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EXCELENTÍSSIMO SENHOR DESEMBARGADOR-PRESIDENTE DO E.

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO PIAUÍ

Assunto: Inconstitucionalidade da Portaria nº 475, de 26 de dezembro de 2017, do


Comando-Geral da Polícia Militar do Estado do Piauí.

Ementa: Portaria nº 475, de 26 de dezembro de 2017, do


Comando-Geral da Polícia Militar do Estado do Piauí,
regulamentando “procedimentos a serem adotados pelos
Comandantes, Diretores e Chefes, referentes ao exercício da polícia
judiciária militar, frente às alterações promovidas ao Código Penal
Militar pela Lei nº 13.491/17. Inconstitucionalidade por ofensa ao
regramento constitucional de distribuição de competência/atribuição
(art. 132 da CE). Pedido para que se declare a inconstitucionalidade
da Portaria. Pedido subsidiário, pela adoção da técnica da
interpretação conforme a Constituição, declarando-se que são crimes
militares, na forma do inciso II do art. 9º, os tipificados no Código
Penal Militar e os previstos na legislação penal, excetuados os
dolosos contra a vida e cometidos por militares estaduais contra
civil, os quais ficarão sob a competência investigativa da polícia
judiciária civil e serão processados e julgados pelo Tribunal Popular
do Júri.

O PROCURADOR-GERAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO PIAUÍ, no exercício


da atribuição prevista no art. 39, inciso I, da Lei Complementar Estadual nº 12, de 18 de
dezembro de 1993 (Lei Orgânica do Ministério Público do Estado do Piauí), em
conformidade com o disposto no art. 125, §2º, e art. 129, inciso IV, da Constituição Federal,
e ainda art. 124, inciso III, e art. 143, inciso IV, da Constituição do Estado do Piauí, com
amparo nas informações colhidas no incluso protocolado, vem, respeitosamente, perante
esse Egrégio Tribunal de Justiça, promover a presente:

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE

da Portaria nº 475, de 26 de dezembro de 2017, do Comandante-Geral da Polícia


Militar do Estado do Piauí, pelos fundamentos a seguir expostos.

1. DA APRESENTAÇÃO DO ATO NORMATIVO IMPUGNADO E DO


PARÂMETRO DE FISCALIZAÇÃO ABSTRATA DE CONSTITUCIONALIDADE

O ato normativo cuja validade jurídico-constitucional ora se questiona reza o


seguinte:

Portaria nº 475, de 26/12/2017


Regula procedimentos a serem adotados pelos
Comandantes, Diretores e Chefes, referentes ao exercício da
polícia judiciária militar, frente às alterações promovidas
ao Código PEnal Militar pela Lei nº 13.491/17.

Art. 1º Determinar que sejam adotadas por parte das autoridades de polícia judiciária militar
ações efetivas para o fiel cumprimento da missão constitucional do exercício da polícia
judiciária militar, quando da ocorrência de crime militar na área circunscricional sob sua
responsabilidade.
Art. 2º Determinar às autoridades de polícia judiciária militar para que mantenham contato
direto e contínuo com os responsáveis pelos órgãos de apoio necessário ao pleno exercício da
polícia judiciária militar, com atuação na sua circunscrição militar (Instituto de
Criminalística e de Medicina Legal, Polícia Civil, OAB, Ministério Público, Poder
Judiciário, Defensoria Pública, Conselho Tutelar), a fim de esclarecer a sua competência
legal e constitucional em relação aos crimes militares, bem como ajustar os meios
necessários para acionamento adequado dos referidos órgãos, quando necessário.
Art. 3º Determinar que o militar estadual que se acha em flagrante delito na prática de
qualquer crime militar previsto na lei penal militar ou na legislação penal comum (art. 9º do
CPM) seja imediatamente apresentado à autoridade de polícia judiciária militar competente.
Art. 4º Orientar que, mesmo constitucionalmente expressa a competência exclusiva da
polícia judiciária militar para apuração dos crimes militares, em havendo competências
investigatórias civil e militar concorrentes em local de crime, caberá à autoridade de polícia
judiciária militar preventa, a análise, no caso concreto, do compartilhamento de provas, bem
como avaliar a necessidade de franquear acesso ao local de crime à autoridade de polícia
judiciária civil.
Art. 5º Orientar que, em havendo necessidade, os Comandantes, Diretores e Chefes solicitem
instrução por parte da Corregedoria-Geral da Polícia Militar, dentro de sua disponibilidade, a
fim de atualizar e solidificar a doutrina de polícia judiciária militar ao efetivo sob suas
ordens.
Art. 6º Determinar aos Oficiais da Polícia Militar que orientem os militares estaduais sob
suas ordens para que atentem à instauração de possíveis procedimentos
investigatórios/apuratórios oriundos de autoridades sem atribuição legal para a persecução de
infrações penais envolvendo militares estaduais, frente ao novo texto legal do art. 9º do
Código Penal Militar.
Art. 7º Determinar aos Comandantes, Diretores e Chefes a ampla divulgação ao efetivo sob
suas ordens da presente portaria, bem como das alterações efetivadas pela Lei nº 13.491/17, e
o fiel cumprimento da Portaria nº 075/2013-CGC/PMPI, Portaria nº 275/2013-GCG/PMPI e
Portaria nº 098/2014-GCG/PMPI, as quais permanecem em plena vigência.
Art. 8º Orientações complementares serão editadas e difundidas pela Corregedoria-Geral da
Polícia Militar.
Art. 9º Esta portaria entra em vigor na data de sua publicação.
Contudo, é possível afirmar que a norma impugnada ofende frontalmente o art. 132
da Constituição do Estado do Piauí, ​verbis​:

