou phonemes, susceptibles à leur tour d'être evoques par un
nombre correspondant de signes dans l'écriture. Cest cette possibilite de fixer les choses relatives à
la langue qui fait qu'un dictionnaire et une grammaire peuvent an être une représentation fidele, la
langue étant le dépôt des images acoustiques, et l'écriture la forme tangible de ces images»
(Cours..., Paris, Payot, 1955), 32. Sublinhados nossos.]

A expressão de Saussure nem sempre é clara, mas o seu pensamento parece sê-lo: o complexo
fônico sensorial dá origem a duas imagens — a imagem visual escrita, representação do signo
verbal, também comparável a uma fotografia. Mas será legítimo opor fotografia e rosto? Não o
cremos, visto que «o rosto», em princípio, nunca é considerado em si mesmo, mas sempre também
numa outra cópia ou representação: a imagem acústica.

[NOTA: Op. cit., trad. port., 57. «Mais le mot écrit se mêle si imtimement au mot parlé dont il est
l'image, qu'il finit par usurper le rôle principal; on en vient à donner autant et plus d'importance à
la représentation du signe vocal qu'à ce signe lui-même. Cest comme si l'on croyait que, pour
connaître quelqu'un, il vaut mieux regarder sa photographie que son visage» (Cours...), 45.
Sublinhas nossos.]

Que é, afinal, uma imagem acústica? Dissemos que o pensamento de Saussure parece claro. Mas
talvez não o seja. Quem sabe o que é uma imagem acústica?... A dificuldade em responder a esta
pergunta explica, por certo, que a designação alterne com a de «impressões acústicas» (Op. cit.,
trad. port., 69). Na célebre definição de signo linguístico da I parte, cap. 1, § 1 do Cours... as
confusões acumulam-se — a imagem acústica não é o som puramente físico mas a sua marca
(empreinte) ou representação psíquica (imagem); contudo, é sensorial e até por vezes lhe chamamos
material...

[NOTA: Op. cit., trad. port., 122. «Le signe linguistique unit non une chose et un nom, mais un
concept et une image acoustique. Cette dernière n'est pas le son matériel, chose purement physique,
mais l'empreinte psychique de ce son, la représentation que nous en donne le témoignage de nos
sens; elle est sensorielle, et s'il nous arrive de l'appeler "matérielle", c'est seulement dans ce sens et
par opposition à l'autre terme de l'association, le concept, généralement plus abstrait» (Cours...),
98.]

O que parece sólido em tudo isto é a associação íntima, no signo linguístico, de dois elementos, um
de caráter sensorial, logo perceptivo, outro da ordem do conceito. Há algumas definições, no Cours
de linguistique générale, tão importantes como esta, em que a imagem acústica não entra. Pois nem
a noção de signo linguístico nem a de significante perdem nada com isso. Muito pelo contrário!

Impunha-se examinar agora a maneira como Husserl e Saussure concebem a estrutura do signo
linguístico. Digamos, para já, que ambos sublinham a sua arbitrariedade. Em Husserl é este o
critério fundamental que lhe permite distinguir signo e imagem (L'imagination selon Husserl, 91-4).
Ambos insistem também no seu caráter um tanto misterioso: realidade de duas faces, como uma
folha de papel, mas que é apreendida unitariamente pela consciência.

Deixamos agora Saussure, que supomos conhecido, para expor em breves linhas o pensamento de
Husserl, que é nesta questão o parente pobre.

Ao ocuparmo-nos, há algum tempo, do assunto distinguimos duas fases no pensamento de Husserl:


uma mais dualista, a das Investigações Lógicas, outra mais unitária, a de Ideias II [Art. já citado na
nota 30 (in Perspectivas da fenomenologia de Husserl), 99-101]. Com efeito, é impossível falar de
concepções totalmente diferentes, pois já na I Investigação, ao tratar da expressão verbal, Husserl
parte de «duas coisas» ou de uma «realidade de duas faces» para sublinhar que entre elas existe a
mais profunda «unidade».

É habitual distinguir na expressão a sua face física, o signo sensível, e os atos doadores de sentido
que lhe conferem significação [Log. Unt., II, 1, 31-2. (Significação e sentido são sinônimos para
Husserl.)]. Para o fundador da fenomenologia esta distinção corrente é inexata, insuficiente pelo
menos. O ato doador de sentido é objeto de ampla análise (§§ 6-15 da 1a Investigação). Husserl
considera-o especificamente distinto da percepção que apreende o signo na sua materialidade.
Simplesmente, a pura apreensão perceptiva do signo sensível (pela vista ou pelo ouvido) não é a
apreensão da expressão verbal autêntica ou completa: a expressão como tal é a expressão animada
de um sentido (Op. cit., II, 1, 38-9). O dado sensorial é pura matéria informe que tem de ser
investida por uma forma, a significação. Esta ideia aparece já nas Investigações Lógicas e é
desenvolvida nas Ideias I [L'imagination selon Husserl, 35].

A expressão é, pois, já, uma forma. O ato perceptivo encontra-se totalmente recoberto pelo ato
doador de sentido.

Embora se exprima por vezes em termos analistas (a expressão é o suporte —Träger— da


significação), Husserl faz um esforço constante para ultrapassar este dualismo, sem contudo
confundir ou misturar o que é de essência diversa. Chega a pôr em causa a existência das «duas
faces» na relação significante-significado, seja-nos permitida a terminologia saussuriana: «Uma
relação fenomenológica mais aprofundada desta relação só poderia ser realizada pelo exame da
junção de conhecimento das expressões e das suas intenções de significação. Resultaria daí que a
concepção das duas faces a distinguir em todas as expressões não poderia defender-se seriamente;
ao contrário, a essência da expressão reside exclusivamente na significação.» (Log. Unt., II, 1, 49)
Ao retomar o assunto, na V Investigação, afirma que os atos doadores de sentido não são exteriores
à expressão nem lhe são justapostos como se fossem apenas dados à consciência ao mesmo tempo.
Trata-se da conexão de duas espécies de atos, não de uma soma, que produz um ato global unitário
no qual se pode distinguir, de certa maneira, uma face material e outra espiritual (Op. cit., II, 1,
407).

É fácil verificar que, nestas diferentes formulações, nem sempre totalmente concordantes, Husserl
se debate com um fenômeno complexo, difícil de analisar e de dizer.

