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Biblioteca Tempo Universitario 45 Claude Lévi - Strauss _antropologia estrutural ANTROPOLOGIA ESTRUTURAL DOIS A divulgagao para 0 piiblico de lingua portu- guesa desse segundo tomo de Antropologia Es- trutural esta sendo feita ha menos de trés anos ap6s sua publicagdo, em francés, pela editora Plon! A rapidez com que TEMPO BRASILEIRO assumiu ¢ realizou essa traducio €, por si sb. indicativa de interesse do leitor brasileiro pelo estruturalismo francés, ou pelo menos, pelas questées por ele levantadas. Eo momento em que € feita tal divulgacao entre nés nao poderia ser mais apropriado. H4 uma grande diferenca entre a publicagao do primeiro tomo (Plon, 1958; TB, 1967), quando o estruturalismo estava em plena moda, ea de agora — a se dar crédito as noticias gue nos chegam de Paris — quando a teoria estruturalista vem perdendo aquela natureza de doutrina de que, a revelia de Lévi-Strauss, suas idéias vinham se revestindo para recuperar 0 status cientifico, do qual, alias, nunca deveria ter-se afastado. Mas que se esclareca, por outro lado, que ndo sobrevive em sua obra ‘ou em sua interpretagio madura e nfo deslumbrada, ne- nhum cientificismo tao a gosto das ciéncias so- ciais de cardter neopositivista. Trata-se, sim, de uma gradual eliminagio do sufixo ismo, tho carregado de conotagies equivocas, proprias de certos contextos, pouco ou quase profissionais, encontradicos em diferentes espacos intelectuais que vao desde as universidades até setores tipi- camente diletantes. A vida intelectual francesa, como de resto o ambiente cultural brasileiro, - parece produzir com muita facilidade esse tipo de intelectual e reproduzir, com facilidade maior ainda, esses ismos. Portanto, quando se verifica um certo esvaziamento do carater doutrinario de qualquer corpo de idéias que se espera sejam cientificas, é motivo de jubilo para tantos quan- tos trabalham no oficio de antropélogo — ou em oficios afins que eventualmente se nutrem do pensamento ou do método estruturalista, como o de esteta critico literério ou filésofo —, voltados que estio todos para a instrumentalizagto dessas idéias para suas respectivas praticas: tebrica e de pesquisa empirica, © presente livro retine um conjunto de 25 textos de Claude Lévi-Strauss, organizados em dezoito capitulos, que cobrem desde temas teéri cos gerais sobre 0 escopo da Antropologia Estru- tural até temas mais especificos referentes a organizacio social, & mitologia, ao ritual e as relagdes entre diferentes etnias e culturas. Desse conjunto de textos, apenas dois foram publicados anteriormente a 1958, data do primeiro tomo de Antropologia Estrutural: trata-se de um pequeno Pa en sce ANTROPOLOGIA ESTRUTURAL DOIS CLAUDE LEVI- STRAUSS HOM ONAGEA DE tempo brasil: ANTROPOLOGIA ESTRUTURAL DOIS tempo _brasiteiro Rio de Janelro —- RJ — 176 BIBLIOTECA TEMPO UNIVERSITARIO — 45 Colegio dirigida por EDUARDO PORTELLA, Professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro ‘Tradugéo e coordenagio de Manta po CakMO Panpo.fo, com @ participagao de Som Woroskes, Tanta Jaross, CELINA Manta MOET DE Mez.to, Luca Pessoa oa Su.verna, Pavio Amilig NASCIMENTO Silva, FURIDICE Fioveiepa Lermennpce » Cxtant Sakcve, Kara Produgio Editorial: “PANIA JATORA Capa de AntOs10 Dias Traduzide do original francés Authropowoge Structurale Deus, Paris, Librairie Plon, 1973 Direitos reservados EDICOES TEMPO BRASILEIRO LTDA. Rusa Gago Coutinho, 61 (Laranjeiras) — ZC Ot — Tel: 225-9173 — End. telepr, TEMBRAS — Cx. Postal 99 ‘Rio de Janeiro — RJ — Brasil AGS membros do laborataria de antropologia social Vos quaque pectoribus nosirts haeretts, amici, dicere quos cpio nomine qunque suo. ‘Ovime, Tristia, OD, 1v. CariztLo ‘Capirune Cartrao CarituLo CapiroLo Garirmo Carirco carizvio: Carizcio CarirmLo Caviruto Cartemto CarizcLo CarircLo Iv SUMARIO PERSPECTIVAS © CAMPO DA ANTROPOLOGIA u JEAN-JACQUES ROUSSEAU, FUNDADOR a CIENCIAS DO HOMEM e © QUE A ETNOLOGIA DEVE A DURKHEIM 52 aL A OBRA DQ BUREAU OF AMERICAN ETHNO- LOGY E SUAS LiCORS a RELIGIONS COMPARADAS DOS POVOS ESCHITA ..., ORGANIZAGAO SOCIAL SENLIDO © USO DA NCGAO DE MODELO .. 19 BEELEAORS | SOBRE 0 ATOMO DE PAR TESCO ves he MITOLOGIA E RITUAL A ESTRUTURA FE A FORMA .,, A GESTA DE ASDIWAL ....... QUATRO MITOS WINNEBAGO © SEXO DOS ASTROS ., O8 COCUMELOS NA CULTURA .... RELACOES DE SIMETRIA ENTRE RITOS E MITOS DE POVOS VIZINHOS .. oe Bad COMO MORREM 05 MITOS - 261 Carimme XV — Carirmio EVI — Cariryto XVI — Carfrv.o XVIIE — HUMANISMO E HUMANIDADES RESPOSTAS E PESQUISAS JORNALISTICAS 277 1- Os trés bumanismes 22.2... .220005.0605005 OTT 2 - Estruturalismo ¢ critica Uteraris .......... 280 3+ A propdsito de yma retrospectiva .......... 283 4 = A arte EM MBB cc eeesevevsv tees BOT 5 - Civilizacao urbana e satide mental _....... 230 @ = Testemunhas de nosso tempo .,...,,.-..... 298 CRITERIOS CIFNTIFICOS NAS DISCIPLINAS SOCIAIS E HUMANAS _..._.. Rate gee AS DESCONTINUIDADES CULTURAIS E O DESENVOLVIMENTQ ECONOMICO .........., 317 1-0 problema das descontinuidades culturais dinnte da Etnografia e da Historia . 2 - As trés fontes da resisténcia ao desenvolvi- anento RAGA E HISTORIA .........- surigamnaesun Sa 1 + Raea e cultura 228 2 - Diversidade das culturas .....0....0-....: 880 4 - © ctnocentrisma 333 4 Culturas arcaicas ¢ culturas primitives .... 337 5 - A fdéla de progresso 2.0.0.2... 6 - Historia estaciondria ¢ histjria cumulative 344 - Lugar da clvilizagio ceidental ... 348 8 - Acaso e civilizagio .... . 382 @- A colaboracéo das culturas .. 19 - © duplo sentido do progresso ...... 60.0... 363 PERSPECTIVAS CAPITULO I © CAMPO DA ANTROPOLOGIA* Sr, Administrador, Meus catos Colegas, Minhas Senhovas, Meus Senhores, Foi ha pouco mais de um ano, em 1958, que o College de Fraace re- solveu introduzir uma cadeira de antropologia sorial no seu curriculo, Esta cléneia é por demals ficl as jormas de pensamento que nomeamos supcrs- ticlosas quando os encontramos entre nés, para que nda me seja perml- tide prestar 4 supersligao uma Homenagem liminar; o proprio dos mitas, que ocupam um lugar tRo importante emi nossas pesquisas, nfla sera evoeat © passado abolide, @ anlied-lo emo um pardmetro sobre a dimensio do presente, a fim de decifrar um sentido, onde coineldem as duas faces —histérics @ estrutural—, que opde 20 homem sua propria realidade? Que se seja, pols, iguaimente permitido, nesta ocasido onde todos os ca- vacteres do mito se encontram para mim reunidas, seguir o sea exemplo © prceurar diseerniz o sentida é a ligia da honra que me é dads em al- guns aconteciinentos bassados; a prdpria data de minha nomeacdo etesta, micus carcs colegas — pelo cstranhe retarna da algarismo @ anteriormente ilustrado pela aritmeétiea de Pilagoras, pelo quadro periédico dos corpos * aula inaugural da cadeira de antropoloyia sacial dada na College de Fiance, lics-itiva, 6 de janeivo de 1 nelamenle publieads pelos cundagios do Coli¢gu de Fiance em sua colegao de aulas inauguruis, sob on? gL, ll quimicos e pela lel de simetria das meausas —, que, propasia cm i9sg, a eriagha de ums eadelra de antropslogia social renova uma tradicio ca quel, este que ves fala, ainda mesmo se 0 quisesse, no pederia mais ¢s- eapar. HA cinglienta anos, Sir James George Frazer proferia na Universidade de Liverpool a aula inangural da primeira eadelra no mundo iniltuieds antropologia soelal. Cinglcnta #nos antes — acaba de completar um 5é- culo — nasciam, em 1850, uois homens — Fianz Boas e Emile Duikheim — cuja posteridade dirA que foram, quando nado os fundadores, pelo memos os mestres-de-cbra que edificaram, um na Amérles, o oulro ma Franga, & antronologia tal como 8 conhecemos atualmente. Convinha que estes trés aniversarios, que estes trés nomes fossem aqui evocados. Os de Frazer e de Boas me ofcrecem @ otaslio de teste- munhar, ainda que brevemente, tudo o que a antropologia social deve 30 Pensamento anglo-americano, € que Ine devo pesscalmente, uma ve auc é em unldo estreita com ele gle os meus primeires trabalhos foram concenidos e claboradas. Mas ndo é de surpreender que Durkheim ocupe um lugar mais destacado nesta ligio: ele encarna o essencial do que foi @ contribuigao da Franca & antropologia social, se bem que seu cente- nétio, eelebrado com pompa em’ indmeros paises estrangelros, temha pas- sado quase qué despercebido entre nds e nao tehha sido ainda marcade por nenhuma cerlménia oftelal i *. Como explicar esta injustiga para com ele, a qUal constitui igual- mente uma injustign para conosco, senfio como uma conseatléncla menor desta obstinactio que nos impele a esquecer nossa propria historia, a sentir por ela um verdadeiro “horror” — conforme diz Charles de Ré- ‘musat —, sentimento que expde hoje em dia a antropologla social a perder Durkheim, da mesma maneira como ji perdey Gobineau e Dé- meunier? Contude, meus cares colemss, 08 poucas dentre vés, aos quais me unem Jembrangas longinquas, néo me desmentirio se eu lembrar que, por volia de 1935, quando nossos amigos brasileiros queriam explicar os motives que og levaram a escolher missOes francesas para formar suas primeiras universidades, citavam sempre dois nomes: primeiro, certa- mente, @ nome de Pasteur; e o de Durkhelm iogo em seguida. 1 Houve uma eomemeragao na Sorbonne, em 90 de Janeiro de 1960. * Em todo o livro, as notas sem assinatura sho da autor. N.T, = nota do tradutor; wv. G. = nota da coordenadora da traducio; e finalmen- te, N. Ed. = nota do editor. (N. Ed) 12 Mus, em reservando a Durkheim estas poucas reflextes, obedacemos @ um outro dever. Ninguém, mais do que Marcel Mauss, terla sido sen- sivel a uma homenagem dirigida a ele tanto quanto so mestre, do qual foi alano c de quem se tornou eontinuader, De 1931 a 1942, Marcel Mauss ocupou no College de France uma eadeira cansagrada so estudo de *0- © embora a passagem do infeliz Maurice Halbwachs tenha do a casa, pode-se considerar, perece, sem com isio fallar & ver- dade, que, a9 crlar uma cadeiza de antropologia social, € a de Mauss que vés quisestes resiaurar, Este que vos fete, pelo menos, deve demais 20 pensamenta de Mauss, psra nfo se comprazer nesta inarso. Gem divide, a cadeira de Mauss cra intitulada “goctologia”, pols ‘Mauss, que trabaluou tanto, funta:nenie com Paul Rivet, pain fazer aa einologiy, uma ciéncia oficial, ni tina ainda conseguide seu objetivo Por volta de 1930. Mas, para atestar o clo eulie os nossos ehainamenios Seri suliciente lembrar que, no de Mauss, 2 etmelogia tnha um lugar Sempre crescente; que, desde 19M, ele protlaaiuye qua a “lugar du s0- ciologia” cca “dentro da antropolagia”; ¢ que, salvo erro, Mauss foi, em 1933, © primeira a introduziy os termos ‘antropologia sceia!” nu nemen- clatura francesa, Ele nfo os iia dutapovede hoje, curta ns no cm sous procrdimentes mais ousades, Mauss munca eve a impresein de ge afastar da linha durkheimions, Melyor do gue ole, tal- vez, percebemos hoje como, sem trait uma fidelidade tho treqontemente afirmada, cle soube simplificar e tornar mais flexivel a doutrina do sea grande precursor. Esta nfo deixoy olnda ge nos strpreender pelas suas Droporgdes imponentes, sua potente sustentacdo logica, c pelas perspec- divas quo ebre sobre horizontes onde existe tanto a explorar, A missdo de Mauss fol s de terminar e ordenar o prodigioss edificlo, surgido do solo pela passagem do demlureo, Era necessirio exorcizar alguns fantas- mas metafisleos que por ]é arrastavam alnda suas correntes, colocd-lo aa abrigo dos ventos gélidos da dlalética, do trovao dos sllogismos, dos ios das antinomias.,, Porém MAUss protegeu a cscula durkhelmians contra outros perigos, Durkheim fol, certamente, o primeiro a Introdugir nas ciéncias do hhomem esta exigéncia de espeei{icidade que deveria permitir uma reno- vagio, da qual a maioris delas —¢ part ea lingiistica — se beneficiou no Inicio do stculo XX. Para toda forma_de pensamento ¢ ularms 13 de atividade humana, nao se pode questionar a natureza e a origem dos tengmencs sem antes té-los identificado € anallsado, e também desco- berto em que medida as relacdes que os unem bastam para explicé-los E impossivel discurir sobre um objeto, reeonstituir a historia que Ihe deu origem, sem antes saber o gue cle €; restmindo: sem ter_esgotade © imventdrio de suas determinagGes internas. ‘Cantuda, quando relomods hoje Les Régles de la Méthode Seciglogi- que, maa podemos nos impedir de pensar que Durkheim aplicou estes Principios com certa parcialidade: cle se valeu disto para constituir o social em eategorla independents, mas sem pensar mo fato de que csta. nova categoria, comportava, por sua ves, todus os tipos de especificida~ des correspondentes ao diversos aspectos sob os quais nés a apreendemos. : de afirmar que a ldgiea, a linguagem, a direite, a arte, a religida sfio projegies de social, nfo serin conveniente esperar que as ciéncias varticulares tivessem aprefundade, para cada um desses eédigos, seu amodo de organizngio e sua fungao diferencial, permitinds, desta ma- neira, compreender a natureza das relagdes que eles mantéem uns com cs outros? Sob o riseo de sermos aeusado de paradoxo, parece-nos que, na tco- aia do “fate suclal total” ({40 eelcbrada desde ent&o, e tio mal compre- endida), a nogio de totalidade é menos importante da que a maneira tem particular como Mauss a coneebe: folheada, poder-se-la dizer, ¢ formada de uma multidio de planos distinics © justapostes. Ao invés de aparcecr como um postulado, a totalidade do seclal se manifesta na cx- periéncia: instdncia privilegiada que pode ser apreendida no nivel da observagio, em oeasides bem dcterminadas, quande se “agita a totalida- de da socledade ¢ de suns Instituigdes”. Ora, esta telallgade nao suprime © cardter especifico dos fenémenos, que pernvanecem “ao mesmo temzo juridicos, econémicos, religiosos e até mesmo estétiens, morfologicos”, diz Mauss no Essai str le don; de tal mode que els cansiste, em suma, na rede de interrelagdes funcionais entre todos estes planos. Esta atitude empiriea de Mauss explica que elt tena, tho rapide: mente, superado a repugnincia que Durkheim Ravia comeendo a sentir no que diz respetto as Invesllgactes etnogréficas. “O que importa, dice Manes, 60 Melanésfo de tal ou tal ilha...” Contra o tedrico, 0 ohserva- dor deve ter cempre a palavra final; e contra o abservador, o indigena. Enfim, attés das interprelates racionalizades do indigena — que 5 institul freqiientemente abservador e até mesmo teérico de sua propria sogiedade — dever-se-Go procurar as “cateyorlas inconscientes” que, es- crevia Mauss em. uma de suas primeiras obtas, sie determinantes “tanto 4 em magia, quanto em religifo ou em Ungitistica", Ora, esta andlise em profundidade Iria permitir @ Mauss, sem contradizer Durkheim (pois isto deveria acomtecer em outro plano), restabelecer, com as Outras cién~ cias do homem, pontes algumas vezes imprudentemente cortadas: com & hisléria, puis & etmogratia situa-se no particular; e tambem com a bio- logia e a psicologia, uma vez quo se récomiiecia que os fendmenas social sio “piimeiramente socials, mas também, a uma sé vez, e simultanea~ mente, fisielogicos € psicolégicos". Baslara levar suficientemente longe ® andlise para atingir um nivel ondc, como diz ainda Mauss, “corpo, alma, sociedade, tudo sy mistura", Esta soviglogia de came trata dos homens, como os descrevem os viajantes ¢ os etndgrafos que compartiiharam sua existéncia de maneira efémera. ou durdvel. Ela 08 mostra engajados no seu préprio poryir his- torico @ alojados uum espace yeografico concreto. Bis tem, diz Mauss, “por prineiplo e por fim... perceber o grupo inteize e o seu comporta- menw por inteiro”, Se a desencarmacdo cra um das perigos que epreitavam a saciolo- gin durkhelmiana, Mauss @ protegeu com igual sucesso contra um outro: © automatisme, Muito freaticntemente, desde Durkheim ..