Art. 132. Compete à Justiça Militar estadual processar e julgar os policiais militares e
bombeiros militares do Estado, nos crimes militares definidos em lei, ressalvada a
competência do júri quando a vítima for civil, e as ações civis contra atos disciplinares
militares, cabendo ao Tribunal de Justiça decidir sobre a perda do posto e da patente dos
oficiais e da graduação dos praças. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 27 de
17.12.08)
É o que será demonstrado a seguir.

2. DO CABIMENTO DA PRESENTE AÇÃO CONSTITUCIONAL

Por meio de seus julgados, o Supremo Tribunal Federal consolidou requisitos


necessários para o cabimento da via de declaração abstrata de inconstitucionalidade de leis e
atos normativos. Tais requisitos são sistematizados pela doutrina pátria e vão de encontro à
vocação desta ação, referindo-se a: tratar-se de lei ou ato normativo federal, estadual ou
distrital, que afronte diretamente a Constituição Federal; que a lei ou ato normativo tenha
sido editado após à promulgação da Carta Magna de 1988, caso contrário ter-se-ia ausência
de recepcionalidade da norma, sendo desnecessária e incabível a declaração de sua
inconstitucionalidade e, ainda, que a lei ou ato normativo esteja em vigor. A mesma lógica é
aplicada no âmbito estadual.

Parcela da doutrina e da jurisprudência considera, ainda, que a norma impugnada


deve ser de conteúdo geral e abstrato. Com este último requisito, quer-se que a lei ou ato
normativo impugnado não detenha efeitos concretos e caráter individual. Tal aferição é
realizada a partir do conteúdo da norma, averiguando-se as condutas que ela atinge e seu
alcance. Não é, portanto, a simples modalidade de edição do ato normativo apta para
encerrar tal discussão.

No caso em apreço, os dispositivos da Portaria impugnada possuem abrangência


geral, atingindo pluralidade de situações que envolvam a apuração de infrações penais
praticadas por militares estaduais. Eis o ponto central levantado nesta ação.

Neste sentido, o Supremo Tribunal Federal, por meio da ADI 2.950-AGr, proferiu o
entendimento de que

“Estão sujeitos ao controle de constitucionalidade concentrado os atos normativos,


expressões da função normativa, cujas espécies compreendem a função
regulamentar (do Executivo), a função regimental (do Judiciário) e a função
legislativa (do Legislativo). Os decretos que veiculam ato normativo também devem
sujeitar-se ao controle de constitucionalidade exercido pelo STF. O Poder
Legislativo não detém o monopólio da função normativa, mas apenas de uma
parcela dela, a função legislativa.”

Não é correto, portanto, restringir o objeto desta ação excluindo espécies


regulamentares ou regimentais. Isso porquê deve-se aferir não a espécie normativa
envolvida, e sim a existência de controvérsia em abstrato que afronte a Constituição.

