Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Carlos Carujo89
carloscarujo@gmail.com
89
Mestre em Filosofia pela Universidade Nova de Lisboa
Página 95 de 212
1- Democracia significante
Este livro será, aliás, o pretexto para a reflexão que aqui se empreende. Não se pretende
utilizá-lo de forma a mapear um momento particular das várias polémicas cruzadas
entre os autores mas como laboratório vivo de uma forma de pensar o conceito de
democracia que escapa aos discursos hegemónicos e que envolve, entre vários outros
autores, Slavoj Zizek, Jacques Rancière, Daniel Bensaïd e Alain Badiou.
“ - ”
“ - ”
consciência ou suspeitando do caráter flutuante do conceito, escolhêssemos fixá-lo no
ponto mais conveniente mas ele nos escapasse com as suas contradições, a sua força, a
sua vida própria. Do ponto de vista de Agamben91 vivemos um estado de exceção
permanente em que o poder executivo absorveu os poderes judicial e legislativo mas
onde se continuam a dar lições sobre a separação dos poderes. A formalidade
democrática esconderia mal o conteúdo do poder nu da exceção. De outro ponto de
vista, Rancière92 prefere pensar que a institucionalização democrática é uma forma de
poder efetivo que revelaria bem o elitismo. Na normalidade democrática e nos
equilíbrios talentosos de poderes desenhados pelos constitucionalistas (por exemplo os
autores da Constituição norte-americana) encontrar-se-iam as estratégias de manter a
retórica democrática e esconjurar o facto democrático.
90
Vários, Démocratie, dans quel état?, Les éditions Écosocieté, Montreal, 2009.
91
Giorgio Agamben, Estado de exceção, Bomtempo editorial, São Paulo, 2004.
92
Jacques Rancière, La Haîne de la Démocratie, La Fabrique, Paris, 2005.
Página 96 de 212
Hoje, a democracia é um déspota flutuante. Ou seja, deste conceito se pode também
dizer que é um significante despótico no discurso político contemporâneo: ocupa a
quase totalidade do espaço ideológico e geográfico: de Cuba aos Estados Unidos, da
ideia de democracia popular ao demo-liberalismo ocidental. Déspota, claro, no sentido
em que parece ter eliminado a possibilidade de conceitos alternativos, sendo uma
referência obrigatória que faria dele o fim da história das ideias políticas, como que uma
palavra-passe que legitimaria automaticamente os detentores do saber e/ou do poder.
“ …
que o faças em n … ”
“ ” “ ”
Portanto, se pedimos a este conjunto de filósofos críticos que nos ajudem a questionar
as certezas do status quo democrático não é para irmos ao encontro dos inimigos
declarados da democracia. Nem será tanto para fazermos um movimento próximo do
que Rancière faz no l “ à ”
“ ”
que se revelam as inimigas da democracia a operar ambiguamente no seu interior,
selecionando o que lhes convém da democracia (a guerra de expansão em seu nome e as
regras da representatividade que permitam a manutenção da ordem estabelecida) ao
“ ”
consumista por excelência.
A flutuação do si “ ”
enquanto forma e enquanto conteúdo da política, enquanto tipo de política e tipo de
sociedade ou mesmo enquanto tipo humano forma uma malha complexa na hegemonia
política atual presente desde o senso comum ao discurso político-intelectual.
Página 97 de 212
“
… ção através do laço essencial da representação;
governos que fazem leis por si próprios; representantes do povo massivamente
resultantes de uma escola de administração; ministros ou colaboradores de ministros
recontratados em empresas públicas ou semi-públicas; partidos financiados pela fraude
nos contratos públicos; homens de negócios que investem somas colossais na
perseguição de um mandato eleitoral; patrões de impérios mediáticos privados que se
apoderam através das suas funções públicas do império dos ”
procurar refutar os tradicionais argumentos contra a tiragem à sorte do desempenho de
cargos políticos, faz a crítica da desigualdade implica na representação atacando o mito
de que, neste sistema, são os mais competentes e não os mais ávidos de poder que
ocupam cargos políticos.
Pedimos-lhe também ajuda para uma arqueologia alternativa dos aspetos considerados
mais positivos nestes sistemas políticos que os mostra como resultado inacabado das
reivindicações populares e não como consequência da ideologia liberal ou como decreto
k “
“ ” à cracia
liberal e à liberdade (sindicatos, voto universal, ensino público e gratuito, liberdade de
imprensa etc.) foram conquistados graças ao longo e duro combate das classes baixas do
XX” è “ igarcas. Foram
conquistadas pela ação democrática e só conservam a sua efetividade através desta
”
93
è “
do governo democrático e deve então ser reprimido por ele."