¢ a! em alguns que se acreditavam Mberades de sua influéncla doutrinal—, 8 sociologia apareceu como @ produto de um sacue, felty As pressas ¢ AS exnensas da histéria, da psicologin, da Ungiiistica, da clémeia econémica, do dircito e da etnografla. Aos frutes desta pilhagem, s soctologia ce contentara de acrcscentar suas receitas: para qualquer problema que Ihe fesse proposte, podia-se ter a certeza de receber uma golucio “soctoldei- co” pré-fabricada, mesmo @ no nos encontranios mals neste ponte, nds o devemos em grande parte a Mauss, a cujo nome @ necessério associar o de Malinowski, No mesmo momento — e certamente, ajudando-se mutuamente, eles Mostraram, Mauss come tedrieo, Malinowski como cxperimentador, o que Bode ser a administragio da prova nas cléncias etnoldgicas, Foram os primeires a compreender que nfo ¢ guficiente decompor e dissecar. Qs fatos soclais nda sao redutivels a fragmentos espazos, eles s40_¥ dos por hotens e esta conscléncia, subjetiva, bem como seu caracteres objetives, € uma forma de sua realidade, Enquanto Malinowski instau- TAVA & participacao intransigente do etnégrafo na vida e no pensamento indigenas, Mauss afirmava que o essenele! “é 9 movimento do toda, o aspectg vive, O instante fugidio em que a sccledade Loma, em que os homens tomam consciéncia sentimental de si mesmos ¢ ge gua situacke Perante outrem. Esta sintese empirica e subjetiva oferece a unica ga- 15 vantia de qué & amdlise preliminar, levada até as categorlas inconsclen tes, nfo deixon escapar nada. E, prevavelmente, a prova permaneccra bem tlusiria: nfo sabere- mos jamais se o outro, com @ qual néo podemos, apesar de tudo, con- fundir-nos pera, a partir dos elementos de sua existéncin social, uma sintcse que coincide exatamente com a que elaboramos. Mas mio ¢ neces- saria ir ifio longe, € preciso somente —e para tanto, o sentimento in- terno basta — que a sintese, mesmo aproximativa, decorra da cxperién- cia humana. Devemos assegurar-nos disto, pois esturamns homens; = eomo somos homens, disto temos a possibilidade, A mancira como Mauss coloca ¢ resolve o problema no Essel sur le don conduz a ver, ma inter- scecho de dus subjelividades, a ordem de verdade mais préxima que as ciéncias do homem possam pretender quando defrontam a integralidade de seu objeto. Who mos enganemos: tudo isso, que Parsee tio novo, estava implic!- tamente presente cm Durkheim. Com freqténcia, foi-lhe eensurado ter formulade, na segunda parte das Formids élémentaires. uma teoria da religiao tio vaste e tho geral que parccia tomar subérflua a minuciesa analise das religides australlanas que a tinmha precedido ¢ —ter-se-la desejndo— preparado. ‘A questio € saber se @ homem Durkheim teria podido chegar a esta tcorla sem se ter, prellminarmente, esforgado per sebrepor, as re- presentacdcs religosas recebldas de sua propria sociednde, as de homens cula cridéncia histériea e geogriifica garnmtia que eles fossem integral- mente “outros”, ¢ nia cimplices ou acdlitos insuspeitos. B bem este 0 procedimento do ctndgrafo de campo, pois —por mals eserupultso ¢ objetivo que ele quelra ser— nao é nunca ele mesmo, ou o outro, que encontra no final de sua pesquisa. Ele pode pretender, no méximo, pela aplicagéo de st prépria sobre o outro, isolar o qle Mauss chamava de fates de funclonamento geral, por ele demonstrados como sendo mais universals e de maior realldade, Completando assim a inten¢io durkheimiana, Mauss iberava a an- tropologia da felsa oposi¢ao, introduzida por pensadores como Dilthey © Spengler, entre @ cxplicacZo naa citmclss fisicas e a explicacko nas cignelas humanas. A procura das causas se extingue na assimilagio de uma experiéncia, mas esta ¢, ao mesmo tempo, externa ¢ interna. A fa~ mosa regra de “considerar os fatos sotials como coisas" eorresponde a9 16 prlmeiro procedimenta, eabendo aa segundo averigué-la, Discerntinos logu 8 originalidade da antropologia social: ela consiste —a0 invés de opox a cxplicaya causal e & eomprecnsio— em_descobrir_wn-objeta que seja av mesmo tempo, objetivamente muito jonginguo 2 subjetivamente mui- to gonereto, e cuja explieagdo causal possa sc basear nesta comp:censia que nia é para ngs senfia uma forma supiemcniar de prove, Uma no- cho come a da empeiia nos inspira uma grande deseonfianca, pelo que ela implica de ir:acionalismo e de mistieismo. Ao formular uma exigén- @ de prova suplementar, imaginamos antropéloga como um enge- © ¢ constré! uma mdquina stravis , que ene na séxte de racionais; no enftanto, € necessirio que cla funcione, a cer- tesa ligiea nfo basta. a possibilidade, para o antropdlogo, de viver a ex- ailénela injime de eulro € somente um dos ravios disponivels para obter ca, — mecessidade igualmer ssentida s fisieas e humanas; menos wna prova, talves, Go que uma garantia Ouone é, entdv, &_antropoloria social? Ninguém, parece-me, esteve mais préximo de defini-la —ainda que neja por preterigfo— do que Ferdinand de Saussure quando, ao apre- sentar a lingidistica eomo parte de ume cléncia einda por nascer, ele reserva a esia o nome de semofogia, e the atribui por objeto de esiudo. a witia. dos signos no interior da vida social, Ele proprio, alias, $4 no antcelpave nessa adesio quando comparava a linguagem & “cserlla, ao alfabeto dos surdos-mudos, sos rites slubglicas, As formulas de polidez aos sinals milltarcs, etc”? Minguém_contestard que ntropologia tem no seu_campo pelo menos slguns deste: sistemas de slgnos, gos quals se nerescentam virins outras: linguagem muitica, signas orais e gestuals que compicm o ritual, regras de casamento, dos costumes ¢ algumas modalidadcs das troeas econimicas, Concebemos ent&o a antropologia como sendo o acupante de boa fé deste dominio da semialogla que a lingilistiea ainda nao reivindicou como seu; @ esperando que, pelo menos para alguns sctores deete dominio, @ncias especiais sc constltuam no interior da antropologia. E necesséria, entretanto, precisar esta deflnigdo de duas maneiras. Primeiramente, devemos reconhecer gue alguns dos fates, eitados relimina:mente #80 também da algada de ciénelas particulares: ciéncia 7 temas de parentesco, leis econémica, dircito, cléneia polities. Todavia, estas diseiplinas comside- Tam principalmente os fates que estfio mais préximos de nis, oferecendo- nos, portanto, um interesse privilegiado. Digemes que @ antropologia so- cial os apreenda, seja nas suns menifestardes mais longinquas, seja son © 4nmilo de sua expresso mais geral. Soh este dltimo ponto de vista, ela nada pode fazer de util sem colaberar estreitamente com as clin- las sociais particulares; mas estas, por sua vez, nfo poderiam pretender & generalidade senfo gragas no coneurso do antropdélogo, o nico capaz de Ihes trazer recenseamentos e inventarios que ele procura tornar com pletos, A segunda dificuldade ¢ bem mais séria; pois pode-se perguntar se todos os fenémenos pelés quais se interessa a antropologia social oferecem bem © eardter de signos. Isso est suficientemente claro para os proble- mas que estudamos com mals freqiitnela, Quando considcrames um sis- tema de crengas —digamos, 0 totem!smo— ttma forma de organ!zacka social —clas unilineares, casamento bilateral a pergunta que nos fa- zemos 6: “o que tudo isso significa?" e, para respondé-la, esfareama-nes por tradusir em nosca Hnguagem regras primitivamente dades em uma linguagem diferente, Mas seri a mesma coisa quanto aos asPecltos da realidade soctal, como as ferramentns, as téeniens, os mocos de preducdo e de consumo? Pareceria que estariamos tratando de objetos ¢ naa de signos —- 0 signe sendo, segundo a eélebre definigio de Peirce, “aquilo que substitui algu- ma coisa pata alguém", O que substitul, portanto, um machaco de pedra, © para quem? A objecio é valida até certo penta, e ela explica a repugnéncla que alguns sentem eo admitir no campo da antropologia social fenémencs que pertencem a outras ciéncias, como a geografia e a tecnologia. O termo de entropolegia cultural eonvém, pois, para distingulr esta parte de nossos estudos e sublinhar sva originalidade. Sebe-se, todavia —e foi este um dos titulos de glorla de Mauss por té-lo cstabelreldo de acordo com Malinowski— que, sobretuda nas soric~ dades das quais nos ocupamos, bem como em outras, estes dominics es- iio como que Impregnados de signifieacho. Por este aspecto, ja nos dizem Tespelto, Enfim, a intenggo exaustiva que inspira nossas pesquises transfor- ma-Ihes amplamente o objeto. As téenieas tomadas isoladamente podem a@parecer como um Gada brute, heranga histrlca ou resultado de uma ncomodacao entre as necessidades do homem ¢ as repressies do meio. Mas, quando as situamos neste Inventirio geral das sociedades que a 18 antropologia se esfarga por constituir, clas aparecem sob uma nova luz, Pols nés as imaginamos eoma o equivalente de escolhas que cada socie- dade parece fazer (inguagem cOmoda, que deve ser separada de seu ANtropomorfismo) cnize as onees possiveis, cujo quadro seré trecado. Neste sentido, concebe-se que um certo tpo de machado de pedra possa Ser um signo: mum determinado contexto, ele occupa o lugar, para o ebecrvador capaz de compreender-Ihe o uso, da ferramenta diferente que uma outra sociedade empregaria para os mesmos fing, Desde entio, mesmo as técnicas mais simples de qualquer sociedede primitive revestem o carter de um elistema, analisével em {ermos de wm sistema mais geral, A mancira pela qual alguns elementos deste sis- tema foram retidos, outros exclittdos, permite-nos conceber o sistema local como um conjunto de eseolhas significativas, compativeis on incom- palivels com outras, ¢ que cada seciedade, ou eada periodo de seu de- senvolvimenta, se viu obrigada a realizar, Ao colocar 2 natureza simbdlica de sen objeto, a antropologia social no pretende nem por isso afastar-se das realia. Coma poderia fazé-l0 uma vez cue 9 arte, onde tuo é signa, utiliza veiculos materials? Nao se pode estudar os deuscs ¢ jenorar suas imagens; os rites, sem analisar os abjetas ¢ as substiimeias que o ofielante fabrica ou manipula; regras sociais, independentemente de coisas que lhes eorrespondem. A antro- Pologia social no se isola em uma parte de dominio da etnolegin; nfo senarn cultura materlal e cultura espiritual. Na perspectiva que Ihe ¢ prépria —e que nos sera hecessdzio situar— ela Ihes atribul o mesmo interesse. O$ homens se comunicam por snclo de simbolos e signos; para @ entropologia, que é uma conversa do homem com o homem, indo é simbolo e slgno que se coloca coma intermediérios entre dols sufettos, Por esta deferénela em relacio sos objetes e as técmitas, como também pela certeza de eperar com signitieactes, nossa conceprdo da antropalogia social nos afasta sensivelmente de Radeliffe-Brown que — até a sua morte, ocorrida em 1955— tanto fez para dar autonomla as ‘nnossas pesquisas Segundo g6 posi¢Ges sempre maravilhosamente Hmpidas do mestre inglés. a antropologia social serla uma ciéneia indutiva que —como as outras cléncias deste tipo — observa fatos, formula pipéteses, submete-as 80 controle da experiéneia, para descobrir as lels gerais da natureza @ 19 da sociedade, Ela se separa, porlanto, da cumolugin que se estorga por regoustitulr © passado das sociedades primitivas, mas com msios e mé- todos tda precayios que méo pode trezer & antropologia social nenhum ensinamento, Na epcea de sua formmlsgdo, por volla de 1929, csta concepgho —inspirada na distingao durkheimiana entre cirewmjusa € practerita — mazcave wma reagdo salutar avs abuses da escola difuslonista, Mas dese de entiio, a “historia conjeluial” — como dida Radeliffe-Brown, nig desprezo — aperfeiguou e afingu seus mélodos, eracas, principalmente, fs escavagocs cstratigrafieas, & introducio da eslatistica em arqueslo- gia, @ andlise dos polens, 20 cmprego do carbono 14, ¢ sobretudo gracas & eolaboracéo cada vez mais estreita que se instaura entre os