Em Ideias II, a palavra (e, por extensão, a linguagem, o livro) surge-nos ao lado de outras realidades
que compõem o Umwelt, o mundo humanizado, atravessado por significações culturais, mundo
humano da vida quotidiana no qual nos movemos. A palavra, a pessoa, a obra de arte, instituições
de qualquer espécie, o simples objeto de uso diário que tem um sentido para nós, são reunidos sob a
designação genérica de unidades compreensivas. Em qualquer dos casos trata-se de objetos
espiritualizados. A expressão verbal, para considerar apenas o exemplo que nos interessa, é já, do
ponto de vista material, uma corporeidade espiritual (eine geistige Leiblichkeit) [Perspectivas da
fenomenologia de Husserl, 86-100, especialmente 98]. Por outras palavras: encará-la como tal
(como mera realidade material. ..), ao nível perceptivo, é puro contra-senso.

É fácil confrontar esta doutrina com a de Saussure e concluir que a raiz da inspiração husserliana é
muito diferente da que nos propõe o «pai» da linguística moderna.

O breve resumo apresentado parece confirmar o que escrevemos no início deste Prefácio: a teoria
da Wortlaut (a que, nos §§ 8, 10, 12, Ingarden chama a sua teoria) é, afinal, a de Husserl...
Acrescente-se, no entanto, que Ingarden foi mais longe no desenvolvimento que lhe deu.

[NOTA: Curiosa uma nota ao § 9: «Parece que E. Husserl já se refere, nas Investigações Lógicas,
à diferença entre o material fónico concreto e o elemento formal significativo (...)». Não só nesta
obra como nas Ideias I, precisamos.]

Há que assinalar, antes de mais, a importante distinção entre conteúdo material e conteúdo formal
da significação (§ 15). Seria do maior interesse confrontar a doutrina ingardiana com a fronteira
traçada por Hjelmslev entre forma e substância do conteúdo, que Greimas retoma e desenvolve na
Sémantique structurale.

Outro problema relacionado com o precedente: ao nível das unidades de significação superiores à
palavra também Ingarden traz algo de novo.

Tanto Husserl como Saussure identificaram significação (significado) e conceito. Ingarden


distingue-os, como ficou dito. Retirar a idealidade à primeira para a atribuir ao segundo resolve o
problema? Deixamos a questão em aberto. O certo é que, ao nível da significação, o discípulo
avançou em relação ao mestre. Por influência do próprio Saussure, citado numa nota do § 3 de A
Obra de Arte Literária? É duvidoso. As fontes linguísticas verdadeiramente importantes para o
filósofo polaco parecem ser Humboldt, Wundt, A. Marty, Brugmann, Delbriick, nomes bem
conhecidos, representantes de escolas ou correntes que em 1930 se não podem considerar de
vanguarda... A estes se juntam adeptos da lógica fenomenológica, sendo A. Pfänder o mais
significativo. De autores como Humboldt e outros, Ingarden desenvolve, contudo, os pontos em que
foram precursores. Cita, por exemplo (nota ao § 11), uma frase de Humboldt que confere prioridade
ao discurso em relação aos elementos que o compõem: frase e palavra. A unidade superior é, em
princípio, a que confere sentido às unidades menores (§§ 15-19, 21-23). Assim é que o livro de
Ingarden nos oferece em 1930 esboços de semântica estrutural (de sintaxe distribucional também).

6. Percepção e significação

A.-J. Greimas escreve na Sémantique structurale que a percepção é «o lugar não linguístico onde se
situa a apreensão da significação» [(Paris, Larousse, 1966), 8], que o significante designa «os
elementos ou grupos de elementos que tornam possível a aparição da significação. ao nível da
percepção (...)» (Op. cit., 10), que as significações «são recobertas pelo significante e manifestadas
graças à sua existência» (Op. cit., 10). Afirmações análogas se encontram nas pp. 11, 18, 30 e
outras.

[NOTA: «Quel que soit le statut du signifiant, aucune classification de signifiés n'est possible à
partir des signifiants. La signification, par conséquent, est indépendante de la nature du signifiant
grâce auquel elle se manifeste», p. 11. Aqui a inspiração parece ser diferente e poderia ser
interpretada em sentido husserliano. Quanto à frase citada na nota precedente, é tão vaga que admite
todas as interpretações possíveis.]

Para um leitor apressado todas estas formulações se equivalem e não levantam problema. Sobretudo
se são lidas à luz da preferência expressa por Merleau-Ponty e pela sua atitude epistemológica, que
carateriza, segundo Greimas, a das ciências humanas em geral no séc. XX (Op. cit., 7).

Tudo parece claro e simples. Merleau-Ponty deu o golpe de misericórdia nos dualismos vetustos do
passado, iniciando ou corroborando o reinado da clareza, da não-ambiguidade... Para desgraça dos
espíritos cartesianos de todos os tempos (dualistas ou não, o que é, afinal, secundário) as coisas
nunca são simples, e Merleau-Ponty não fala de simplicidade mas precisamente de ambiguidade —
ambiguidade em sentido forte e não no de confusão ou mal-entendido.

No que respeita a percepção e significação, apenas uma pergunta: será exatamente a mesma coisa
dizer que a percepção é o lugar onde se apreendem as significações e afirmar que estas se
manifestam ao nível da percepção? É discutível, claro... Tudo depende do sentido que se atribui a
cada termo... Quer-nos parecer, contudo, que a primeira formulação poderia ser compreeti-dida num
sentido tradicional: «Nihil est in intellectu quod prius non fuerit in sensu»... Pois onde apreender as
significações a não ser na percepção, na experiência, melhor, a partir da experiência, visto que não
há outro ponto de partida seja para o que for?! Mas, sendo assim, onde está a novidade? Visto que
de novidade se trata, tal interpretação é inaceitável. E a fórmula que melhor condensa o pressuposto
epistemológico de Greimas parece ser a que aponta para a significação dada ao nível da percepção.

Continuamos a perguntar: a apreensão significativa é uma e a mesma coisa que a apreensão


perceptiva? É um elemento da percepção, identifica-se ou reduz-se à percepção? Este o verdadeiro
problema, o que deveria fazer refletir. Mas até agora só ouvimos repetir.

