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07/10/2017 Folha de S.

Paulo - TENDÊNCIAS/DEBATES<br>Oswaldo Giacoia Junior: O direito de julgar - 01/03/2007

São Paulo, quinta-feira, 01 de março de 2007


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TENDÊNCIAS/DEBATES

O direito de julgar
OSWALDO GIACOIA JUNIOR

É justo que exijamos punições exemplares. Mas não que


nossa indignação se nutra no desejo de vingança

O INSUPORTÁVEL não é a dor, mas a falta de sentido da


dor, mais ainda, a dor da falta de sentido. João Hélio, morto
aos seis anos, arrastado em macabra agonia pela Cidade
Maravilhosa, nos confronta com a abominação. Tais
espasmos de brutalidade repõem, com insistência, a antiga
pergunta pelo "porquê" da insânia. Por que a atrocidade?
Revoltados e humilhados, assalta-nos o desejo e a busca pelo
sentido. A reação indignada, até desesperada, exige razões e
providências -pois, como se sabe, "razões aliviam".
Uma das reações mais compreensíveis é: "O que fazer?" De
pronto, exigimos a paga, clamamos por vingança, como por
justiça. A competência jurídica é, então, requisitada: penas
mais drásticas, rebaixamento do limiar de imputação penal,
repressão severa e ostensiva, pena de morte. Com a
solidariedade humana na dor, mescla-se a inevitável
preocupação com a segurança própria e a da sociedade. Não
é admissível que a sociedade permaneça refém da
criminalidade.
Não é meu intuito minimizar o pungente sofrimento que
assola a família, os amigos de João Hélio, enfim, toda pessoa
sensível. No entanto, por penoso que seja dizê-lo, o
açodamento das reações emocionais não é um bom
companheiro do prudente equilíbrio que deve balizar nosso
juízo e discernimento nessas ocasiões. É justo que exijamos
punições exemplares. Mas não que nossa indignação se nutra
no desejo de vingança.
Exigir a paga do sofrimento na medida do "jus talionis" não
me parece justo ou justificado. Suplantar o espírito da
vingança, mesmo no direito, é talvez o difícil caminho de
auto-superação que uma sociedade pode encetar.
A esse respeito, Nietzsche tem muito a nos dizer. Lê-se num
de seus textos: "O último terreno conquistado pelo espírito
da justiça é o terreno do sentimento reativo! Quando ocorre,
de verdade, que o homem justo seja justo inclusive com
quem o prejudicou (e não apenas frio, comedido, estranho,
indiferente: ser justo é sempre um comportamento positivo),

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quando a elevada, clara, profunda e suave objetividade do


olho justo, do olho julgador não se turva nem sequer sob o
assalto de lesões, escárnio, imputações pessoais, isso
constitui uma obra de perfeição e de suprema maestria sobre
a terra".
Não é indiferença, mas justiça positiva. Não é tibieza, apatia,
tolerância irresponsável, concessão ao fácil perdão de boca
para o qual fomos adestrados por milênios de civilização.
Não me refiro a essa fachada de tolerância, desfeita pela mais
tênue ameaça de lesão ao interesse próprio.
O olho justo, capaz de exercer a sobre-humana tarefa do
julgar, não pode ser turvado pela parcialidade, tem de afastar
de seu caminho tudo o que confunde e ofusca o juízo e ser
capaz de não retribuir a culpa com a culpa, a humilhação
com a humilhação.
Justiça significa espiritualização da potência e, portanto,
poder julgar sem ter de se defender, sem querer se vingar. "O
filósofo tem de dizer, como Cristo: "Não julgueis!". E a
última diferença entre as cabeças filosóficas e as demais
seria que as primeiras querem ser justas, as demais querem
ser juízes" (Nietzsche). Como dizia Zaratustra, justiça é o
amor que todos absolve, exceto o julgador.
Com isso, defendo a confiança na missão pedagógica das
instituições, que não podem ser vistas como fins em si, mas
como meios para a estabilização das sociedades humanas.
Defendo instituições fortes e flexíveis, um ordenamento
jurídico seguro e eficiente. É necessária a certeza de todos
sobre a eficácia do sistema penal -tanto da condenação
quanto (e sobremaneira) de um escrupuloso e sensato regime
de execução da pena.
Num Estado poderoso, instituições permitem e induzem o
aperfeiçoamento dos cidadãos, de modo que,
reciprocamente, no âmago da mentalidade deles se entranha
o respeito pela "res publica". A reciprocidade legitima a
coerção das liberdades individuais, equilibrando-a com o
legítimo esforço pela ampliação dos espaços de criatividade
e realização pessoais.
Sou radicalmente contrário à pena de morte, pois tenho em
elevado conceito a missão de julgar. Antes de qualquer
condenação, uma sociedade tem de conquistar o direito de
julgar. Nossa sociedade hedonista e carcomida tem esse
direito? Bagatelizamos o valor da vida a tal ponto que esta
pouco se diferencia de qualquer outro produto. Quantos
instantes de nossa existência podemos bendizer e acolher
com desejo de perpetuação? Já não vivemos, consumimos
nossas vidas, como desgastamos o mundo.
Para muitos de nós, uma vida nova é um fardo, um pesado
encargo social -quando não uma mercadoria que
encomendamos ao sabor de preferências narcisistas.
Soterrou-se em nossa memória coletiva o encanto e o
mistério com que acolhíamos cada novo advento. No dia em
que pudermos exultar com ele, como com uma luz num
mundo de trevas, então talvez possamos repetir um novo
começo.

OSWALDO GIACOIA JUNIOR, doutor em filosofia pela Universidade


Livre de Berlim (Alemanha), é professor associado do Departamento de

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