Ademais, caso não se considere, pela eventualidade, que os atos normativos


questionados possuem caráter abstrato e geral, cumpre registrar que a Suprema Corte já
reviu sua jurisprudência no sentido de compreender que a controvérsia constitucional deve
ser levantada em abstrato, independentemente do caráter geral ou específico de seu objeto:

Controle abstrato de constitucionalidade de normas orçamentárias. Revisão de


jurisprudência. ​O Supremo Tribunal Federal deve exercer sua função precípua de
fiscalização da constitucionalidade das leis e dos atos normativos quando houver
um tema ou uma controvérsia constitucional suscitada em abstrato, independente
do caráter geral ou específico, concreto ou abstrato de seu objeto. Possibilidade de
submissão das normas orçamentárias ao controle abstrato de constitucionalidade.
(...) Medida cautelar deferida. Suspensão da vigência da Lei n. 11.658/2008, desde a
sua publicação, ocorrida em 22 de abril de 2008. (ADI 4.048-MC, rel. min. Gilmar
Mendes, julgamento em 14-5-2008, Plenário, DJE de 22-8-2008.) No mesmo
sentido: RE 412.921-AgR, rel. min. Ricardo Lewandowski, julgamento em
22-2-2011, Primeira Turma, DJE de 15-3-2011; ADI 4.049-MC, rel. min. Carlos
Britto, julgamento em 5-11-2008, Plenário, DJE de 8-5-2009.

Ademais, em que pese o dispositivo da Constituição Estadual utilizado como


parâmetro represente uma norma de reprodução obrigatória da Constituição Federal, nada
impede que seja proposta Ação Direta de Inconstitucionalidade no âmbito local para
questionar a sua validade. Nesse sentido: RE 650.898-RG, julgado em 01.01.2017, pleno,
relator Min. Roberto Barroso.

Portanto, deve-se destacar que todo o fundamento desta ação guarda relação com
violações frontais e diretas ao conteúdo da Constituição Estadual. Trata-se, portanto, de ação
de inconstitucionalidade direta, e não reflexa.

3. DOS FUNDAMENTOS

A questão posta em liça perpassa necessariamente pela interpretação das normas


constitucionais atinentes à Polícia Civil e à Polícia Militar. Extrai-se do art. 159 da
Constituição Estadual que, dos diversos órgãos de segurança pública ali arrolados, a função
de polícia judiciária, isto é, a atuação depois da ocorrência criminal cabe às Polícias Civis
Estaduais, ressalvada a competência da União (caso em que a atividade da polícia judiciária
toca à polícia federal, consoante o art. 144, §1º, da Constituição da República). De outro
turno, à Polícia Militar o constituinte reservou a função de policiamento ostensivo, para a
preservação da ordem pública, nos termos do art. 161 da Constituição Piauiense.

Como a Carta Magna possibilitou aos estados, também, a criação de Justiças


Militares estaduais, a quem cabe processar e julgar os militares dos Estados, nos crimes
militares definidos em lei e as ações judiciais contra atos disciplinares militares e, ainda,
considerando que os crimes militares estão previstos no Código Penal Militar, de fácil ilação
que, justamente em razão das peculiaridades inerentes às Forças Armadas, a lei destinasse as
funções de polícia judiciária, em casos dessa jaez, à polícia judiciária militar (art. 8º, a, do
Código de Processo Penal Militar).

Daí se diz que as polícias civils estão incubidas das funções de polícia judiciária na
esfera estadual e apuração de infrações penais comuns, excetuadas as infrações de natureza
militar. Para tanto, na letra do art. 4º do Código de Processo Penal, a polícia judiciária (civil
e federal) vale-se do inquérito policial, que tem por objetivo a apuração de infrações penais e
de sua autoria.

Nessa trilha, a doutrina preconiza que sempre que se tratar de crime comum, a
atribuição de polícia judiciária é da Polícia Civil ou Federal, por meio do inquérito policial
e, quando se tratar de crime militar, a apuração cabe à polícia judiciária militar, por meio do
inquérito policial militar.

