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ARTIGO Rosinete de Jesus. S. Ferreira; Denize C.

de Oliveira

ILUMINISMO, HISTÓRIA E PROGRESSO EM KANT*

ILLUMINISM, HISTORY AND PROGESS IN KANT

ILUMINISMO, HISTORIA Y PROGRESO EN KANT

Zilmara de Jesus Viana de Carvalho


Ricardo Ribeiro Terra

Resumo: O �����������������������������������������������������������������������������������������������
presente estudo trata da relação entre iluminismo, história e progresso em Kant, em uma abor�
dagem marcada pelo enfrentamento de questões, que, embora semelhantes às dos seus contemporâneos,
são tratadas sob uma perspectiva diversa. Para tanto, enfoca, num primeiro momento, o posicionamento
kantiano, a partir da teoria do conhecimento, acerca da ciência, da moral, da metafísica e da religião e
a relação disto com sua compreensão de século XVIII, como época do esclarecimento, época em que há
condições para o homem servir-se de sua própria razão, portanto para pensar livremente, indício de um
progresso para o melhor, sendo a revolução francesa fenômeno sintomático. A investigação procura, ainda,
mostrar a articulação entre a história e a natureza, enfatizando a progressiva conquista da liberdade na
história, desencadeada, por um processo de desenvolvimento de todas as disposições naturais do homem,
bem como a relação necessária desses dois elementos com o iluminismo.
Palavras-chave: Iluminismo. Progresso. História. Liberdade. Natureza.

Abstract: The present study deals with the relationship among Illuminism, history and progress in Kant,
as an approach marked by the confrontation of issues, although similar to that of his contemporaries,
are treated under a different perspective. For this purpose, it focus, at first, the Kantian position, from
the theory of knowledge about science, morality, metaphysics and religion and the relation of that to his
understanding of the eighteenth century as a time of enlightenment, time in which there are conditions
for man to make use of his reason, therefore to think freely, a sign of progress for the best, being the
French Revolution a symptomatic phenomenon. The research also seeks to show the link between history
and nature, emphasizing the progressive achievement of freedom in history, unchained by a process of
development of all man’s natural dispositions, as well as the necessary relationship of those two elements
with the Illuminism.
Keywords: Illuminism. Progress. History. Freedom. Nature.

Resumen: El presente estudio aborda la relación entre la Ilustración, la historia y el progreso en


Kant, como un enfoque marcado por el enfrentamiento de los problemas que, aunque similares a los
de sus contemporáneos, son tratados bajo una perspectiva diferente. Para ello, se centran, en primer
lugar, la posición kantiana, de la teoría del conocimiento sobre la ciencia, la moral, la metafísica y
la religión y se relaciona esto con la comprensión del siglo XVIII como una época de la Ilustración,
momento en el cual hay condiciones para que el hombre pueda usar de su razón, por lo tanto, pensar
libremente, una señal de progreso para el mejor, siendo el fenómeno sintomático la Revolución
Francesa. La investigación trata de demostrar también la relación entre la historia y la naturaleza,
haciendo hincapié en la realización progresiva de la libertad en la historia, provocada por un proceso
de desarrollo de todas las disposiciones naturales del hombre, y la necesaria relación de estos dos
elementos con la Ilustración.
Palabras clave: La Ilustración. El progreso. La historia. La libertad. La naturaleza.

1 INTRODUÇÃO

Algumas singularidades cercam as ideias portanto, não se encontrar no seio de Estados


de Immanuel Kant sobre o Iluminismo e sobre como a França ou a Inglaterra, que bem antes
sua concepção de História. Estas contribuí� da Alemanha constituíram-se como Monar�
ram de forma fundamental para as discussões quias Nacionais. Estes países foram palco de
do século XVIII e o colocaram na condição mudanças políticas, econômicas e religiosas
de espectador atento do seu tempo, embora gestadas em meio a muitos conflitos, e encon�
geograficamente distante, visto ter nascido e traram na filosofia não apenas uma intérprete,
vivido em Königsberg, na Prússia oriental e, mas também uma ávida influenciadora, capaz
*Artigo recebido em outubro 2011
Aprovado em dezembro 2011

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Zilmara de Jesus V. de Carvalho; Ricardo R. Terra