Antes de continuar, duas observações.

Greimas não nos interessa de maneira especial. Partimos dele pela importância que tem no
panorama linguístico atual e por ser um bom representante de uma atitude que tende a generalizar-
se. É esta atitude que nos interessa, e justamente porque tende a generalizar-se.

Segundo ponto: de que percepção se trata? Esta questão impõe-se porque Husserl distingue da
percepção sensível (a «sensação» dos velhos tempos) uma outra percepção, intelectual, categoria!.
Percepção, intuição e experiência são termos praticamente sinônimos. Temos assim duas formas
diferentes de percepção, de intuição, de experiência. No quadro da fenomenologia husserliana a
distinção é nítida e não é possível confundir os planos. Fora dele este alargamento pode ser fonte de
confusões. Husserl não será, em certa medida, responsável pelo sentido vago e indeterminado que
se dá por vezes à percepção? Talvez. Mas só por um conhecimento também vago e impreciso do seu
pensamento.

Terminamos este parêntesis precisando que ao falar de percepção nos referimos sempre à percepção
sensível ou doação originária em sentido estrito.

Deixando agora de lado Merleau-Ponty e a relação entre a sua epistemologia e a de Husserl,


gostaríamos de voltar à teoria husserliana do signo linguístico. Ou à teoria ingardiana da Wortlaut.
No ponto que nos interessa, mestre e discípulo estão de acordo: a expressão como tal (o signo
linguístico de Saussure) nunca pode ser objeto de simples percepção porque investida por um
significado. Por outras palavras: o significado não se apreende ao nível da percepção.

Concordamos que o pensamento de Husserl não é de uma total clareza, a maneira como se exprime
também não. Mas se as coisas mesmas não são claras e simples? Se são... ambíguas? Afinal,
Husserl diz bem esta ambiguidade em vez de a dissolver.

No Dictionnaire encyclopédique des sciences du langage pode ler-se a propósito de «signo»: «O


ponto mais litigioso diz respeito à natureza do significado. Tem-se definido este como falta,
ausência no objeto perceptível, que se torna assim significante. Esta ausência equivale, pois, à parte
não sensível; quem diz signo tem de aceitar uma diferença radical entre significante e significado,
entre sensível e não sensível, entre presença e ausência. O significado, diremos tautologicamente,
não existe fora da sua relação com o significante — nem antes, nem depois, nem para além; é o
mesmo gesto que cria o significante e o significado, conceitos que se não podem pensar um sem o
outro. Um significado sem significante é o indizível, o impensável, o inexistente mesmo. A relação
de significação é, em certo sentido, contrária" à identidade consigo: o signo é ao mesmo tempo o
que está ali e o que falta: originariamente duplo.» [Op. cit. (Paris, Seuil, 1972), 132-3]

Onde Husserl fala de material e espiritual aqui diz-se «sensible et non sensible», «présence et
absence», «marque et manque»...

Desejo de empregar terminologia nova (nova?... Sartre não anda longe...) para evitar o «espiritual»,
carregado de uma certa ideologia que se pretende evitar a todo o custo? Parece que sim. De
qualquer modo não se cai em afirmações simplistas, de uma clareza total, que conduzem em regra a
certezas curtas. E o importante é não esvaziar o real da sua carga de opacidade, de complexidade, de
não coincidência consigo mesmo.

Este o verdadeiro problema. O dualismo ou não dualismo é secundário, dissemos. Nunca se louvará
suficientemente Mer-leau-Ponty, por exemplo, por ter desembaraçado a filosofia do dualismo
simplista de Descartes, que a experiência desmente a cada passo. Lembremos, a propósito, que
Freud, inimigo insuspeito dos dualismos platônico e cartesiano, descobriu o fenômeno da
ambivalência, caraterístico de tantos mecanismos inconscientes normais e sempre detectável nas
neuroses. Poderíamos citar alguns outros casos. Mas este não bastará para deixar antever que há
dualismos falsos e dualismos certos?

Poderá contestar-se: dualismo é uma coisa, ambiguidade e ambivalência é ou são outras. Aceitamos
a objeção. Pensamos mesmo que ela é fecunda. Possível ponto de partida para uma reflexão
generalizada que se impõe. Aqui apenas a tocamos, indicando a direção em que nos parece situar-se:
a dialética do uno e do múltiplo, para além da alternativa monismo-dualismo.
Afastamo-nos do nosso assunto, mas julgamos esta digressão oportuna. Usamos um método
ultrapassado: parece que nos limitamos a opor uma ou várias autoridades a outras tantas. Isto é só,
de fato, o que parece. Invocamos os autores que melhor nos serviram para exprimir as nossas
próprias evidências. Mas o problema da evidência não será um dos prismas em que a dialética do
uno e do múltiplo se refrata? A evidência é o injustificável último. Injustificável, no sentido de não
admitir como possível ou necessária qualquer justificação ulterior. Pluralidade injustificável como a
pluralidade das consciências — de que decorre. Irredutível como ela, em larga medida.

Num certo sentido, a pluralidade das consciências parece ser irredutível e nela encontramos a
contingência fundamental [J.-P. Sartre, L'être et le néant (Paris, Gallimard, 1943), 362-3].

§ 7. Estratos e funções da linguagem

Reúnam-se alguns fios que ficaram soltos nas páginas anteriores deste Prefácio.

Ingarden usa com frequência a palavra função no sentido de função da linguagem e relaciona, de
modo pouco claro, estratos e funções. Em sua opinião, a função expressiva, que Buhler divulgou na
Sprachtheorie, remonta a Husserl e a Twardowski. A este propósito entrecruza dois problemas
diferentes: o da expressão verbal e o da função expressiva, como é fácil concluir, pelo que atrás
dissemos. Do primeiro nos ocupamos no § 5; do segundo nos ocuparemos em breve.

Antes disso importa explicitar, ao menos nas suas coordenadas fundamentais, as relações entre
estratos e funções. A associação dos dois no espírito de Ingarden vem de 1930. Mas o assunto foi
amadurecendo após essa data. O estudo de 1958 As Funções da Linguagem no Espetáculo Teatral é
uma prova disso.