Qualificam-se como militares os crimes assim definidos em lei penal militar, em


especial no art. 9º do CPM, cabendo à polícia judiciária militar a sua apuração, por meio do
inquérito policial militar. Por exclusão, são crimes comuns aqueles crimes não considerados
militares - como expressamente consta do final do caput do art. 159 da Constituição
Estadual - cuja atribuição cabe às polícias civil ou federal (art. 144, §§1º e 4º da Constituição
Federal), por meio de inquérito policial.

Por apego ao debate, importa consignar que a Lei 9.299/96 (aquela que incluiu o hoje
revogado parágrafo único ao art. 9º do Código Penal Militar, para definir a competência da
Justiça Comum aos crime militares dolosos contra a vida e cometidos contra civil) foi
questionada no bojo da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 1494, ajuizada pela
Associação dos Delegados de Polícia do Brasil - ADEPOL, perante o Supremo Tribunal
Federal, em que se pretendeu discutir possível ofensa ao art. 144, §§1º e 4º, da Constituição
da República, ao possibilitar, a lei impugnada, a apuração dos crimes dolosos contra a vida
praticados contra civis por meio de inquérito policial militar. A liminar foi negada em
acórdão assim ementado:

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE - CRIMES DOLOSOS CONTRA


A VIDA, PRATICADOS CONTRA CIVIL, POR MILITARES E POLICIAIS
MILITARES - CPPM, ART. 82, § 2º, COM A REDAÇÃO DADA PELA LEI Nº
9299/96 - INVESTIGAÇÃO PENAL EM SEDE DE I.P.M. - APARENTE VALIDADE
CONSTITUCIONAL DA NORMA LEGAL - VOTOS VENCIDOS - MEDIDA
LIMINAR INDEFERIDA. O Pleno do Supremo Tribunal Federal - vencidos os
Ministros CELSO DE MELLO (Relator), MAURÍCIO CORRÊA, ILMAR GALVÃO e
SEPÚLVEDA PERTENCE - entendeu que a norma inscrita no art. 82, § 2º, do
CPPM, na redação dada pela Lei nº 9299/96, reveste-se de aparente validade
constitucional. (ADI 1494 MC, Relator(a): Min. CELSO DE MELLO, Tribunal
Pleno, julgado em 09/04/1997, DJ 18-06-2001 PP-00002 EMENT VOL-02035-01
PP-00101)

Ocorre que quanto ao mérito, inexistiu decisão definitiva sobre o tema, já que a ação
foi extinta sem resolução, por ter entendido a Suprema Corte pela carência de legitimidade
ativa da Associação para deflagrar processo de controle concentrado de constitucionalidade.

Na sequência sobreveio a Emenda Constitucional Estadual nº 27/2008 (e no âmbito


federal, a Emenda Constitucional nº 45/2004) que, na tentativa de elucidar a questão com
definitividade, conferiu a status constitucional ao alterar o art. 132 da Constituição do
Estado do Piauí já aqui transcrito.

Como dúvidas ainda remanesciam sobre a constitucionalidade da inovação, nova


ADI foi proposta no plano federal e autuada sob o nº 4164, sob a relatoria do Min. Gilmar
Mendes, tendo sido adotado o rito abreviado do art. 12 da Lei nº 9.868/99, sem decisão pelo
Supremo Tribunal Federal até o presente momento.
Assentado esse panorama, ainda que a Corte Suprema não tenha se manifestado de
maneira conclusiva sobre a questão, nos parece inafastável que a exclusão da Justiça Militar
(e, por sua vez, da atuação da polícia judiciária militar) para o julgamento dos crimes
dolosos contra a vida praticados por policiais militares contra civis tem como corolário a
desmilitarização dos mesmos delitos.

Evidencio, aliás, ser o entendimento do Ministério Público EStadual o de ser o


inquérito policial conduzido pela Polícia Civil o instrumento investigatório ordinário para os
crimes dolosos contra a vida praticados por militares contra civis.