de preparar o terreno das ideias para acolher em um voltar atrás, traz a lume as pendên�
e difundir críticas as instituições políticas e re� cias deixadas pelas teorias do conhecimento e
ligiosas, bem como para celebrar o progresso faz da elucidação destas conditio sine qua non
do homem através da ciência e, consequente� para pensar de forma consequente o Século
mente, da razão; celebrar a liberdade de ex� das Luzes. Submetendo a razão à crítica, con�
pressão e convocar à tolerância. segue estabelecer como ela é capaz de conhe�
Segundo Thouard (2004, p.25), “Kant tinha cer e o que pode conhecer, ou seja, sobre o
consciência de viver em uma época que pro� que pode a razão teorizar, fazer ciência ao de�
metia múltiplas liberações. Partilhava com seus terminar “o que é”, tanto quanto estabelecer
contemporâneos a aspiração de emancipação o que não pode ser objeto de conhecimento
das autoridades e das formas impostas pelo científico, embora presente na razão como seu
costume.” Além disso, é inegável o otimismo objeto pensável e possuidor de tanta ou mais
kantiano no progresso em todos os âmbitos dignidade do que o teórico.
(científico, político, econômico e moral) e na Dessa forma, Kant evita cair em uma filo�
filosofia como capaz de subsidiar através da sofia reducionista, filosofia capaz de enxergar
razão a fundamentação e a crítica necessárias toda a realidade apenas sob a ótica da expe�
para esse processo. Para tanto, afirma Kant, no riência e da matéria e que recusa, por conse�
Conflito das Faculdades (1798), ter aprendido guinte, o suprassensível, bem como uma des�
na Crítica da Razão Pura (1781) que a filosofia é tinação última para a metafísica, entendendo
uma ciência do homem, do seu representar, pensar suas teorizações, como fruto da imaginação
e agir; deve apresentar o homem em todas as suas (a imaginação, nesse sentido, é tida na conta
partes constitutivas, tal como é e deve ser, isto é,
tanto segundo as suas determinações naturais como
de responsável por fabulações, consequente�
também segundo a sua condição de moralidade e li� mente, produtora de ilusões) e da ignorância,
berdade. (KANT, 1993, p. 85). enfim da superstição, uma vez que onde não
Esta visão de filosofia difere, segundo ele, há a razão1 predomina a superstição.
da visão da antiga filosofia, pois concebe o O desgaste da metafísica, da religião e,
homem como um ser ativo, enquanto a outra sob certa medida, da ideia de Deus pode ser
o via como um ser totalmente dependente do sentido em Kant tanto quanto em seus con�
mundo, logo, como passivo. Na perspectiva temporâneos de século. Assim como estes
kantiana, o homem “é originariamente criador Kant não poupa críticas a tais temas, entre�
de todas as suas representações e conceitos, e tanto, ao invés de engrossar as fileiras dos fi�
deve ser o único autor de todas as suas ações.” lósofos que lhes promoviam o fim, após o crivo
(KANT, 1993, p. 86) Encontram-se, no entanto, da razão, reapresenta esses mesmos temas
em tal ser, elementos distintos: a sensibilidade sob âmbitos e destinações, que defende como
e a razão. O primeiro está ligado à natureza, legítimas. Assim, no tocante à metafísica, a
e o segundo à liberdade; no âmbito da natu� sua pretensão científica é posta em xeque, e
reza, destinado a determinar aquilo que “é”, e a metafísica há que ser pensada necessaria�
no da razão e da livre vontade, a independên� mente sob um ponto de vista prático, moral e
cia em relação às coisas terrestres, pois “estas não teórico, em virtude da natureza de seus
não devem ser para o homem móbiles do agir”. objetos, haja vista que, segundo propõe a
(KANT, 1993, p. 86) teoria do conhecimento kantiana, só é pos�
Sendo assim, continua o filósofo: sível desenvolver um conhecimento teórico
O homem deve ser determinado para dois mundos
acerca do que se pode intuir sensivelmente
de todo diversos, em primeiro lugar, para o reino dos no tempo e no espaço, portanto, do que é fe�
sentidos e do entendimento, por conseguinte, para nomênico, sensível, condicionado.
este mundo terrestre; em seguida, porém, também
ainda para um outro mundo, que não conhecemos, Ora, como provar teoricamente, nessa
para o reino da moralidade. (KANT, 1993, p. 86). medida, a existência de Deus ou mesmo negá-
la? Sendo este supra-sensível, incondiciona�
2 KANT: da teoria do conhecimento à inter� do, como intuí-lo no tempo e no espaço? E se
pretação de seu tempo não é possível deste ter uma intuição sensível,
como também não o é da liberdade, como for�
Em uma época em que a sistematização mular um juízo sintético a priori2 sobre estas,
de uma teoria do conhecimento já parecia su� ou seja, como produzir, efetivamente, conhe�
perada como querela do XVII, embora ainda cimento científico? E, por outro lado, como
resplandecesse o empirismo — agora de forma tratar enquanto meras ilusões ou como ficções
mais acabada — com Hume, Kant, como que ideias tão presentes na razão humana?

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Kant esquiva-se de posturas extremistas [...] a razão pura [diz Kant], que de início pareceu
prometer-nos nada menos que uma ampliação dos
como a racionalista dogmática, que não vendo conhecimentos acima de todos os limites da experi�
limites no poder da razão, crê por meio desta ência, se a compreendemos bem não contém senão
desenvolver um conhecimento verdadeiro até princípios regulativos que na verdade ordenam uma
unidade maior do que o uso empírico do entendimen�
sobre o suprassensível e evita, igualmente, to pode alcançar [...]. Todavia, se compreendemos
o temerário caminho seguido pelo empiris� mal tais princípios tomando-os por constitutivos de
mo cético, que, segundo ele, nada promete, conhecimentos transcendentes, então mediante uma
aparência na verdade brilhante, porém enganosa,
pois a experiência não podendo assegurar a produzem persuasão e pretenso conhecimento, mas
universalidade e necessidade de seus conhe� com isso também eternas contradições e desavenças.
cimentos, mantém-se como um conhecimento (KANT, 1994, p. 344-730).