eméloges 2 os sociglogos de um lado, os arquedioges e os p:é-historledores, ae outro, Podemos entéo perguminr-nos se a desconfianga Ge Radeuite- Brown com relacéo as reconstitulgdes histérieas n&o correspondia a uma etapa do desenvolvimento cientifieo que Sera logo ultrapassada. No ontanto, varios dentre nés mantém, sobre o futuro da antrapo- logia social, posigges mais modestas do que as enc jas plas gran- des ambicics de Radeliffe-Brown, Aqueles tmaginam a antsupologia g0- cial nfo cunforme modelo das ci@nclas indutivas, tal como eram conce- pides no séelo XIX, mas antes & msneira de uma sistemt.ca culo objetivo_é identificare repertotiar tinos,analisar suas partes constiu- tivas, estabeleccr eo:relagies. sem este trabalho prellminar — que_nio se pode dissimular ter sido apenas abordado—, o método comparativo, proconizado por Radeliffe-Brown, pode incorrer em estagnagfio: ou os diados a comparar sfio ido visinhos pela geografia ou pela histrla_que nfo se tem jamais a certeva de tralar-se de fenémenos distintos; ou ent&o s&o por demais heterogéness, e a confrontarso torna-se ticgitima Porque Aproxima clisas que n4o se pode coiejar. Até alguns anos atrés, admitia-se que as instiluicoes aristocraticas da Polinésla eram fates de ttrodugao recente, datando de alguns sé- eulos apenas e devidos @ Pealends grupos de eonguistadores vindos de fora. Mas cis que a medida da radiuatividade reslduat de vestigios orgh- nices, provenientes da Melanésia a da Polinésia, revela que a diferenga entre as datas de ccupagdes das duas reviécs € menor do que se supu- nha, ¢, por Isso, 26 coneepedes sobre a natureza e a unidade do sistema feudal devem modificar-se; pois pelo menos, nessa parte do mundo, n&o esté cxeluido, apés as belas pesquisas de Gulart, que seja anterior & che- gada dos conguistadores, ¢ que algumas formas de feudallsmo possn:n nascer em modestas sociedades de jardincircs, 20 A deseoberta, na Africa, da arte de If, tv refinasla e sdbia come 4 da Renascenga europela, mas {alvez anterior de trés ou guatro steulas, © precedicia desde ba mullo, na prépria Africa, pela arte da édvilizagso dita de Nok, influt sobre a idéle que podemos farer-nos das artes re- centes da Afriea negra e des cultura correspendentes, onde tentamos agora, ver replicas empobrecidas @ como ritsticas de formas de arte e civilizagges elevadas. © encurtamento ca pré-fustéria do Velho Muntio e 9 alongamento da do Novo — hipotese que o carbono id permite levantar — levarao, talvez, & Julgar que us civilizagics que se desenvolveram dos dois lados do Pacifico foram mais aparentadas, alnda, do que pareccm, © —consideradas cada una por éi— & comp:eendé-Ias de outro medo, © necessitio abordarmos fatos deste ginero antes de procedermos a Guilgner elassiticagba ou comparagée. Pois se nos apressarmes cin pos- iular g homeycneidade do canspo social ¢ embarearmos na fluséo de que Ce ¢ imediatamente compardvel em todds os seus aszectos e em todas os seus niveis, deixaremog escapac o essencial. Tenoraremog que as eoor- Genadas necessitlas para definir dois ienémenus aparentemente muito Stmnelhantes, nila sia sempre as mfsmas, nem de meso mimero; ¢ acre tavemes formular leis da natureza social, quando ajidtias descrevemos bropriedades superfictals om enuaciamos taulotogias. Desdelisr a dimensao bistérica, sob o pret. Reilflcientes pare svalii-la g nao ser de manei & cuntentar-nes_ com uma.soctologia. + como que descoladios de a eesaes rarcoem flutuar num vagia em que nos uma sulif rede do retacéeg funcionai oxo de que os metas sig ra apreximativa, levaenos nificars, onde os fenémenos esta ighes, estados @ pro storcamos por estabelecer Somes incelramente abservidos por o-nos dos homens, em_cujo pénu-amenin estas re- sc estabelecem, megiigencinmes sua cultura concreta, ngo mais snbemies donde vém nem o que s80. Nao ¢ suficiente, ¢ de sociais pace que a an efeita, gle os fenémenos poasam ser chamadns poldgia se apresee em reinvindied-los como PINES, Git & um oULIO desses meslsés de quom nos permitimas o de esquecer, Linha certamente razio, do ponto de visia da antro;o- Jopla soei@l, cuando contesiava que as Jarmecdes desprovidas de rads biclé io etefieiente de realidad qu: ax outras: “A asien ini @ grande companhia de est’adas de ferro, eserevia jess tivessem 0 ragao de ai Espinas em 1901 (p. 470) nao é uma realidade social... nem um exéreito tampouce”, A formula ¢ excessiva, pols as administragGes sila objeto de estudos aprofundados, em sociologia, em peicologia social e em outras ciénelas particulares; mas ela nos ajuda a precisar a diferenca que separa a an- tropologia das disciplinas precedentes: os fatos socinis que estudamos s€ mmenifestam em sociedades onde cada uma ¢ ut! ser total, concreto ¢ inter- Higado. Néo percamos jamais de vista que as sotiedades existentes sho 0 resultado de grandcs transformacées sobreviidas na espécie humana, em moments determinados da pré-histéria e em certos pontes da terra, & que uma cadcia iminterrupta de acontecimentos reaié Mga esses falos Aqueles que podemos observer, Esta eontinuidade cronoldgica e espacial entre # ordem da natureza é a crdem da cultura, sobre @ qual Espinas Insistin tanto em wma lingua~ gem que nao é¢ mais @ noses (e que, por esta raz&o, Nos dificulta a ccmpre- ensio), fundamenta também © historicismo de Boas. Ela explica porque a_antropologia, mesmo social, se proclama solidaria da antropologia fisica, cujas deccoberins espreita avidamente. Pols, mesmo se 0s fendmencs s0- cials devem ser provisoriamente isolados do resto e tratados como se per- tencessem a um nivel especificn, sabemos que, de fato e até mesmo de direito, a emergénela da cultura permaneceré um misteria para o homem enquanto ele nao conseguir determinar, no nivel biolégieo, as madificagoes de estrutura e de funclonamenta do cérebro. Destas transformagies, a cultura representa simultancamente o resultado natural e 9. modo sotial do apreensio — crlando, ao mesmo tempo, o meio intersubjetivo indlspen- sdyel para que elas prossigam. Se bem que anatémicas e fisiolégicas, estas modificacécs nfio podem ser definidas nem estudadss apenas em relagao ao Individuo. Esta profissio de fé historfclsta poderd surpreender, pots }& foros, al- gumas vezes, censurades por fecharmo-nos 4 histéria e por té-ln megligen- cinco em mosses trabalhos, Quase nao @ praticamos, mas fazemos questao de reservar-Ihes seus direitos. Acreditamos que, neste periode de formagho em que se encontra a antropologia social nada seria mals perigaso do que ‘um ecletisma trapalnio, que procuraria dar a ilusto de uma ciéncls bem estabelecida ao confundir tarefas e no misturar programas, Ora, aconteee que em antropologia, a experimentagio precede 8 obser- vacio @ a hipotese, Uma das originalidades das pequenas sotiedades que 22 estudames deve-se ap fato de que cada uma constliul wna experiéncta Pronta, por causa de sua simplicidade relativa e pelo numero restrito de variivels necessarias para cxplicar seu funcicnamento. Mas por outro lado, as sociedades esto vives © nao temos nem o tempo nem og meica de_agir sobre elas, Em relagao us cléncias naturais, Lencficismo-nos de uma vantagem ¢ sofremos de um inconveniente: achamos j4 preparadas nossas_experiéncias, mas ¢las nao sio govermivels. B normal entao que nos esforccmos por substitulr-lke modeles, quer dizer, sistemas de simbo- los que salvyaguardam as propriedades caracteristicas da expcriéncia, mas que, 80 contrario desta, temos o poder de manipular, A oveadia de tal procedimento € compensada, entretanto, pela humil- dade —poder-sc-la, quase, dizer pela subserviéncia —, da obgervacao, como & pratica 0 antropéiogo. Ao deixar o seu pals, o seu lar, por periodes pro- Iongados; ao se expor & fome, a doenga, algumas vezus ao perigo; a0 ex- por ses habilos, suas crengas ¢ suas convicgdes 2 uma profanagao da qual ele se torna camplic# quande assume, sem resiriedo mental, stim stgundas intencoes, as formas de vida de ume sociedade estrangeira, 9 antropdlogo pratica a observacao integral, aquela depois da qual nada mais h4, a DAG Scr @ absorgdo defimitiva — e isso 6 um risco — do observador pelo objeto de sua observacia, ‘Esta_allernincia de ritmo entre deis métodos — o dedutivo eo em-_ co — € 4 intransigéncia que eolocsmoes ao praticd-los um e outro sob uma forma extrema c como que purifieada, dfo & antropologia social seu cariter distiniivo dentre cs outros ramos do conhecitiento: de todas as elénelas, ela 6 a tinica, provavelmente, a fazer da subjetividade mais in- tima um meio de demonstragio objetiva.|Com efelte trata-se realmente de um fato objetivo: o mesmo espirito que so abandonon & experiéncia e dolxou-se modelar por cla se torna o teatro de opétagdes meniais que nao Abolem us preeedentes e, entretanto, transformam a experiencia em mode- Jo, possibilitando autras opcragées mentais. No fim das contas, a coerénvia Jogica destas tltimes se basela na sinceridade e na honestidade dequele que pode dizer, como o passarinho explorador da fabula: “La estava eu, &lgo me ovorrey — Vocés acreditarGo estar 1a, yoo&s mesmos”, e que con. segue, de fato, comunicar esta convicgao, Mas essa oscilagia constante entre a teoria e a observagdo ordena que os dols planos sejam sempre distinguldos. Parcce-me que 9 mesmo acontece em relagio & histéria segundo se pretenda consagrar-se A estatistica ou 4 dinamica, & ordem da estrutura ou & ordem do eeonteclmento. A his- térla dos historladores nao precisa ser defendida, mas também no slg- nificarin atacd-la se disséssemos (coma o admite Braudel) que, aa lado 23 de um tempo curto, existe um tempo longo; que alguns fates provém de uum tempo estatistico ¢ frreversivel, outros de um tempo mec&nico ¢ re- versivel; e que na idéia de uma historia estrutural nada existe que possa chocar cs historiadores, Uma e autra estio em pé de lgualdade; © ndo é contraditério que uma histéria de simbolos e de signos gere desenvolvi- qmentos imprevisiveis, mesmo que ela empregue comblnactes extruturais eujo nimero 6 lmitado, Num enleidoscépio, a cambinache de elementas {dénticos sempre da novos resullades. Mas a histévia dos hlstériadores ai est presente — quando mais nfo fesse na sucessiio de movimentos que provocam ag réergaatzacGes de estratura — ¢ as chances 4&9 praticamen- te nulas para qué reapareca duas vezes o mestiio arranje, NSo pensetios em retamar, sob sua forme primeira, w distingao invra- duzida pelo Cours de linguistique générale entre a ordem slnoronica ¢ & ordem diacrénica, quer dizer, o aspecio mesmo da doutzina saussureo- na de que, com Trubetzkoy ¢ Jacobson, 0 estruturalisme modemo se afnstou mals resclutamente; aquele mesmo, a propésita do qual decumen- 40s re¢entes mesiram como os redatores Go Cours puderam algumas ve- zes ferear c do mestre. squemativar o pensame! Para os redatores do Cours de linguistigue generale, exisle oposicao absoluta entre duas categorias de fatos: de um lado, a gramiatics, o sin- erénico, o conscitnts; de outro, a fonética, a diacrémico, @ inconsciente. Somente o sistema consciente é cocrente; o infre-sistema inconsciente € dinAmico ¢ desequilibraco, fefto simult&menmente de Iegados do passado & de tendéncias futuras. E que, efetivamente, Saussure ainda nfia havia descoberto a presenca de elementos diferenciais por detrés do fonema. Em outro plano, sua po- elefio prefigura indiretamente @ de Redcliffe-Brown, conventide de qué a estruturn é da ordem da observacto empirica, quando ela se situa além. ssa ignorénela de realidades escondides, ocasiona num e noulro, eon- clusdes opostas. Saussure parece negar n existéncla de uma estrutura, st ela n&o for imediatamente dada; Radctiffe-Brown o afirma, mas, vendo-a onde ela nao esté, cle retira @ nociio de estrutura sua forca e seu alcanee Em antropologia, como em Lngilistiea, sabemos hoje que o sincréniro pode ger tio inconselente quanto o diacronico, Neste sentido, a dieferenta ja Giminui entre os dois. Por outro lado, o Cours de iingulstique oénd’ate coloca relacées equivaléncia entre o fonttico, o dia , que formam o 24 dominio da fala: e entre o gramatical, o sine: dnieo, o coletive, que sio do deminio da lingua. Mas aprendemos em Marx que o dlactdnico podla estar Lambém no coletive ¢, em Fretld, qle o gramatical pCdia der-se no interior do individual. Nem os redatores do Cours, nem Radeclifie-Brown se apereeberam su- ficientemente que a histéria dos sistemas de signos engloba evolugées 1d- gieas, reportando-se a nivels de estruturacda diferentes, que é preci primetro, iselar, Se hi um_sistema consciente, este nfo pode resultar se- nfo de um tipo de “média dialética” entre yme multiplicidade de sistemas incenscientes, dos quels, a cada um concerne um aspecto ou um nivel de realidade social. Ora, esses sistemas nie coincidem nem em sun estrutura légica, emi em sua aderéncin histérica respectivns. Eles eatio como que difraiados sobre uma dimensdo temporal culja espestura d& A sincromia sun consisténeia; sem o que ela se dissolveria om uma easénela ténue e impalpavel, um fantasma da realidade, N&o avancariamos muito a0 sugerir que, na sua expressio oral, o en- sinamento de Saussure nio devia estar nulto afastado destas profundas observacées de Durkheim; publicadas em 1900 (p. 190). elas parecem es- eritas hoje: Ctilamente, o5 Fendmencs que conecrnem & estrutura tém alge de mais estavel que as fendm-nos tyneionais; mas, entre as dues ordens de fates, nfo hA senfo diferencas de grau, A estruture mesmo s€ eneontra no porvir... Ela s¢ forma e se descompoe incessantemente; ela é a vida chegada a um certo gran de con- solidacio: e distinguf-le da vida da quel ela deriva, ou da vide que ein determina, enulvale a dissociar cotsas inseparaveis, Na verdade, ¢ @ naturcza dos fates quc estudamos que nos incite « distinguir meles o que decorre da estrutura e o que péttence ao aconte- nento, Por mais importante que seja m persvectiva histérice, naa po- demos ailngicia senio na final: ands prolongadas pesquisas qu: — o medida da radinatividade eo estudo dos pélens o provam — nem rempre ‘sfo da nossa alenda. Porém, a diversidads das scciedades humanas ¢ o seu miimero -- ainda variog mitharcs no fim do século XIX — favem, com que elas Ts aparecam como que dispostas no presente.Nie seria neda surpreendente se, respondendo a esta solititagio do objeta, adow tassemos nm wiétodo que fosse mais de trensformagGes do que de fircdes. iste, efetivamente, uma relacio bem estrelta entre = nogio de transformacéo ea de estrutura, que ceupa um lugar téo grande em nos- uy ses travaihos. Radclitfe-Brown a intreduria na antropologia so-ta! piranda-se em idéins de Montesquieu e de Spencer; servia-se disto para designar a maneira durivel pela qual os individuos e os grupos esto li- gados mo inteslor do co:pa social. Para ele, portanto, a estrutura p: tence 4 ordem ca ela ¢ dada na observacho de carla socledec> par Yella. Bite p ie, certamente, de umg cera concepcio das ciéhicias naturals, porém, ela n&o seria mais accitdvel para um Cuyier. Nenhuma ciénela pode, hoje, considerar ns estruturas que lhe dizem respello eomo redutiveis a um arranjo qualquer de algumas partes. 