Ingarden lembra, no § 1, que toda a obra literária, c uma construção linguística bidimensional.
Enumera a seguir os quatro estratos de 1930, e no § 3 aparece a nota a que já se fez referência, na
qual Buhler, Husserl e Twardowski aparecem pela segunda vez associados. Falta acrescentar o
próprio Ingarden que, num trabalho de 1956, distinguiu cinco funções. Destas, afirma, apenas
utiliza quatro, no estudo em questão: a função apresentativa, a função expressiva, a função de
comunicação, a função de persuasão.

A originalidade e a finura desta análise ingardiana do espetáculo teatral são inegáveis, o que
justifica a sua recente tradução francesa [Poétique, 8 (Paris, Seuil, 1971)].

Quanto ao assunto que nos interessa, dizemos que amadureceu se entendermos por isso que o
discípulo de Husserl e de Pfander se preocupou cada vez mais com o problema das funções da
linguagem, não que a relação entre estratos e funções se tenha clarificado. Tal clarificação, pelo
menos, não é visível no estudo publicado como Apêndice de A Obra de Arte Literária.

Mas se tentarmos, por conta própria e para os nossos leitores, introduzir uma certa ordem no imenso
material que nos é proposto, algumas linhas de organização começam a desenhar-se.

a) A base da linguagem: 1.° e 2.° estratos

O estrato fônico-linguístico e o estrato das unidades de significação podem reduzir-se, num sentido
muito geral, às duas faces do signo saussuriano: significante e significado. Falamos de Saussure e
não de Husserl por nos dirigirmos a um público de formação linguística. Na realidade, a
terminologia, a inspiração, o gosto das distinções subtis, são de origem husserliana, já o
verificamos.

O 1.° e 2.° estratos, Ingarden não cessa de o repetir, possuem uma importância excepcional, que
lhes confere um lugar à parte no conjunto. Impossível pô-los ao lado dos outros, quer em si
mesmos, quer no papel que desempenham na formação dos restantes estratos. Constituem a base da
linguagem. Não será esta a ideia do autor, no início do estudo sobre teatro, ao afirmar que toda a
obra literária é uma construção linguística bidimensional?

O Dictionnaire encyclopédique des sciences du langage faz. referência ao ato linguístico, que
Buhler aproxima do ato de significar dos medievais ou ainda do ato doador de sentido isolado por
Husserl [426. B. Malmberg fala também na influência das Investigações Lógicas de Husserl em K.
Buhler (op. cit.), 308]. E o autor do artigo «Langage et ation» acrescenta: «É, pois, um ato inerente
ao ato de falar e independente dos projetos nos quais o discurso se insere. O estudo deste ato faz
assim parte integrante do estudo da língua e constitui mesmo o seu núcleo central.

Em que consiste agora esta atividade linguística original, esta pura atividade do significar?»
(Dictionnaire..., 426)

O passo transcrito serve de introdução ao ato de comunicação de K. Buhler e às suas funções da


linguagem, assim como ao desenvolvimento posterior que lhe deu Jakobson.

Encarar segundo esta perspectiva o 1.° e o 2.° estratos é simplificar em extremo a «análise
engenhosa e altamente técnica» de que falam Wellek e Warren; não cremos, contudo, falsear o
pensamento de Ingarden.

Pode concluir-se este breve apontamento dizendo que não há funções (ou «projetos») nos dois
primeiros estratos de A Obra de Arte Literária — considerados na sua complementaridade. Precisão
fundamental, pois verernos em breve que ambos são de grande importância em relação a uma ou
outra função quando tomados separadamente.

Só em conjunto, formando uma unidade, é lícito ver neles o «projeto fundamental» dentro do qual
se especificam e articulam o ou os «projetos particulares» de cada mensagem: as nossas conhecidas
funções da linguagem.

b) A função expressiva e o 1.° estrato

A função expressiva tem sido mencionada com frequência ao longo deste Prefácio. É natural
começarmos por ela. Acresce que está intimamente relacionada com o 1." estrato.

É no cap. 4 (§§ 9-13), consagrado ao estrato fônico-linguístico, na nota ao § 9 atrás referida, que
surge pela primeira vez a função expressiva. E o estudo que aqui se publica cm Apêndice remete
para o parágrafo que fecha o capítulo.

Nesse § 13, Ingarden fala da função expressiva na acepção de Husserl e põe em evidência a
importância do estrato fônico na manifestação dos vários estados psíquicos, na vida psíquica
concreta das personagens (trata-se de teatro...), irredutível à zona da pura comunicação do
pensamento. Estamos muito perto da função expressiva de Buhler ou função emotiva de Jakobson!
Os exemplos dados por Ingarden assemelham-se muito com os deste último autor.

[NOTAS: Ao contrário do que acontece no § 9 de A Obra de Arte Literária e no § 3 do Apêndice, a


referência a Husserl no § 13 não aparece em notas de rodapé mas no corpo do parágrafo. Isto leva
a supor que data de 1930. Mas nada podemos concluir em segurança por não dispormos da
primeira edição.

Essais de linguistique générale (Paris, Les Editions de Minuit, 1963), 214-6. A A. Marty (muito
citado por Ingarden) diz Jakobson que deve a designação de função emotiva.]

Mas será possível filiar esta função em Husserl e em Twardowski? No respeitante a Husserl, não
parece errado responder afirmativamente desde que se façam certas precisões.

Sem descer a grandes minúcias de exegese, pode resumir-se o pensamento de Husserl, nos §§ 6-8
da 1a Investigação, da seguinte maneira: uma expressão significa, por um lado, graças aos atos
doadores de sentido; manifesta ou exprime, por outro [Kundgibt (Log. Unt., II, 1), 32], tal ou tal ato
psíquico daquele que fala. Por outras palavras, a comunicação entre duas pessoas faz-se através de
expressões em que alguém se exprime e em que, ao mesmo tempo que se exprime, comunica algo,
A estas duas faces da «expressão na sua função comunicativa» (Op. cit., II, 1, 32) chama Husserl
função expressiva [Kundgebende Funktion, op. cit., II, 1, 33]. Muito à sua maneira, distingue nesta
um sentido estrito ou próprio: a função expressiva propriamente dita e um sentido largo que engloba
as duas faces da comunicação.

Note-se que as vivências ou atos psíquicos em questão não são exclusivamente de cariz afetivo ou
emotivo. Provam-no os exemplos dados. Ingarden deixa subsistir a mesma generalidade, mas acusa-
se nele, de maneira mais acentuada, a tendência para opor os atos emotivos à zona da pura
comunicação do pensamento (§ 13, por exemplo).