de alcance particular e contingente; e que no Ora, uma vez que na “Dialética Transcen�
afã de explicar a partir das paixões e, portan� dental” Kant demonstra a impossibilidade da
to, de uma origem psicológica, a religião segue razão especulativa provar a imortalidade da
um caminho tão especulativo e difícil de provar alma, a liberdade do homem e a existência
quanto o do racionalismo. de Deus e, também, a impossibilidade dela
Na perspectiva de superar as dificuldades provar o contrário, por não poder conhecer
das duas correntes no tocante ao conhecimen� o que está para além da experiência, cabe,
to científico, à metafísica, à moral e à religião, como nos diz este, substituir o saber pela fé,
Kant pensa a razão como una, mas, ao mesmo ou seja, abrir campo para a razão prática e,
tempo, como multifacetada e o sujeito como por assim dizer, para a moral, pois embora
receptividade, mas também como espontanei� não se possa falar da metafísica enquanto
dade. Nessa medida, em vez de decidir-se em ciência das coisas em si pode-se afirmá-la
favor do empirismo ou do racionalismo, adota como disposição natural da razão, isto porque
o criticismo. Essa decisão marca não apenas a razão é tida como a faculdade do incondicio�
um modo determinado de pensar a epistemo� nado, da totalidade.
logia, mas também contribui para compreen� O filósofo de Königsberg, tanto quanto
der a ciência do seu tempo (grande promessa seus contemporâneos, não poupa críticas à
de progresso), e posicionar-se diante deste. religião, entretanto identifica nela um aspecto
Assim, ao invés de rechaçar a metafísica, uma que julga ser seu aspecto essencial, o seu
vez que pela peculiaridade de seu objeto de fim último, que é o aspecto moral e fundado
estudo, como vimos, não poderia constituir-se na razão, próprio da religião interior. Assim,
como ciência e, consequentemente, ao invés, ele reinterpreta a partir dessa sua particular
também, de adotar o empirismo, enveredan� convicção, o Cristianismo e as passagens da
do, por conseguinte pelo materialismo (ma� escritura, e entende essa atividade como de�
terialismo de fundo ateu, como ocorreu com, senvolvida pelo teólogo racional, isto é, pelo
não poucos, filósofos do XVIII), recusa, por ser erudito da razão, aquele que separa a fé re�
insatisfatória, a solução empírica, e, por assim ligiosa “[...] que se baseia em leis interiores
dizer, a materialista (sem ao menos mencioná� que se podem deduzir da razão própria de
-la, visto que em sua base está o empirismo), todo o homem” (KANT, 1993, p. 43), da fé
tanto quanto a racionalista dogmática. eclesial “que se funda em leis e estatutos, isto
Portanto, se não recai nas tentativas da é, em leis que decorrem do arbítrio de outro”
metafísica dogmática de provar a existência de (KANT, 1993, p. 43), esta última própria ao
Deus, Kant também não cede ao ateísmo, tam� teólogo bíblico, o erudito escriturísta.
pouco a sua faceta mais atraente, a saber, a Contudo, há que se observar que essa
do antropomorfismo. Com efeito, para ele, tão forma de pensar está intimamente relacionada
impróprio à razão quanto tentar demonstrar a a sua crítica à religião, pois, ao mesmo tempo
existência de Deus seria afirmar que a ideia reduz a religião à moral e mostra os aspectos
de Deus em nós surge por conta dos nossos que não se coadunam a ela como secundários
medos, das nossas paixões, como propõem, ou como ilusórios. Sua crítica aponta desde as
por exemplo, Hume e o Barão de Hollbach. Te� objeções que a razão pode fazer às escrituras,
orizações desse tipo seriam um salto dado pela se vistas sob a perspectiva da interpretação
razão em direção ao suprassensível, e conhe� do teólogo bíblico, a denuncias relacionadas ao
cimentos daí advindos não poderiam ser senão que chama de fé ilusória e pseudo serviço. Diz
ilusórios. As ilusões produzidas pela razão são Kant (1992, p.116), por exemplo, na Religião
denunciadas na Dialética Transcendental da nos Limites da Simples Razão (1793), com
Crítica da Razão Pura: relação à fé eclesial, que:

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[...] o teorético da fé eclesial não nos pode interessar paulatino da Ilustração como um bem que in�
moralmente se não actuar em prol do cumprimento
de todos os deveres humanos como mandamentos
fluenciará inclusive os princípios de governo,
divinos (o que constitui o essencial de toda a reli� e só esta poderá levar a uma verdadeira
gião). Essa interpretação pode, inclusive, parecer-nos reforma do pensar.
muitas vezes forçada quanto ao texto (da revelação),
pode, com freqüência, sê-lo de fato e, todavia, [...]
há-de preferir-se a uma interpretação literal que ou 3 ILUMINISMO E LIBERDADE:
não contém absolutamente nada para a moralidade, a convocação do “século das luzes”
ou actua mesmo contra os móbiles desta última.
No opúsculo Resposta à Pergunta: Que é
A pretensão kantiana de submeter ao
o Iluminismo? (1784), Kant já condicionava a
exame da razão as sagradas escrituras é re�
ilustração à liberdade. Na realidade, essa era a
afirmada no Conflito das Faculdades. Neste,
única condição que se exigia para a ilustração,
a faculdade de filosofia (faculdade inferior) é
a liberdade de “fazer um uso público da sua
apresentada como gozando de autonomia para
razão em todos os elementos.” (KANT, 1995).
julgar, sob a direção da razão, as faculdades su�
Na ausência deste uso público, isto é, uso
periores, a saber, a teológica, a do direito e a da
que qualquer erudito faz da razão diante do
medicina. Com efeito, afirma na referida obra
público do mundo letrado (KANT, 1995), não
A faculdade de filosofia pode, pois, reivindicar todas
as disciplinas para submeter a exame a sua verdade.
há como efetivar a ilustração. Por outro lado,
Não pode ser afectada de interdito pelo governo o uso público da razão não pode ocorrer sem
sem que este actue contra o seu propósito genuíno que para tal haja liberdade, mesmo que seja
essencial, e as Faculdades superiores devem aceitar
as suas objeções e dúvidas, que ela publicamente ex�
uma liberdade com restrições postas pela ne�
põe [...] (KANT, 1993, p. 32, grifo nosso). cessidade de obediência, por isso a palavra de
ordem da ilustração é “raciocinai”, enquanto
Note-se a advertência kantiana de que o
a do ordenamento jurídico, quando de algum
governo não deve interditar a tarefa da filosofia,
modo a favorece, é “raciocinai, mas obedecei.”
apenas a das Faculdades superiores, visto que
Segundo Kant, isso era possível de ser
pela peculiaridade de seus objetos contribuem
equacionado por homens ilustrados. Contudo,
para manter influência forte e duradoura sobre
não se vivia ainda numa época esclarecida,
o povo, sendo esse o interesse do governo.
pois nem todos faziam uso do seu próprio en�
Quanto à filosofia, diz Kant (1993, p.22):
tendimento, nem todos conseguiam abando�
Importa absolutamente que, na universidade, se dê
nar a tutela dos que se propunham a pensar
ainda à comunidade erudita uma Faculdade que, in�
dependente das ordens do governo quanto às suas por eles, sobretudo a mais incisiva, a tutela
doutrinas, tenha a liberdade, não de proferir ordens, da religião. Em contrapartida, vivia-se numa
mas pelo menos de julgar todas as que têm a ver com
o interesse científico, i.e., com o da verdade, em que
época de Esclarecimento (Aufklärung)3, época
a razão deve estar autorizada a publicamente falar; que dava indícios de que os obstáculos à ilus�
porque, sem semelhante liberdade, a verdade não vi� tração eram menores, uma vez que havia um
ria à luz (para dano do próprio governo) [...].
favorecimento à liberdade.
Kant observa, ainda, que, se o governo Não sem razão, Kant, convida de forma
consultasse a Faculdade filosófica sobre as emblemática seus contemporâneos a ousarem
doutrinas que se deveriam prescrever aos saber: “Sapere aude!4 Tem a coragem de te
eruditos, ela responderia: “unicamente não servires do teu próprio entendimento! Eis a
impedir o progresso dos conhecimentos e das palavra de ordem do Iluminismo.” (KANT, 1995,
ciências.” (KANT, 1993, p. 22) Muito provavel� p.11) Lembremos que o Iluminismo é defini�
mente seria esse o conselho de Kant a Frede� do pelo próprio Kant como “[...] a saída do
rico Guilherme II, rei da Prússia, que o acusou homem de sua menoridade de que ele próprio
de, através da obra A Religião nos Limites da é culpado. A menoridade é a incapacidade de
Simples Razão, degradar e deformar as dou� se servir do entendimento sem a orientação
trinas das Sagradas Escrituras, ameaçando� de outrem.” (KANT, 1995) Nessa perspectiva,
-o com medidas severas caso persistisse em ousar saber, significa abrir mão da covardia, da
suas doutrinas, ao invés de cooperar com acomodação, da preguiça, das tutelas a fim de
seus talentos com as intenções do governo. fazer uso daquilo que é partilhado por todos, o
Apesar do olhar vigilante dos déspotas entendimento. Isso é sair da menoridade.
esclarecidos, um avanço gradual da liberdade Esse movimento de saída foi possível
civil sobre qual parece não poder mais haver porque havia condições que o favoreciam no
recuo é identificado por Kant. Segundo ele, século XVIII, o “Século das Luzes”. Não seria
como consequência, tem-se o surgimento possível em qualquer época, e Kant seria in�

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conseqüente se assim o pensasse, mas no superação do instinto pela razão. Vejamos o