O Superior Tribunal de Justiça, por sua vez, já enfrentou especificamente a questão


que permeia a atribuição para a as investigações de crimes dolosos contra a vida praticado
por policiais militares contra civis. Confira-se:

“(...) ​Os crimes de homicídio imputados ao paciente foram todos praticados, em


tese, contra vítimas civis, sem exceção, sendo pacífico o entendimento desta Corte
no sentido de que os crimes previstos no art. 9º do Código Penal Militar, quando
dolosos contra a vida e cometidos contra civil, são da competência da Justiça
Comum e, em consequência, da polícia Civil a atribuição para investigar (...) ​Não
caracterizada a natureza militar dos delitos imputados ao paciente, resta afastada a
atribuição da Polícia Militar de proceder aos atos investigatórios, a qual pertence à
Polícia Civil, conforme estabelece o artigo 144, §4º, da Constituição Federal. (...)”
(STJ, HC 47.168, Rel. Min. Gilson Dipp, Quinta Turma, DJ 13/03/2006, grifos
ausentes no original)

PROCESSUAL PENAL. CONFLITO POSITIVO DE COMPETÊNCIA. INQUÉRITO


POLICIAL. ADMISSIBILIDADE DE CONFLITO EM FASE PRÉ-PROCESSUAL.
COMPETÊNCIA JUÍZO DA CAUSA. TEORIA DOS PODERES IMPLÍCITOS. I - É
assente na jurisprudência a admissibilidade de conflito de competência em fase
inquisitorial. II - Embora previsto no artigo 125, §4º, da CF, ser da competência da
justiça comum processar e julgar crimes dolosos contra a vida praticados por
militar em face de civil, nota-se que inquéritos policiais persistem no juízo castrense
indevidamente. III - A interpretação conforme a Constituição Federal do artigo 82,
§2º, do Código de Processo Penal Militar compele a remessa imediata dos autos de
inquérito policial quando em trâmite sob o crivo da justiça militar, assim que
constatada a possibilidade de prática de crime doloso contra a vida praticado por
militar em face de civil. IV - Aplicada a teoria dos poderes implícitos, emerge da
competência de processar e julgar, o poder/dever de conduzir administrativamente
inquéritos policiais. Conflito de competência conhecido para declarar competente o
Juiz de Direito da Vara do Júri e das Execuções Criminais da Comarca de
Osasco/SP. (STJ, CC 144.919/SP, Rel. Min. Felix Fisher, Terceira Seção, DJE
01/07/2016)

Ademais, na linha do voto proferido pelo Min. Felix Fisher por ocasião deste último
julgado, não se pode ignorar a existência de um sistema constitucional de investigações
criminais preliminares, talhado em paralelo às regras constitucionais de competência
jurisdicional. Extrai-se da própria Constituição a adoção de uma correspondência material
entre o órgão responsável pela apuração do crime e o órgão jurisdicional responsável por seu
julgamento. É que ao fixar a atribuição dos órgãos de segurança pública para investigar as
infrações penais, a Constituição estabeleceu regras paralelas à competência jurisdicional, de
sorte que a atribuição para investigar corresponde à competência do órgão jurisdicional.

Pois bem. A hesitação que permeia o presente processo surgiu com a publicação da
Portaria nº 475, de 26 de dezembro de 2017, pelo Comandante-Geral da Polícia Militar do
Piauí. Vejamos.
A ​mens legis ​(​mens iuris​) que se extrai do citado ato normativo, a partir da análise
dos considerandos e dos artigos de seu bojo, é a de que competiria à Polícia Militar uma
primazia no acompanhamento e investigação policial, em detrimento da polícia judiciária
civil, mesmo que diante da concorrência de atribuições.

Tal fato gera na prática a uma recognição inconstitucional da atuação militar, que
passaria a ter poderes não legitimados, a exemplo do que dispõe o art. 4º da malfadada
Portaria que concede autonomia à autoridade militar preventa para analisar a conveniência e
oportunidade do compartilhamento de prova, bem como avaliar a necessidade de franquear
acesso ao local de crime À autoridade de polícia judiciária civil.

Temos que o ato normativo questionado, ao extrapolar seu propósito regulamentar,


inova no ordenamento jurídico para inserir comando que contraria diretriz de norma
constitucional estadual, qual seja, o art. 132 da Carta Piauiense. Ou seja, condicionar a
atuação da polícia judiciária civil, inclusive diante de concurso com crimes dolosos
praticados contra a vida de civis, ao juízo de valor formulado pela autoridade militar implica
retirar a atribuição constitucional prevista.