Há, portanto, no filósofo de Cracóvia uma maior aproximação de Buhler-Jakobson.

Resumindo: a função expressiva de Ingarden não pode reduzir-se ao estrato fônico, mas está
intimamente relacionada com ele, o que ninguém contesta hoje!

c) A função apresentativa, o 4.° e o 2.° estratos

Enquanto a função expressiva depende do 1.° estrato, mas há a considerar nela outros fatores,
verifica-se uma tendência marcada para aproximar mais — fazer corresponder — a função
apresentativa, do 4° estrato (objetidades apresentadas) e a função de reprodução imaginativa, do 3°
(os tais «aspectos disponíveis», aos quais se não fez ainda o comentário que merecem).

Sobre a função apresentativa releia-se o § 19, em que é citado o artigo de Buhler de 1920. Ingarden
critica-o, mas não terá vindo dele a influência e mesmo a terminologia? Parece que sim. E, uma vez
mais, há razões para crer que esta fonte se amalgamou com outra, que é mais profunda e vem de
mais longe — a leitura, o ensino de Husserl.

Numerosas análises de Ingarden levam à conclusão de que a função apresentativa corresponde ao


4.° estrato. Mas este está numa relação estreita com o 2.° estrato, o das unidades significativas!
Nessa medida, a função apresentativa o está também.

Repare-se na ordem de sucessão, à primeira vista pouco compreensível, dos estratos. O 3.° estrato é
deixado para o fim, caps. 8 e 9 (§§ 39-46), e o 4.° estrato é estudado logo a seguir ao 2°. Mais
concretamente, do 2° estrato se ocupa o cap. 5 (§§ 14-26); do 4.°, o cap. 7 (§§ 32-37). O cap. 6 (§§
27-31) serve de transição e a sua finalidade é mostrar os laços que unem o nível da significação e o
nível do mundo apresentado.

E nesse capítulo, nomeadamente no § 28, que Ingarden afirma com insistência: o conteúdo de
sentido das frases é o elemento decisivo para a constituição das objetidades apresentadas; numa
frase que enuncia algo a respeito de um objeto X, este objeto é determinado pela significação de
sujeito da frase; as objetidades apresentadas numa obra são-no graças às unidades de significação;
as relações objetivas desempenham uma função essencial na constituição do «mundo» que um texto
ou uma obra nos apresentam.

Qualquer que seja a dimensão da unidade escolhida (frase, período, obra) o pensamento de Ingarden
não varia.

Ora é também neste cap. 6, e logo no título, que aparece a Darstellungsfunktion, função
apresentativa segundo Ingarden.

Abrimos um breve parêntesis para relembrar o que já atrás ficou dito. A Bedeutung husserliana pode
ser considerada segundo duas maneiras diferentes embora estreitamente relacionadas: como ato (o
ato doador de sentido,) e como unidade de significação. Ambas as acepções se encontram nas
Investigações Lógicas, mas nem sempre é fácil desembrenhá-las uma da outra.

O medo constante de recair no psicologismo explica uma nota do § 15 de A Obra de Arte Literária,
em que Ingarden marca uma certa distância em relação a A. Marty, que vê na significação um ato ou
unia vivência... Isto não tem nada a ver com a sua própria concepção, escreve o filósofo polaco.
Mas as coisas não são assim tão simples... Ingarden sabe-o e, talvez por isso, volta a debater
longamente o problema no § 18, para concluir que a referência intencional de um nome a um objeto
através da significação é o reflexo do pensar intencional contido no ato doador de sentido. Aqui se
encontram refeitos, ao fim e ao cabo, os dois sentidos da Bedeutung husserliana.

Considero pois o puro ato de significar como o terreno comum ou o «projeto fundamental» da
comunicação linguística, dentro do qual se explicitam as várias funções da linguagem. Inútil
sublinhar a importância e atualidade desta concepção.

d) A função apresentativa e a de reprodução imaginativa (3.° e 4.° estratos)

Assim como a passagem do 2.° para o 4.° estrato é feita cuidadosamente no cap. 6, assim também
os últimos parágrafos do cap. 7 são parágrafos de transição — do 4.° para o 3.° estrato.

Pensamos, em especial, no importante § 37. Aí se estabelece o confronto entre a função


apresentativa e uma outra, que poderia chamar-se função representativa ou de representação mas
que preferimos designar por função de reprodução imaginativa (ou, simplesmente, função de
reprodução) por razões de clareza.

[NOTA: É a Darstelhmgsfunktion de Ingarden que traduzimos por função apresentativa. Ao lado


desta surge agora a função de reprodução ou função de reprodução imaginativa:
Abbildungsfunktion por vezes, mais frequentemente Funktion der Zuerscheinungsbringen
(Erscheinung: aparição, visão). O § 37, onde todas estas designações aparecem, merecia um
estudo aprofundado. A Repräsentationsfunktion aí se encontra também, com dois sentidos
diferentes. Em rigor só deve aplicar-se ao 3.° estrato. Ingarden emprega-a pouco, certamente para
evitar a excessiva carga sêmica da palavra Repräsentation na psicologia do fim do século XIX e
até na fenomenologia husserliana. A seu exemplo evitamo-la também.]

Entre estas duas funções da linguagem há uma grande diferença e uma grande afinidade. Na
primeira tentos o que nos é apresentado de maneira puramente intelectual. Apresentação opõe-se,
pois, a aparecimento, reprodução intuitivos. Na segunda função as coisas são-nos dadas como se as
estivéssemos vendo. É esta, afinal, a «função» do 3.° estrato: levar o leitor a ultrapassar o que
Husserl e Ingarden chamam o domínio das intenções vazias para adoptar uma intencionalidade
intuitiva.