“Século das Luzes” foi possível, por isso a me� que diz Kant (1995, p. 24):
noridade pode e deve ser, segundo ele, impu� A natureza nada faz em vão e não é perdulária no
tada ao homem, já que ele seria o culpado por emprego dos meios para os seus fins. Visto que dotou
o homem de razão e da liberdade da vontade que nela
ela. Com efeito, afirma: se funda, isso era já um indício claro da sua intenção
A preguiça e a cobardia são as causas por que os ho� no tocante ao seu equipamento. Ele não deveria ser
mens em tão grande parte, após a natureza os ter dirigido pelo instinto ou ser objeto de cuidado e en�
há muito libertado do controlo alheio (naturaliter sinado mediante conhecimentos adquiridos; deveria
maiorennes), / continuem, no entanto, de boa vonta� pelo contrário extrair tudo de si mesmo. A invenção
de menores durante toda a vida; e também por que do seu vestuário, da sua proteção, da sua segurança
a outros se torna tão fácil assumirem-se como seus e defesa exteriores [...] de todo o deleite que pode
tutores. (KANT, 1995, p. 11, grifo nosso). tornar a vida agradável, [...], e até a bondade da sua
vontade, deviam integralmente ser obra sua.
Há condições para a saída dos homens de
Na quarta proposição da Ideia de uma his-
sua menoridade, posto que, conforme a passa�
tória universal com um propósito cosmopolita
gem supracitada, a natureza de há muito liber�
(1784), o filósofo afirma que a tática da na�
tou o homem do controle alheio. A referência à
tureza para o desenvolvimento das disposições
natureza, no entanto, não é convenientemente
humanas é o antagonismo delas na sociedade.
explorada pelo autor nesse opúsculo, pois isso
É por meio do convívio social, que o homem se
fugiria ao seu propósito. Entretanto, faz-se im�
humaniza, ao mesmo tempo, que sua insocia�
prescindível ressaltar essa importante pecu�
bilidade é inevitavelmente ativada, revelando –
liaridade do pensamento kantiano, a saber, a se como peça fundamental no desabrochar das
articulação entre o iluminismo, a natureza e a suas mais excelentes disposições naturais, tor�
história. Passemos a esse tema. nando – se, por assim dizer, a mola propulsora
do progresso – inclusive do progresso moral.
4 ARTICULAÇÃO ENTRE ILUMINISMO,
O homem forçado pela natureza, ao convívio
HISTÓRIA E NATUREZA: o progresso em
direção ao melhor social com seus iguais, tem paixões desperta�
das, como o egoísmo, a vaidade, a inveja, a
O iluminismo ou esclarecimento é sinônimo ambição e o conflito daí resultante promovem
de progresso em Kant, o progresso para algo nele o desejo de superação da preguiça, bus�
melhor só pode acontecer dentro de um proces� cando através da inclinação para a projeção,
so de amadurecimento do homem na história. A para a dominação ou para a cobiça assumir uma
concepção kantiana de história, conforme a sin� posição que o destaque dos demais. Ouçamos o
tetiza Herrero (1991, p. 7), pode ser entendida, filósofo em uma passagem da Ideia:
então, como “a progressiva realização do fim Sem aquelas propriedades, em si decerto não dignas
de apreço, da insociabilidade, de que promana a re�
dado antecipadamente na idéia pela razão ou, sistência com que cada qual deve deparar nas suas
em outras palavras, como a progressiva con� pretensões egoístas, todos os talentos ficariam para
quista da liberdade.” Nesse sentido, o esclareci� sempre ocultos no seu germe, numa arcádica vida de
pastores, em perfeita harmonia, satisfação e amor
mento diz respeito a uma progressiva conquista recíproco: e os homens [...] dificilmente proporcio�
da liberdade na história, que é desencadeada, nariam a esta sua existência um valor maior do que
o que tem esse animal doméstico; não cumulariam
por seu turno, por um processo de desenvol�
o vazio da criação em vista do seu fim, como seres
vimento de todas as disposições naturais do de natureza racional. Graças, pois, à Natureza pela
homem. Isto, por sua vez, só é possível graças incompatibilidade, pela vaidade invejosamente emu�
ladora, pela ânsia insaciável de posses ou também
à natureza, que, embora não se apresente como do mandar! Sem elas todas as excelentes disposições
condição suficiente para o progresso humano, naturais da humanidade dormitariam eternamente
apresenta-se, contudo, como condição neces� sem desabrochar. (KANT, 1995, p. 26).

sária para tal. Dessa forma, pomos em evidên� Não nos apressemos em concluir que a na�
cia uma relação que está na base da concepção tureza é responsável pelo mal ou pelo bem,
de história e, por conseguinte, de progresso no tanto um quanto o outro são consequências
pensamento kantiano, isto é, a relação natu� da ação humana, ação fundada na razão; é ao
reza e história. A natureza é apresentada sob homem que devem, ser, pois, imputadas e não
um ponto de vista teleológico, portanto, como à natureza6.
tendo traçado um plano oculto5 capaz de por O plano da natureza é que o homem se
em marcha o desenvolvimento da humanidade. oriente pela razão, que aumente suas luzes,
Observemos a tarefa imputada pela na� serve-se, para tanto, das características que lhe
tureza à humanidade. Esta tem precisamente são peculiares, como a sociável insociabilidade,
um movimento fundamental, qual seja o da para promovê-lo7, de modo a conduzi-lo a for�

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Zilmara de Jesus V. de Carvalho; Ricardo R. Terra