Página 98 de 212
claras ou subterraneamente, numa contra-história de resistência à institucionalização da
democracia.
Critica- “
homem democrático transplanta um velho avaro sobre um adolescente ávido. O
”
“
”
Ironias do destino das ideias: a crítica antipopular torna-se discurso popular, a crítica
antidemocrática é veiculada por jurados democratas que acusam a democracia de ser
uma forma de totalitarismo. Haveria que regressar criticamente aos velhinhos conceitos
de alienação e reificação para não caricaturar os efeitos perenes da mercantilização do
conjunto da sociedade no ser humano. Haveria que repensar o lugar próprio da política e
à “ ”
Página 99 de 212
Claro que em Badiou esta crítica é provocatória e tem uma finalidade emancipatória.
Aliás, divergências à parte, a ideia da democracia enquanto subversão converge num
“ ”
o é com Rancière e com a sua defesa da tiragem à sorte de cargos políticos em nome da
pura igualdade. Assim o é com Zizek e com o seu uso do conceito de ditadura do
proletariado e a sua defesa da legitimidade da violência revolucionária.
Tais provocações poderiam ser entendidas cinicamente como formas de promoção num
“ ” ltracompetitivo no pior caso ou como exercícios intelectuais mais
ou menos bizarros mas que ajudam a pensar no melhor caso. Malgrado as menorizações
de que possam ser alvo as tentativas de pensar a democracia neste registo arriscado
(Zizek seria um provocador nato sem medo de parecer auto-contraditório na sua febre
de exibir um leninismo lacaniano, Badiou seria um cultor de um intelectualismo
comunista que seria somente uma teoria mágica do acontecimento, Rancière, apesar de
apresentar interessantes críticas à representatividade, seria um mero utópico ultra-
igualitário), estas tornaram-se um marco na paisagem da Filosofia Política
contemporânea.
A crítica da forma-partido para além de ter como efeito negar a possibilidade de uma
“ ”
“ ”
alvo, arriscam- “ à
” “
” “ ”
A provocação mais profunda que está aquém e além dos aspetos idiossincráticos destes
vários estilos de pensamento é a própria ideia da democracia como subversão. É o
â “ ”
94
superioridade . É o escândalo “ ” à
destabilização de poderes e saberes.
94
Rancière parece ser quem mais longe leva o igualitarismo. No seu livro O Mestre ignorante (Jacques Rancière, Le
Maître Ignorant, Fayard, Paris, 1987) defende a ideia de igualdade das inteligências humanas como princípio e
Bensaïd para pensar o mesmo problema recua até à Revolução Francesa e às reflexões
crepusculares de Saint-Just sobre a execução do rei95. Para este, as instituições
“ ” “
”
“ ” “
”
pura, a política não é pura, a revolução não é pura. A recus “ ”
“ ”
“ à
” ia da política impõe que se
“ ”
“
que garantam o melhor controlo dos mandatos e a limitação da profissionalização do
”
Procura-se assim fugir aos perigos utópicos da ideia de uma democracia purificadora da
sociedade. A enxurrada democrática é impura, não desagua no fim da política. A sua
força residirá na capacidade de mobilizar a vontade de emancipação em tempos de
cinismos e desilusões. Não se trata apenas nem principalmente do sonho de uma
“ ”
concreta com que esta ideia ajuda à corrente política mais ou menos subterrânea que é a
política dos oprimidos. E da necessidade de avaliar esta força analisando que estratégias
carrega em si, que eficácias tem tido, que efeitos contra-hegemónicos.
96
è “
doce sonho angélico dos imbecis e das almas sensíveis. Infelizmente para eles, é uma realidade sem cessar e em
todo o lado provada. Não há serviço que se execute, não há saber que se transmita, não há autoridade que se
“ ”
”
“
” “ ” w
Esta Filosofia ocupou(-se) (d)a democracia. Resta saber o grau de efetividade desta
ocupação, perceber se e como se foi sentida. Que possibilidades de ocupar
democraticamente a democracia. A força destas demoestratégias dependerá da
capacidade de pensar de forma positiva o irresistível mito democrático, de constituir
uma contra- “ - ”
simultaneamente à crise da política e à política da crise. De ser e fazer política. De ser
uma alegre inundação.
Bibliografia
Vários, Démocratie, dans quel état?, Les éditions Écosocieté, Montreal, 2009.