Como se estivesse vendo... Como se... A modificação de neutralidade ou passagem ao irreal não
perde nunca os seus direitos, no domínio da literatura de ficção como no do espetáculo teatral.
Mesmo neste a percepção tem de ser neutralizada para que o espetáculo não se perca como
espetáculo e a obra de arte mantenha a sua especificidade. Muitos racistas, sem dúvida, assistiam à
representação de Otelo, numa tarde de Agosto de 1822, em Baltimore. Mas só o soldado inculto, de
guarda no interior do teatro, se precipitou para o palco de espingarda em punho, no 5.° ato, para
defender Desdêmona da fúria de um negro [Stendhal, Racine et Shakespeare (Paris, J.-J. Pauvert,
1965), 38-9]. Os primeiros tinham-se instalado na atitude necessária à ilusão teatral (Op. cit., 36-
42). Estavam no teatro, assistiam a uma «representação», a um espectáculo... O segundo confundiu
os planos.

Voltando à literatura, a única forma de intuição a que o leitor pode recorrer é a intuição imaginária,
visto que a intuição por excelência, a percepção, lhe está por princípio vedada (§§ 34, 42).
Desenvolveremos este aspecto da questão no parágrafo seguinte.

Ao 3.° e 4.° estratos correspondem, pois, duas funções. Duas funções diferentes? Diferentes apesar
da conexão existente entre elas? Ou duas modalidades de uma mesma função? O leitor não terá
dificuldade em seguir a reflexão de Ingarden. As três maneiras de encarar o problema estão
presentes na obra de 1930, devendo reconhecer-se que as duas primeiras oferecem larga margem de
preferência. No entanto, ao escrever As Funções da Linguagem no Espetáculo Teatral, em 1958,
Ingarden evoluiu, e foi na terceira solução que se fixou.

[NOTA: É possível que esta solução seja já adoptada em 1956 no livro Über die Ubersettung, que
não conhecemos, onde apresenta as cinco funções da linguagem (cf. nota ao § 3 do trabalho de
1958).]

Temos assim (e abstraindo da sua aplicação ao teatro) a função apresentativa, que pode revestir
caráter puramente conceitual ou processar-se de tal modo que a apresentação dos objetos
intencionados se faça em aspectos evocados imaginativamente; a função expressiva que, como
vimos, deve muito a Husserl e a Buhler; a função de persuasão, porventura a mais autenticamente
ingardiana... Não viria, contudo, a despropósito confrontá-la com a função apelativa de Buhler-
Jakobson.

Temos, finalmente, a função de comunicação. Vimos já que esta designação se encontra em Husserl,
e é bom relembrar o contexto em que aparece. Husserl não pensava, por certo, nas funções da
linguagem tais como hoje as entendemos. Embora a referência a Twardowski, precisamente à obra a
que Ingarden atribui tanta importância nesta matéria, devesse ser analisada mais de perto.

De qualquer modo, sabemos todos hoje que a comunicação não é uma função que se possa colocar
ao mesmo nível das outras, que ela é a fronteira que separa uma tradição de dois milênios — a
linguagem, expressão do pensamento — da linguística moderna.

Sem abandonar por completo a perspectiva tradicional, Husserl introduz, antes de Saussure, a ideia
fundamental de que a linguagem serve para comunicar. À sua maneira, assim como que de
passagem, como quem lança sementes num vasto campo, tantas e tão variadas que em muitos casos
ficam longo tempo escondidas ou só descobrimos os seus frutos nos terrenos vizinhos.

Mas, afinal, quais as funções da linguagem propriamente ditas? E quantas? Temos as de Buhler, as
de Ingarden, as de Jakobson, para citar só estes. Terá Jakobson dito a última palavra sobre o
assunto? Pela nossa parte não o cremos. É mais que provável que novas funções venham a ser
descobertas. Porque não?

§ 8. Para uma estética de intuição

Escrevemos no início deste Prefácio que o presente livro de Ingarden nos dá, ao mesmo tempo,
menos e mais do que o seu título promete. A obra literária é o objeto principal deste estudo. Mas,
sem deixar de o ser, torna-se o fio condutor que o filósofo de Cracóvia manobra com grande
liberdade. Dela se passa ao teatro, à pantomima, ao filme; a partir desse ponto fixo considera a obra
científica, entrevê o domínio das artes plásticas (§§ 56-60). É natural que só mais tarde tenha
compreendido que a literatura fazia parte, desde o início, de um conjunto mais vasto. Um projeto
apenas meio consciente em 1930. Da sua consciencialização nasceu Untersuchungen zur Ontologie
der Kunst em 1962. Eis mais ou menos o que diz o Prefácio da terceira edição de A Obra de Arte
Literária.

Ingarden reconhece, pois, o caráter excessivo do seu livro. Não acontece o mesmo com o que pode
chamar-se o seu aspecto deficitário: a dimensão que dá ao termo literatura está longe de poder
abranger todas as produções literárias.

Leia-se o § 25 a), em que responde às objeções de Käte Hamburger. A despeito da importância que
dá à persuasão, Ingarden não nos convence a não ser no respeitante à modificação de neutralidade.
No essencial K. Hamburger tem razão: o conceito ingardiano de obra literária é demasiado estreito,
aplicável somente à poesia épica e dramática. O mundo nelas apresentado apenas simula ou
reproduz a realidade. Por outras palavras, a forma de arte, a corrente literária que Ingarden toma
constantemente por modelo é a arte realista. Aí vai buscar, como é natural, as suas realizações mais
caraterísticas: romance, novela, drama. O romance histórico, o drama histórico ocupam mesmo um
lugar privilegiado. Raras vezes se fala da lírica em A Obra de Arte Literária, e sempre em breves
apontamentos.

Endurecemos talvez a posição de Ingarden... Em 1930 muita água tinha corrido por sobre o
programa realista, novos manifestos haviam surgido, não só em literatura tomo em pintura, em
música, em vários sectores da arte. O espírito curioso e de larga cultura do pensador polaco não o
ignora! A prova é que admite a possibilidade de outros cânones artísticos. Admite-os em teoria,
parece-nos, e, o que é significativo, como casos-limites ou excepções (§§ 38, 46, 52...). De uma
maneira ou de outra logo regressa à norma, ao terreno familiar. Terreno não indiscutivelmente
aceite, por uma qualquer espécie de direito, mas admitido como um fato ou escolha tácita.

Tudo isto diz respeito ao 3.° estrato e à excepcional importância que Ingarden lhe atribui. E o 3.°
estrato, por sua vez, remete-nos para o papel da imaginação na leitura, na leitura da ficção em
especial, visto que dela se trata, de maneira por assim dizer exclusiva.