mação da sociedade civil, muito embora o con� Estado Civil deve imperar a regulação jurídica
flito não desapareça, não sendo se quer dese� e deve construir - se a moralidade.
jável seu desaparecimento. Conforme observa Quanto a isto, diz Kant na Paz Perpétua
Santiago (2004, p. 49, tradução nossa): que a natureza vem em ajuda da vontade
Inclusive a moralidade é o produto do conflito. Para geral, contornando as tendências egoístas dos
Kant, com efeito, há uma disposição moral no homem, homens por meio do Estado, mais especifica�
porém, se encontra em “gérmen”, isto é, em espera
mente de uma boa organização do Estado, para
de um campo fértil para desenvolver-se plenamente.
orientar suas forças, organização esta que se
É o âmbito da história que começa a ser encontra no poder do próprio homem: “[...] o
descortinado como cenário por excelência para resultado para a razão é como se essas ten�
a realização da sociedade moral, fim pretendi� dências não existissem e assim o homem está
do pela natureza, que na ausência da socieda� obrigado a ser um bom cidadão, embora não
de civil e do seu aperfeiçoamento no tocante à esteja obrigado a ser moralmente um homem
viabilização e à preservação da liberdade, não bom.” (KANT, 1995, p. 146).
pode ser alcançado. Um Estado bem organizado seria aquele no
Como bem lembra o filósofo de Königsberg qual sua constituição estivesse em conformida�
na Ideia, o progresso em direção ao esclare� de com o direito natural, sendo que essa con�
cimento, promovido pela natureza, tem como formidade garantiria que o povo que obedece
fim último um alcance moral: fosse o mesmo que legisla, portanto um povo
Surgem assim os primeiros passos verdadeiros da livre. Uma sociedade civil constituída desse
brutalidade para a cultura, que consiste propriamente modo, na visão kantiana, é gestada a custo de
no valor social do homem; [...] através de uma ilus�
tração continuada, o começo converte – se na funda� muitas guerras, entretanto, uma vez estabe�
ção de um modo de pensar que, com o tempo, pode lecida é a mais apta para afastá-las. Embora
mudar a grosseira disposição natural em diferencia� entenda ser essa a sociedade ideal, no Conflito
ção moral relativa a princípios práticos determinados
e, deste modo, metamorfosear também por fim uma das Faculdades Kant se depara com a realidade
consonância para formar sociedade, patologicamente de que ela demorará a ser erigida, apontando,
provocada, num todo moral. (KANT, 1995, p. 26).
pois, para a necessidade dos monarcas de go�
Com relação ao progresso moral, há que se vernarem de modo republicano, “[...] segundo
observar que este é parte, indubitavelmente, princípios conformes ao espírito das leis de li�
do plano oculto da natureza, entretanto não é berdade [...].” (KANT, 1993, p. 109).
exeqüível na ausência de uma sociedade civil, As sociedades civis bem constituídas seriam
posto que apenas nesse tipo de sociedade a li� apenas um dos passos em direção ao melhora�
berdade de um indivíduo pode coexistir perfei� mento moral dos homens. Assim, as condições
tamente com a do outro, pois seus limites são favoráveis para o aperfeiçoamento moral do
convenientemente determinados e assegura� gênero humano estariam condicionadas, ainda,
dos pelas leis externas, isto é, por uma Consti� à saída, como explica Kant (1995, p. 33), “do
tuição Civil justa. Alia-se a esta o poder coativo, estado caótico das suas relações estatais.”
visto que os homens precisam de um senhor. Nessa perspectiva, não basta apenas resol�
Na Religião, Kant adverte que as mazelas de ver por meio de uma constituição civil as rela�
um estado ético natural, assim como de uma ções entre os indivíduos de um mesmo Estado,
comunidade jurídica natural não eram decor� deixando, todavia, de lado o problema das re�
rentes da ausência de leis, pois nestes estavam lações externas entre estados sob o império
presentes leis internas, mas da falta de um da liberdade irrestrita e, por conseguinte, das
poder instituído, exercido em conformidade constantes ameaças, movidas pelo desejo de
com a Constituição. Tal ordenamento legal seria expansão que os orienta, é preciso estabelecer
condição necessária para o progresso em todos relações legais entre estes, sendo essa a con�
os níveis, inclusive o moral. dição indispensável para a instituição de uma
Não obstante, na mesma obra encon� constituição civil perfeita. Não sem razão essa
tramos a advertência quanto à possibilidade idéia é perseguida também na Paz Perpétua:
oposta, a da inviabilidade do progresso moral, [...] a Natureza utilizou uma vez mais a incompati�
que se concretizaria tão logo o Estado e a Re� bilidade dos homens, e até das grandes sociedades
e corpos estatais que formam estas criaturas , como
ligião se arvorassem em forçar os homens a meio para encontrar seu inevitável antagonismo um
fazerem parte de uma comunidade ética8, o estado de tranqüilidade e segurança; isto é, por meio
que por si só já se contraporia à própria idéia das guerras, do armamento excessivo e jamais afrou�
xado em vista das mesmas, da necessidade que, por
de liberdade, condição fundamental para tal fim, cada Estado deve por isso sentir internamente
comunidade. O que se pode inferir daí é que no até em tempo de paz, a Natureza compele-os, pri�

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Iluminismo, história e progresso em Kant

meiro, a tentativas imperfeitas e, finalmente, após A revolução, assim posta, não pode mesmo
muitas devastações, naufrágios e até esgotamento
interno geral das suas forças, ao intento que a ra�
ser confundida como causa da mudança, mas
zão lhes podia ter inspirado, mesmo sem tantas e sintoma universal dela. O entusiasmo do povo
tão tristes experiências, a saber: sair do estado sem para com a Revolução Francesa reflete seu
leis dos selvagens e ingressar numa liga de povos,
onde cada Estado, inclusive o mais pequeno, pode�
desejo de autonomia, desejo de ter uma cons�
ria aguardar a sua segurança e o seu direito, não tituição na qual reconheça as leis como suas.
do seu próprio poder ou da própria decisão jurídica, Embora fuja ao propósito da presente
mas apenas dessa grande federação de nações [...]
(KANT, 1995, p. 30).
investigação discutir a posição de Kant em
relação às revoluções, é digno de nota que
Foge, obviamente, ao nosso propósito o seu entusiasmo para com estas não parece ir
detalhamento dessa federação de nações. No além. No opúsculo sobre o Iluminismo, chega
entanto, vale ressaltar que, na ótica kantia� mesmo a afirmar categoricamente que:
na, pouco a humanidade caminhou de fato em Por meio de uma revolução poderá talvez levar-se a
direção ao progresso traçado pela natureza. cabo a queda do despotismo pessoal e da opressão
Contudo ele afirma no Conflito das Faculdades gananciosa ou dominadora, mas nunca uma verda�
deira reforma do modo de pensar. Novos preconcei�
haver um acontecimento histórico que pode tos, justamente com os antigos, servirão de rédeas
ser identificado “[...] como um sinal histórico à grande massa destituída de pensamento. (KANT,
(signum rememorativum, demonstrativum, 1995, p. 13).

