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CONTARDO CALLIGARIS

Quadrilhas de canalhas
Está com medo de tornar-se doméstica ou prostituta? Bata em pobres, índios e
putas

EM POUCAS linhas, na Folha de sexta, dia 29 de junho, Eliane Cantanhêde


descreveu perfeitamente o mundo no qual é possível que rapazes de classe média
queimem um índio pensando que é "só um mendigo" ou espanquem uma mulher
pensando que é "só uma prostituta". Provavelmente, não teria sido muito diferente se
eles tivessem pensado que era só uma empregada doméstica.

É um mundo em que a permissividade é o melhor remédio contra a inevitável


insegurança social. Nesse mundo, os pais fazem qualquer coisa para que seus rebentos
acreditem gozar de um privilégio absoluto; esse é o jeito que os adultos encontram para
acalmar sua própria insegurança, para se convencer de que eles mesmos gozam de
privilégios garantidos e incontestáveis. Como escreveu Maria Rita Kehl no Mais! de
domingo passado, nesse mundo, aos inseguros não basta ser cliente, é preciso que ele
sejam clientes especiais.

Uma classe média insegura é o reservatório em que os fascismos sempre


procuraram seus canalhas. Você está com medo de perder seu lugar e, de um dia para o
outro, tornar-se índio, mendigo ou empregada doméstica? Pois é, pode bater neles e
encontrará assim a confortável certeza de seu status. Aos inseguros em seu desejo
sexual, aos mais apavorados com a idéia de sua impotência ou de sua "bichice", é
proposto um remédio análogo. Você provará ser "macho" batendo em "veados" e
prostitutas.

Há mais um detalhe: a inteligência humana tem limites, a estupidez não tem.


Essa diferença aparece sobretudo no comportamento de grupo. Imaginemos que a gente
possa dar um valor numérico à inteligência e à estupidez. E suponhamos que o valor
médio seja dois. Pois bem, três sujeitos mediamente inteligentes, uma vez agrupados,
terão inteligência seis. Com a estupidez, a coisa não funciona assim: a estupidez cresce
exponencialmente. A soma de três estúpidos não é estupidez seis, mas estupidez oito
(dois vezes dois, vezes dois). Quatro estúpidos: estupidez 16. Cinco: estupidez 32.
Curiosamente, essa regra vale até chegar, mais ou menos, a um grupo de dez. Aí a coisa
tranca: a partir de dez, torna-se mais provável que haja alguém para discordar da
boçalidade ambiente. Não porque, entre dez, haveria necessariamente um herói ou um
sábio, mas porque, num grupo de dez, quem se opõe conta com a séria possibilidade de
que, no grupo, haja ao menos um outro para se opor junto com ele.
Esse funcionamento, por sua vez, decai quando o grupo se torna massa. É difícil dizer a
partir de quantos membros isso acontece, mas não é preciso que sejam muitos: um
grupo de linchamento, por exemplo, pode desenvolver toda sua estupidez coletiva com
20 ou 30 membros.

Em alguns Estados dos EUA, é permitido dirigir a partir dos 16 anos. Mas, em
muitos condados desses Estados, vige uma lei pela qual um jovem, até aos 21 anos, só
pode dirigir se houver um adulto no carro. Pouco importa que esse adulto seja habilitado
a se servir de um carro. O problema não é a perícia do motorista, mas o fato estatístico
de que três, quatro ou cinco jovens num mesmo carro constituem um perigo para eles
mesmos e para os outros: o grupo de "amigos" potencializa a estupidez de cada um,
muito mais do que sua inteligência. Talvez seja por isso, aliás, que, para o legislador, a
formação de quadrilha é um crime em si. Qualquer pai de adolescente reza ou deveria
rezar para que seu filho encontre rapidamente uma namorada e passe a sair na noite com
ela, não com a turma dos amigos. Pois a turma é parente da gangue.

Como se sabe, o pai de um dos cinco jovens que, na madrugada do dia 23 de


junho, na Barra da Tijuca, espancaram Sirlei Dias de Carvalho Pinto, comentou,
defendendo o filho: "Prender, botar preso junto com outros bandidos? Essas pessoas que
têm estudo, que têm caráter, junto com uns caras desses?". É o desespero de quem sente
seu privilégio ameaçado: como assim, tratar a gente como qualquer um?
Não éramos "clientes especiais"? Mas as frases revelam também a distância entre o
filho que o pai conhece em casa (o filho que teria "caráter") e o filho que se revela na
ação do grupinho (esse filho não tem "caráter" algum). O que precede poderia ser
entendido como uma atenuante, tipo: eles agiram assim não por serem canalhas, mas
por estarem em grupo. Ora, cuidado: o grupo não produz, ele REVELA os canalhas.

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