Tantas vezes abordamos já este 3.° estrato, com mais ou menos demora, que nos podemos resumir
finalmente.

Para o compreender, duas noções husserlianas de base. Num primeiro tempo temos atos de pura
intenção ou de intenção vazia, pensamento conceitual vazio [A distinguir de uma intuição das
essências!], consciência signitiva ou significativa... versus intuição ou preenchimento. Impõe-se
distinguir, em seguida, os vários atos intuitivos: percepção (nas suas diversas modalidades),
imaginação, memória, intropatia...

O ato intuitivo por excelência, segundo Husserl, é a percepção sensível, a que chama também
experiência ou doação originária. É ela que nos dá as coisas mesmas, «em pessoa», «em carne e
osso» (metáforas husserlianas), numa plenitude que é a mais perfeita, embora prometa mais do que
é capaz de dar. A sua estrutura é complicada; as coisas no espaço e no tempo só se oferecem em
esboços, perfis (Abschattungen), aspectos sempre parcelares, fragmentários, que sucessivamente se
encadeiam e completam. Como horizonte de cada ato perceptivo, um feixe de intenções vazias,
espaços abertos a futuras intuições, que podem ou não revestir a intencionalidade perceptiva.

[NOTA: Na última nota ao § 34 de A Obra de Arte Literária, Ingarden afirma que Husserl
considera também os atos de imaginação como originaria-mente doadores. E indica como fonte o
manuscrito de um curso de 1922. Não conhecemos este manuscrito nem o consultamos para o
nosso estudo L'imagination selon Husserl. Tudo quanto podemos dizer é que esta concepção é
contrária à doutrina de Husserl na totalidade das obras que utilizamos. Ela é contrária também ao
próprio Ingarden!

Não podemos afirmá-lo, mas é possível que se trate apenas de um mal-entendido ocasionado pelo
gosto husserliano das distinções subtis de terminologia. Porque o texto a que esta nota se reporta
continua a distinguir a «apresentação» (Präsentation) da percepção, que é uma auto-doação em
pessoa da «apresentação» realizada pela imaginação ou fantasia. A única novidade que
encontramos aqui é o termo de Präsentation, normalmente reservado à percepção (apresentação
no sentido forte: tornar presente), atribuído à imaginação.

A esta são normalmente consagradas as designações de Repräsentation ou Vergegenwärtigung


(representação, presentificação).

Isto é, de fato, novo e parece contraditório porque a distinção entre percepção e imaginação
mantém-se.]

O § 40 de A Obra de Arte Literária contém um bom resumo da teoria husserliana da percepção.


Uma nota, logo no início, esclarece: no período de Göttingen, Husserl usou com frequência Ansicht
(aspecto). Mais tarde Aspekt, Abschattung (foi este último termo que se generalizou). Ingarden
prefere guardar a designação antiga, Ansicht.

Estamos agora a ver a infra-estrutura do 3.° estrato, que lhe serve ao mesmo tempo de modelo.

O Ansicht esquematizado é, assim, o inesperado horizonte que surge, aqui e além, numa obra
literária — narrativa, descrição, diálogo — e que, graças à imaginação do leitor, atualiza o que é
apenas «esquema» vazio, disponibilidade. Vemos determinada rua de Paris (§ 42), acompanhamos
determinada personagem e com ela atravessamos corredores e descemos escadas (§ 45).
Frequentemente nos identificamos com as personagens que mais nos tocam.. . Instantes fugidios e
transitórios como as Abschattungen do ato perceptivo, enigma de plenitude e esvaziamento, onde
tudo está sempre a recomeçar e prestes a morrer. Espaços privilegiados de um livro que se dilatam,
abrem o tempo para repetições imaginárias de paisagens experimentadas num passado que, por
momentos, se anima e volve quase-presente.. . Espaços elásticos, de dimensões incertas, que
também podem concentrar-se num ponto só, na intensidade de uma quase-presença resumida.

Já fizemos referência neste Prefácio à problemática da «obra aberta». Sem negar as linhas de
convergência com Eco ou com Barthes, pode concluir-se agora que o ângulo de abertura que
Ingarden nos propõe em A Obra de Arte Literária é mais restrito e a intenção diferente. A margem
concedida aos leitores para que a partir de experiências diversas se apropriem da obra, fazendo dela
leituras pessoais e diferentes, nasce apenas do 3.° estrato. É através dos horizontes abertos pelos
aspectos esquematizados que a liberdade imaginativa pode mover-se, saindo das páginas do livro,
passando a uma atitude intuitiva que recria coisas e pessoas, que as toca como se as estivesse vendo.
Esta a primeira conclusão que se impõe. Mas há algo de mais importante a dizer sobre o assunto. A
intuição imaginativa, ao introduzir-se na leitura, é o fator de valorização estética, por um lado. Mas,
por outro, desfigura a obra literária. Eis um problema sério que Ingarden formula no § 63 do seu
livro.

Convém não esquecer o propósito anti-psicologista que o atravessa, as repetidas advertências de que
se não deve confundir a obra e o seu autor, explicar a primeira pelas experiências, a vida, a história
daquele que a escreveu. A obra é considerada em si mesma como entidade autônoma e, neste
sentido, fechada. O mundo que nela se apresenta é, de fato, apresentado na própria obra, na sua
imanência. Uma transcendência na imanência, se quisermos, como é o intencional husserliano
corretamente interpretado.

[NOTA: Inútil sublinhar a orientação comum, neste ponto, entre as correntes de análise literária
mais vivas por volta de 1930: a Estilística, o New-Criticism americano, o Formalismo russo.
Acrescente-se a que provém do impulso fenomenológico e que é visível em R. Ingarden, M.
Dufrenne e outros.]

Na filosofia de Husserl o mundo real foi definitivamente posto entre parêntesis pela redução
transcendental [ao escrever estas palavras temos a consciência de formular um problema, não de
apresentar uma solução]. Poderá sê-lo na literatura?

Pela dupla influência de pressupostos correntemente aceites pelos padrões da análise literária da
época e do imperativo feno-menológico de regresso às próprias coisas (no caso, as próprias
obras...), Ingarden mantém com intransigência o princípio da imanência.

Mas a maneira como concebe o 3.° estrato e o valor que lhe atribui não constituem uma ameaça
séria a esta mesma imanência?