prognosticon), e poderia, por isso, demonstrar Entretanto, na avaliação kantiana, pro�


a tendência do gênero humano, olhada no seu gredimos em direção ao melhor e é também
todo [...]” (KANT, 1993, p. 101). Esse aconte� verdade que esse progresso depende do uso da
cimento seria para Kant a Revolução Francesa, liberdade, do livre pensar e, por assim dizer, da
como pode ser evidenciado pela seguinte ob� publicidade deste pensar. Isso é o que particu�
servação feita na mesma obra: larmente importa a Kant (1993, p. 106), uma
[...] esta revolução, afirmo, depara todavia, nos âni� vez que entende que: “A ilustração do povo é a
mos de todos os espectadores (que não se encon� sua instrução pública acerca dos seus deveres e
tram enredados neste jogo), com uma participação
segundo o desejo, na fronteirado entusiasmo, e cuja direitos no tocante ao Estado a que pertence.”
manifestação estava, inclusive, ligada ao perigo, que, São os filósofos (professores livres) os intérpre�
por conseguinte, não pode ter nenhuma outra causa tes desses deveres e direitos no meio do povo.
a não ser uma disposição moral no gênero humano.
(KANT, 1993, p. 102). Na continuação da referida passagem do
Conflito, encontramos, todavia, o desabafo do
Na interpretação kantiana dos aconteci� autor, que denuncia a forma como os filósofos
mentos, é possível enxergar por trás da Re� eram tratados pelo Estado, “difamados, sob
volução Francesa, e como causa dela, um pro� o nome de iluministas, como gente perigosa
gresso moral9 que tem dois aspectos, a saber, para o Estado.” (KANT, 1993, p. 107). Ressalta
o do direito e o do fim (dever), pois, segundo Kant, no entanto, que é a esse mesmo Estado
ele, o povo não pode ser impedido de se pro� que critica aos filósofos, que estes precisam se
porcionar uma constituição civil que se lhe dirigir através de seus escritos, com a finalida�
afigure como boa, e a constituição legítima e de de expor as necessidades do povo quanto
boa é aquela capaz de afastar a guerra, sendo ao seu direito, diga-se de passagem, respei�
esta a constituição republicana. tosamente para não correrem o perigo de ter
Nessa perspectiva, o entusiasmo kantiano seus textos interditados, posto que: “[...] a in-
pela revolução francesa, ao que tudo indica, terdição da publicidade impede o progresso de
deve-se ao que ela representa: o progresso um povo para o melhor, mesmo no que concer�
da humanidade para o melhor. Leia-se isto ne à menor de suas exigências, a saber, o seu
como um progresso moral, que só é possí� simples direito natural.” (KANT, 1993, p. 107)
vel na medida em que ao homem é permitido Por isso há que se fazer um uso público
fazer uso da sua liberdade, uso público de sua da própria razão, pois, “[...] só ele pode levar
razão, há um ganho de autonomia e se a re� a cabo a ilustração entre os homens.” (KANT,
volução é o que permite perceber esse acon� 1995, p. 13). Este uso público da razão por
tecimento. Por outro lado, para Kant (1993, p. certo não interfere diretamente na vida de um
104-105) tal povo inculto, refere-se ao uso “[...] que qual�
acontecimento não é o fenômeno de uma revolução, quer um, enquanto erudito, dela faz perante
mas [...] da evolução de uma constituição de direi� o grande público do mundo letrado.”(KANT,
to natural que, decerto, não se conquista ainda só ao
preço de combates furiosos [...], mas que leva, no en� 1995, p. 13). Por este meio, pode-se denun�
tanto, a aspirar a uma constituição [...] republicana. ciar a injustiça contida em algumas prescrições

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Zilmara de Jesus V. de Carvalho; Ricardo R. Terra

