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A Partilha Da Africa (Isabella Somma)
A Partilha Da Africa (Isabella Somma)
A rapidez com que a divisão se deu foi conseqüência direta da principal decisão do
encontro, justamente o princípio da “efetividade”: para garantir a propriedade de
qualquer território no continente, as potências européias tinham de ocupar de fato o
quinhão almejado. Isso provocou uma corrida maluca em que cada um queria garantir
um pedaço de bolo maior que o do outro. “Em pouco tempo, com exceção da Etiópia e
da Libéria, todo o continente ficou sob o domínio europeu”, diz a historiadora Nwando
Achebe, da Universidade Estadual do Michigan. A Libéria, formada por escravos
libertos enviados de volta pelos Estados Unidos, havia se tornado independente em
1847. Na Etiópia, a independência foi garantida depois da Conferência de Berlim, com
a vitória do exército do imperador Menelik II sobre tropas italianas na batalha de Adwa,
em 1896.
O interesse europeu pela África vinha de muito tempo antes da conferência. No século
15, os portugueses já haviam chegado aos arquipélagos de Cabo Verde e São Tomé e
Príncipe, iniciando sua ocupação do continente (que depois se estendeu a Angola e
Moçambique). Os britânicos ocuparam partes da atual África do Sul, do Egito, do
Sudão e da Somália no século 19. No mesmo período, os franceses se apoderaram de
parte do Senegal e da Tunísia, enquanto os italianos marcavam presença na Eritréia
desde 1870. Em 1902, França e Inglaterra já detinham mais de metade do continente.
Tiros e mentiras
A ocupação não se deu somente com a força das armas de fogo, que eram novidade para
muitos dos povos subjugados. A trapaça foi largamente usada para a conquista e
manutenção dos territórios. O rei Lobengula, do povo Ndebele, é um exemplo: assinou
um contrato em que acreditava ceder terras ao magnata britânico Cecil Rhodes em troca
de “proteção”. O problema é que o contrato firmado pelo rei não incluía a segunda parte
do trato. O monarca nem percebeu, pois era analfabeto e não falava inglês. Apesar dos
protestos de Lobengula, que acreditava que a palavra valia alguma coisa entre os recém-
chegados, o governo da Inglaterra se fez de desentendido. Apoiou a exploração do
território Ndebele, no atual Zimbábue, de onde Rhodes tirou toneladas de ouro.
O mais famoso entre os trapaceiros, no entanto, foi o rei Leopoldo II, que conseguiu
passar a perna em africanos e europeus. Soberano de um pequeno país, a Bélgica, não
tinha recursos nem homens para ocupar grandes territórios. Por isso, criou associações
que se apresentavam como científicas e humanitárias, a fim de “proteger” territórios
como a cobiçada foz do rio Congo. “Graças a hábeis manobras diplomáticas, ele
conseguiu obter o reconhecimento, por todas as potências da época, de um ‘Estado
Livre do Congo’, do qual ele seria o governante absoluto”, afirma o professor
Vanthemsche. Leopoldo dominou com mão de ferro o Congo, usando métodos
violentos para conseguir extrair o máximo que pudesse para aumentar sua riqueza
pessoal.
Mas o principal método utilizado pelos europeus foi o bom e velho “dividir para
dominar”. A idéia era se aproveitar da rivalidade entre dois grupos étnicos locais (ou
criá-la, se fosse inexistente) e tomar partido de um deles. Com o apoio do escolhido, a
quem davam armas e meios para subjugar os rivais, os europeus controlavam a
população inteira. “Pode-se dizer que todas as potências conduziam a conquista da
mesma forma: através da força bruta, dividindo para dominar e usando soldados que
eram principalmente africanos e não europeus”, diz Paul Nugent, professor de História
Africana Comparada e diretor do Centro de Estudos Africanos da Universidade de
Edimburgo, na Escócia.
O método usado pelos colonizadores provocou tensões que até hoje perduram, pois
transformou profundamente as estruturas sociais tradicionais da África. “Formações de
grupos flexíveis e cambiantes foram mudadas para ‘estruturas étnicas’ bastante rígidas”,
afirma Vanthemsche. O exemplo mais extremo dessa fronteira imaginária criada pelos
europeus é o de tutsis e hutus, de Ruanda. Os tutsis foram considerados de “origem
mais nobre” pelos colonizadores (primeiro alemães, depois belgas), e os hutus foram
colocados em posição de inferioridade. Os tutsis mantiveram o poder mesmo após a
saída dos belgas. Em 1994, 32 anos após a independência de Ruanda, cerca de 1 milhão
de pessoas morreram no conflito em que os detentores do poder foram perseguidos
pelos até então marginalizados hutus.