Convém ler os §§ 44-46, em que o papel privilegiado que os aspectos desempenham na apreensão
estética de uma obra literária é posto em evidência. Mais uma vez estamos em presença de um
pensamento que se elabora diante de nós e não escamoteia as dificuldades. O 3.° estrato tem uma
carga de valor estético que lhe é própria, nisto, como noutras coisas, um dos elementos a considerar
na polifonia da obra. Quem diz polifonia não pode pensar monopólio... Ingarden não consegue
evitar, contudo, um desequilíbrio, um quase açambarcamento do estético pelo 3.° estrato, a que
corresponde, como se viu, a função de reprodução imaginativa. O valor artístico de uma obra
depende, em última análise, da sua capacidade de evocar abreviadamente, por fulgurações
momentâneas, o mundo real das coisas, dos lugares, das pessoas, das experiências do leitor. A estes
momentos excepcionais que «fazem ver» chega a chamar instantâneos fotográficos. A sua
importância, quase diríamos o seu volume, na obra faz com que esta atinja ou não o nível da grande
arte.

Mas, afinal, ainda estamos no domínio da imanência? O mundo real foi ou não foi definitivamente
posto entre parêntesis? O 3.° estrato ameaça este equilíbrio; a intuição imaginária pode fazê-lo
ressurgir a cada instante.

A estética da intuição (da Einfuhlung) foi uma corrente muito viva na Alemanha em fins do séc.
XIX e princípio do séc. XX. Tem raízes pré-fenomenológicas, e o movimento feno-menológico,
nalguns casos, serviu-lhe de aliado. Nela se podem incluir Th. Lipps, J. Volkelt, Max Scheler,
Moritz Geiger, Roman Ingarden [R. Bayer, Histoire de l'esthétique, 346-9; H. Spiegelberg, The
phenomenological movement I, 214].

Imanência, intuição... Tal como nos surgem em Ingarden, não podemos descobrir uma certa
contradição entre duas exigências de polo oposto? Mas a contradição não é total. A modificação de
neutralidade nunca perde os seus direitos e age como um travão. O leitor é quase levado a ver, a
ouvir, a atravessar o livro para passar à realidade. Mas esta é sempre uma quase-realidade em que
nunca chega a acreditar a sério. Pode até reviver, num esforço de regresso ao passado (remoto ou
próximo), mas é um esforço antecipadamente fracassado pois nunca fará brotar a frescura do que foi
vivido na presença, na coincidência, na verdade. Em vez de contradição será talvez mais exato falar
de tensão.

O conceito de obra de arte em Husserl tem por base o que designamos por «primado da percepção».
Neste como noutros pontos, o discípulo permanece fiel ao professor de Göttingen, queremos dizer,
concretamente, à primeira fase de Husserl. Também em Ingarden se deve falar, apesar de tudo, do
primado da intuição.

[NOTA: Na primeira fase, Husserl utiliza duas categorias para definir o estético: a presentificação
(Vergegenwärtigung) e a modificação de neutralidade. Na segunda fase guarda só a
Neutralitätsmodifikation, e a Vergegenwärtigung desaparece. (Perspectivas da Fenomenologia de
Husserl), 104-5. Haveria que mostrar o parentesco entre a Vergegenwärtigung husserldana e a
Abbildungsfunktion de Ingarden.]

Não será a intuição que leva o filósofo polaco a passar naturalmente da literatura ao mundo do
espetáculo (teatro, pantomima, filme), às artes que fazem ver de maneira propriamente dita? Isto
explicaria a sua preferência pelo teatro, a que atribui a primazia, dentro dos gêneros literários (§
63). Primazia porquê? Dentro da sua lógica, tal primazia explica-se.

Formulamos uma hipótese. Utna afirmação seria abusiva. Até porque nos §§ 49-50 a intuição
perceptiva se alarga. Assim como Husserl admite uma percepção ou intuição intelectuais, Ingarden
fala-nos, por sua vez, de uma visão das qualidades metafísicas: o que, para além dos cenários
imaginários que ajuda a recriar, uma obra comunica. Trata-se, corno é óbvio, de um comunicar
intuitivo que elimina distâncias, da capacidade de revelar, de interpelar, de tocar o leitor no mais
profundo de si mesmo.

Umas breves palavras a concluir este Prefácio. No livro rico e denso que é A Obra de Arte Literária
há coisas a mais para a nossa exigência atual de especialização. Linguística, literatura, estética,
lógica, fenomenologia, ontologia...

Estará Ingarden definitivamente ultrapassado, ou não será mais acertado ver nele um precursor,
sobretudo ao afirmar a necessidade de uma reflexão filosófica sobre linguística e literatura? O
problema foi posto no início destas considerações.

É indiscutível que os bons (ou maus) velhos tempos de Descartes e Newton passaram: um edifício
único com vários compartimentos ou a famosa árvore com raízes, tronco e ramos de nomes
diferentes. Mas, pela mesma razão, não deveriam passar também os múltiplos «álibis» de um
positivismo que não cessa de renascer periodicamente das próprias cinzas?

Parece indispensável distinguir hoje (mais do que Ingarden o fez...) três coisas: primeiro, o que é do
domínio autônomo de cada ciência e que só por abstração se pode separar dos pressupostos
filosóficos, teológicos ou políticos a que em regra testa ligado. Isto é sobretudo válido numa
perspectiva diacrônica. É possível reconstruir a história da matemática, da física ou da linguística
numa síntese, aliás sempre provisória, registando o que, num processo de selecção e sedimentação,
o trabalho de séculos foi acumulando, rejeitando, corrigindo, aperfeiçoando de maneiras várias. (Há
épocas de rotura e épocas de continuidade, por exemplo.)
Em segundo lugar, e aqui pensamos na «ciência que se faz», há que explicitar os pressupostos
filosóficos e ideológicos que informam a investigação em cada ciência nas suas várias correntes,
escolas ou tendências. Explicitá-los, assumi-los.

Finalmente, e tio respeitante aos sectores que de maneira especial nos interessam: importa criar uma
Filosofia da Linguagem (que não dispensa, talvez, uma Filosofia da Linguística...) e uma Filosofia
da Literatura — designação bem mais pertinente do que Teoria da Literatura, reflexão que
englobaria esta última e iria. muito mais longe.

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