6 é estruturado o arranjo que preencha cssns duas condigées: ser um sistema, regido por uma eoesdo interna; e esta coesio, inaccssivel & cbecrvagdo de ym sistema isolado, revelar-se no estudo das transfor- magoes, gragas & quals encontram-se propriedades similares em siste- mas aparentemente diferentes. Como eserevia Goethe: “Todas as formas ado semelbentes, ¢ nenhuma é igual Rs outras, De tal mode que sila barmenizecio conduz a uma lei escundida.” ‘Esta convergéncia de perspectivas clentificas @ muito reconfortante para as eléneins semiolégieas, de que faz parte a antropologia social, pols os signos e og simbolos no podem desempenhar seu papel senfio na mo~ did cm que pertengam a. sistemas regides por lels internas de implica- gho e de exelustio; e porque s caracteristiea de um sistema de signos 6 ser transformével, ou ainda, traducivel na linguagem de um outro sis« tema com a ajuda de substiiuigies. Que uma tal concepgio possa ter naseido na paleontolegia, incits a antropologia social a limentar-se de um sonho secreta; ela pertence as clénclas humanas, seu préprio nome © proclama; mas, 6¢ ela se resigna a farcr sci purgatério junta gs eién- eias socinis, é porque espera acordar entre as cléneiss naturals na hora do juizo final, ‘Tentemos mostrar, por meio de dois exemplos, como a antropologis social trabatha para jusilficar sey programa. Sabe-se da funefo exercids pela proilal¢e do incesto nas sociedades primitives. Ao projetar, se podemos dizer, as irmfs e as filhas para fora do grupo consangilineo, e ao atribuir-lhes meridos provenientes de outros Erupes, ela eslabelece entre esses grupos naturais la¢os do alianga, os primeiros pessiveis de serem classificados de sociais. A proibigio do ins cesto fundamenta, assim, a sociedade humana, e, em um sentido, ela é & Bociedade. Para justificar esta interpretacao, ndo se procedeu de mode indutlvo, Como teria sido possivel fazé-lo, em se tratando de fenémenos cuja cor= relacho € universal, mas entre og quails as diversas sociedades invenjam 26 tode uma gama de conexdes heteréclitas? Ainda mais que nao se trata aqui de fatos, mas de significagées. A pergunta qle nos faziamos era a do sentido da profbigfic do incesto (o que, no séewo XVI, seria cha- mado sey “espiriio”), e n#o a dos seus revtliddos, reais ou imaginarics. Ere mecessivio, pols, pata cuda nomenclatura de parenteseo e para as regras de easamenta correspondentes, estabelecer 0 S¢u cardter de sls- tema, E sso 26. era possivel & hase de um esforga suplementar, que con~ eistia em claborar o sistema estes sistemas e cm coloci-los, uns perante 3, numa relacéo de transformagso, Desde efitdo, o que nig era ainda senao uma imensn desordem se organizava sob a forma de gra- matica: enuneiado linpondo por todas as manelras concebiveis a instau- ragio e manutencao de um sistema de reciprocidade, Encontramo-nos neste ponto, E agora, coma doveremos proceder para responder A pergunta seguinte, que é a da universidade destas regras no conjunta das sociedades humanas, in¢luindo af as sociedades con+ temporaneas? Mesmo se nao definimos a prolbico do ineesto & ma- neira dog Australiancs ou dos Amorindios, ela existe tamhém entre nés, mas seria ainda com & mesina fungao? Seria possivel que a tivésscmos Acatado por motives muito diferentes, qual seja a deseoberta tardia das conseqiiéneias nocives de Unides consangiliness, Seria também: pos+ sivel — como o pensava Durkheim — que a instituigaa nfo desempe- nasse um papel positive entre nds, e que subsistlsse semente como um vestigio de ¢renyas obsdletas, fixadas no pensamento coletive, Ou nfo serla antes porque nossa sociedade, caso particular em um género mais vasto, dependo, como todas as outras, para sua coerénefa e existéncla até, de uma rede — tormada entre nés infinitnment inatével e com- plicada — de Mgacées entre familias consangitineas? Em caso aflrma- vo, € Hecessdrio admitir que a rede & homogénea em todas as suag partes, ou reconheerr-lhe tipos de cstruluras, diferentes conforme og melos, as regides; e variivels, em funcko das tradigdes histétlcas locals? Estes problemas sao essencials para a antropologia, pois a resposta que ihes for daca decidira sobre a matureza intima do falo soclal ¢ de seu grau de plausticldade, Ora, é Impossivel decidir com a ajuda de mé- todos tomades a Stuart MUU, Ndo pedomes fazer vatiarem os elos cample- wos que uma Sociedade contemporanea supbe — nos nlanos técnieo, econd- mico, profissional, politico, religiosa e biolégico —, interrompé-los e testabeleo}-loa @ vontade, na esperanca de descobrir og que sho indis+ pensavels & existéncia da socledade como tal, e os que poderiam ser eliminadios sem prejfuizo, 27 Mas poderiamos, entre os sistemas matrimoniais cuja fungo de re- eiprocidade esta melhor estabelecida, eseolher og mais complexos e 05 menos estaveis; poderiamos construir a partir deles, modelos em labo- ratério, para determinar come funcionariam se impllcassem em um nq- mero crescente de individuos; poderiamos também deformar nossos modelos, ma esperanca de obter modelos do mesmo tipo, porém mais complexas # mais instiveis ainda... © comparariamos os elelos de reel procidade obtidos desta forma com os mais simples aue fosse possivel observar in loeu, cm socledades contemporaneas, por exemplo, em regides caracterlvadas por grupos étniccs isolades de pequena dimensio. Por melo de passagens sucessivas do laboratério A observacio direta e desta ao laboratario, tentarlamos preencher progressivamente o vasio entre duas séries, uma conhecida, a outra descomhecida, intercalando uma série de formas intermedidrias. Finalmente, nada terfamos feifo a mdo scr ela- borar uma linguagem, clijos unlcos méritos seriam de ser coerente come toda Iinguagem, e de definir, por um pequeno numero de regras, fend- menos tides nor muito diferentes até ehtao, A falla de uma inacessivel verdade de fato, teriamos atingido uma verdade de razfo. © segundo exemplo s— relactona a problemas do mesmo tipo, abor- dadios em outro nivel: tratar-se-A sempre da proibicio do incesto, mas no mals sch sua forma regulamentar e sim como tema de reflexio mitica, Qs indios iroqueses e os Algonkin contam a histéria de uma jover txposta ds empress amorcsas de um visitante notwno, que ela acredita ser seu irmao. Tudo parece denunciar o culpado; arar(ncla fisica, roups, face arranhada depoem a favor da virtude da herdina, Formalmente sade por esta, o rméo revela que tem tn sdsia, ou mals precisamcnte um duplo: pois, entre eles, 0 elo é tie forte que todo acidente ocorride & um deles se Lransmite automaticamente ao outro: vestimenta rasgada, machueade no rosta,.. Pata conveheer sua itma inerédula, o jovem as sassina a seu duplo diante dela; mas, com isso, ele pronuncia sua prdpria rentencs de mu Hols que seus destinos estho Ugados. Com efeita, a mic da vitima quereri vingar seu filho, ora, trata-se de uma br . senhora wos meehos. S6 hd uma manetza de n la: que o irmA se una a seu irméo, fazendo-se passar cste pelo Wo 2 duplo que el¢ matou; o incesto 6 tio inconcebivel cue a velha senhors no podera desconfiar da fraude. Qs mochos n&o ge deitarao enganar ¢ denunciarae os culpados, que consepuirao, no cntanio, escapar, ~ Neste mito, 0 ouvinte ocidental reencontra faclimente um tema que: a lenda de Edipo fixou: as precaugGes tomadss para evitar a incesto o tornam, de fato, imelutavel; em ambos os casos, a surpresa resulta da identifieagio de personagens primelramiente apresentados como distintes. Serd uma simples coineldéncia — causes diferentes que explicam gue, aquie ali, os mesmos motives se encontrem arbitrariamente reunldos — ou 8 anslogin se deve @ rasdes mais prafundes? Ao cfetuar & apro- xlmacio, nao terermos deparado eom um fragmento de conjunto signi- ficativo? Se fosse necessirio responder afimattvamente, o invesic do mito itoqués entre irmio c irma constituiria uma permutaedo du incesto edi- Piano entre inde e filha. a conjuntura que torma o primeiro inevitayel — dupla personalidade go heréi mascullno — seria uma permutagio da dupla identldade de £dipo julgado mozto ¢, no enlanto, vivo, filho yon- denade e herdi triunfante, Para complementar a demonstraggo, serla hecessério deseobrir nes mitos americanos uma transformacio do epi- sddio da esfinge. que constitui o unico clemonto da lenda de Edipo que. falia. Gra, neste enso particular (por isso 0 escolhemos ao invés de outros), 4 prove serin verdadclramente crucial; como Boas o abseryou, ¢ fol o primeiro (1891, 1925), as charadas e os enlgmas sig, como os prov bies, wm género quase que inteiramente ausente entre os Indlos da Amé- riea do Norte, S¢ fossem encontrados enigmas junta & area seméntica do mito smericano, nfo seria por obra do acaso, mas slim a prova de uma necessidade, Em toda a America do Norte, 56 séo encontradas duas siluugdes "de enigmas” cuja origem ¢ Incontestavelmente indigena: entre os indlos Pueblo do sudoeste dios Estados Unidos, hA uma familia de bufdes cerl- fnoninis que propGem enigmas aos espectadores, @ que os mitos desere- vem como nastidos de um comérefo Incestucso; por outro lado, lembra- M-NOs que & feiticeira do mito anteriormente resumido, ¢ que smeaga 8 vide do herdi, € uma senhora dos moehos: ora, preelsamente entre os Algenkin, temt-se noticia de mites onde os machos, algtimas vezes o an- cestral dos mochos, propécm, sch pena de morte, enigmas ao herdl. Na América tambem, portanto, os enigmas apresentam um dyplo cardter edipisno: por melo do incesto, de um Jada; do outro, por intermédin do 29 mocho, no qual somos levados @ ver uma esfinge amerleana sob forma transpasta. Entre povos separades pela histéria, pela geografia, pela Mngua e pela cultura, a mesma correlaclo entre o enigma e o incesto parece, pois, existir, Para permitir comparacio, construamas um modelo do enigma, exprimindo o melhor possivel suas propriedades constantes nas diversas mitologlas, ¢ definamo-lo, sob este ponto de vista, como uma perguiia @ qual é posttlado que ndo haverd resposta. Sem considerar aqui todas as transformagGes possivels deste enunciado, contentemo-nes, ® titulo de experiénela, de inverter-lhe os termos, 0 que dard: wma res- posta pare a qual ndo houve pergunta. Eis, aparentemente, uma formula completamente desprovida de sen- tido, Entretanto, salta aos olhos que h4 mitos ou tragmentos de mitos, cujo impulso dramética 6 constituldo por esta estrutura, simétrica ¢ invorsa. da outra. © tempo setla eurto pare contar os excmplos ameri- ands, Limitar-me-el, pois a evocar a morte do Buda, tomada incvitd- vel porque um diseipulo omitiu fazer a pergunla esperada; e, mals perto de nds, og yelhos mitas reformulades da cielo do Graal, onde # acio € suspensa pela. timidcz do herdi em presenga do vaso migico, diante do quel ele nao ousa pergunlar “para que serve”. ‘Terfio estes mitos uma existénela Independente, ou serd necessério eousiderd-los, por sua vez, como uma espécle de um género mals vasto, do qual os mitos de tipo ediplano constituem somente uma outra espé- cie? Repetinds o procedimento precedente, vamos procurar sé, ¢ em que medida, os elementos caracteristiess de um grupo podem ser reduzidos & transformardes (no caso, invers6es) dos elementos caracteristicos do outro grupo. B é exatamente o que acontece: de um heréi que abusa do coméreia sexual, pois ele o compele até o intesto, passamés & um casto que dele se abstém; um personagem Sutil, que eonhece todas na respostas, dé lugar a um inocente, que nfo sabe nem ao menos fazer perguntas, Nas vatlantes americanss deste segundo tipa e no ciclo do Graal, o problema a cer resolvide € 0 do “gaste pays”, quer dizer, do vero revogado; ora, todos os mites americanos do ptimetro tipo, isto , “edi- piano”, se referem um inverno eterno que o heré! revoga quando te solve os enigmes, determinando desta forma a vinda do verdo. Simpli- ficande muito, Perceval aparece entio coma um Sdipo invertide: hipatese que no teriamos ausada considerar se tivesse havido necessidade de aproximar uma fonte regs de uma fonte céltiea, mas que se impoe num contexto morte-amerieano onde estfio presentes os dois tipos nas mesmas populacbes. 