O Saara Ocidental é o único caso de território africano que ainda não conseguiu a
independência. Em 1975, depois de décadas explorando o fosfato da região, a Espanha
o abandonou. No mesmo ano, o Marrocos invadiu o país. Houve resistência, e a guerra
durou até 1991. Desde então, a Organização das Nações Unidas tenta organizar um
referendo para que a população decida se quer a independência ou a anexação pelo
Marrocos.
Para os países africanos, ver-se livre dos europeus não significou uma melhoria de sua
situação. Ao contrário: em muitos lugares, a independência provocou guerras ainda
mais sangrentas, que contaram com a participação das antigas metrópoles coloniais. Um
exemplo é a Nigéria. Seis anos após a independência do país, em 1960, os ibos, que
haviam adotado o cristianismo, declararam a secessão do território nigeriano de Biafra.
Foram apoiados por franceses e portugueses, interessados nas ricas reservas de petróleo
da região. Os hauçás e fulanis, muçulmanos que dominavam o cenário político do país,
lutaram pela unidade apoiados pelos ingleses. O resultado foi uma guerra civil em que
quase 1 milhão de nigerianos morreram, a grande maioria de fome – até hoje o país é
palco de embates religiosos e políticos.
Na marra
Se por um lado alguns dialetos desapareceram, o mesmo não ocorreu com a diversidade
étnica. “Grupos étnicos não foram eliminados durante o domínio colonial, apesar de os
alemães terem tentado realizar o primeiro genocídio na Namíbia”, diz Paul Nugent.
Teria sido possível, inclusive, o surgimento de outros povos. “Muitos historiadores
defendem a tese de que novos grupos foram criados durante o período colonial, pois as
pessoas começaram a se autodefinir de novas formas. Por exemplo: os ibos da Nigéria e
os ewes de Gana e do Togo apenas passaram a se denominar desse modo durante o
período entre as duas Grandes Guerras Mundiais”, afirma Nugent.
A situação atual dos países africanos pode ser atribuída à pressa que os colonizadores
tiveram em transformar a realidade local. Isso fez com que o continente pulasse etapas
importantes. “O maior problema é que, em apenas algumas décadas, as sociedades
tradicionais africanas foram lançadas em uma situação totalmente desconhecida. Você
não pode criar um sistema capitalista e Estados democráticos de um dia para outro, em
poucas gerações. As próprias sociedades tradicionais européias precisaram de séculos
para chegar a esse resultado”, diz Guy Vanthemsche. Essa chance nunca foi dada aos
africanos.
Mesmo quando pretendiam apenas “salvar” algumas almas, os homens que desbravaram
a África acabaram colaborando com os governos europeus na conquista e ocupação do
continente. “Missionários e exploradores tiveram influências contraditórias. Trouxeram
com eles importantes recursos, como armas de fogo e outros bens, mas eram incapazes
de controlar e prever as conseqüências de suas intervenções”, diz Keith Shear, da
Universidade de Birmingham. Mesmo que involuntariamente, o explorador francês
Pierre de Brazza estimulou a convocação da Conferência de Berlim. Ele fez um acordo
com Makoko, rei dos batekes, que viviam próximo ao rio Congo: ofereceu proteção em
troca de exclusividade comercial. “A França então reivindicou soberania sobre a região
em 1882. Mas isso entrou em conflito com os interesses de países como Portugal,
Inglaterra e Bélgica”, diz o historiador Guy Vanthemsche, da Universidade Livre de
Bruxelas. O impasse entre os colonizadores os levou à Conferência. Outro explorador,
Henry Morton Stanley, trabalhou na mesma região que Brazza. Ajudou o rei belga
Leopoldo II a fundar o Estado Livre do Congo e a explorar os trabalhadores locais, mas
foi acusado de torturar e matar africanos a mando do monarca. Antes disso, o galês
Stanley, trabalhando como jornalista, fora enviado à África por um diário americano
para procurar o missionário escocês desaparecido David Livingstone. Após percorrer
milhares de quilômetros, encontrou um homem branco e cunhou a célebre frase:
“Doutor Livingstone, eu presumo”. Acertou. Sob o lema “Cristianismo, Comércio e
Civilização”, Livingstone havia sido um dos primeiros europeus a cruzar a África,
tornando-se uma lenda viva. Ao converter os africanos ao catolicismo ou ao
protestantismo, entretanto, missionários como ele facilitavam a colonização. O combate
às crenças e rituais tradicionais contribuiu para que o poder dos líderes tribais africanos,
muito baseado na religião, entrasse em declínio.
Saiba mais
Livros
Dividir para Dominar: a Partilha da África – 1880-1914, H.L. Wesseling, Revan, 1998 -
Um dos livros mais completos sobre o tema, apresenta os principais atores da partilha
da África.
Retirado de:
http://guiadoestudante.abril.com.br/aventuras-historia/partilha-africa-434731.shtml