Ademais, não obstante a impropriedade jurídica, o diploma incorre em atecnia ao


utilizar de forma equivocada o termo “crime militar”, ora como sinônimo de crime militar
propriamente dito, ora com o significado de crime praticado por militar. (vide último
Considerando e o art. 3º). Contudo, mais do que um excesso de preciosismo, o equívoco
pode resultar em conclusões distintas.

José Afonso da Silva1 ressalva que o alcance da lei para a definição dos crimes
militares não é irrestrito, sob pena de desbordar as balizas constitucionais sobre a matéria:

1
2 SILVA, José Afonso. Comentário Contextual à Constituição. São Paulo: Malheiros. 2ªed. 2006, p. 588.
[…] 3. CRIMES MILITARES. São definidos em lei. Mas, como dissemos acima, há
limites para essa definição. Tem que haver um núcleo de interesse militar, sob pena
de a lei desbordar das balizas constitucionais. A lei será ilegítima se militarizar
delitos não tipicamente militares. Assim, por exemplo, é exagero considerar militar
um crime passional só porque o agente militar usou arma militar. Na consideração
do que seja “crime militar” a interpretação tem que ser restritiva, porque, se não, é
um privilégio, é especial, e exceção ao que deve ser para todos.

A despeito de a Constituição Estadual, reproduzindo texto da Carta Magna, relegar à


norma infraconstitucional os critérios de fixação da competência da Justiça Castrense, não é
qualquer crime que pode a ela ser submetido, senão o crime militar. E este, por sua vez, não
pode ser qualificado, genericamente, como todos os crimes praticados por militar.

No mais, a Portaria parece retirar fundamento do art. 82 do Código de Processo Penal


Militar. Todavia, o dispositivo em testilha encontra-se derrogado implicitamente pela Lei nº
13.491/2017. Tal artigo funcionava como um norma de transição, de modo que soava ilógico
interpretar a regra do §2º do art. 82 do CPPM, inserida pela Lei nº 8.999/96, como um
contraponto ao comando inserido no então parágrafo único do art. 9º do CPM, sob pena de
chegar-se ao imbróglio de uma das normas ser reputada inútil ou inaplicável.

Assim, ausente fundamento de validade apto a conferir eficácia à norma vergastada e


ante a flagrante contrariedade a mandamento constitucional estadual, não resta outra senão a
proposição do reconhecimento/declaração da sua inconstitucionalidade.

4. DO PEDIDO LIMINAR

À saciedade demonstrado o ​fumus boni iuris​, pela ponderabilidade do direito


alegado, soma-se a ele o ​periculum in mora​. A atual tessitura da legislação contestada,
apontada como violadora de princípios e regras da Constituição do Estado do Piauí, é sinal,
de per si​, para suspensão de sua eficácia até final julgamento desta ação, evitando-se atuação
desconforme com o ordenamento jurídico, criadora de lesão irreparável ou de difícil
reparação.

À luz desta contextura, requer a concessão de liminar para suspensão da eficácia, até
final e definitivo julgamento desta ação, da Portaria nº 475, de 26 de dezembro de 2017, do
Comandante-Geral da Polícia Militar do Estado do Piauí.

5. DO PEDIDO

Face ao exposto, requer-se o recebimento e o processamento da presente ação para


que, ao final, seja julgada procedente para declarar a inconstitucionalidade da Portaria nº
475, de 26 de dezembro de 2017, do Comandante-Geral da Polícia Militar do Estado do
Piauí.

Como pedido subsidiário, fica expressamente requerida a interpretação conforme a


Constituição Piauiense, para que se declare que são crimes militares, na forma do inciso II
do art. 9º, os tipificados no Código Penal Militar e os previstos na legislação penal,
excetuados os dolosos contra a vida e cometidos por militares estaduais contra civil, os quais
ficarão sob a competência investigativa da polícia judiciária civil e serão processados e
julgados pelo Tribunal Popular do Júri.

Requer-se ainda sejam requisitadas informações ao Comandante-Geral da Polícia


Militar do Estado do Piauí, bem como posteriormente citado o Procurador-Geral do Estado
para se manifestar sobre o ato normativo impugnado, protestando por nova vista,
posteriormente, para manifestação final.

Termos em que, pede deferimento.


Teresina, 05 de janeiro de 2018.

CLEANDRO ALVES DE MOURA


Procurador-Geral de Justiça

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