30 No enianto, nao chegamos ainda ao fim da demonstragio. Desde 0 momento em que se verifica que, no interior de um sistema seméntico, a castidade mantém com “a resposta sem pergunia” uma relagiio homd- Joga. & que mantém o coméreia incestucso com “a pergunta sem respes- ta”, deve-se também admitir que os dois enunciados de forma r¢cio- ploligica estio eles mesmus em relagio de homologia com os dois enunciados de forma gramatical. Entre # solucio do enigma e o incesto, ha wna relaeio, nfo externa e de favo, mes Interma ¢ de razio, e € por isso que civilizagGes t40 diferentes como as da antiguidade cldssica ¢ da funériga indigena podem, independentemente, ass0cia-las, Como o enigma resolvido, 0 Incesto aproxinie termos destinades @ permanecerem scpara- dos: o tilho sc une max; 0 irmao, & irmA, como jaz a resposta ao con- seguir, conira toda expecluliva, reunir-se d sua pergunta. Na lenda de Edipo, o casamento com Jocasta nfo se segue, pols, arbitrariamente & vitoria sobre a Estinge, Nao sd os mitos de tipo edl- Plano (Hara os quais trazemos assim uma definiedo precisa) assimilam sempre a descoberta do incesto & solucho de um enigme ylve personifi- cada pelo herdi, em planus e em linguagens diferentes, mas também seus diversos cpisddics se repetem; e eles formecem a mesma demons- traedo encontrada nos velhos mijos do Graal so forma inversa: a umiao audeclosa de pelayras mascaradas, ou de consangiliness disslmulades, gera 0 apodrecimento e a fermentacho, desencadeamento das forgas na- turnis — Icinbremo-nos da peste tebama —, da mesma forma que a impo- téncia em materia sexual (assim camo em estabeleter um didlogo pro- posta) faz exUnguir-se a Zecundidade animal e vegetal, Entre as duns nerspectivas que poderiam seduzir sua imaginagio, as de um verdo ou de um inverno igualmente eternos, mas que seriam, um desavergonhado até a corrupeie, 0 eutra pura até a esterilidade, o ho- mem deve decidir-se a prcferlr @ equilibrio ¢ a periodicldade da ritma sazonal. Este responde, na ordem natural, & mesma funcao desempe- nhbada no plano social pela troea de mulheres no casamento, pela troca fe palavras na conversack®, se as praticarmes, uma ¢ outra, com @ franca {ntengo de comunicar; isto é, sem astdela nem perversidade, @ sobretudo sem segundas intengées. Contentamo-nos em csbogar aqui aa grandes lintas de uma de- monstracig — que seri retonada mais detalhadamente num curso do 31 préximo ano? — para ilusirar este problema da Invaridncia, que a an- tropologia s0cial procura resolver em conjunciio com outias cléncias, maa que, nela, aparece como a forma moderna de uma pergunta que ela sempre sc fez: a da universalidude da natureza humana Sera que nao damcs as costas a esta naturezs humans, quand, para Wier nossa. invariantes, substit 03 gs dadog ga expeiiéncia por mix delos sobie us quais has chiregamos a operagoes trate, CORO O Bl- gebrisia com suas equagdes? Isto jd mos foi cemsurado nigumns vezes, Mas, além de ser & objecio de pouca sonta para o pratico — que sabe com que escrupulosa fidelidade @ realidade concreta ele paga a liber- dade que se concede, de sobrevoa-la por breves S-, cu gostaria de lembrar que, av procedet desta maneira, a antropologia social sa faz qelaner uma parte esquecida do pregtama que Durkheim ¢ Mauss the haviam tragado. No prefécio da segunda edi¢do das Kéegles ce la methode sociologi- que, Durkheim se defende contra a acusagéa de ter ecparade o coletivo do individual de modo ebusivo. Esta separac&o, segundo diz, ¢ neces- saria, mas cle ndo exclu que no fuluro se venha a conoubcr 2 possibilidade de ume psieclosia totalmen- te formal, que serd um tipo de terreno eommum A psicologia im- dividual e 4 soclologia... O que seria necessérlo, prosseue Durkheim — 6 procurar, pela comparaco de temias miticos, Jendas = (radicdes populares, linguas, de que manelra as repre- sentacdes s0ciais S¢ atraem e se exciyem, fundem-se umas nas outras ou se distinguem... Esta pesquisa, observa ele ao terminar, compete antes & loglea aobstrate. & curlaso notar quée présima Lévy-Brubl teria estado deste programa, se mio Livesse escalhido, primeiramente, relegar as representagocs mi- ticas & antechmara da Idgies, e se niio tivesse tornade ixremediavel & separago, 20 Tenunclar mais tarde @ nogiia de pensamento pré-léglco: mas somente, contd dizem os Ingleses, para jogar fora, com a dgua do banho, também © bee; megando 4 “mentalidade primitive” o cariter cognitive que Ihe cencedia no iniclo e lenganda-a no interior da afcli- vidade. Mals fiel & concepsio durkheimiana de uma “psicologla obscura subjacente & realidade social, Mauss orlenta o entropologia “para a pro- cura do que € comum aos homens... Os homens comumieam por sim- % Cf. nosso plane de ensino para 1960-1966, Annuaire du Collége de France 1961-1962, p. 200-203, 32 bolos... mas eles s6 podem ter esses simbolos, » comunicar por seu intermédio, porque Lém os mesmos instinins”. Ure tal concepyia, que & outra critica? Se o seu objetivo final, diréo alguns, 6 0 de atingir certas formas universais de pensamento e de moralidade (pols o Essat sur le dom termma cm conehusdes de moral), por que dar as sociedades cha- madas primitivas um volor privil.giado? Nfo se deveris, por hipdtese, chegar aos mesmos resultados paruindo ce uma sociedade qualauer? & @ ltimo problema que quero considerar anics de por um termo a uma aula ja longa, Isto & ainda mais nesessirip visto que, entre os etndlogas @ socidio- gos que me escutam, alguns, que celudam as secledades em transforma- cao rapide, contestaria, talvez, 2 coneepsio que parego impliciiamente faver das sociedades primitivas. Scus pretenses caracteres distintives, poderfo pensar, se limilam a uma ilusfo, efeito da ignordncia ecm que mos encontrames do que acontece verdadciramente; objctivamente, eles Ba correspondem & realidade. Certamente o cardter das investigacécs clnograficas se modifica, & medida que as pequenas tribos selvagens que estuldvamos autigamente desaparecem, fundindo-se em conjumtos mais vastos onde os problemas tendem o se assemelhar mos nosscs. Mas, s¢ ¢ Verdadeiro, como Mauss nos ensinou, que a etnologia € antes um modo original de conhecimento do que uma fonte de conhecimentos particulates, dedusitemds somente que, hoje, a etnolopia se da Ge cuas maneiras: no estado puto e no diluido, Procurar aprofundé-la jusiamente onde stu métudo se mistura & Oulres métodos, onde seu objeta se confunde com outros objetas, nic € proprio de uma atitude cientifica sadia. Esta cadelra sera, pois, con- Sagrada & etnologia pura, o que ndo signiiica que o seu ensino nig possa ser aplicade a outros fins, nem que ele se desinteressari das sociedades contemporaness que, etn determinados nivels e sob Certos aspectes, con- ecrnem dirclamente ao metodo etnolégico. Quais 840, entao, os motives da predilecio que experimentamos por estas socledades que, por alta de um termo melhor, denominamos pri- mitivas, embora cerlamente nfo a sejam? © puimeizo, confessemo-lo francamente, ¢ de ordem filoséfica. Como © escreveu Merleau-Ponty, “cada vez que o sccidlogo (mas ¢ no antro- polopo que ele pensa) retorna &s fontes vivas de seu saber, a0 que, nele, epera como meio de compreender as formarces culturais mais afasta- das de si proprio, ele faz espontineamente filosofla”, (199, p. 198). Com efeito, a pesquisa de campo, por onde comeca toda carreira etnoldgica, mbém é a nossa, nao se prestaria a uma 33 é mae e ama da divida, atitude filosdfica por excelineis, Esta “dovida ancropoldégica” nfo consiste unicamente em saber que de nada se sabe, mas, em expor resolutamente 0 qué S& Pensava saber, e sua propria ignorincia, aos insultos e acs desmentidos que sS0 iniligides as idéias e aos hiblios mais ceros, pelos que podem contradizé-lo em seu mals alto grau. Ae contrdrio da que a aparéncia sugere, ¢, pensamios, pelo sel método mais estritamente filoséfieo que @ etnologia se dislingue da £o- civlogia, O soeidlogo objetiviza, por medo de ser cnganado. O etnéloge néo sente esse medo, pois a sociedade longinqua que estuda nada repre- genta para ele; assim, cle nfo se condena, previamente, a extirpar-lhe todos og matiees ¢ todos os detalhes e até mesmo os valores — em uma palavra, tudo isso em que o observador de cus propria socledade corre @ risto de ver-se wnplicado. Ao cseclher um sujelto ¢ um objeto radicalmente dislanles um do outro, a antropologla corre entretanto um perlgo: que o conheciment® adquiride do objeto mio alinja as suas propriedsdes intrinsecas, mas. que se limite a exprimir a posicfio relativa e sempre camblante do su- jeito em relaco a ele. # muito possivel, efetivamente, que o pretenso conhecimenta etnologico seja condenado a ser tfio estranho e inadequado como 0 de um visttante exético em relacio & nossa propria soviedade, © Indio Kwakint! que Boas convidava as vezes para Nova ‘York, para servir-lhe de informante, mostrava-se indiferente an espetdculo dos ar- ranha-céus e das ruas trilhadas por automéveis. Ele reservava toda 6 sua curigsidade intelectual aos andes, aos gigantes e ds mutheres barba- das que eram entio exibidas em Times Square, aos distribuldores auto- méaticos de pratos feites, e as bolas de Intio que enfcitayam as cxtremi- dades dos carrimdes das escadas, Por rezées que nfo posso evocar aqui, tudo isso punha em causa sua propria cultura, € era ela, somente ela, que ele tentava recomhecer em certos aspectos da nossa. Ser& que & sua maneira, os elndlogos mAo cedem & mesma tentacto, quando se permitem, como o fazem tao freqlientemente, interpretar sob novos molmes os costumes e as instituigdes Indigenas, no intent incon- fessdvel de melhor enquadré-los eum as tedrias do momento? O proble- ma do Tolemismo, que muitos de nés consideram didfano e insubstan- cial, pesou durante anos sobre a reflexko etnoldgica, e compreendemos @gora que esta importancia era proveniente de um certo gosto do obscc= no @ do grojeseo que so como que ume doenga infantil da ciéncia r0- Uelesa: projecio negativa de um medo incontrolével do sagradio do qual © préprio observador n&o consegnin desvencilhar-se, Deate modo, a teo- Ta do tolemismo constitui-se “para nds", nfo “em si", ¢ nada garante 34 que, sob suas formas aiuais, ela n&o continue a proceder de uma Musio remelhante, ‘Os etnologes da minha geragdo pareeem perplexos diante da repul- SA que inspiravam a Fraser a pesquisas ds quais cle tinha consagrado sua Vida: “crénica tragica, escrevia ele, dos erros do homem:; loucuras, esforgos vos, tempo perdido, esperangas frustradas", Apenas estamos meas Surbresds de saber, pelos Carnets, como um Lévy-Bruhl conside- Tava os mites, que, segunde ele, "nfo tém mals sobre nés nenhuma agio,., narrativas.., estranhas, para née dizer absurdas c incomprcen- siveis... 6-nos neecssério um esforgo para nos interessarmos por eles...” Ccriamente, adquirimes um conhecimento direto das formas de vida e de pensamento exdtices, que faltaram aos nosscs precursores; mas tam- bém nao é verdade que o surresiismo — isto ¢, um desenvolvimento in- terno de nossa societace — transformou nossa sensibilidade, e que a ele devemos o fato de termos, ho seio de mossos estudos, deseoberto ou redescoberto um lirleme e uma probidade? Resistamos, pois, is sedugGes de um objetlvisme inecente, mas sem desconhecer que, por sua precaricdade mesma, nossa posi¢ho de obser- vador nos trag garantias Inesperadas de objetividads. # na medida em que as sociedades ditas primitivas estfio muito afastadss da nossa, que podemos nelas atingir estes “fates de funeionamenta geral", menciona- dos por Mauss, ¢ que tém mp vantagem de screm “mais universais™ e de possuirem “mais realidade”. Nestas socieriades —e cito ainda Mauss — “apreendem-se homens, grupos € comportamentes..., wéemi-s¢ os mes- mos movimentarem-se como em mecAnica, véem-se masses ¢ sistemas.” ‘Esta observacio pilvilegiads, porque distante, implica certamente em sertas diferencas de natureza cnire estas socledades e a nossa: @ astro- momin nio cxige unicamente que os corps eelestes estejam longinquos; @ também necessdrio que o tempa decdrta no mesmo ritmo, senfio a Ter- ta haveria ecssado de existir, muito antes de ter a astronomia naseido. Claro, as sociedades ditas primitives csifa na histéria, o seu passado 0 quanto o nossa, uma vez que ele remomta as orlgens da espécie. No decorrer de milémics, clas passaram por todo tipa de trans- formacées, atravessaram periados de crise e de presperldade; conheve- yam guerias, migracdes, aventura. Mas especlalizaram-se em sctorcs diferentes daqueles que escolhemos. Talvez tenham, de certo modo, per- 35 manecido préximas de condicdrs de vida muito antimas, 0 que no exelui que, sob outros aspestos, ac distanciem destas mais que nés. Inseridas no histéria, estas sociedades paretem ‘cr claborade ou re- tido uma sabedoria particular, que as ineila descsperadamente a revistir B qualquer modificacfio em sua csirutura, que permitiria a historia ir- romper em seu selo. As que tinham prescrvado melhor seus caraclercs distinuives, ainda recentemente, aparecem-nos com0 sotiedaccs inspira: Gas pela preocupacdo predominante de perseverar em seu ser. A mancira cone clas exploram: o meio garanye, ao mesmo tempo, um nivel de vida modesta e a protecio dus recurses maturais, Apesar de sua dh ersidade, 5 rogras de casamenta que aplicam apresentam, para os cemogiatos, um carater comum, qual s¢ja o de Limiter ao extres taxa de natalidade cm nivel comstante, Enfim, ums vida politica baseada fo consentimento, ¢ nfo admitindo oul:as decisdes sen&o as tomadas por unanimidade, parece ter sido concebida para excluir o Uso deste mo- tor da vida colcliva que utiliza os desvies diferenciais entre poder e opesicio, maioria e minorin, exploradores @ cxplorados. ee naner Em resumo, estas sociedades que s¢ poderia chamar de “frius”, por- gig © seu meio interno esta proxima do zero de temperatura histarica, distinguem-sc, por seu efetivo restrita ¢ por sen mode meefn.ce de fun~ cionamento, das socledades “quentes" aparceidas em diversos pontos do mundo apés a revolugda neolities, @ onde difercnciagGes entre castas © classes sfio solicitadas sem tréguas, como fonte de porvir e encrgia © alcance desta distineiio € sobretudo tedriee, pois nao ha prova- velmente nenhuma sociedade concreta que, cm sua totaldade ¢ em cada uma de suas partes, eorresponda exatamente A um oy outro tipo. BE, em outro sentido iambém, a distinc&o continua relativa, se é verdade, como 6 acreditamos, que a antropologia social obedece a uma cupla mo- tivasfio: retrospectiva, pols os gémeros de vida primitives estaic em vias de desapatecimento © é precisa nos apressarmos pare recolhermos suas Medes: e prospective, na medida em que, tomando conseléncia de uma evoluedia cujo ritmo se precipita, sentimo-nos desde ja os “primitlyos" de hossos blsnetos, € na medida em que procuramos provar nessa validate aproximando-nos dagueles que foram — © ainda so, por pouco tempo — tals como uma parle de nés persiste em permanccer. For outro lado, as sociedades a que chamel de “quentes” nfo pos- suem, tampouco, este enrdter, no absoluto. Quando, apds a Tevolucao 36 neoliticn, as grandes cidades-estados da bacla do Mediterraneo e do Extremo-Orlente impuseram @ escravidao, construiram um tlpo de socie- dade onde os desvios diferenciais entre os homens — alguns dominada- Tes; cultas, cominades — podlam ser ulilivadus para praduzir cultura, UNH Cito até eMLAo inceneebivel e insuspeitével, Com relecko a esta férmula, a revolngao mecdniea do séeulo XIX representa menos uma evelucdo orientada mo mesmo sentido, do que um esbo¢o itpuro de so- lugdo distinta: por Jonge tempo, ainda basenda mos mesmos abuscs e has mesmas injustigas, tomando ao mesmo tempo, possivel, a transfc- réncla 4 cultura desta fungdo din&mica que a reyolugao prote-histérica hevia reservada a sociedade, Se fosse esperada do antropdjogo — Deus nfo o permita — que pro- felizasse sobre o futuro da humanidade, certamente cle ndo o concebe- ria como uma prolongac3o cu uma wltranassagem das formas atuais, mas antes, pelo modelo de yma integracio, unificanda progressivamente Os caracteres prdprios das sociedades filas e quentes. Sua reflexfio reto- maria @ velo sonho cartesiano de colocar, como aulématos, as maquinas 8 servigo des homens; ela seguiria seu rastro ma filosofia social do sé- culo XVIIT e até em Seint-Simon; pois, ao anunciar a passagem “do Boverno dos homens a administiagdo das evisas", Saint-Simon anteci- Peva simultenenmente a distincdo antropoligice entre culture ¢ socieda- de, e esta convers8o cuja possibilidade os progressos da teoria. da infor~ macao e da cletromica nos fazem, pela menos, enlrever: de um tipo de civilizecto que inaugurou qutrora a evolucdo histérica, mas so prego de transformacsy des homens em maquinos, a uma civilizacho ideal que eonseguiria tanstormar as méquinas em homens, Entéo, tendo a cultura tecebido integralmente a tarefa de fabricar o progresso. a soc‘e- dace seria liberatia de ume maldilgio0 milenar, aue a obrigava a esera- virar os homens para que houvesse progresso. A partir dai, a histéria far-se-ia sozinha, e a sociedade, colocada fora e a¢ima da histéula, pe- Gerla, uma. vez mais, essumly esta estrutuva regular, cristalina e que as tals bem 5 sociedades primitivas nos cnéinam nao ser centiaditd:a a humanidade. Nesta persuectiva, meemo utépiea, a an- Creplesia social encouiraria 1 sua maior jUstificagis, pols as formes de Vida e de pensamento ror ela egtudadss mio teriam somente um in- teresse hislorieo © comparative: corresponde:iam a uma oportunidade Pelmanente de homem, pela qual a antropolegia soclal, sobretudo em nnlos mais negres, teria a amissio de velar. Esta guards vigilante, mesa cinela néo paderia monté-la — ¢ nem mesmo teria euncebide sua importincia ¢ dade — se, mas regides scivailes ol sens moni 37 recOnditas da (errs, homens néo houvessem resistido obstinadamenté & histéria, @ nfo tivessem permanecido como uma prova viva do que que- vemos salvar, Para coneluir esta aula, eu gostaria, com efeito, Sonhor Administra- dor, mous caros colegas, de lembrat, em algumas palavras, a emogao tao excepcional que um antropdlogo experimenta ao entrar Numa casa enja tradiodo, interrompida por quatro séculos, remonta eo reino de Fran- cisca I. Sobrettido se ele é americanista, muitos elos o ligam a esta épo- ca, qué fol aquela cm que a Europa recebeu a revelagig do Novo Mundo © se abriu ao conhecimento etmografieo, Ele gostarla de ter vivido nela; que digo?, ele vive nela, todos os dias, em pensamento. E porque, muito singularmente, 08 indics do Brasil, onde empreend! minhas primeiras jutas, poderlam ter adotado como lema “eu manterei", ocorre que o seu estudo presenta uma dupla qualidade: aquela de Usia Viagem em terra longinqua, e aquela — mois misteriosa ainda — de uma explorncio do pascado. Mas, Lambém por esse motivo — e lembrando-nas que a missfio do Colléga de France fol sempre 9 de ensinar a citncia que se forma — a tentagio de ume queixa aflora em nés. Por que esta cadeira fol crinda tho tarde? Como 6 possivel que a etnografia nfo tenha recebido o seu lugar quando ainda cra jovem, ¢ 08 fates guardavam sua riqueza e seu frescor? Pois om 1558 é que se gostarla de imagind-la estabclecida, quando Jean de Léry, voltando do Brasil, tedigia sua primeira ob:a ¢ quando apareciam Tes Singularites de la France Antarcligue de André Thervet. Certamente, a antropologia social serla mais respeitavel e melhor garantida, se 0 reconhecimento oficial Ihe tlvesso chegado ma momento em. que ela comecava a esbocar os seus projetes, No entanto, mesmo gupondo que tudo tivesse acontectdo deste medo, ela néo seria o que é hoje: umm pesquisa inquicta ¢ fervorosa, que importuna o imvcstigador com Interrogacées morais tanta quanto clentifieas, Era, talvez, da na- tureza da nossa cléneia que Cla apareresse simultancamente come um esforeo para preencher um atraso, © como uma meditacho sobre uma defosagem & qual algtns de seus tragos fundamentals devem ser etr- butdos. 38 Se a soviedade esti na antropologia, a smtropologia, ela propria, esta na socledade: pols a antropolesia péde ampliar progressivamente seu objeto de estudo, até abarcar nele a {otalldade das sociedades humanas; entretanto, ela surgiu num periodo tardip de sua histérin, ¢ num peque- no sctor da terra habitada, E mais ainda, as circumstincias de seu apa- recimenta tém um sentide, somente comprecnsivel quando recolovado no quadro de um desenvolvimento social ¢ econémico particwar: adiyi- nha-se entio que elas sio acompanhadas de uma tomada de conscién- cla — quase um remorso — do fato de ter a humanidade podide, du- yante tanto tempo, permanecer aliemada de si mcama; e¢, sobretudo, do fato de que esta fropdo da humanidade, que produziu a antropologia, seja a mesma que fez, de tantes outros homens, um objeto de execracdo ede desprezo, Seqiiela do colonialismo, diz-se, As vexes, de nossas inves- tigepdes. As duss coisns esiGo cortamente ligadas, mas nada sctia mais falso do que tomar a antropologia como 9 ultima avatar do espirito co- Jonial: uma ideologia vergonhosa, que ihe ofereceria uma possibilidade de sobrevivéncia, © que chamamos de Renascenga foi, para o colonialismo e para a antropologia, um verdadelra nascimento, Entre wm e outro, defrentaqos desde a sua orgem eomum, um didloga equivoce se cslabeleeey por gua- tro séculds, Se a colonialismo n@o tivesse cx!stido, o impulse da antro= nia terin sido menos tardio; mes, talrer, também a antropologia nfo ¢ sido incitada, como ee tornou o seu papel, a questioner o homemt integralmente em eada um de seus exemples particulares. Nossa elénc'a chegou & maturidade no dia em que o homem oeidemta! comecou a com- preender que nda sc compreenderia jamais, enquante na face da terra, uma tniea rara ou um unico povo fosse tratado por cle como um objeto Fomente entio, a antropologia pdde afirmar-se pela que é uma em- hreéa, gue renova e expla a Renescenca, para estender a humonismo & medida da humanidade. Permitireis, portanto, meus caros colegas, que, ands ter prestado ho- menagem avs mestres da sntrepologia social no initio de nossa aula, Minhas iltimas palavras sejam para estes selvagens, cuja tenacidads obsrura mos oferece ainda o melo de conferir ads fatos humanos suas verdadeiras dimenstes; homens ¢ mulheres que, neste exato momento, & mitharcs de quilémetros daqui, em alguna savana deseeslada pelo foga de mato ou numa floresta imundada de chuva, retormam ao acam- pamento para dividir uma parca ragdo ¢ evocar juntos os seus deuses; estes Indias dos trérices ¢ seus scmelhantes pelo mundo que me ensi- naram seu pobre saber onde eabe, entrelanto, o essential dos conhecl- 39 mentos que me enearregastes de transmisilr a outros; em breve, infe- Jicmente, destinadas & exlingdo, pelo choque das doengas € dos medos de Vida — pata cles, mais horriveis ainda — que ines tiagomos; © pe- rante os quais contre’ uma divida da qual hao estaria liberado, mesmo ze, no lugar cm que me colucasivs, pudesse justificar o Carmha que eles te inspiram e © recombecimento que Ihes dedice, ao continuar & mas- tear-ne tal como fui entre eles, ¢ tal como, entre vos, ndo quero deixar de ser; sey aluno, ¢ sua testemunha. Tradueao de SONA W CAPITULO IL JEAN-JACQUES ROUSSEAU, FUNDADOR DAS CIENCIAS DO HOMEM * © convite © um vinéloso para esa comemoragho, nfo the faz so- mente honra insigne, razio que o torna pesscalmente reconhecidu: per mite também a uma jovem ciénela render homenagem ao genie de um omen dy qual se teria medido acredita: 14 incluir a literalusa, » poesia, a filasofia, a histéria, y moral, a cién- cia politica, 4 pedagogia, a Hneilistioa, a muisien, » botanica — e eu iain além ~-, bastasse para gloridicd-lo em tovios os aspectus, B que Ronsicau nfo foi somente um observader penetrenle de vide camnesire, Xu er rpaixonado dus livros de viagem. um anelisce atcnco dos cos tumes ¢ das crengas exdilcas: sem recelo de ser desmentido, pode-se afirmar que ¢le havia concebido, querida e anunciado 4 elnvlogia um século intelro antes que ela fizesse a sua aparicéia, colocando-a, de pron- to, cnire as ciéneias naturais e humanas ja constituidas. Ele teria mos- mo adivinhado de que forma prdlica — gragss ao mecenato individual ou coletivo — ser-lhe-la permitido dar os primeiros passos. Esta profecla, que €, ao mesmo Lempo, uma drlesa e um programa, ccupa Uta Jonga note do Discours sur Vorigine de linégallié3, de que = Ie fade tm Genebio a 98 de jumbo d> 1962 por ocasida ‘a elo 250° aniversitio to nagcimenta de Jean-Jacques ROuMcHt, O texte aparcecu primeizo ea: Jean-Jacques Rousseau, pu blicad> pels Universidade aperaria e a Faculdads « a sidude de Genevrs, Neuchatel, La 1 1 Disewrso sobre @ origemt da desigw 41 passarei a cliar alguns trechos, apenas pare justifiear a presenga de minh disciplinn A ceriménia de hoje: Tenho dificuldade de conceber, escrevia Rousseau, come num século onde as pessoas sé Yangloriam de conheclmentos gran- Gloses, nao exixlom dois homens, wm quo sSacrifiqle viate mi cseudes de seus bens, outro, dez anos de sua vida pala uma célebre Viagem de volta ao mundo, com a finalidade de estudar nao £0 petiras @ plantas, mas pelo menos uma ver, es homens © os costume: # exclamava mais adiante: Toda a lsrta estd coberta de nagdes, mas sd thes conhecomos os Tomes, e nus atrevemos # jugar o géncro Lumano! Supo- hkames um Montesquieu, wa Buffon, um Diderat, um Con- ciilag, ou homens dessa tempera, viaismdo para instruir seus cumpatriotes, observando e descrevenda, como eles o sabem, a Turquis, 0 Egit, 05 Bérheres, o Tmpério de Martacos, a Gu né, 0 pais des Caires, 0 iuterior da Attica e suas costas orien- tals, o§ Malsbaves, us Mongdis, as tanrcens de Ganges, 0° reinos Ge Siko, de Pezu e do Birmania, a China, « Tartéria, € sobrelude 0 Japio; depois, no outro’ hemisfé.io, o México, ¢ Peru, o Chile. as itrras de Mégalhes, sem esqueecr cs Pa- tagonlos verdadeires oy falses, o Tueuma, o Patagual, se pos- nicl o Brasil, cniim as Caraibas, a Fldriia e loaas as Texiocs sclvagens. Seria o viagem mats importante de todas, e a fa- Zer-s= com O Maxime de euidado, Suponhames que estes novos Hercules, de retorno dessas viagens memordvels, estrevessem, gum presse, a histérla netural, moral politica do que viram: um mundo nove surgi:a, entio, de sum pena, e assim apren- mos a conhecer @ nosso... (D&eours ‘sur Torigine de jailté, nota 10), Nao seré a clnologia eomtemperanmca, seu programa ¢ seus métodos, que atabamos de tragar aqul? NAo so os nomes ilustres eijados por Rousseau os mesmos que os eindgrafos de hoje tomain para modelos, sem pretender iguald-los, mas convencidos de que somente seguindo-lhes © exemplo poderdo cenferir a sua cléncia um respeita que Ihe fot, du- rante muito tempo, regatendo? Rousseau nfio se limitow a prever a etnologia; ele a fundou, Tnicial~ monte de modo pratien, eserevendo este Discourg sur [origine et les jondements de Tinégalité parm! ies hommes:. Nele se pode ver 0 pri- miciro tratada de etnologis geral, onde s¢ coloca 0 problema das relaghes outre a matureza e a cullure. No plana tedrico, distinguinds, com uma 2 Discurso gobre a origert e os fundamentos da desiguaidade entre o% homens. (N.T.). 