legais, bem como uma melhor regulamentação observação, além de esclarecedora, se coaduna
sobre matérias que versam sobre a religião e a com a intenção inicial deste artigo de relacionar
a concepção de Iluminismo kantiana, sobretudo,
igreja, dentre outras.
com o conhecimento e a moral.
Entretanto, cumpre observar que não só a
defesa da publicidade do que se pensa, como 5. Esclarece Herrero (1991, p. 138) que: “A histó�
ria filosófica é um ponto de vista que se orienta
do debate sobre o que se pensa e da própria
segundo a realização de um plano oculto da
crítica à interdição soam como sintomas de natureza. A inexorabilidade desse plano permi�
uma época, que, como diz Kant (1995, p. te ver a história como a história do progresso
17), se não é uma época esclarecida, é, com na direção da Constituição política perfeita.”
certeza, uma época do esclarecimento. Isto por 6. Para melhor compreensão dessa questão, deve-se
si só, na intrincada relação natureza e história atentar para o comentário de Terra (2003, p. 49):
tecida pelo filósofo, se não nos dá a certeza do “Uma história com um fio condutor a priori será
progresso para o melhor, serve ao menos para possível à medida que explicite as disposições na�
turais do homem, sua destinação. Mas não se tem
testemunhar em favor desse progresso, e essa aí uma necessidade inelutável [...], não se está
seria a avaliação kantiana de seu tempo: justificando a inação; ao contrário, temos um estí�
A experiência pura e simples não nos pode dar nem mulo para quem quer agir moralmente saber que
a certeza do progresso nem a impossibilidade de me� há um sentido no devir histórico [...]”
lhoria no futuro, pois a causa do progresso está na li�
berdade e está não é determinada pelas leis do mun� 7. Essa compreensão reaparece anos mais tarde, na
do fenomênico. Mas enquanto esses fenômenos são Paz Perpétua (1795), onde deparamo - nos com
referidos a priori ao ponto de vista filosófico oferecido a afirmação: “Visto que a natureza providenciou
pela natureza, pode-se reconhecer neles a realização que os homens possam viver sobre a Terra, quis
parcial ou total da idéia. (HERRERO, 1991, p. 139). igualmente e de modo despótico que eles tenham
de viver, inclusive contra a sua inclinação, e sem
que este dever pressuponha ao mesmo tempo
um conceito de dever que a vincule por meio de
NOTAS uma lei moral; a natureza escolheu a guerra para
obter este fim.” (KANT, 1995, p. 144).
1. Segundo Façanha (2007, p. 95), “Os filóso� 8. Explica Kant (1992, p. 100) na Religião, que: “A
fos do século XVIII concebiam a razão como uma associação dos homens sob simples leis de
uma força que parte da experiência sensível virtude, segundo a prescrição desta idéia, pode
e desenvolve-se juntamente com ela. [...] A dar-se o nome de sociedade ética e, enquanto
razão não é mais concebida como repositório estas leis são públicas, sociedade civil ética (em
de verdades eternas, mas antes como fonte de oposição à sociedade civil de direito), ou uma
energia intelectual.” comunidade ética.”
2. Em Kant (1994), vale lembrar que o juízo sin� 9. Cumpre atentar para o comentário de Terra
tético a priori é o juízo típico da ciência, pois (2003, p. 47) sobre essa questão: “[...] o que
permite a ligação de representações distintas interessa não é o próprio processo revolucionário,
e, assim, a ampliação do conhecimento, sem seus atores, ou a marcha da revolução, que pode
prescindir da necessidade, pois as represen� inclusive fracassar, pois não é ela mesma que é
tações são ligadas mediante as categorias ou signo, mas sim o que ela provoca nos especta�
conceitos do entendimento, portanto, de forma dores. Estes chegam a uma “simpatia” que beira
a priori pelo sujeito, logo necessária e univer� o “entusiasmo”, o que “não pode ter outra causa
sal e não de forma a posteriori e contingente, senão uma disposição moral do gênero humano”.
como ocorre nos juízos de experiência. Essa simpatia é o signo do progresso [...].”
3. Esclarece Denis Thouard (2004, p.27), que:
“Em alemão, as “Luzes” são traduzidas por Au�
fklärung, que designa um processo, a ação de REFERÊNCIAS
esclarecer, de elucidar, de produzir e difundir
as “luzes”. [...] Kant a entende , ao mesmo FAÇANHA, L. da Silva. O diagnóstico do
tempo, como um acontecimento que caracteri� “declínio do progresso”. Ciências Humanas
za o estado dos espíritos e como uma tarefa a em Revista, São Luís, v. 5, n. especial, 2007.
ser realizada, aberta ao futuro.”
HERRERO,F. J. Religião e história em Kant.
4. Thouard (2004, p. 27-28), lembra que Roland São Paulo: Edições Loyola, 1991.
Barthes ao final de sua aula inaugural no Collè�
ge de France em 1977, observa o sentido triplo KANT, Immanuel. A Paz perpétua. In:
do latim “sapere”, quais sejam, a saber, saber, ______. A paz perpétua e outros opúsculos.
sabedoria e sabor, e a partir daí propõe a se� Tradução Artur Morão. Lisboa: Edições 70,
guinte reflexão: “Essas três acepções desdo� 1995.
bram a injunção em três domínios que balizam
as “Críticas” kantianas: o conhecimento, a ação, _________. A religião nos limites da simples
o sentimento estético. Sob essas três ousadias razão. Tradução Artur Morão. Lisboa: Edições
se esboça uma nova concepção de sujeito.” Essa 70, 1986.

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Iluminismo, história e progresso em Kant

_________.Crítica da razão pura. Tradução _________. Resposta à pergunta: que é o


Manuela Pinto dos Santos. Lisboa: Fundação iluminismo? In:______. A paz perpétua e
Calouste Gulbenkian, 1994. outros opúsculos. Tradução Artur Morão.
_________. Crítica da razão prática. Lisboa: Edições 70, 1995.
Tradução Valério Rohden. São Paulo: Martins SANTIAGO, Teresa. Función y crítica de
Fontes, 2002. la guerra em la filosofia de I. Kant. Rubí,
_________. Crítica da faculdade do juízo. Barcelona: Anthropos Editorial; México:
Tradução Valério Rohden Rio de Janeiro: Universidad Autónoma Metropolitana, 2004.
Forense Universitária, 1995. TERRA, Ricardo R. Algumas questões sobre a
_________. Idéia de uma história universal filosofia da história em Kant. In:______. Idéia
com um propósito cosmopolita. In: ______. de uma história universal de um ponto de
A paz perpétua e outros opúsculos. Tradução vista cosmopolita. São Paulo: Martins Fontes,
Artur Morão. Lisboa: Edições 70, 1995. 2003.
_________. O conflito das faculdades. THOUARD, Denis. Kant. Tradução Tessa
Tradução Artur Morão. Lisboa: Edições 70, Moura Lacerda. São Paulo: Estação Liberdade,
1993. 2004.

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