42 Clareza e umn coneisia admiriveis, 0 objeto proprio do etndélogo doa ojetos do moralista e do historiador: Quanda se quer estudar os homens, & preciso oliar perto de si; mas para estudar o Lomem, é preciso aprender a ditleir para longe o clhar; para deseobrir as propriedaues, @ preciso primeira obscrvar as diferencas, (Zssai sur Porigine des langues, cap. VID. Esta regra metédica que Rousseau fixa para a etnologia e que lhe marca o ndvento, permite também superar o que & primeira vista, pare- ceria wm duple paradoxo: em primeira Iugar, ane Rousseau tenha po- dido, simultancamente, preconizar o estudo dos homcas mais. distantes, mas que s¢ tenha dedicado sobretudo oo deste homem particular que Pareee o mais préxima, isto ¢, ele mesmo; em segundo lugar, que, em toda 8 sua gbra, a vontade sistematica de identificagao com o outro caminhe lado a lado como uma reeysa obstinadn da identificacsio eonsigo mesma, Porque toda carreira de ctndlogo deve, em um momento ow outro, superar estas duas contradicées aparentes, que se resolvem numa imica impliengiio reciproca, A divida do ctndlogo aumenta porque Rouse seau ndo 96 slivou com procisio extrema, na quadro dos conheckmentas humanos, uma ciéncin ainda por -nascer, mas com sua obra, pela tem peramento e carter nela expresses, ¢ por cada particularidade, por sua Dessoa € por sey ser, prernrou tambem para o eindloga a canfarto fra- ternal de uma imagem ma quel este s¢ reeanhece, Uma imagem que o ajuda a comprcender-se melhor, nfo come pura Intelizéncia contempla- tiva, mas como agente inveluntario de uma transformacio operada atra- vés dele. © esta transformagao que toda a humanidade aprende a sen- tir em Jean-Jacques Rousseau, Cada vez que raid em seu campo de acdo, © cladlago vé-se aban‘lo- nado & ul mundo onde tude the é estrangeira, freqiientemente hast 0 tem sendo este cu, do quel dispéo ainda, para permitir-lne sobre- er € fazer sua pesquisa; mas um eu fisica ¢ moralmente abatido pela indige, e fome, o desconforto, o choque com os habitos adquiridos, o ‘urgimenta de preconeceitos dos quais nem scquer sufpeitava: e que s¢ descobre a si mesma, nesta conjuntura estranha, paralitico e estropiado Por tora ns diflculdades de uma histdria pessoal responsdvcl, de said, ‘or sua voeacSo, mas que, elém do mais, afetatd seu curso, dal para diantc. Na experiéncia etnografica, por cons¢fuinte, o observador eola+ ® Ensaio sobre a origem das ittquas. (N.TA 43, caese como $€u PrOptio instrumento de cbservagdo. Evidentemente, pre= cisa aprender a conhecer-se, a obter de um si-mesmo. que se revel cume aiiro ao ex que o ullliza, uma avaliagde que se lornard parte ine tegrante da obstrvagao de outras individualicades. Cada cazicira etno- eu fundamento nas “confissdes", escritas ou inconiecsadas. se podemos compreender melhor esta experléncia através da- Rousseau, ista nas se deve ao fato de que set jempeiamento, sua mustéria particular, as cireunstanclss, colocaram-no espontaneamentle em uma siiuagda cujo caraler cimogratico aparece claramentc? Situacio da qual ele tira logo conelusées pessoais: “El-los, portanto", diz de seus comtemporiineos, “estrangeirds, descomhecidos, nulos, afinal, para mim, pois eles o quiserum! Mas eu, destacudy deles ¢ de tudo, que sou eu? Eis o que me resta descobrir" (Primeiza promenede +}. E 0 clnégzato po- devia, parafroseande Rousscau, exclamar, obselvando pela primeira vez og gelvagens que escolhen para sua pesquisa: “El-los, portanto, estran- geires, desconhecidos, nulvg, aliuel, para mim, pois eu o quis! E ew Gestacado Geles ¢ de tudo, que sou eu? His u que me é mecessario desco- bri: primeira”. Borque para conseguir aceitar-se mos eutros, objetivo que o ctndlego consigna ac cenhecimento do homem, € necessiilo, primeira, recusar-se m si mesmo, Bo Rousseau gue se deve a desooberta deste principio, o iio sobre © qual podem fundar-se as ciéuclas humanas, mas que deyeria permane- cer inacessivel y Incompreensivei enuuanlo reinasse uma filusotla que, tendo scu ponto de partida no Cogito, era prislonelia das pretendidas evidéncias do cu, e 86 podia asplrar a fundar uma fisica, tuiunciando @ fundar uma socivlosia © mesmo uma biologia: Descartes avredita Ias- Bar diretamente da interioridade de um homem 4 extcriordade do mun- do, sem ver que enlre esses dois extremos se colocam sociedlaes, clvll- gages, isto 6, mundos de homens. Rousseau qe, 10 cioqlentemente fala de si mesmo em terceirm pessoa, (as veres, chegando mesmo a des- dobré-la como nos Diglogues), anteeipando assim a iérmula famosa: “eu @ um outro” (que a experiéncis clnografica deve averiguat, antes de proceder & demonstrario que lie compete de que o outro é um eu), afirma-se o grande inventor desta ubjetivagéo radical, ao deinir sua fi- malidade que é, indica ele ma primeira promenade, “le dar-me conla das 4 Beeferimos Taanter 2 paisvre francesa por tratar-ce de refevénc: conhecido texla rousseauniane das Promenades (iteralmonts, poss w.T.) 44 cagbes de minha alma e de suns suicéssOrs". © prossegue: “Fact 1 de slgum modo, as operapées que fazem cs fisieas com o ar Pala, conhecer-Ihe © estada diario", © qua Rousseau exprime, por con- seguinte, € — verdade sutpreendente, se bem que a psicologin @ a efno- fogia tenham-na tornado mais familiar para nés — que existe um “ele” ue se pensa em mim, ¢ que me faz primelro duvidar de que sou eu quem pense. Ag “gue sei?” de Montatene (que deu origem a tudo), Dose fartes acreditava poder responder: set que sou porque wenso; ao que Rousseau replies com um “que sou?” de soluglo ineerta, pols este questie sapée gue uma outra, mais essencist, ge tenia resolvido: “sou?": quando # expcriéneia intimn fornece apenas este “ele”, que Rousseau deseabriu © cuja exploragho lucidamenle emprecndeu. N&O nos enganemes: nem mesmo 2 inten¢io conciliante do ¥ fabiano consegue oissimular que, para Rousseau, a nog de identidade Poisoal € adquirida por inferénela ¢ permanece tmarcada pela ambigii- Gade: Exisho.., cis a Wertiatie oi ine atinge eh gual seu joredio a aguiescer tsublinhada nist Tenho um sonii- mento prapria de miltiha existéueia. ou ndo a sinto senao atra- Wis tle minhss sensagies? Eis minha primeira divida, qe 6, quanto go presente, Impossivel ce resolver. Mas € no cnsinanienia propriamente antropolégicn de Roussean — o do Diseours sur Povigine de finégalité —~ que se descobre 9 Zundamento dosia duvida, que reside numa concepgio do homem que cologa o outro entes de eu, ¢ uma conerpeRo da humanidade que, antes dos homens, sfirma a vida. 56 @ possivel acreditar que, com @ aparieo da socledade, ee produ- ziu ume (iplice passigem — da natureya a cultura. do sentimento ao sonhecimento, da snimalldade & humanidade: demonsiraria que cons- tui o objeto do Discours —, atribuindo-se ao homem, desde a sua con- dieéo mais primitiva, uma faculdade essenctal que o impele a ven“er esses trés obstaculos. Em conscgiiéneia, vma feculdade quo pesmi, o:- ginel e Imediatamente, airfbutos contradicérics, allés precisamente nola: que scja, a0 nicsmo tempo, natural e cultural, afetiva e recional, animat © humana; ¢ que, somente sob @ condigéa de tornar-se consciente, porsa tmudar de um para outro plano. Hsta faculdade, Rousseau nfio cessou de repeti-lo. 6 a pledade, pro- veniente da identificagic com um outro que nfo 2, 56, um parente, um 45 proxiino, um compatriova, mas um homem qualquer, u partir do fato imesmo de que é homem; mais ainda: um ser vivo qualquer, a partir do fato mesmo de que esta vive, O homem comeea portante a experl- mentar-se idéntico a todos os seus semelhantes; cle nao esqueceré jamais esta experiénela primitiva, nem mesmo quando a expansao demogrifica (que cestmpenta, no pensamento antropolégico de Rousseau, o papel de Agontecimento contingente, que teria podido no se produair, mas que devomos sdmitir que se produziu, pois a seciedade €*) © tiver forcada a diversificar seus géneros de vida para adaptar-se acs meins diferentes, onde seu némero aumentado o obrigue s espalhar-se ¢ a saber distin- gulr-se A oi mesmo, mas, somente & medida que uma pendsa aprendiza- gem o iustrua a dislinguir os outros: os animais segundo a espécié, & hwumanidade da animaildade, meu eu dos outros cu. A identificagio, que consiste ma atreensfio global dos homens ¢ dos animais como seres sef- siveis, precede a conscifnela das oposieges: primeiro entre as proprie- dares comms; @ em seguida, apenas entre humang ¢ nfo human. € exatemente o fim do Cogito que Rousseau proclama, assim, ante— cipando esta solugdo audaciose. Porque até entao, tr -2@ sobretuda de cclocar o homem fora de quesldo, isto é, de assegurarse, com o hu- manistuo, uma “dranscendance de repll"®, Rousseau pote permanecer teista, pols esta era a menor exigéncia de sun educaeo ¢ de seu tempo: meas cle arruima definitivamente @ tentative, recolocande @ homem em aquestiio. Se esta interprctagho é exata, se, através da antropologia, Roussea revoluciona Lio radicalmente quanto acreditamos a trniigo filoséfice, podemas eampreender mejhor a unidade profunda de uma obra de for- mas multiplas, eo lugar verdadeiramente esseelal de preocupnedes, pare ele {dy imperiosas, se bem que fossem, & primeira vista, estranhas ao trabalho do filésofa e do escritor: quero dizer a Ungilistica, a miisicm, ¢ a botanica. ‘Tal como Rousseau a descreve no Essai sttr Vorigine des langues, a marcha da linguagem reproduz, & sua mancira ¢ no scu plano, a da humanidade. O primeiro estagio ¢ o da identificache, aqui entre o sen- 3 O grifo é meu, (NT). + ~Transeendincia de refigio", literalmente, A exprecsdo “de repli” de- signaria aQUL Umg manobra ‘do , ¢ das Réveries. Sobretudo que néo se veja nisto o resultado de uma vontade timide, alegando uma busca da sabedorla come pretexto para sua demissio. 08 contempotanens de Rousseall nfo se cnganaram a ests Tespelto, © menos ainda seus sucessores: uns, percebendo que este pensamento altiv, ests existencia solitaia © sofrida, irradiavam uma tal forca subyersiva que nenhuma sociedade The tera ainds experimentado o poder; outros, fa- zendo deste pensamento, e do excinplo desta vida, as alavamess que per- militiam abalar a moral. o direito. a sociedade Mas € hoje, para nés gue sentimos— como Rousseau o predizia a eeu leltor —- “o pavor dequeles que terfio a infelicidade de viver depols de 11” (Diveours), que seu pensaiacnto toma uma seprema emplitude ¢ que cle adqulze tode a sua grandeza. Nesle mundo mals crucl para © home, talvez, do que jamais fol; onde proliferam todos os procedimentos de exterminaggo, 08 massacres ¢ a torium, jamais negaos sem duivida, mas dos quais nés nos comprazinmos em sereditar que j& néo tinham Lmpor- tancia, simplesmente porque se os reservava a populacées distantes que ce gupottavam em nosso provelto, segundo st pretondia, e cm toda o caso, em nosso nome; agora que — proxima pelo efeila de uma pepu- lagéo mats densa que encuirta o wmiverso e nao defya nenhuma porcio * Contrafo social, (N.T.), ae Castas sobre Boldnics. (N.T). 48 de humanidade ao sbrigo de uma abieta viclénein — pesa eobre cada um de nos @ angietla de viver cm seciedade; é agora, digo, que expondo as teras de wm humanismo decididamente incapaz de funder no homem © exercicio da virlude, @ pensamenta de Romsseay pode ajudar-nos o rejellar uma flusdo da qual, infelizmente somos capazes de observar em nds e sobre nos mesmes os funcstas efeitos, Pols, nfo fol o mite da dig- nidade exclusiva da natureza humana, que infligiu a prépria natures uma primeira mutilagio, a partly da qual deveriam, inevitavelmonte, sa- guir-se outras? Comegou-se por serarar o homem Ga naturezs, @ por furor com que ele constituisse um relno sokerano; acreditou-se assim encobrir seu ca- réiter mas irrecusdvel, a saber, que ele ¢, pimeiro, um ser vive. By pore maneeedo-se cego para esta propriedade comum, deu-se total lberda- de a todos os abusos. Nunca melhor que ao termo dos quatro Wliimos séeulos de sua hisiérla, o homem ccidental péde compreender senao arroganda-se 0 direito de sepauar radicalmente a humantdade da antmall- dade. Concedendo a uma tudo o que retirawa da ontra, ele abria um ciclo maldito, cuja propria ironiciva, esnstantemente reewada, servirta pare desvlay os homens dos outres homens, e paia reivindicar, em pro- ‘veito de minorias sempre mais restritas, o privitégio de um humanisma, corremplda logo ao mascer, por ter buseado mo amor-prdpria sey pringi- plo € sun no¢éo. Somente Rousseau soube insurgiz-se contra este agoismo: cle que, ha nota ao Discuure Ja ellada, preferia admitir que os grandes mavacos dn Afrien o da, Asin, mal deseritos pelos viajantes, feasem homens de uma yaca Gesconhecida, antes de er Q risco de ¢ estar @ natureza humana em sees que poderiam possui-la, Eo primeiro erro teria sido menos grave, de fato, pols o respelio peta outro conhece apenas um fun- damento natural, ao abrige da reflexGo e de seus sofismas, parqie é an- terior a ela. Fundamento este, que Rousseau perecbe, no homem, como “uma repugnincia inata por ver sofrer um semelhante” (Dtseowrs) ; mas chja descaberta ohriga @ ver um semelhante em todo sér exposto ad 82- frimenta e posswidor, pur isso, de wm direito impreteritivel & comisera~ cao. Porque, para cada. wn de nfs, © tinica esperanga de mio ser tratade como besa 43, por seus cemelhantes, é de que todos os sells cemethantes, e ele o primeizo, se sintam imediatmmente como seres que sofrem e cul- tirem, cm seu foro inlimo, esta eptidae para a piedade que, mo estado i: O grifo é meu. Acentua a slgnifieago original da pslavra: “fera”. (WT). 49 natural, ocupa 6 Igar de “lels, costumes ¢ de virtude", © sem o exerciclo da qual comegamos a compreender que, no estado de sociedade, nfo pode haver nem Jei, nem enstumes, nem virtude. Longe de oferecer-se ao homem como refigio nostalgico, a identifi- eacfia com todas as formas de vida, eomcgando pelas mais humildes. propde, portanto, & humanidade de hoje, pela voz de Rousseau, o prin- ofplo de toda sabcdoria c de toda agfio coletivas; o (nico que, num munds em que 8 superpopulagio torna mais difieil, porém muito mais necessdzlo © respelto reciproco, poder permitir que os homens ylvam Junlos ¢ construam um porvir harmonioso. Talvez este ensinamento jé esteja eontide mas grandes rellgijes do Extremo-Orlente. Mas frente a uma tradig&o ovidental que acreditou, desde a antigitidade, que se poderia jJogar em dols campos a0 mesmo tempo, e escamotear a cvidénela de que co homem é um ser vivo e sofredor, semelhant: « tudes os outros seres antes de distinguir-se deles por crirérios suberdinadas, quem nos ensinou fs|o, sengo Rousseau? “Tenho uma violenia aversde", escreve ele ma quarta carta ao Sr. de Malesherbes, “por estados que dominam ‘outros, Odeio os Grandes, odeio seu estado”, Esta declaragao nie se apli- ea primeiro ao homem, que pretendeu Gominar os outras scres e wodar de wm estado & parte, deixanda assim o campo livre acs menos dignos dos homens, para se prevalecerem do mesmo privilégro contra outros ho- mens ¢ torceretm, cm provelto propria, um ractocitilo tio exo:bitante nes- ta forma particular quanto o era, j4, em sua forma geral? Numa socle- dade civilizada n&do poderia haver deseulpa para o tinico crime yerdadel- xamente inexpidvel do homem, e que consiste em acreditar-se p nentemente ou temporarlamente superior ¢ em tratar homens como obje- tos: seja em nome da raga, da cultura, da conquists, da mi au do simples uso de um expediente. ‘Tem-se conhecimento na vida de Rousseau, de wn minute —- um se- gunda, talves — clija significacko, a despelto de sua Grevidede, comanda, aos seus olhos, todo o resto. Talvez por isso, no creptsculo de sua exis- téneia, esteja por ele profundamente obsedade; ¢ sc alongue ma sua des- crigéo sua Ultima obra e ao acaso de seus passelos, retorne a ele cons- tantemente. E que é esse minuto, partanto, senéo uma banal volta a st depois de uma queda e um desmaio? Mas o sentimento de existir é “pre~ closo” entre todos os demais por ser sem divide tio raro e Lio con- teslavel: ma= Farecla-me que preenchie com minha ténue existéncia todor os objetos que percebia,., nfia tinha nenhuma nogao precisa de minka pessoa individual... sentia em tude o men seo uma 50 calm extesiante, & qual, cada vex aie a recordo, nfo encon- tro nada comparavel em qualquer dos préatres comhecidos. Este eéiclye texto da segunde promenade encontra ceo nume passage da sélima que, ad mesmo tempo, explica sua raze de ser: “into Extases, anowhos inexprimivels eo fundirane, por sscim dizer, no sistemn do se- res, a0 identifiear-me eom a natureza Inteira”. Fat identificuefio primitlya, cuje nossibitdade € negeda ao homem pelo estado de sociedade, e que, esquecido de sua virtude casencipl, 0 ho- mem Ja néo chega a scnilz, sen’o de mani fortulta e por obra de ¢ir- cunstincias inrisdrias. leva-nos ao coracho mesmo da obra de Rousscau. # se Ihe concedemos um lugar 4 parte entre as erandes produgdes do génio humano, é porque sei autor n&o s6 descobrin, com a identiflezegia, o ver- dadeciro principle das ci¢nclas humanas e o dnico Jundamento possivel da moral; com sua obra, ee nes restitufu tambem © ardor 2A dois eéculos @ ra sempre fervente neste cadinho onde sc unem seres que 0 amor-pré- prio. dos paliticcs ¢ dos illésafus se empenha, por toda @ parte, em tor- incompativeis: 9 eu e 9 cutro, minha sociedade e as outras sociedades, A natureza ¢ a cullufa, © sensivel ¢ a rational, @ humanidade ¢ a vida. Tradugia de Tanta Jaromi 51 CAPITULO I O QUE A ETNOLOGIA DEVE A DURKHEIM * Ao eserever “les Régles", Durkhelm desconfin da ctnologla, Fle opds “as observaciics confuses e rapides dos viajamics gos textos preciscs da historia”; como fiel discipulo de Fustel de Coulanges, € com cela iidma que ele conta pata dar & soviologia uma hase experimental, © sucidlogo, esereyo ainda Durkheim, deveré tomar como materia principal de sues inducdes ns so- eledadcs cujas crcneas, tradicoes, costumes, dirclua tomaram for= ma cm monumenios estritos ¢ auténticos. Certamente ele nao negligenciard as {nformacoes da etnografia (nfo ha fatos que possam ser desdenhades peln posquisador), mas as eclorara em seu verdadeiro lugar. Ao Invés de favcr das mermias o centro de gravidade de suas pesquisns, cle as ulillzarg somente come com- Pletnenta daguelas que deve 4 histéria oy, nelg menos, cle s¢ esiorgart, por confirméa-las através desiag wlilmas1 * Annaies de [Université de Paris, n? 1, 1960, p. 45-80. A colehragio do centenrio de Emile Durgheim teve Iusar, com dats anos de atvaso, em 20 de junho cle 1860 to grande anfiteaito da Sorbonne, por inl- Giativa da Thiversidaie de Paris. Eu nao pude lé estar senfio como espectador, imnda p Gr. Georges Gurvitch, entie professor na Sor- bonne, vetado 2 minha narticinncfio. Q texta que se segue me fal pedide pelo Gecano Sr, Gedrges Davy para anarese- ands as alocucS-s éfetivamente pronunciadas, Renovo-lhe meus agradecimentos por ter- me permitida fumiar a minha homenagem ds presiadas ao fimdader da. cscols rerio franccsa, em memfria de auem na meena ana do centenaro, eu havin dediearia meu livro Antropologia Estrutural, a DURKHEIM, E, Les Régtes de la méthode sociologique. 13" ed, 1998. p. 133 52 Alguns anos mals tarde, em 1860, Hubert ¢ Mauss cxpressavam a mesina opinifio; 2H... impossivel -~ escrevern eles chi I'Eveat sur [a nature et la jonelion du saerijice, pubiteado no tome 11 de LAnnee Soctoloe sigue — pedir unicamente 4 etnolagla 6 esquema dae instituie fea primitivas. Geralmente truncadas por uma obscrvacad seressada ou falscatia pela precisio de nossas lnguas, 08 iatos resistrades pelos cindgreios nao terdn seu valor se no forem comparades com documentos mais prccisos e mais eorm- pletos H claro que alga mudou, entre a perfodo de formacto que cobre os dea filtimes anos do século XTX e a adesGio entusiasta A ctnografia, teste- munhada, ¢m 1912, pela introducdo as Formes elémentaires de Ia ele religieuse, A observagio dos fenémencg é, ai, simultoncamente definida como “histotica € etnogrdficn”; pela primeira vez, o5 dois métodos sfio colocados em né Ge igualdade, Um pouco mais adiante, Durkheim pra- lama gue “as observagdes dos etnégrafos se constituiram, freqiiente- menit, em verdadeiras revelacées que renovaram 0 estudo das sociedades umanas*. Ao tomar a contrapartida de suas entigas afirmacies, ele se Ainsta dos historladores: “Nada, pois, 6 mais injusto do que o destiém que niuites hisioriadores 44m ainda pelos trahalhos dos etndgrafos, Ao contrario, @ certo que a etnogratia determinou, muito freqilentemente, Nos diftrentes ramos dn socinlogia, as mais fecundas revolucdes"s Face & etnogratia, m atitude de Durkheim e de seus culaboradores transformou-se, puis, entre 1882 e 1912. Como se explica esta conversio? A causa principal disto cst, certamente, na mudanga que a funda- yao de l'année Soctologigue impfs acs métodos de trabalho e as Jeituras de Durkheim, Ao resolver julgar e comentar, em nome de sues doutrl- Ras, tudo @ que eparecia na mundo como literatura sociolégica, ele 1&0 Poderla deixar de tomar contato com os etnégraies ditos “de campo": Boas, Preuss, Wilken, Hill-Tout, Fison e Howit Swanton, Roth, Cushing, Hewit, Sizchlow, Spencer e Gillen, ete séo-lhe revelados enquanta Sue descunfianga inieial cra Inspiiade por compiladores ou teoricos como Wundt, Mannhardt, Hertland ¢ Tylor. Mais exaiamente, Durkheim nfo mudeu, pels, de atitude para com a etnografia: « que ele eritieara pri- melramente nio o erg; ou, em ttdo essa, nfo cra aguela A qual ele ge ° HUBERT, Ho € MAUSS, M, Mélanges d'histoire des religions, 2 ed, 1029. Dp. & 5 DUREHEIM. EB. Les formes élémeniaites de tn vie religlense, 2 ed, 1825. p. 5, 53 Ugaria. O primeiro e o maior servico que ele prestou, taivez, & teorla ‘stuolégioa fol o de ihe haver cnsinado que, na falta dos préprios fates, nao ha reflexfo valida senfo subre as fontes, examinadas com o mesmo rigor, a mesma tengo escrupulosa que usa um experlmentador eo tra- bathar com os seus protocoles. Além de trabalhos propriamente etnold- gicos — In Prohibilion de Tinzeste, UEssai sur quelques formes primitives de classifieation — Durkheim den uma contribuigao caplial & ctnologia nos seus resumes, disscminades ao longo de TAnnée Soc-ologique, Eles comprovam tanta lucidez na escolha das obras, o espirila que os inspira 6 tho moderno que gostariamos, hoje ainda, de vé-los reunidos nume publicaciio. (Ora, a0 aceder a5 fontcs, Durkheim faz uma descoberta: a oposicio primeiramente por cle imaginada entre historia e etnografia é mulio Hus6ria, ou antes, havia side mal colocada. O que ele censurava nos ted- tives da etnologia m&o cra o fato de ignorarem o historia, mas elabora- rem, eles proépries, um metodo histérico que nia podia supartar a com paracio com o dos verdadeiros historladores. Seb este aspecto, Rum momento decisivo da evolucdo da doutrina durkheimiena, Hubert ¢ Mauss esclarecem o pensamento do mestre, quando, no Essai sur te aaerifice, eles comegam a substitulr o oposigfo entre a histérla e a etnografia por uma oposigaio subjacente entre duas concepedes da 1 ‘ia: a dos historladores, de um lado, e, do outro, a que Radcliffe-Brown, sempre fiel & Inspiracéo durkhelmiana, iria qualificar, um quarto de sécule de- Pols, como “histérla eonjetural": Q erro de R. Smith — escrevem Hubert € fol sobre- tudo um de método. Ao invés de anall ua conmple- xidade originarla o sistema do ritual semitica, ele optou antes por grupar gencalogiramente os fatos serunda as trlacdes ce analogia que acrediteva perceber entre cles. Este é, allds, um traco comum aos antiopilogos ingleses., sta ordem de fates, toda pesquisa essenclalmente historica € va. A antisuldade dos textos ou dos fatos relatades, a barbarle relativa dos povos, a simplicidace apatemte dos ritos so indices crondlésicas en- ganadores &, A verdadeira oposicio encontra-se, comscqlentemente, entre duas manciras diferentes de fazer histéria: a quo se apdla em documentos diretos, “redigides pelos préprins agentes, em sua lingua” ou em monu- mentos figurades, ¢ a que ¢ praticnda mesta época por quase todas os « HUBERT e MAUSS, op. cit. p. 7. 54 tedricas da ermologia — histdria ideolorica, que consiste em nagia ecronoléglea dss observaées, de uma mancira qualquer, contanto gue satisfaga 0 espirite . Maly wig 9 ponte capital, Uma vez livre de suas pretensées, a etno- STafia, reconduvida ans dadcs particulares éa observacdo, revela sua Yerdaceira natureza. Rois, se estes dados no s&o 0 reflexa de uma his- Torin false, as projegdes disseminadas no presente de “estagios” hlpe~ Tétitos du evalueao do cspirita humano, se esles, portante, nfo decnrrem da ordem dos ucontcclmentos, © que podem ensinar-nos? Protegido pelo seu raeionallsma conta a tentagSo tqne deverla pelo menos sedueir Frazer em suas wWtimas obras) de ver af og produtcs dé um. delirio, Dursheim era, quase necessariamente, conauzida a interpretagdo que vs da ha introdugao as Formes £iémentaires: nA Orde As clvilizacbes primitivas constituem.., easos privilegiados por- cue silo casos simples,.. as relagdes entre falns também sfo mais aparentes",,, Blas mos oferecem, pois, “um meio de dis- cernit BS CRUSOS, Sempre presentes, das quais dependom es foreas mais essencials do pensamento c da prdtlea religioss. + Certamente, fazemo-nos hoje a pergunta — que no importava multe a Durkheim — para saber se o cardter privilegiado do conheclmento etno- erético se ceve as propriedades de objeto, oy se ela no s¢ cxplica antes pula simplifinacGe relativa que afcta todo medo de conhecimento, quan- do ele se aplica a um objeto muito longinquo, Alias, a vecdade esta a meio caminho entre as duss interpretacdes, A escolhida per Durkheim. nao ¢ iaexata, mesma que os argumentos one ele propde ja nda scjam os que manterinmos. Mas também 6 verdade que, com Durkhcim, 0 abje- vo € os métodos da pesquisa etnogrdfica sofrem uma tevlzavolta ra- dieal, Esta podora escavar, doravante, a alternativa da qual estava pri- sioncira; ow que ela sc limite a satisfazer uma curiosidade de antiquarto; gue stu valor se meca pela estranheza ¢ excentricidade de seus achadas: Ou que Ihe seja perdido para flustrar @ poeterior!, por meio de exemplos esealhidos complacentemente, hipdicses especulativas sobre a origem oa evtlugie da humanidade. O papel da etnoyrafla deve ser definido en outros termos: absolute ou relativaments, cada uma de suas observa gOes oferece um valor de experiéncla e permite isclar verdases gerais. * Tem, p. & 9, 11 55 Nada @ mais emocionante ¢ convincente do que decifrar esta men- sagem Gor meio da obra de Radcliffe-Brow @ quem — ao mesmo tempo que @ Boas, Malinowski o Mauss — a etnologia deve, no final do pri- meira quarto deste sfeulo, a conquista de sua autonomia. Ainda que in- gis, © herdetro, portanta, de uma tradieSo intelectual com a qual se eonfunde até mesmo a histérla da etologia, é para a Pranen ¢ Durk- heim que o jovem Radcliffe-Brown se dirige, quando empreende faver da, etnalogia, até ent&o nma ciéneia historiea on filoséfica, ume cléncia experimental comparavel fs oulras ciéncias naturais: esta conecpeda, ceoreve ele crm 1923, “nfo é de modo algum nova. Durkheim e a grande escola de Année Sociologique defenderam-na desde 1958" Ese, em 1991, ele se lamenta por ndo terem os novos métodos de tra- balho no campo sido trazidus & luz, na Franca, é devido ao iato de que “a Frenga abriu caminho ao desenvolvimento dos estudes tedricos em socioldgia comparaca” © paradox sublinhade for Hadcliffe-Brown 6 mais aparente do que real. A primelta geragdo formada por Durkhelm te:la dado pesquisado- res de campo, se ela no fosse dizimada pela guerra de 1914-1918. A ge- racéo que se Ihe segulu consaprou-se amplamente 4 obscrvacio direta. , ainda que Durkheim nao a tenha jamais praticade, Les Formes £le- mentaires de la Vie Religieuse n&o cestaram de trazer uma inspiragao tedrica aos Investigadores australianos, E que, pela primeira vey, obser- vagGes etnograticas, metodicamente analisadas ¢ classifieadas, nia mals apareccram nem come um emontoade de curiosidades ou de eberragies, nem como vestigios do passado, e sé faziam estorgos para situf-las no interior de uma tipologia sistemillea das crentas ¢ condutas. Dos postos Jonginquos onde s¢ eneontrava de servico, a ctnegratia foi assim recon durida ao coracka da eldadela cientifica. Tudos aqutles que, desde en- tao, coniikuizam para conscrvarelhe este higar, reconhectzain-se sem rodeies, como durkheimianos, ‘Tradugso de Soma Wotoskea ® Citado ennforme: RADCLIFFE-BROWN, A. R, Method in Social An- fhropoiogy (antologia postuma). Chicago, 1858. p. 18. 1 Idem, p. 69-70. 56

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